Conteúdo
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
Caso tenha contribuições para melhorar esta transcrição, entre em contato pelo email repositorio.transcricoes@gmail.com.
Tabela de conteúdos
Sutra da Haste de Arroz (Salistamba Sutra)
Retiro 09 a 12/10/2015:
https://youtube.com/playlist?list=PLO_7Zoueaxd55GDWNNzpXIfsLxIFCIruQ
Segundo Dia - Manhã
Nós temos esse tema, que é o tema da originação dependente. E eu vou utilizar esse roteiro do sutra, do Salistamba sutra, que é o sutra em que o Buda apresenta isso, que é o Sutra da Haste do Arroz.
O primeiro aspecto que me chama a atenção é o aspecto de que, por exemplo, especialmente no budismo tibetano os ensinamentos mais antigos do Buda eles são vistos como apresentados dentro da perspectiva do caminho do ouvinte. E aqui a gente vê o poder dos Sutras; quando o Buda dá os ensinamentos, o Buda fala em vários níveis, e, por exemplo, esse Sutra, o Salistamba Sutra, a gente pode olhar na perspectiva do aspecto grosseiro, do aspecto sutil e do aspecto secreto; a gente pode olhar assim, então é o jeito que a gente vai olhar aqui; nós vamos fazer desse modo, desses vários níveis.
Quando nós olhamos esses vários níveis, a gente vê a profunda riqueza dos sutras. É maravilhoso, o Buda podendo explicar isso desse modo, podendo apresentar essas coisas super delicadas, super sutis, apresentar desse modo discursivo, como uma conversa. Esse sutra é um sutra pequeno, são 48 versos. E ele vai tratar desse aspecto: como que as aparências surgem. Isso é super interessante, ele coloca várias questões que não são abordadas usualmente. Quando a gente trata, por exemplo, da vacuidade, naturalmente a vacuidade está imersa aqui dentro; mas quando a gente trata da vacuidade, a gente de modo geral nunca trata esses assuntos assim a esse nível de complexidade. Aqui a gente trata, por exemplo, nós olhando as coisas, e as coisas surgindo como coemergência, etc né. Isso está correto, mas por exemplo, quando nós olhamos um ser vivo né, ele vai começar a colocar essas questões. A gente não consegue resolver até o final, ele não resolve até o final, ele resolve mais ou menos, porque ele levanta muitas questões e essas questões a gente vai ter que seguir elaborando, mas ele traz a base disso.
Então vamos supor, a gente vai olhando as aparências, como a gente toma os seis selos; Guru Rinpoche trazendo esse elemento dos seis selos; aí a gente olha as aparências, a gente sela as aparências com a vacuidade; mas se as aparências são, por exemplo, um pé de couve, aí aquele pé de couve, como é que a gente coloca aquilo que tem vida ou não tem vida? Aquilo existe ou não existe? Como é que aquilo existe e ao mesmo tempo é vazio, né? Então como é que esse ponto se apresenta? Então essa é uma questão interessante. E também ele vai colocar esse aspecto assim, que se apresenta, por exemplo, nos seres humanos: a gente nasce como um bebê, ou no útero da mãe nós somos uma célula se dividindo, mas ainda que a gente seja a sequência daquilo, essa causa é uma causa pequena e o resultado vai ser um resultado muito grande. A gente quando olha para o resultado final, dá uma pessoa de 1,90m, aí aquilo era alguma coisa muito pequena, que vai surgir daquele modo. E esse ser que nasce também, ele vai mudando, vai mudando, vai mudando... então, como é que a gente vai pensar isso, o que é essa semente e o que que é essa sequência, tem algo que se mantém enquanto aquilo acontece, o que que acontece? No caso das plantas também, isso é mais perturbador ainda, porque a planta produz muitas sementes que vão produzir outras plantas né. Então, em cada etapa do desenvolvimento da planta tem uma inteligência operando, e eu tenho uma aparência também, uma aparência grosseira, tem uma outra coisa sendo feita, mas não tem uma passagem clara do que que é a semente, do que vai virar raiz, do que vai virar talo, como é que aquilo vai virando, como é que aquilo vai virando outras plantas depois. Então essa é uma questão interessante.
Nós temos esse desafio de compreender no aspecto sutil, que é onde a causalidade vai ocorrer, no aspecto grosseiro, que é onde as aparências surgem, e no aspecto secreto, que é o aspecto não-dividido. Então a gente tem esse desafio de olhar isso desse modo. Se a gente olhar só aspecto grosseiro, é o samsara usual; se a gente olhar o aspecto sutil, a gente não vai compreender totalmente, porque a continuidade, a unidade disso vem do aspecto secreto, então a gente precisa olhar esses vários aspectos. Então as questões todas que o Buda vai trazendo elas são super interessantes, e ao mesmo tempo elas abrem muitas questões; é muito bonito ele mostrando, explicando a importância originação dependente, explicando que quem vê a originação dependente vê o Buda, vê o Dharma, entende o que está acontecendo.
Então nós vamos olhar esse aspecto todo. Agora, se a gente entrar direto no texto, talvez a gente vá se atrapalhar um pouco; porque o texto ele usa uma linguagem como se os alunos do Buda pudessem entender direto. Então eu acho melhor a gente fazer um sobrevôo na prática e na visão. Eu imaginei, eu vou de novo apresentar aquilo que é a visão né, e a gente olhando isso é mais fácil. Como a gente tem um pouquinho de tempo, nós temos um dia a mais nesse retiro né, então tem essa vantagem. Então eu vou começar, pelo menos hoje de manhã, relembrando esses pontos da visão e depois a gente começa o próprio texto. O texto vai ficar mais fácil, porque a gente tem uma linguagem comum para comentar as partes do texto.
Eu vou retomar aquele aspecto dos blocos, porque ele mais ou menos arruma, assim, a nossa situação, ele permite que a gente veja as várias ênfases no próprio caminho, e a gente situa o que estamos fazendo, que é essencialmente bloco 2. E aí dentro do bloco 2 a gente vê a sequência e arruma o aspecto de visão e aí nós entramos no sutra. Eu to imaginando assim, a gente se arrumar, organizar esse aspecto.
Então ontem a gente passou um pouquinho pelos blocos, assim meio rápido né, e também foi o tema na quarta feira em porto alegre né... mas é que os blocos nos ajudam, quando a gente vai falar de felicidade, a gente vai falar pelos blocos. Qualquer coisa é melhor falar pelos blocos. Porque a gente ve, em cada um desses blocos tem um tipo de visão que se estabelece.
E então, de modo geral, nós estamos no bloco zero. Ontem eu estava trazendo esse ponto, né, na pergunta do Maca, ou seja o bloco zero tem muita inércia; o bloco zero, na conexão com os ensinamentos da originação dependente, ele corresponde ao fato de que os doze elos estão operando de forma sólida em nós. Por exemplo, uma característica do bloco zero é assim, todo mundo tem a sensação de que o dia morre. Nós temos a sensação de que nós estamos vivendo, nós temos a sensação de que a gente é capaz de se descrever, nós temos a visão de que nós tivemos muito sucesso, muito enganos e muitas coisas aconteceram nas nossas vidas. Se a gente olhar para dentro, procurar localizar o que nós somos, a gente termina descrevendo o que a gente gosta e não gosta... isso é o que nós vamos definir como “o que nós somos”. Essas estruturas, a gente pode nem saber a origem, mas aquilo está dentro de nós. Justamente pelo fato de que a gente não sabe a origem dessas estruturas que apontam o que a gente gosta ou não gosta, nós nos fundimos com elas. A gente diz “eu sou isso”, nós temos essa sensação, assim. Também faz parte dessa sensação de estar vivo o fato de que nós operamos com sentidos físicos: a nossa mente se move a partir dos vários estímulos que brotam dos sentidos físicos; aquilo é evidente, assim... a parte mais sutil, que é a parte anterior, os doze elos, os primeiros dos doze elos, a gente tem menos clareza, né... isso exigiria que a gente tivesse uma capacidade de contemplar um pouco. Contemplar, por exemplo, a operação da nossa mente a partir de uma condição onde a gente estivesse livre dos sentidos físicos. A gente aspirasse, assim, é um pouco o que a gente pode viver. Por exemplo, a gente está aqui aspirando, enfim, ver o sol de novo, que aqui faz tempo que a gente não vê. A gente sabe que existe o sol, mas a gente não está com essa possibilidade de [vê-lo]. Então a gente tem uma aspiração. Isso está ligado à sensorialidade: o sol na pele... mas a gente tem uma ideia. Então essa transição, por exemplo, do terceiro e quarto elos, para o elo da sensorialidade, ele está ligado a isso, ainda que a gente imagine e veja e consiga divisar no aspecto sutil e interno, a gente gostaria de ter um suporte, um suporte físico para esse tipo de operação mental.
Então a gente faz essa migração para os sentidos físicos. Ainda que quando nós estejamos diante dos sentidos físicos, a operação dos sentidos físicos, nada do que acontece deixa de ser simplesmente a nossa mente né. Mas a gente não vê. A gente vê como se fossem coisas grosseiras, externas. Agora antes disso tem as categorias mesmo: a categoria do calor, a categoria da luz, etc... são categorias sutis. A nossa conexão com essas categorias sutis, ela também dá uma sensação de identidade. Aí tem o surgimento das próprias categorias sutis. Essas categorias, elas são produtos de uma mente livre, na medida em que essa mente livre não- causal, luminosa, ela propicia esse movimento e essa construção, eventualmente nós ficamos operando sob o domínio disso. E quando nós estamos operando sob esse domínio, surge a ignorância, porque surge uma sensação de bolha de realidade. Aí isso se traduz como o primeiro dos doze elos, que é a ignorância. Então nós estamos operando sob essa circunstância. Essas circunstâncias todas que se traduzem pelos doze elos, são a base do bloco zero. Então o bloco zero tem uma super inércia: nós continuamos agindo assim. A gente pode mudar de ideias e ter outras aspirações, tudo isso vai por dentro do bloco zero. Todos os movimentos políticos, futebolísticos, e qualquer direção que a gente for, nós estamos dentro do bloco zero. Aspirando alguma coisa, e escapando de outra coisa, e estabilizando a energia a partir das aparências. Isso é o bloco zero.
Uma vez que a gente está firmemente fixado nisso, a gente tem a sensação de que a vida melhora quando a configuração das coisas assumem uma outra aparência. Por isso que nós constantemente estamos fazendo esforços: a gente faz esforços de modo incessante para mudar as aparências, mudar a configuração das coisas, de tal modo que enfim a gente possa ficar feliz. Aí quando nós estamos felizes dentro de uma configuração, a impermanência surge de dois jeitos: as configurações mudam e, internamente, quando as configurações não mudam, a gente tem ainda outra impermanência, que é a impermanência interna, ou seja, nós vamos mudando e aquelas configurações já não servem. Elas vão mudando, elas perdem o poder de mobilizar isso.
Aí quando a gente olha o aspecto sutil disso, de um modo geral, no bloco zero nós não vemos o aspecto sutil, a gente vê o aspecto grosseiro; nós estamos na dependência das aparências. Aquilo parece um mundo super simples: nós sabemos porque nós sabemos o que a gente gosta e o que a gente não gosta, nós nos movemos em direção ao que a gente gosta, escapa do que não gosta, e as coisas são concretas. Surge até mesmo uma visão filosófica que vai apontar, que vai estabelecer, vai resolver a questão mostrando que os objetos são separados do observador e que enfim isso molda as visões políticas, as visões históricas, as visões causais de tudo e a coisa é assim e encerramos o assunto. E aí surge uma Ciência, surge uma Psicologia, surge uma Psiquiatria, surge todo um processo baseado na separatividade, na identidade separada de cada um, e assim nós vamos montando, a gente monta o mundo. Esse ponto que nós estamos vivendo agora, a gente está vivendo isso. Então a gente está dentro dessa ideologia do bloco zero, da separatividade, da psicologia, da psiquiatria, da medicina, tudo baseado, a Ciência baseada na separatividade. Nós estamos baseados por exemplo em diagnósticos, nós tentamos caracterizar os objetos de forma perfeita, independentes de qualquer outra coisa, o que eles verdadeiramente são em si mesmos. Isso faz muito sentido dentro dessa abordagem filosófica: o que as coisas são em si mesmas, exatas, e a gente tenta usar métodos experimentais para localizar aquilo como é, e depois a gente tenta mudar as características, trocar aquilo para que aquilo fique de um outro jeito. Mas a gente troca aquilo como se aquilo fosse externo, realmente. Então isso é bloco zero na perspectiva grosseira. Na categoria budista seria isso né, nosso samsarão é isso: bloco zero na categoria grosseira. Nós estamos presos nesse tipo de visão. Se a gente quiser aprofundar o que é essa visão, olha os doze elos; doze elos da originação dependente, que é o nosso tema aqui.
Só que o Salistamba Sutra não se restringe a isso, aos doze elos, ele é a origem dependente. Esse texto é muito interessante porque ele tem dois aspectos: ele tem a origem e o aspecto dependente da origem. A origem manifesta o aspecto luminoso e o aspecto dependente é o aspecto cármico; é o aspecto condicionado. Então o aspecto condicionado ele vai colocar no nível sutil, e o aspecto de origem ele vai colocar o aspecto secreto. É assim, um processo super interessante. Quando a gente vê, em inglês, vai usar origem, ele vai usar arising; arising é mais importante do que o aspecto condicionado. Como é que o arising se dá, né? A gente pode ficar preso ao aspecto condicionado, procurando o aspecto causal todo. Mas o aspecto luminoso do surgimento é o aspecto mais sutil. Quer dizer, ele é o aspecto secreto. Então o Buda vai falando: aspecto condicionado, aspecto aspecto condicionado, aspecto condicionado, daqui há pouco ele diz: mas o surgimento não tem causa, não tem um eu, não tem um condicionamento. Aí então olha assim, ele está descrevendo Buda: ainda que tenha aquilo tudo condicionado, tem um Buda atrás, essa mente totalmente livre. Então a gente vai oscilar dentro desse raciocínio.
Esse mesmo raciocínio é apresentado num texto que é a apresentação de Maitreya sobre a natureza última. Então é o construtor do mundo. Ele também vai apresentar os doze elos da originação dependente, mas ele vai apresentar de uma forma mais direta o aspecto luminoso, o aspecto do arising, não tanto do condicionamento. Aqui (no Salistamba sutra) ele vai dar muito tempo para o condicionamento. Se a gente tiver essa oportunidade nesses dias agora até segunda-feira, a gente olha também o outro texto; o outro texto também é um texto curto de Maitreya. Eu acho interessante olhar isso de um modo conjunto.
Então a gente tem esse bloco zero. Esse bloco zero nós estamos olhando tudo de modo grosseiro, na linguagem budista, de modo grosseiro, separado, portanto, e nós acreditamos numa objetividade e não vemos o nosso mundo interno. O nosso esforço é mudar as configurações ao redor para que a gente faça outras coisas, para que tudo mude a partir disso. Agora, o bloco zero ele vai nos levando a um esforço sempre na direção causal: nós vamos fazendo esforços, vamos alterando nosso comportamento, vamos olhando as coisas em volta como se fosse o jeito de mudar a nossa experiência o jeito de mudar o mundo: nós mudamos o mundo com muito trabalho. Muito muito trabalho. Para nós mudar o mundo significa mudar paredes, mudar chão, mudar tudo. Esse recurso, por exemplo, de acesso à dimensão sutil, que é por exemplo quando a gente percebe que quando nós mudamos dentro as aparências mudam a gente não usa isso, porque nós estamos dentro do aspecto grosseiro, e nós não temos essa capacidade. É uma capacidade super útil; por exemplo, a reciclagem, a reutilização de objetos descartados, ela depende do aspecto sutil, ela não é um aspecto grosseiro. A natureza faz isso o tempo todo: ela vai pegando coisas e transformando em outras coisas. Isso ja é a própria origem dependente. A gente encontra por exemplo as plantas, as plantas são capazes de pegar carbono da atmosfera, pegar nutrientes que vêm do solo, pegar água, pegar CO2 e vão transformando aquilo em folha, em coletores solares, que vão produzindo mais energia que permite elas fazer mais operações desse tipo.
Então é uma capacidade de olhar aquilo que está ali de um outro jeito; olhar e usar praticamente de um outro jeito; então isso é uma capacidade interna, é uma capacidade sutil. Mesmo quando os seres se entredevoram na natureza, eles têm um nível sutil que eles estão usando o próprio corpo; o outro está em um outro nível sutil de visão: quando eles se encontram, um vai devorar o outro. Ele vai terminar usando aquilo que era o aspecto grosseiro do outro dentro da sua perspectiva sutil, ele vai espandir o seu corpo... é um encontro de mundos sutis. Esses mundos sutis vão se entredevorar, vão usar o aspecto grosseiro numa outra perspectiva. É como acontece quando os irmãos brigam em casa: eles puxam uma coisa pra eles, um puxa pra cá, outro puxa pra lá... são mundos sutis que estão redefinindo, olhando de outro modo alguma coisa. Então a gente tem a capacidade luminosa de dar esse nascimento. Olhar para uma coisa e dar nascimento de um outro jeito. Então isso é a base do funcionamento do samsara.
Então dentro do bloco zero a gente não encontra propriamente uma solução. Isso começa a produzir o desconforto que leva ao bloco 1. Então a pessoa por exemplo percebe que se ela fizer tudo direito, ela aprender tudo na escola, andar tudo certinho, fizer tudo direito, isso não resolve. A pessoa vai envelhecendo sempre fazendo esforços, aquilo nunca se resolve. E a pessoa vai terminar se aproximando da morte, ela perde a capacidade de manobrar as coisas, enfrenta as dificuldades finais e morre; ela morre sem solução. Ela pode pensar que a vida é alguma coisa estranha, que aquilo não tem muito sentido, ela pode pensar isso. O aspecto grosseiro, se a pessoa olhar só o aspecto grosseiro...
Então começa a surgir esse aspecto, a gente começa a desconfiar que tem algum problema dentro do samsara, que a gente não consegue resolver as coisas. A gente vai indo, e não consegue propriamente resolver. Então isso abre essa perspectiva. Quando a gente entra no bloco 1, a gente descobre que muitas pessoas ja pensaram sobre isso. A gente pode começar descobrindo pela literatura, aí tem pessoas que olharam... a literatura é muito interessante, porque a gente vê a reflexão das pessoas em meio à vida sobre as coisas, elas começam a olhar de uma forma mais profunda, mas abrangente, com emoções; elas refletem e oscilam em meio à vida, e a gente vê aqueles relatos, vê aquilo acontecendo.
E uma vez, essa é uma dúvida que eu ainda tenho, eu não tenho isso totalmente resolvido. É assim, por exemplo, a gente está estudando agora, está acompanhando o que está aconteceu com a Síria, Iraque, nesses países todos agora a migração em direção à Europa e tudo né. Daqui um tempo os historiadores vão dizer: houve uma época em que houve grande desorganização, houve lutas, as pessoas migraram pra cá, fizeram isso, no fim tal pessoa assumiu o poder e organizou aquilo tudo e enfim tudo se ajeitou. Mas aí tem essa coisa: e como é que as mulheres continuaram dando à luz os bebês, como é que elas alimentaram aquelas crianças, o que elas disseram para eles, o que elas ensinaram para eles, como é que elas passaram umas para as outras o jeito de sobreviver dentro de um ambiente totalmente agressivo, onde elas mesmo eram vendidas entre os grupos; como é que elas fizeram isso para sobreviver? Porque na história a gente vai ouvir assim: elas passaram por isso, passaram por aquilo, bum! Agora, o que aconteceu na mente? Como é que elas - elas e eles né, nesse sentido profundo - foram capazes de sobreviver. Aí vocês olham a História toda, a História é muito ampla, e isso que nós estamos passando agora ja aconteceu muitas vezes em diferentes momentos... mas aí vem assim: a história masculina vai contar naturalmente quem é que venceu, quem é que deu o último tiro, quem é que dominou, quem é que estabeleceu tal coisa, que é o aspecto que realmente importa né... agora, as coisas menores, enfim né... eu to aqui só brincando, só para acordar vocês... mas aí vem essa pergunta né, e como é que as coisas que realmente importam, ou seja, que é a sustentação da vida, a passagem das informações, da transmissão né... como é que isso passou; isso não está nos livros. É curioso que poucas mulheres são autoras desses temas, não tem a perspectiva feminina; eventualmente quando vem uma mulher ela também está na perspectiva masculina, ela não está na perspectiva feminina. Aí alguém me disse: os textos, a literatura conta isso, aí eu percebi, bah, isso é real! Ou seja, quando as pessoas contam as histórias, mesmo que seja ficção, elas têm personalidades, elas têm histórias relevantes que vão contando como é que aquilo se deu. Então não é um relato histórico, é um mosaico de experiências. Aí é interessante, então a literatura é super interessante. Então o primeiro ponto de abertura do bloco zero pode ser a própria literatura: a gente abre aquilo, começa a estudar.
Mas um pouco adiante nós vamos encontrar, também são histórias, são histórias míticas, e todas as culturas têm histórias míticas. Os tibetanos têm as histórias do rei Guésar, e naturalmente os cristãos têm o Novo Testamento. A gente vai encontrar as histórias, na tradição indiana tem o Hamayana, tem as histórias de Krishna, tem as histórias de Rama... elas são histórias arquetípicas, elas vão contando, e a gente vai passando por várias circunstâncias interessantes que eles viveram. E essas circunstâncias elas terminam se refletindo sobre nós, a gente olhando aquilo e aprofundando, como tem também, naturalmente o Antigo Testamento também, que é essencialmente judaico. Então a gente vai olhando essas tradições. Se a gente olhar as tradições indígenas, vocês vão encontrar também relatos. O Daniel Munduruku tem agora, ele pertence a essa Associação de Escritores Indígenas: eles estão contando, eles estão escrevendo as coisas todas. Eu acho isso super interessante. Vocês até podem entrar na internet la, no Daniel Munduruku, vocês vão encontrar uma literatura super maravilhosa, visões muito interessantes da cultura indígena.
Aí a gente começa a contar o que aconteceu. Mas enquanto a gente conta o que aconteceu, aquilo é um pouco mítico, e um pouco real. É como as histórias do surgimento da mandioca, histórias indígenas... como é que aquilo surgiu, a história da lua, do sol, são histórias míticas; aquilo é um pouco literatura mas um pouco não é né... os gregos têm muitas histórias desse tipo também: tem a tomada de Tróia, tem as lutas contra os persas, então tem muitas histórias, no meio dessas histórias a gente não sabe bem o que é verdade e o que não é verdade. Aí os deuses eles tomam partido, eles se colocam no meio das coisas, então tem o aspecto grosseiro e tem o aspecto sutil; tem coisas que dominam a vida dos mortais, aquilo tudo é contado como se fosse sólido. Então essa é uma ficção mágica.
Um pouco adiante nós vamos encontrar também textos profundos sobre a realidade das coisas. Os textos budistas estão nessa categoria, especialmente os sutras. Então tem Ananda perguntando pro Buda coisas profundas, então aquilo já pertence a bloco 1, ele não é bloco 2 propriamente, mas é bloco 1; então nós estamos entendendo o que está acontecendo, começamos a olhar de modo mais profundo tudo. A gente pode ter muitas sensações de êxtase, tipo "uaaaaaau!! Nunca tinha pensado coisas de tipo, como ele é super profundo, aí a gente começa a olhar assim. Então o bloco 1 vai trazer essas características. Vocês vão encontrar em diferentes culturas, como os chineses, vocês vão encontrar o taoísmo também, aquilo é muito encantador; começa a estudar esses textos: Tao-Te-Qin é muito profundo, mesmo a pessoa começa a estudar o I-Ching, vai estudando os textos budistas e aquilo vai apresentando visões que a gente não suspeitava. Assim a gente vai ouvir sobre as Quatro Nobre Verdades, sobre o Nobre Caminho de Oito Passos, e isso vai desenvolvendo um pouco de visão. Mas nesse âmbito a gente não tem propriamente, ainda não é bloco 2. Porque nós estamos desenvolvendo visões, nós estamos desenvolvendo, estamos esvoaçando por várias perspectivas sobre o que seria a nossa vida.
Aí tem um certo momento que nós vamos cruzar para o bloco 2. Esse momento é quando, a gente tendo ja ouvido várias coisas, a gente sente que aquilo é verdadeiro, a gente começa a confirmar isso, pelas leituras cruzadas começa a confirmar, a gente desenvolve uma convicção: isso é verdadeiro, isso é assim, a minha vida mudou, eu sou isso, se eu não aprofundar nisso é como se eu estivesse perdendo tempo. Então a gente tem essa sensação de que não basta a gente ter se dado conta de que as coisas são assim, a gente agradece os textos e os ensinamentos que a gente ouviu. Eventualmente a gente vê que diferentes visões podem ir convergindo em direção a um certo ponto. Mas a gente pensa: "agora eu preciso ser capaz de viver de acordo com isso que eu me dei conta". Mas a minha mente esvoaça em todos os lados, as minhas emoções esvoaçam, eu não sei de onde é que surge isso. Ainda que eu tenha agora, por exemplo, uma convicção de que o mundo tem esse aspecto vazio, ilusório, e que nós temos a capacidade de construir realidades e tudo, ainda assim, quando alguém me incomoda eu vou explodir. Aí cinco minutos depois eu me dou conta daquilo envergonhado, eu não sei de onde é que brota aquilo, eu não sei o que fazer. Por que? Porque eu entendo isso, mas aí a pessoa começa a falar, começa a falar falar, começa a me irritar, mas aí eu fico lembrando: "não, mas o Buda diria isso, diria aquilo", mas daqui um pouco eu estou brabo, eu não sei bem porque aquilo não funciona. Também, eu tenho essa natureza profunda, como todos os seres têm, aí eu sento em meditação, e não aparece nada profundo, só aparece um turbilhão, uma confusão... então, como é que eu faço?
Aí quando a gente começa a perguntar pelo método, nós estamos entrando no bloco 2. A gente descobriu que não basta eu me dar conta das coisas, mas é necessário desenvolver algum tipo de habilidade. Então a gente sente: "uaaau, e agora? Como é que eu faço?". A gente folheia o Tao-Te-Qin, aí ali não tem uma instrução. A gente folheia outros textos: "uaaau, aqui não tem uma instrução... como é que eu faço? Como é que eu sento para meditar?". Aí não tem a instrução. Aí nós começamos a buscar, então; a gente aspira encontrar um método para poder seguir. Então isso é tipicamente bloco 2: método. Aí nesses métodos a gente tem, naturalmente, a perspectiva - aí surgem as várias perspectivas desses métodos.
Como nós estamos, de modo geral, no samsara, e o samsara opera pelos doze elos, pelo gostar ou não gostar e pela sensação de que as coisas são separadas de nós, mesmo que a gente esteja no bloco 1 e ja tenha entendido algumas coisas, nós temos uma visão separativa completa: as coisas são separadas de nós; nós existimos, claramente nós existimos, e as coisas são separadas de nós, se relacionam conosco. Então a gente tem essa visão, assim, totalmente consolidada. Porque nós temos essa visão consolidada quando a gente pensa em seguir um caminho, tem alguém seguindo um caminho. Eu não vou dizer que isso é um empreendimento não-auspicioso né, destinado ao fracasso, porque enfim, é o que a gente pode fazer. Mas a gente vai entrar com essa fragilidade, nós vamos entrar na perspectiva de nós mesmos: nós temos alguém, assim, isolado. Então a gente está longe de Boddhichitta, nós estamos longe da mente ampla, mas a gente entra no caminho... podia entrar na olimpíada, campeonato mundial de futebol, mas nós vamos entrar no caminho do Buda... Eventualmente pode surgir até mesmo uma sensação de a gente olhar para o outro e "ah, o outro está perdido, está buscando dinheiro, eu não...aliás, mas se ele me emprestasse um pouco era bom". Aí tem essas contradições. Essas contradições são melhores dentro da família, né: tem os irmãos perdidos: trabalhando, ganhando dinheiro, fazendo tudo... perdidos né, claro. Nós somos os seres espirituais... nós somos os seres espirituais, mas nós somos seres espirituais pelados né, nós estamos com um problema. Então melhor, eles ganham dinheiro e transferem parte do recurso, assim eles financiam o caminho espiritual... seria o correto, mas eles são insensíveis, horríveis, não dá, não tem diálogo, não tem como... (risos). Então essas tensões são muito ricas, são maravilhosas. Porque quando a gente diz para eles que a vida deles está perdida, eles podem ficar brabos, mas aquilo faz sentido também em algum nível. Quando eles olham para nós e dizem que nossa vida está perdida, eles também têm um pouco de razão, então aquilo é bonito de ver... aí os irmãos enriquecem suas vidas mutuamente. A gente pode ter outras intepretações, mas enfim, é isso.
Aí nós estamos seguindo; então tem um "eu" ali, nós temos um eu pessoal. Vocês anotem aí, é um aspecto sutil que a gente vai levar muito tempo para se livrar, é uma noção empreendedorista que a gente tem: agora a gente vai entrar no caminho espiritual, tem um empreendedor: "agora eu vou", então tem uma vontade, tem um voluntarismo, então a gente acredita, porque isso pertence ao samsara: no samsara, a gente tem toma ideias, persegue ideias e vai em frente... a gente acredita num processo de vontade, num processo de liderança, num processo de sacrifício, num processo de se mover passo a passo e chegar a algum lugar. A gente acredita nisso, isso é um método do samsara. Vocês até podem olhar com cuidado, vocês olhem com cuidado. Claro, eu vou dizer isso para vocês, vocês talvez esqueçam; aí quando eu digo que talvez esqueçam é porque eu aspiro que vocês não esqueçam, mas se vocês quiserem saber como é que vocês andam, vocês vejam se vocês estão se movendo desse modo. "Eu tenho isso, agora tenho isso aqui, e vou fazer 5 passos, e vou chegar em tal lugar, e agora eu vou! Grrrr!!". Aí tem coisas ao redor nos hostilizando, mas nós vamos. Tem um ditado árabe que fala um pouco sobre isso: "Enquanto a caravana passa, os cães ladram". Nós somos a caravana, naturalmente; os cães ladrando são os irmãos: "Au! Au! Au!", são os colegas, são os ex-namorados, naturalmente. Então aquilo é uma coisa um pouco heróica: a caravana passa, entende? Mas essa noção da "caravana passa" tem uma noção de uma identidade, entende? Nós estamos querendo provar alguma coisa, mas tudo bem, por enquanto a gente não sabe fazer de outro modo, a gente vai indo assim, mas tem esse aspecto empreendedor, tem esse aspecto de movimento. Isso caracteriza, se vocês olharem com cuidado esse aspecto empreendedor, ele caracteriza o método usual do samsara. No samsara também, a gente só vai a algum lugar com esforços, com uma caravana que passa enquanto todos ladram, os cães ladram, nós vamos indo assim. Isso é uma visão do samsara. Aí nós tomamos o método do samsara e botamos um outro objetivo, e vamos usando o mesmo método. Está bem, depois nós vamos ter que abandonar, mas o próprio andar nos permite ver isso. Tem essa imagem do Osho também, o regato entrando no deserto: ele não vai atravessar o deserto; a caravana também, entrou no deserto, ela não vai atravessar o deserto... mas tudo bem, nós estamos indo. Agora, o que vai acontecer? Tcham-tchararam!
Mas no início tem essa sensação, agora quando nós estamos indo, tem um "eu" indo ali, mesmo que a gente diga "esse 'eu' é ilusório". Mas ele está ali operando, na falta de outra coisa melhor, aquele eu ilusório está operando. No samsara, a gente sabe direitinho como é que a gente vai operar: tem os cães e temos nós na caravana, tem aquilo que atrapalha e tem aquilo que anda. Então a gente aprendeu a fazer um nível de sacrifício, levar umas mordidas, umas picadas, mas manter a rota, aí nós vamos andando dentro dessa rota. Isso vai caracterizar, no caminho budista, vai caracterizar o caminho do ouvinte: aí eu vou obecer regras que correspondem à caravana andando, e eu vou me relacionar com aflições ao redor. Essas aflições ao redor são os cães ladrando. Vou ter que lidar com aquilo, esperando não cair sob o poder dos cães, mas eu poder andar, eu poder chegar ao ponto final. Então tem uma sensação de ponto final, tem uma sensação de treinamento e ponto final. Mas está bem, porque no início nós não temos outra opção, nós vamos seguindo assim. E parece que não há outra opção, parece que qualquer outra opção é um engano. Aí nós seguimos desse modo aqui. Pode surgir num certo momento um som da segunda volta do Dharma. A gente está indo e daí alguém diz: "Você nunca pensa nos seus 8 filhos que ficaram para trás? E nas 5 ex-esposas?" "Ops! Não, não posso pensar nisso, agora a caravana segue..." É que os cães não só ladram, mas eles falam também. Aí nós "ops!"... "E você não pensou que... você não se lembra da imagem da sua mãe se despedindo de você enquanto a caravana estava partindo, a sua mãe enxugando as lágrimas, se despendindo? Será que ela está viva ainda?" A pessoa "ops! Bom, isso são os cães falando, eu vou seguindo..." Aí começa a surgir essa questão: e os outros seres, eles existem ou não existem? Eles importam ou não importam? Isso é um empreendimento meu? E para seguir esse empreendimento, qual é o custo sobre as outras pessoas? Eu não tinha um nível de responsabilidade sobre os outros. Ta certo que isso é uma abordagem do samsara, aí são os cães ladrando "auauau", mas a pessoa como ela tem um empreendimento, ela vai seguindo.
Eu lembro, nesse ponto, uma vez, muitos anos atrás, acho que foi na década de 1970, uma pessoa que narrou um pouco isso. Aí ele diz: "Um dia, eu estava numa praia no Uruguai, depois de muitos anos perseguindo um caminho. Então na praia no Uruguai eu pensei 'o que estou fazendo aqui? Eu acho que eu perdi a minha vida'". Aí ele voltou. Então quando eu encontrei com ele, ele estava de novo vivendo uma vida de família, mas estava com uma cara estranha, porque ele estava vivendo uma vida de família, mas a mente dele estava numa outra perspectiva. Mas ele não tinha conseguido juntar isso. Ele quando estava fora, estava perturbado, agora ele está dentro, e continua perturbado. Ele não tinha conseguido pacificar. Porque enfim, ele volta para uma vida no bloco zero, mas o bloco zero não resolve, entende? A pessoa ja sabe que aquilo não resolve. Aí a pessoa está no bloco 1, tentando o bloco 2, mas ela olha os outros todos e ela se desajeita, e ela não tem como. Aí então tem duas saídas, uma verdadeiramente Mahayana e outra que volta para o caminho do ouvinte. A que volta para o caminho do ouvinte é assim, a pessoa fala: "olha, nesse momento eu não tenho como prestar benefícios. Se eu voltar, eu não tenho como ajudar; é como eu voltar para um navio que vai colidir: eu não tenho como mudar o rumo do navio, eu posso escolher de morrer junto com todo mundo, mas isso não adianta muito. Então o que eu vou fazer é assim: eu vou seguir aqui, esperando que o outro navio não bata imediatamente. Aí eu vou la, descubro uma saída e retorno. Mas enquanto eu não descobrir uma saída, é inútil eu retornar". Então esse é do caminho do ouvinte o argumento que me permite manter, mesmo com dor, manter esse foco. Então eu lembro de ouvir aqui, mesmo nessa sala aqui, teve um professor o Bacha Rahula, ele é da linhagem Theravada, e a gente perguntou para ele isso. Então isso é um argumento, e é um argumento interessante.
E aí tem o argumento Mahayana mesmo, que é assim: "enquanto eu ando no caminho, a minha prática já é, onde eu estiver, eu vou transformando obstáculos em remédios. Então a prática não é separada dos outros: enquanto eu pratico, eu ja estou encontrando soluções, eu ja estou encontrando meios de beneficiar os seres. Então minha prática em nenhum momento é separada. Se faltar esse objeto, o objetivo de trazer benefício aos outros, aí o caminho ja está prejudicado, a energia ja nem aparece. Aí tem esse upgrade também, especialmente aqui eu tenho enfatizado constantemente, é o fato de que tem o nascimento no lótus. Então a gente vai fazer essa experiência, então nós somos iogues do cotidiano, não estamos separados, a gente não vai se isolar, a gente não vai separar a vida, mas a gente vai fazer várias coisas: a gente faz uma coisa, depois faz outra coisa, outra coisa, outra coisa, e vai girando. Mas nós temos contatos com o mundo, então no meio desses contatos com o mundo, a gente testa, às vezes testa mesmo, significa "bater com a testa", dá uma "testada", vai "testando" (risos). Esse testar o que é? É assimÇA gente acredita que as coisas são de um certo jeito, acredita que tem um método, acredita que sabe como é que faz, vai la e testa, e aí aparece o galo assim. Então aparecem os nossos obstáculos. Eu acho isso muito útil, muito muito útil, esse processo em que a gente estuda um pouco, medita um pouco, faz um pouco de retiro, estuda em grupo e testa. Não tem melhor processo de qualidade, de avaliação de qualidade do que o próprio movimento em meio ao mundo, com certeza.
Aí nós começamos a olhar, as circunstâncias sempre são o mestre, elas aparecem e são o mestre; isso é maravilhoso... mestre implacável, implacável... Implacável por quê? Porque tudo o que se move em volta da gente está cheio de apegos rígidos: a gente não consegue flexibilizar o apego. Quando tu encontra os outros seres, sejam eles esposa, marido, pai, mãe, irmão, filhos, os seres que estão no bloco zero são rígidos, por isso que estão no bloco zero, eles não estão dispostos a flexibilizar. Então quando nós estamos indo, a gente vai testando se nós temos... quando a gente bate, é porque estamos inflexíveis também, aí nós localizamos isso. A gente olha essas regiões de apego, olha porquê, e vai se movimentando. Então essa habilidade de andar em meio ao mundo é super útil. Então, por exemplo, a organização de uma aldeia, a organização de eventos, funcionamento, gestão, etc, isso é o ponto de prática nesse nível. A pessoa vai praticar direto. Eu acho muito necessário isso. A gente precisa ter bastante confusão para poder purificar as nossas relações, as nossas coisas. Aí nós vamos avançando. Isso envolve, por exemplo, manter Boddhichitta, manter Rigpa, manter lucidez, manter vacuidade, manter luminosidade, ser capaz de construir outros contornos. Aí com isso nós geramos diretamente, dentro da abordagem Mahayana, nós geramos outros métodos, outros meios de fazer as coisas funcionarem. Então é muito útil, a gente vai trabalhar a vacuidade de modo direto.
É muito bonito no meio do mundo, porque o mundo é regido por.... não existe o mundo do bloco zero: o mundo do bloco zero é a coisa ampla vista de um modo estreito. Esse é o bloco zero. Não quer dizer que o bloco zero seja sério, não é... o bloco zero não é sério, as coisas _não são_bloco zero. Elas parecem bloco zero quem tem uma mente zero. Esse é que é o ponto: aquilo tem um tipo de visão aquilo aparece daquele modo: se a pessoa tem a mente do bloco zero, ela vê o bloco zero. Mas quem tem a mente mais ampla olha com outras possibilidades, ela vê outras rotas causais. Então essa capacidade de ver as outras rotas, isso inclui a vacuidade. Então isso é treinamento direto do bloco 2, nós já estamos em treinamento; então a gente medita um tanto, estuda um tanto, estuda em grupo, mantém um tipo de rotina e interage de vários modos. Assim a gente vai avançando. As nossas neuroses, as nossas aflições, as nossas fixações cármicas, tudo aflora, e isso aflora nas relações. Está certo que quando a pessoa não tem isso nas relações, a pessoa sozinha mesmo, num retiro ela faz aquilo aflorar. Tem menos oportunidades, mas a pessoa aflora. Às vezes aquilo aflora de um jeito que a pessoa não consegue lidar, mas aquilo vem também.
Então surge bloco 2. Esse bloco 2, como nós estamos andando, é um bloco 2 na perspectiva Mahayana; ele é regido pelo nascimento no lótus. Se a gente incluir, por exemplo, nesse aspecto Mahayana, a gente inclui a vacuidade e a luminosidade, ou seja, nós percebemos que a gente gostaria de trazer benefício aos seres, que é o aspecto Mahayana, a gente se move para trazer benefício aos seres, a gente alia esse aspecto Mahayana com esse aspecto da vacuidade, que também pertence ao Mahayana – Prajnaparamita – e a gente alia isso ao fato de que as realidades vazias, elas são vazias porque as aparências são essencialmente luminosidade, quando a gente vê isso, a gente vê que o vazio é inseparável da luminosidade – a gente não tem como falar de vazio sem falar de luminosidade, ou seja, as coisas são vazias porque elas são luminosas, elas surgem desse modo. O Buda usa esses exemplos muito interessantes, ou seja ele diz: é como um círculo, feito por uma brasa que gira; então a gente pode fazer uma brasa girar à noite e surge um círculo; as aparências são assim.
Quando a gente olha essa explicação do Buda, a gente olha sob o ponto de vista grosseiro, a gente não entende bem... mas por exemplo, a brasa está girando, aí surge um círculo: eu concebo um círculo com a minha mente. Eu não tenho como ver o círculo da brasa se eu não tiver esse círculo dentro. Aí quando eu tenho esse círculo dentro, ao olhar a brasa girando, eu concebo, através do próprio processo de visão, eu concebo um círculo. Esse círculo não existe, mas ele passou a existir. Então a substancialidade desse círculo é a luminosidade da minha mente: eu só tenho uma brasa girando, mas eu vejo um círculo. Então esse círculo é inseparável da luminosidade da minha mente, portanto ele é vazio. Quando nós olhamos, por exemplo, um filho, a gente diz “uau! Que lindão!”... a gente olha assim né. A gente não pensa que aquilo é uma brasa que gira. Mas se a gente tirar uma fotografia do filho, olha uma foto; quando a gente olha a foto, aquilo é uma brasa que gira; aí quando eu olho a foto, eu vejo e digo “oooh, que lindão!”, eu estou me referindo a uma imagem interna. Quando a gente olha para a criança, a gente pensa “eu estou vendo ele”, a gente não está vendo ele, nós estamos vendo uma brasa que gira. Porque a gente vê a brasa que gira, pode ser que venha o tempo e a gente diga “esse meu filho que eu pensei que era isso, que era aquilo, agora ele é um monstro, ele é não sei bem o que, ele é insensível, ele ia seguir um caminho, agora virou monge não sei aonde, nunca mais escreveu para o pai, que horrível!”. Aí é outra brasa que está girando. Nós nos relacionamos a partir de brasas que giram, pessoal, a gente fica olhando sempre... a gente aponta o outro, mas o outro é uma brasa girando. Essa brasa eu vejo de um certo modo, e a maior prova disso é que eu vejo de um certo modo, depois eu vejo de outro modo, depois eu vejo de outro modo, e aquilo vai indo. Um aspecto interessante é que o passado é uma brasa que gira; e o futuro também é uma brasa que gira. Então por exemplo a gente descreve: “eu vi esse menino nascendo, eu vi isso, eu vi aquilo...” a gente não viu nada! A gente só viu brasas girando. Se não fosse assim, a cada dez anos o passado não mudava, mas o passado vai mudando. Cada vez que a gente tem um novo pensamento, a gente olha a partir daquela visão, a gente olha tudo o que passou, aí o passado todo muda, o passado se realinha. Por quê? Porque o passado também é uma construção desse tipo. Então essa é a compreensão da vacuidade: a vacuidade é vacuidade porque a realidade é luminosa. Eu nem preciso falar de vacuidade, basta eu dizer “a realidade toda brota pela luminosidade da mente”. Aí quando eu digo que a realidade surge assim, aquilo que eu vou chamar de luminosidade, aí eu posso também dizer “portanto, é vazio”. Então isso é o Prajnaparamita: forma é vazio, vazio é forma. Quando a gente vai falar aqui de Origem Dependente, origem, arising, é a luminosidade: assim as coisas surgem. É uma luminosidade que produz aparências sob referenciais, que é o aspecto dependente, e assim surgem as aparências todas. Quando nós entendemos a origem dependente, nós entendemos a mente do Buda, porque a mente do Buda é isso, ela olha com esse olhar, entende? Isso é Rigpa, isso é a mente do Buda.
Aí no bloco 2 nós estamos seguindo isso. A gente poderia ter tomado o caminho do ouvinte, estreito, mas nós estamos tomando o caminho Mahayana, só que agora a gente está entendendo vacuidade e luminosidade. Quando nós entendemos vacuidade e luminosidade, a gente entende que a realidade é mágica. Aí eu posso entender o que é chamado Mandala-Vajra: que em vez de eu criticar as aparências, eu digo que as aparências são mágicas. E elas são né. Porque não só elas são luminosas e vazias, mas nós podemos nos relacionar a partir disso, encontrar uma objetividade, nos movermos e tem uma causalidade dentro das realidades vazias. Às vezes a gente fica um pouco confuso: como pode ter uma causalidade compartilhada dentro de uma realidade que não tem substancialidade? Mas aí é melhor olhar isso através de exemplo, como o jogo de xadrez, o jogo de futebol: as crianças se juntam, marcam duas goleiras, coloca o chapéu dum, o sapato do outro, e aquilo virou goleira; aí uns estão para um lado, outros estão para o outro, pega uma bola... agora a gente tem bolas sérias, de um modo geral, mas eu lembro perfeitamente das bolas de meia: maçarocando aquilo, mais uma meia mais uma meia, aquilo vira uma bola ótima, tu vai jogar com uma bola de meia. Aquilo pode chutar, é super macia aquela bola... aí aquela bola nem é bola... a goleira nem é goleira, o time nem é time, mas aquilo se torna realidade e tem uma objetividade ali dentro; tem emoção dentro da objetividade, aquilo acontece.
Então a gente vê: no aspecto do bloco zero, aquilo é real. Sempre vai ter alguém dizendo: “não, aquilo foi falta, ele não podia ter chutado aquilo, a bola já tinha saído quando ele não-sei-o-que, e a bola não entrou, e aquilo bateu no sapato, bateu na trave, no caso né, e aquilo já estava fora e o outro chutou, e eu vou-me embora, vou levar minha bola, e acabou o jogo, uma coisa assim. Isso é bloco zero, a gente leva a sério. Aí sempre vai ter alguém no bloco 1 dizendo: “não, eu vou treinar melhor, eu vou chegar lá”. Aí tem alguém no bloco 2 dizendo: “não, isso aqui, enfim, não é tão problema, estamos aqui brincando”. Aí tem uma perspectiva assim, mas aquilo é luminoso e vazio; nós estamos jogando um jogo luminoso e vazio. Então quando a gente vê aquilo, tem muitos exemplos de jogos luminosos e vazios, a gente começa a olhar, de repente, e se vê nos jogos luminosos e vazios. O TrungpaRinpochefoi fundo nisso. Eu acho que o teatro é um método super hábil para trabalhar as realidades vazias e luminosas. A gente não está usando isso ainda, mas eu acho isso muito útil. E o Trungpa usou um teatro vivo, e aquilo é super bonito. Aí vocês vão olhar a biografia dele, tem várias biografias dele, mas uma das coisas que me chamou a atenção, ele lidando, ele lidou de modo teatral, de modo geral, em vários âmbitos. Ele botava terno e gravata, sentava para dar ensinamento, e uma garrafa de uísque. Eu estou tomando chá verde com limão e gengibre, ele tomava uísque. Está certo que ele morreu de cirrose, mas aí ele espelhava as pessoas, entende? Os americanos usam terno e gravata e tomam uísque. Aí ele simulava que estava bêbado. Aí, de repente alguém fazia uma cara assim, aí ele dava um ensinamento claríssimo. Ele gostava de produzir esse choque. Aí, por exemplo, ele montou um exército, naturalmente ele era o marechal, não sei qual era o cargo que ele tinha. Aí as pessoas estavam todas vestidas com roupas militares. Aí ele montava num cavalo, e passava a tropa em revista... todos os galões, todas as coisas... e as pessoas todas perfiladas. Então ele criava um teatro vivo. Nós vamos aqui montar um exército Farroupilha (risos). O fogo Farroupilha (risos). Aí dentro de uma sociedade militarista, ele ao mesmo tempo invocava isso; aí muitas pessoas tinham a sensação - acho que elas se confundiam: "precisamos vencer, o Dharma tem que vencer!" alguma coisa assim... é muito bonito isso. Então ele ia quebrando, de modo teatral, essas várias experiências. Aí vocês imaginem o Jader montado num cavalo passando... claro, com a barba aparada, né Jader, com os galões... um sargento (risos).
Então esse é um aspecto. Aí tu cria aquele aspecto luminoso; então, a realidade é toda assim. A gente descobre quando está trabalhando numa empresa e aí recebe uma condecoração, o melhor funcionário da semana (risos), funcionário destaque da semana. A gente ganha uma condecoração: "eu ganhei uma condecoração, ano passado eu fui destaque da semana!". A gente vai construindo identidades. Então a realidade é toda assim, ela é luminosa; vazia e luminosa, a gente vai construindo, e aí a gente vê esse aspecto. Aí com o tempo a gente pode olhar as próprias e dizer "não, mas isso é uma brincadeira". Agora segunda-feira, que é segunda-feira mesmo, eu to indo pro meu trabalho que, enfim, é um lugar sério, aí daqui ha pouco a pessoa começa: "talvez isso também seja assim", aí a pessoa começa a ver o aspecto luminoso da realidade.
Eu acho super importante a gente perceber que essa visão é diferente da visão do caminho do ouvinte; no caminho do ouvinte nós somos super sérios, nós somos inimigos o samsara, vocês entendem? Nós somos inimigos da ilusão; a ilusão é Maharaja, Maya e nós puxamos uma espada: eu posso perder, mas eu vou lutar! Então tem uma noção, tem alguém que vai vencer, tem um herói ali que vai vencer. E aqui, aí aquilo começa a ficar numa outra perspectiva. No caminho Mahayana eu ainda puxo a espada, e eu vou defender a mim e aos outros. Nessa perspectiva, tu não tem espada, puxa o olhar: aí tu olha para as coisas; aí tu vê como é que essas coisas aparecem. Então, por exemplo, a ilusão, o samsara é aquilo que revela como a realidade aparente, ilusória, surge. Nós não temos nada para reclamar do samsara, porque o samsara revela a si mesmo. Eu só chamo de samsara porque eu não estou vendo direito. Quando nós olhamos de uma forma mais perfeita, nós estamos vendo como é que é a gênese daquilo. Então não tem um mundo externo que esteja me enganando; não está me enganando porque estou vendo como é que é! Então como é que eu vou reclamar daquilo? Eu não tenho nada para reclamar! Eu estou olhando, espantado, como as aparências surgem do jeito que aparecem. Aí nós entramos na perspectiva Vajrayana, Mahayana-Vajrayana, nós temos a aspiração de trazer benefícios aos seres, os seres estão presos dentro das várias perspectivas, mas a realidade é luminosa e vazia.
Aí nós vamos avançando dentro disso, e esse caminho vai se tornando mais profundo, mais complexo. Aí a gente vê, por exemplo, eu vejo a realidade como vazia e luminosa, mas eu não consigo olhar nada fora sem olhar dentro. Aí vem a pergunta: "quando eu vejo aquilo como vazio e luminoso, o que que eu tenho dentro para olhar desse modo?". Aí a gente descobre: "o que eu tenho dentro para olhar desse modo é a ausência da fixação nos vários referenciais que produzem o funcionamento dos mundos convencionais".
Então vamos supor, vocês estão indo para o trabalho, assim, seis e meia da manhã saíram aqui de Viamão, em direção à Protásio, pela Caminho do Meio em direção a Porto Alegre. Essa é uma experiência impactante, porque vocês vão andar e parar, andar e parar, andar e parar, aí dá tempo para pensar: "o que me obriga a ficar condenado a isso? De segunda a sexta, às seis e meia eu saio". Cada dia eu saio cinco minutos mais cedo para ver se consigo escapar do tráfego, e não consegue. Aí a gente começa a olhar assim: "o que aconteceu na mente de tantas pessoas que elas estão condenadas a esse tipo de situação?". Ainda mais nessa época né; um parou ali porque furou o pneu, o outro parou porque entrou no buraco, aí outro parou porque entrou no buraco, outro parou porque entrou no buraco... aquilo é bonito. Aí a pessoa trocando o pneu e chovendo, assim... a pessoa olhando para o relógio, se embarrando... interessante. Mais bonito ainda é quando a pessoa volta à noite, aí ela pensa "não, vou voltar um pouco mais tarde", aí o tráfego está mais livre, aí a pessoa vem mais rápido, entra no buraco com mais chance de furar. Aí de noite, nessa região que é super segura, sempre vai aparecer alguém do lado ali, com certeza. Aí enquanto a pessoa está ali trocando o pneu, pode ser que ela comece a olhar sua vida de uma forma mais ampla: "será que não teria um outro jeito?". Vamos supor, todos os galões que eu tenho, todas as condecorações, todos esses cargos tão importantes né... mas será que não teria um outro jeito? Então a gente começa a olhar isso. Quando a gente começa a olhar isso, significa que nós estamos saindo da bolha onde nós estamos operando. Então tem esse ponto super importante.
E assim, a gente está nas bolhas de realidade, mas a gente pode estar fora das bolhas: existe vida fora da bolha. Isso não é fácil de entender, porque de modo geral a gente pensa que só é vivo dentro da bolha. Mas aí a grande contribuição do Buda é essa: existe vida extra-bolha! Na verdade na verdade, nós somos OVNIs, nós estamos fora da bolha. Isso é o que eu diria em Alto Paraíso. Então vai surgir essa noção super importante: nós não somos essas identidades, essas identidades surgem quando nós estamos operando dentro de referenciais fixados, essa é a origem dependente. Mas agora eu estou olhando fora disso. Quando eu olho fora, brota a visão lúcida. Então essa visão lúcida nós vamos chamar de Sabedoria Primordial. Naturalmente, também tem essa experiência, eu saio de uma bolha e estou em outra. Então, a Sabedoria Primordial é quando a gente saiu e não tem bolha nenhuma. Tchan! È assim. Aí a gente saiu e está olhando desde essa perspectiva não-condicionada. Essa perspectiva não-condicionada nós vamos chamar de Mãe Darmata. Eu acho isso um pouco sexista, não vou nem reclamar, mas o Buda chamava de Mãe Darmata, tudo bem, mas eu acho isso um pouco sexista. Deveria ser Pai e Mãe Darmata, alguma coisa assim. Como se os filhos só pudessem existir pela existência das mães: tendo mãe, tem filho, não tendo mãe, não tem filho; como se uma pequena contribuição masculina fosse descartada, não entendo bem isso, mas...
Mas aí, Mãe Darmata. Por que vamos chamar de Mãe Darmata? Porque essa visão desse lugar livre é onde nascem os Budas. Os Budas nascem da Sabedoria Primordial. A Sabedoria Primordial também é chamada de mãe. Então de lá brota a visão dos Budas. Então essa capacidade de ver desse modo é a Sabedoria Primordial. Então Buda descobriu isso; Buda descobriu: há vida fora das bolhas e isso é Darmata. É como se a gente dissesse: existe vida fora da Terra, no espaço; existe o espaço, pessoal.
Isso se diz que foi o Giordano Bruno que deu a vida dele para explicar isso. Até o Giordano Bruno a vida existia dentro de uma calota, que não era uma calota, era como se fosse o mundo inteiro, com as estrelas, aquilo tudo assim... aí Giordano Bruno foi até aquilo e espiou: "uau! Tem o espaço! Espaço infinito, incríve!". Aí ele voltou: "Pessoal, tem o espaço! Nós somos uma pequena coisa no meio de uma coisa super vasta". Aí naturalmente naquele tempo a Igreja não gostou. Aí eles deram um tempo para ele, deram um tempo para ele se retratar, deram oito anos de prisão para ele mudar; aí ele foi a julgamento; ele disse "olha... queria dizer diante de vocês, aqui, todos..." - eles deram a palavra para ele - "vocês são sábios, vocês têm uma motivação, e eu queria explicar para vocês que nós realmente vivemos..." - aí todo mundo pensando "oh, ele vai se retratar!" - "A gente vive dentro disso, mas tirado esse véu tem o espaço infinito!" Aí "Morte! Matem ele!" e pronto, queimaram ele. Queimaram. Aí eu sempre pensei que a morte por queimadura era horrível, mas outro dia eu estava estudando Primeiros Socorros, agora eu estou fazendo um curso super interessante, e fiquei tão feliz... queimadura de primeiro grau dói; queimadura de segundo grau dói, mas queimadura de terceiro grau não dói, vocês entendem? Fiquei super feliz pelo Giordano Bruno. Aí a pessoa sofre uma queimadura de terceiro grau e não tem mais pele. Aquilo está preto; assim, um pouco de preto, um pouco de fuligem, um pouco de cinza, a pessoa... porque todas as terminações nervosas queimaram. Eu fiquei super feliz: ele agarrado na cruz [queimando], ele pensando no espaço, só dá uma ardenciazinha, depois ja termina; consome inteiro e não dá grande problema... fiquei feliz por ele.
Aí vocês vejam: daí a pessoa viu aquilo, mas o Bloco Zero: consolidado, né. Aliás, bloco zero consolidado mas sujeito a algum tremor. Se não tivesse um tremor, não teriam queimado ele, com certeza. Mas aí tem essa visão, aí tem o espaço. Aí o Buda descobre isso também, existem as bolhas: nós não estamos presos nas bolhas, pessoal. Tem espaço além das bolhas, e esse espaço é Darmata. Quando a gente olhar as coisas sob o ponto de vista desse espaço, então nós temos uma visão ampla sobre o surgimento das bolhas e as aparências daquilo; a gente não se opõe às bolhas. A gente vê que as bolhas são luminosas, são realidades luminosas, elas podem mudar. Existe uma originação dependente dentro das bolhas, existe uma coerência, existe uma causalidade que opera ali dentro, e a gente pode sorrir para aquilo; aquilo funciona. Então nós podemos entrar nas várias bolhas, e aí surge aquilo que é chamado de visão Tatáta, o Buda vai descrever isso, visão Tatáta, que é assim: a pessoa vê o mundo condicionado operando, entende o processo, mas a pessoa está olhando de fora da bolha. É como por exemplo, vocês não precisam trabalhar de segunda a sexta, não estão fazendo isso, mas de vez em quando saem aqui às seis e meia da manhã para ir até Porto Alegre; vocês não estão com a sensação de que vocês pertencem a isso, mas a gente está ali dentro passeando por dentro, dizendo "uau! que mundão, hem! Bah... como é que tantas pessoas podem ter esses condicionamentos e operar desse modo nesse tempo?". E parece que esse é o mundo normal, mas esse é o mundo que está destruindo o planeta inteiro! Isso não vai a lugar nenhum. Nem mesmo produz felicidade para eles. Mas eles, como um tipo de condicionamento, eles vão seguindo, como se não houvesse outro jeito. Se eles parassem um pouco e olhassem cinquenta anos atrás como é que eles andavam, cem anos atrás como é que as pessoas andavam, tinha outros condicionamentos, e as pessoas faziam aquilo como se fosse impossível ser de outro modo.
Se a gente estivesse numa sociedade rural, por exemplo, super difícil de sair. Por que? Porque tu sai, e aí quem é que vai cuidar das vacas, cortar, tirar o leite, e fazer não sei bem o que? E quem é que vai roçar agora e quem é que vai semear agora porque agora é a época de semear? Aí tu ta indo para onde? As pessoas trabalham da manhã à noite! Trabalham o tempo todo. As crianças também, todo mundo trabalha. Criminalidade zero. Não tem gente pobre também: todo mundo trabalhando, tudo funcionando. É um outro padrão. Eu não estou aqui "dourando", achando que isso tem que ser assim, mas eu estou apenas dizendo que é difícil para a pessoa imaginar como viver diferente. Aí naquele tempo também as pessoas diziam: "para que aprender a ler? Se eu souber fazer umas contas ja está bom!". Porque é o que eles precisam né, de vez em quando vão vender alguma coisa, aquilo vale tanto. Alguém para escrever, a gente chama alguém que sabe escrever e pronto. Eu vou precisar muito de vez em quando. Por que eu tenho que estudar? Não tem nada para estudar. A escola é inútil. Eu tenho que aprender a tirar leite, plantar, fazer essas coisas assim. Para que complicar né? Aquilo eu aprendo com meu pai, com minha mãe, com meu tio, com o vizinho, pronto. E aí? Então, é um outro tipo de visão.
Assim, existem muitas diferentes bolhas. Nós estamos dentro de uma bolha que parece que é A Bolha; ela não é A Bolha, é a bolha de agora, essa bolha vai mudar, com certeza. Mas quando as bolhas mudam, aquilo decorre num tempo, então é como se a gente perdesse a memória, aí a gente pensa: "não é a bolha, é a realidade". Aí os jovens nascem dentro dessa bolha. Esse é o mundo como eles conhecem. Mesma coisa que falar assim, do Getúlio, do Café Filho, ouvir falar da Segunda Guerra Mundial, aí do Truman... aquilo eu não entendo! Não vivi no tempo deles, não sei isso. O Getúlio morreu em que ano? 1954? Aí vai falar de Brizola, não sei quem pode ser, tu ja não lembra mais assim... então, a gente nasce num outro mundo. Eu acho interessante. Eu acho para os jovens hoje surgindo, eles talvez tenham [um questionamento]: "como é que o mundo se sustenta?" Como é que vem comida, como é que vem água, como é que vem esgoto, como é que lida com o lixo, como é que produz as coisas... um mundo super complexo. A nossa capacidade individual está totalmente alienada, como se nosso esforço não fizesse sentido. Mas se eu olhar cinquenta anos atrás, cem anos atrás, algumas regiões há menos tempo a gente entende direitinho como é que a gente vive. Porque a gente vive na dependência do próprio esforço do grupo onde nós estamos vivendo. A gente vai vivendo e a gente entende perfeitamente, a gente sabe. Aí tem aquela noção do cio da terra né que é muito interessante; a gente perdeu o cio da terra. Mesmo as pessoas que estão trabalhando no campo hoje perderam o cio da terra e a capacidade de ver a terra chamando; a terra chama, tem a época de tu botar as sementes, e aí tu tem as sementes, tu ta vendo aquilo, agora é a época de tais e tais coisas. Aquilo está diretamente ligado à sobrevivência da pessoa; a pessoa sobrevive junto com as plantas e com os animais, ela está dentro daquilo. Todos os dias ela está olhando o tempo, está olhando o sol, olhando a lua, olhando as coisas, olhando os sinais dos animais, ela está ali, olhando aquilo; aquilo faz parte da sua vida né. Então isso é uma bolha específica né; essas bolhas desapareceram. Quando as pessoas viviam nessas bolhas, não parecia em nada possível viver de outro modo, entende? Por exemplo, um jovem, às vezes a família mandava alguém para estudar: alguém para ser advogado e alguém para ser padre; aquilo era uma família super poderosa, tinha essa capacidade de mandar alguém para fazer alguma coisa... agora, parece um pouco inútil né... vendo assim aí com o meu pai fazendo a base da sustentação da nossa família, agora alguém vai ser padre, enfim, rezando deve melhorar; aí alguém vai ser advogado porque enfim, a gente precisa de uma proteção num âmbito mais amplo. Mas aquilo, vamos dizer, o que é a base da sociedade? A base da sociedade é tu manter expandindo as áreas, expandindo os animais, expandindo o plantio, melhorando isso tudo. Então a pessoa pensa que... aí alguém vem e diz: "olha, a comida que vocês estão comendo, isso não é uma boa coisa, isso vai dar problema, vocês vão ter, por exemplo, reumatismo - todos eles tem reumatismo - comendo assim vocês vão perder os dentes - todo mundo usava dentadura - aí vocês vão ter isso, vão ter aquilo, vão ter blablabla e aquilo não precisa ter". A pessoa [expressão de descrença]: "ah... todo mundo sempre viveu assim, assim é que se vive, assim é que se segue". Então isso é a bolha, entende? Aí vai dizer assim "isso é ignorância". Porque aí quem olha de fora da bolha, a partir de outra bolha, ela tende a reificar a sua bolha em relação a anterior.
É como, por exemplo, a gente está dentro da perspectiva econômica, os nativos brasileiros, as culturas nativas, elas estão abaixo do nível da miséria; o PIB que eles geram é zero, zero vírgula zero, eles não geram nada! Nós não temos critério para isso. A gente não tem critério para essa avaliação. Então, dentro da nossa bolha, nós vamos precisar superar esse obstáculo. Se a gente quisesse usar um critério econômico verdadeiro, a gente teria que dizer, por exemplo, eles têm fornecimento de água, eles têm alimentação, eles têm escola, eles têm previdência social, eles têm aposentadoria. Tudo isso automático: nasceram, têm aquilo tudo, porque eles vivem dentro de um grupo. Agora, conta quanto é que vale isso. Agora olha a mortalidade infantil, eles têm programa de saúde, eles têm tudo. Só que eles têm aquilo porque aquilo está embutido na vida deles, mas se eu for computar, aquilo não aparece. Então vamos supor aqui, a gente começa a pegar água do telhado, filtrar, tratar; começa a botar coletor solar. Aí nós vamos progressivamente para o âmbito da miséria. Por quê? Porque o nosso PIB vai baixando, entende? O movimento da nossa economia começa a baixar, porque a gente começa a ficar auto-suficiente. Aí a gente começa a plantar, começa a colher e começa a viver. Aí nós começamos a fiar, fazer os tecidos, costurar, tudo aqui dentro. Aí nós vamos para o nível da miséria! Com quanto vocês vivem? Nós vivemos com cinco dólares por mês! "Baaaah... que desgraça! Isso realmente é o fim!". Agora, como é que a gente aumenta o PIB? Comer no restaurante, usa carro, gasta gasolina, paga eletricidade, paga água, paga tratamento de esgoto, e vai pagando tudo, pagando tudo, aí a economia sobe. Vai se tornando auto-suficiente, a economia baixa. Então esse critério não serve. Esse critério é um critério burocrático, só serve para grandes cidades, cidades aonde aquilo pode fazer sentido. Então é um critério colonialista da sociedade globalizada, é um critério para isso... ele não serve de outro modo. O Brizola dizia "Isso são as multinacionais que implantaram, com certeza!"
Então isso são as bolhas. Mas aí, por exemplo, eu estou dentro de uma bolha, eu posso partir para outra bolha, olhar uma bolha a partir de outra. Então aquilo é sempre interessante, mais aberto, especialmente quando eu entendo que são bolhas. Agora, se eu não entender que são bolhas, eu posso patrulhar, e isso é super grave. Isso está ligado, por exemplo, na educação, na psicologia, na psiquiatria, na economia a gente usa isso. A gente olha uma coisa na perspectiva de outra coisa. Eu acho isso, no âmbito da saúde, da medicina, super grave. No âmbito da organização social, também, a gente patrulha, o tempo todo nós patrulhamos uns aos outros. E dentro desse patrulhamento tem um diagnóstico, dentro do diagnóstico tem um tratamento. Aí tem alguém que está fazendo retiro, está focando, está fazendo alguma coisa, aí vem o irmão, olha na perspectiva econômica aquilo, aí ele acha que bah, ta com problema aquilo, com certeza... ele vai olhar nessa perspectiva, ele está olhando em outra bolha. Mas ele pensa que aquela bolha não é uma bolha, ele pensa que aquilo é a realidade.
É bonito ver por períodos como a gente viveu esses anos todos sob o governo militar, eu acho que a maior parte de vocês ja não lembra mais. Aí a gente viveu isso, aí tinha um critério, uma bolha de realidade para olhar as coisas todas... super difícil. Então qualquer coisa, se a gente estivesse reunido aqui hoje, isso ia ter um problema. Por quê? Porque qualquer grupo autônomo que junta pessoas para refletir de forma aberta sobre seja o que for, é um grupo super perigoso. Então aquilo é um olhar, né. Está fixado numa bolha, tu tem que implantar aquela bolha custe o que custar e fixar aquilo. Qualquer flutuação em qualquer lugar tu está atento: flutuou, tenta reprimir. Os governos militares são isso. Não importa qual a coloração, qual a bolha, esse é o método, é um processo. Aí tem a repressão sempre.
Agora o Buda descobriu isso, tu pode te colocar fora da bolha, fora do conjunto das bolhas, nesse espaço. Aí ele vai descobrir: as nossas bolhas, a gente termina saindo, mas esse espaço amplo aonde estão as múltiplas bolhas, aonde elas podem surgir, esse espaço amplo está ali. Então ele vai chamar isso de natureza de Buda, esse espaço amplo. Aí ele vai olhar: o que nasce e o que morre? O que nasce e o que morre são as construções dentro das bolhas. O espaço não nasce e não morre. Se nós tomamos refúgio dentro das identidades que nós temos dentro das bolhas, nós temos a sensação de viver e morrer; mas se nós repousamos nesse espaço além das bolhas, não tem nascimento, nem morte, nem tempo. Aí a coisa vai ficando assim, vai ficando cada vez mais sutil. Mas tem esse caminho, esse processo pelo qual nós vamos vendo e vamos experimentando. Tudo isso está dentro do bloco 2. A gente está estudando isso.
Aí surge esse ponto. Nós podemos repousar. Isso ja é a noção de presença, ou seja, o repouso fora da bolha. Aí te a noção, por exemplo, de Shamata; nós começamos a nossa prática, a gente senta em silêncio. Por que isso não é, ainda, a presença? Porque eu sento dentro de uma bolha. Eu posso estabilizar a minha mente com um foco dentro de uma bolha. Então o primeiro objetivo é esse, é deixar a mente mais estável, eu não fico saltitando, para eu poder usá-la, para eu poder deslocá-la para um objeto, para outro objeto, para outro objeto... então, agora eu vou sentar em silêncio. Como eu estou dentro da bolha, eu escolho um objeto dentro da bolha para focar. Quando nós estamos dentro da bolha, nós temos muitos diferentes objetos, muitos diferentes focos da mente, a gente pode saltar de uma coisa para outra. É o que acontece, usualmente. Agora eu vou treinar a minha mente para manter um foco: se eu mantenho o foco, depois eu posso apresentar objetos especiais que vão abrindo a minha visão. Se eu não tenho a capacidade de manter a mente em foco, não adianta eu apresentar porque a pessoa não consegue seguir. É como uma criança, tu vai apresentar alguma coisa para eles, a mente deles não pára; a gente precisa primeiro ganhar a mente para depois utilizar a mente. Então essa é a razão de Shamata. Aí a gente senta desse modo. Mais adiante, esse objeto vai ficar mais sutil. Ele vai ser um espaço além das bolhas. Existe esse caminho no qual a gente vai treinando meditação, e o objeto vai se tornando mais e mais sutil, até a gente repousar no espaço. Quando a gente repousa no espaço, isso parece que é o ponto final, mas não é. Nós repousamos no ponto final e aí a gente volta, é o aspecto interno, o ponto final, eu repouso; aí eu volto a olhar para o mundo.
Aí quando a gente olha para o mundo, surge uma visão de como aquelas múltiplas bolhas aparecem. Aí eu olhando como as múltiplas bolhas aparecem a gente vê que elas são vazias e luminosas. Mas assim, ainda que elas sejam vazias e luminosas, elas são operativas, elas funcionam. Tem uma causalidade dentro das várias bolhas e aquilo opera. Aí, entendendo isso, a gente vê a natureza vajra; a gente olha com olho de raio-x, através das coisas e vê a multiplicidade de mundos que se superpõem. Não é assim, um mundo do lado do outro, são mundos que se entrelaçam. Mais ou menos como os mundos dos colorados e gremistas, eles são entrelaçados; não é o mesmo mundo, mas eles se entrelaçam. Então a gente vê esses mundos se entrelaçando. O mundo dos homens e das mulheres, o mundo dos jovens e dos velhos, o mundo das crianças e dos bebês, eles são mundos que se entrelaçam, eles não são o mesmo mundo. O mundo dos pais e mães e filhos, ainda que pareça que sejam o mesmo mundo, não é. O pior é entender isso. O mundo de namorados e namoradas, não é o mesmo mundo, eles se entrelaçam, eles têm superposições, mas eles não são os mesmos mundos. Então a gente vê esse aspecto vajra, vê o mundo surgindo desse modo. Isso também não é o ponto último, isso é a realidade vajra. Então esse ponto é o bordo que nos separa do bloco 3. A partir desse ponto nós vamos entrar no bloco 3.
Segundo Dia - Tarde
Transcriçao: Augustus Almeida
Então hoje de manhã a gente estava recapitulando esses vários passos. A gente foi até o ponto que seria a prática da presença. Isso seria final do bloco 2. Mas faltou um pedacinho dentro disso, que é assim: quando nós estamos olhando o surgimento da mandala vajra, o surgimento das aparências, esse é um ponto super importante, porque é quando os próprios obstáculos, ou seja, as aparências, elas se tornam instrumentos da nossa prática. Então é um momento bem interessante; ele é algo que se distingue bastante da abordagem da primeira volta do Dharma. Na primeira volta do Dharma a gente busca estabilidade, e a gente entende que as aparências nos arrastam, elas nos desviam, então nós buscamos distância em relação às aparências. Esse é um ponto né.
Aqui nós estamos fazendo um outro caminho: nós estamos usando as aparências como método. Isso é uma super mudança. Mas naturalmente, não é que tenha um equívoco na abordagem do caminho do ouvinte pela qual nós vamos tomar as aparências como obstáculo, é que naquele momento as aparências são obstáculo. Por exemplo, quando surgem as aparências nós somos simplesmente arrastados, como é que nós vamos praticar? Aí não tem como praticar. Então nós vamos fazer um caminho gradual. E nesse caminho gradual primeiro eu tenho que ir para um lugar mais seguro, um lugar aonde eu não seja arrastado, porque se eu for arrastado não tem nada para fazer! Então a gente vai para uma condição particular. Essa condição particular, como a gente ainda não tem lucidez, nós não podemos tomar a lucidez como caminho nem como apoio, não tem como; então nós vamos tomar a disciplina como apoio. Então a gente vai para um lugar, a gente evita as complicações, e vive de forma mais recolhida por um tempo, praticando. Então nós vamos desenvolver a habilidade de estabilização da mente. É isso que a gente vai fazer, durante um bom tempo.
Então aí vocês ja podem imaginar como, dentro dos ensinamentos, podem surgir diferentes linhas e até mesmo tensões, porque se as pessoas que estão praticando não têm uma cosmovisão do caminho, elas pensam que a sua receita de prática é o ponto último, é a receita final; elas não conseguem ver em perspectiva essas várias situações. Então, por exemplo, a gente pode se colocar numa posição hostil em relação ao caminho do ouvinte. Então esse é um ponto bem delicado, bem interessante, sendo que o caminho do ouvinte é super importante. É como se a maioria das pessoas tivesse que operar justamente no caminho do ouvinte por um longo tempo, uma vez que o caminho do ouvinte é o que melhor lida com o bloco zero, assim, direto né, porque ele nós pega, e aí nós fazemos essa transição; porque a gente começa a ocupar um lugar mais protegido, então a partir desse lugar mais protegido, eu crio uma artificialidade através da qual eu vou andando, mas mais adiante a gente se livra disso.
Então a gente começa nesse ponto. Agora, um pouco adiante a gente vai desenvolver o caminho Mahayana, vai ampliar a visão, vai treinando, e vai aprender sobre a vacuidade. Então, na medida que nós vamos aprendendo sobre outras coisas, então a nossa prática vai tendo outras ênfases; aí tem um ponto dentro do bloco 2 em que nós vamos tomar as aparências como caminho. Não é mais o contrário; não é: "aparência fora do caminho", agora é o contrário: "aparência é o caminho". Aí nessa perspectiva, se nós não formos capazes de tomar a aparência como caminho, nós estamos com problema. Por quê? Porque se a gente se defrontar com as aparências e se perturbar, isso é um problema. Por outro lado, se eu escolher as aparências de um grupo de aparências, eu posso lidar, outro grupo de aparências eu não consigo lidar; então eu ja poderia pensar assim: "certas aparências eu não lido por uma questão de princípio, eu lido com essas aparências". Aí está bem. Eu lido com aquelas aparências; as aparências que eu lido, eu gero lucidez; as aparências que eu não lido, eu não estou lidando por quê? Porque eu não estou conseguindo me manter lúcido em meio àquelas aparências. Então aquilo não é um aspecto de força, é um aspecto de fragilidade. O tipo de análise, o tipo de avaliação difere. Enquanto que na abordagem do ouvinte eu me submeto e as aparências perturbadoras isso seria uma falha - porque naturalmente, qualquer aparência e eu sou arrastado - então no caminho no qual nós vamos praticar com as aparências, justamente as aparências, se eu tiver a habilidade de encontrar as aparências em meio à minha prática, melhor, porque quando eu encontrar as aparências fora da lucidez da prática, é bem mais difícil eu me manter estável. Então a gente imediatamente vai perceber as aparências que nos perturbam, a gente deveria anotar cuidadosamente e conseguir trabalhá-las em meditação; caso contrário, eu posso me encontrar com essas aparências e ser arrastado, e a gente não sabe por quanto tempo a gente ficaria arrastado por um processo desses. Então as aparências, vamos dizer, as nossas fragilidades, elas se tornam indicadores precisos das estruturas de obstáculo que nós estamos lidando. Então elas são como conselheiros preciosos. Então, nesse sentido, por exemplo, Maharaja, que rege os seis reinos e traz todo o tipo de obstáculo para nós, essa figura que é antropomórfica - na verdade Maharaja não existe, mas é uma linguagem: eu posso dizer Maharaja como se fosse o agente das circunstâncias nas quais eu me envolvo; aquele que faz aparecer o que eu não estou pedindo. Produz a impermanência, produz o surgimento de coisas que eu não consigo lidar. Então Maharaja se torna o mestre, porque ele é que rege as aparências. Nós vamos fazer esse tipo de prática.
Esse é um ponto delicado. Então, quando nós olhamos para isso, no Vajrayana frequentemente a gente usa uma linguagem que é assim, por exemplo: alguma coisa inesperada acontece e surge um obstáculo à nossa frente e a gente diz: "ah, isso é o lama, manifestação do lama", ou "manifestação de Guru Rinpoche". Esse Guru Rinpoche... Guru Rinpoche é um perigo! Se eu tenho uma falhazinha ele sempre me apresenta um desafio para me derrubar e aquilo ficar evidente. Então essa é uma linguagem boa, sabe? Porque isso significa que a gente é capaz de tomar, cada vez que a gente olha desse modo, significa que a gente está sendo capaz de tomar aquilo que aconteceu como um instrumento da nossa prática. Aí vamos supor, vocês chegam em casa - aquela coisa que eu repeti não sei quantas vezes ja - chega em casa e tem uma pilha de louças na pia. A gente: "aaah!"; em vez de pensar "isso foi minha mulher ou meu marido ou as crianças ou os jovens ou não sei bem o que, a faxineira que não veio" a gente diz "Guru Rinpoche deixou aquilo montado para mim; quando eu ia chutar aquilo, quebrar tudo; aí eu [penso] ah, Guru Rinpoche! Ah, entendi!". Aí eu fui la e lavei prato por prato, deixei aquilo tudo arrumadinho. Ultrapassei esse obstáculo que está comigo ha não sei quantas vidas. Que eu me sentia abandonado, explorado, não sei bem o que, quanta coisa a mais; senti que o mundo inteiro pesa sobre mim, e aí me livrei disso; eu vi que é uma posição da mente, que se coloca ali. Que maravilha! Mas de qualquer maneira não precisa mais, já aprendi a lição, não precisa mais louça. Aí a pessoa, ela olha assim, e assim começa. Aí eu cheguei e um cara me atravessou e raspou no meu carro. Eu peguei o macaco para quebrar o carro dele, aí Guru Rinpoche apareceu: "uau! Eu ia quebrar tudo! Bah...". Aí a pessoa vê; encontra uma linguagem. Então a gente vê esse aspecto.
Esse aspecto da linguagem é super importante, ele conecta direto na originação dependente, conecta no aspecto primordial, ele é assim. Porque, por exemplo, a gente ia fazer uma certa coisa, se a gente tivesse que explicar, a gente diria: "ele fez isso, fez isso, tararará, então eu tinha que fazer isso". Isso é causalidade. Mas é assim: "ele fez isso, fez isso, fez isso, eu tinha que fazer isso, mas eu não fiz. Eu fiz uma outra coisa". Então isso é não-causalidade. A causalidade [é prisão]; a não-causalidade é a liberdade natural que vem do espaço.
Eu era jovem ainda eu aprendi isso na matemática. Tinha um professor muito interessante, era um tempo que eu acreditava na causalidade. Aí na matemática a causalidade fica mais exata ainda. O nome dele era Cláudio Schneider, aí ele mostrou, por exemplo, estudando as séries numéricas, então a gente está: "2, 4, 6, 8, 10, 12" ou "3, 6, 9, 12, 15,18 etc", aí a gente vai olhando assim; aí a gente pode olhar "5, 10, 15, 20..." aí quando a gente está la com "65, 70, 75, 80, 85, 90, 95, 100" a gente tem a tendência a dizer "105, 110, 115, blablabla", aí vem aquilo: "uma série matemática tu só conhece se tu conhecer todos os termos dela". Aí com certeza era um matemático que conhecia Maharaja. Porque assim, tu está lá em 1225, depois? 1230, 1235! Depois 1200 e? Aí qualquer coisa, entende? Por quê? Porque a série pode ser até 1235 de um jeito, a partir de 1235, a gente explica, até aqui ela é assim, e agora ela mudou, agora ela é outra coisa. A série, a regra da série é essa: ela vai até 1235 de um jeito, de 1235 em diante ela passa a ser de dez em dez, entende? Pronto! É tipo os meninos jogando; sempre tem um "agora a regra é outra!". A gente se exaspera né, porque a gente quer uma linearidade, uma previsibilidade, uma coisa, assim, organizada. Mas no entanto, vocês vejam, simplesmente diz "agora é assim, e agora ficou assim", entende? Esse é um ponto super interessante. Eu na época meio que resisti, eu era sério; então a série é uma série séria; aquilo tem que ter uma mínima seriedade na matemática, entende? Aquilo é de um certo jeito, é de um certo jeito! Mas é assim. Aí tu conta uma história, aquilo mudou, aí tu conta outra história, aquilo mudou... se tu não conhecer todos os termos da série, tu não conhece a série, porque sempre tem um malandro que vai alterar a regra da coisa num certo ponto. Então isso é um ponto interessante. Isso diz o quê? Ele diz assim: "a causalidade, né? Essa previsibilidade é uma artificialidade; na verdade, nós temos a não-causalidade". A gente pode alterar a regra da coisa, isso é não-causalidade.
Então quando a gente está preso dentro das bolhas de realidade nós viramos pessoas sérias, causais... aquilo é regido por leis, tudo arrumado, tudo direitinho. É a coisa mais bonita a gente ver a regência das leis não conseguir superar a natural não-causalidade luminosa da mente das pessoas. Nós estamos agora num tempo encantador, a gente está vendo como as leis não conseguem prender, no sentido de limitar a mente das pessoas. Acho super bonito isso. É isso que a imprensa tem trazido. Eu vejo essas pessoas todas como budistas, seres com uma mente super livre, capazes de qualquer coisa diante das leis e das regras. Então, se eles fossem praticantes, eles poderiam dizer "olha, é assim: nem sou eu que fiz isso; isso foi uma identidade operando sob referenciais, eu não sou isso. Ainda que eu seja, enfim, se eu vou na Suíça eu consigo tirar o dinheiro, né, as pessoas vão pensar que aquilo é meu; aquilo não é meu, não tem um eu aí, entende? Nem tem uma coerência na ação. Você não vai encontrar isso". Aquilo é um processo mágico. Então tem esse movimento. Então a não-causalidade está ali, a nossa essência é luminosa não-causal.
Na linguagem que nós vamos encontrar aqui no texto do Buda ele vai dizer "não-eternalismo"; não-eternalismo assim, não tem alguma coisa fixa por trás; ele vai revelar, não tem uma alma, não tem um ser, não tem nascimento, não tem passado, não tem futuro, tem esse movimento, esse surgimento, esse aspecto luminoso. Aí nós estamos olhando assim. Então a gente está sentado praticando esse abismo. Isso é a presença. Nós estamos num estado não-causal, uma condição não- causal; como se a gente tivesse muitos diferentes caminhos, todos eles passam por aquele ponto, nós estamos aqui: nós estamos num ponto em que qualquer movimento que a gente fizer pode ser explicado por várias linhas causais. Mas, ainda que aquilo seja explicado pelas linhas causais, aquilo não pertence às linhas causais. Aquilo é um estado que é capaz de construir o seu próprio trajeto. E depois aquilo pode ser entendido como um processo causal ou não.
Então é completamente diferente a prática da presença da prática de Shamata. Na prática de Shamata nós estamos fixados em alguma coisa artificial eleita, que está dentro de um contexto, que é, enfim, uma bolha em que nós também estamos. Shamata é uma prática séria, de pessoas sérias e responsáveis. Ja na prática da presença a pessoa está numa etapa de dissolução, de desagregação da personalidade, uma etapa próxima da morte final. Porque existem as mortes e as Mortes; existem as mortes que todo mundo morre, e é uma morte comum. Agora, tem a Morte que o Buda morre. Essa Morte do Buda, Parinirvana do Buda; o Parinirvana do Buda vai começar com a prática da presença. Aí o Buda vai dizer "eu estou extinto"; ele não vai nem dizer que "eu estou liberto", ele vai dizer "eu estou extinto". Extinto é uma expressão maravilhosa, porque assim: na verdade, eu nunca existi, portanto eu não vejo extinção; aquilo parece existir, mas não existe. Então tem esse princípio ativo que nem é pessoal, que é capaz de fazer as coisas surgirem e ganharem significado. Mas nós não somos aquilo. Nós não somos nem a soma de tudo o que a gente ja foi. Nós não somos o nosso currículo, nem as visões de futuro.
Esse aspecto às vezes é um pouco depressivo. Mas ele é depressivo quando nós olhamos na perspectiva do samsara. No samsara é assim: a gente quer uma identidade, quer uma visão de futuro, quer uma coisa estável. Mas se a gente disser para as pessoas que o time da pessoa nunca vai ser campeão mundial, e se eventualmente for campeão mundial não vai repetir no ano seguinte, aí a pessoa: "oooh, não me diga isso, eu não quero saber, não quero saber!" Nós queremos ser campeões, é isso, entende? Aí a gente vive a partir de um referencial. Mas a gente não atinge aquilo. Aí "você ja viveu tantos anos, você viu, enfim, um time que produz a felicidade final na massa de torcedores?" [a pessoa responde] "eu não vi". "Melhor desistir, o que você acha?" [aí a pessoa] "não não, eu não seria capaz de viver sem isso". Nós temos o mesmo em referência às nossas próprias identidades. Você ja viu alguma identidade que atingiu o ponto final e se sentiu feliz, chegou a algum lugar derradeiro? A gente não vê isso, não tem isso. Então quem sabe a gente desiste? "Ah não, não..." Ainda que seja eventualmente uma ilusão, eu sem isso não consigo andar. Então essa é a perspectiva do samsara. Mas quando a gente olha de uma perspectiva muito ampla, que começa a se abrir a partir da prática da presença, aí o samsara vira uma coisa particular, entende?
É como a pessoa olhando, por exemplo, as suas preferências: enquanto ela era criança gostava de um certo tipo de brinquedo, ela estava num quarto com um irmão ou com a irmã, vamos supor né, aí eles tinham um beliche. Aí ele queria habitar a parte de cima, e o irmão é queridinho da mãe e do pai e ele sempre ficava na parte de cima e o outro na parte de baixo, mas ele queria mesmo era a parte de cima. E as pessoas diziam "não importa, tanto faz embaixo ou em cima, embaixo é mais confortável, etc etc". Mas em cima, enfim, é mais heróico, é mais extraordinário; aquilo parece um castelo, alguém olhando de cima. Aí a pessoa "bah, eu fiquei frustrado, passei mal". Agora, depois a pessoa foi morar sozinha, comprou um beliche, passou a morar em cima! (risos). Comprou um boneco, botou embaixo "meu irmão". Aí pronto, aí a pessoa está agora tudo bem. Enfim, aquilo não tinha muita importância mesmo, né, é assim. Mas, aí tem uma época em que a pessoa está fixada naquilo, aí vêm os outros e dizem "mas isso não tem importância!"... "ah, não tem importância porque não é com você! Aquilo tem importância, claro!" Mas aí tem uma época que nós estamos fora das bolhas, nós estamos olhando as coisas. A gente diz "Bah! Perda de tempo... Incrível! Como é que eu pude operar daquele modo?".
Quando nós estamos fixados na bolha, a gente olha a liberação como uma coisa que carece de sentido, que carece de vida, que carece se sangue, parece que não tem substância. Agora, quando nós estamos olhando na outra perspectiva, tudo aquilo que antes tinha substância, tinha vida, parece uma super ilusão, parece uma coisa mínima, não era nada. Então, nesse sentido, também, as nossas identidades vão parecer muito vitais quando nós estamos dentro desse ambiente. Não só as identidades como o tipo de identidade, como nós estamos nos relacionando, aquilo parece crucial. Mas dentro de uma perspectiva muito ampla, a gente vai entender que a gente nunca foi nenhuma das identidades. Mas esse processo não é tão direto.
Aí tem, por exemplo, uma parte dentro do estudo a partir da própria prática da presença, que é uma parte que, é uma classe de ensinamento; então tem um texto de Longchenpa que trata disso, "Tesouros do Espaço Básico". Eu acho isso maravilhoso, "Tesouros do Espaço Básico". Isso é como se fosse uma classe de ensinamentos. Ainda que haja esse texto do Longchenpa, isso é uma classe de ensinamentos. Aí todos os ensinamentos dessa classe vão tratar disso. Ou seja, quando nós estamos na prática da presença, quando nós estamos nesse espaço livre, fazendo uma prática formal ou não, o que a gente encontra? Então dentro dessa liberdade, essa liberdade é um buraco? É uma ausência? O que ela é? Essa é uma boa pergunta. É uma boa pergunta para responder a partir da própria prática. Melhor com chá, ainda. Isso seria o espaço básico aquecido pelo chá. Aí a pessoa está praticando desse modo. Então a pessoa vai perceber, por exemplo, que tem essa liberdade diante de todas as aparências. As aparências vão surgir como Darmata. As aparências vão surgir como manifestações luminosas. Quando a gente tiver dúvida sobre isso, a gente lembra que a chave para esse processo é a prática dos seis selos; isso é a chave da visão. Então nós estamos em silêncio, nós estamos dentro desse espaço livre, mas esse espaço livre tem visão. A-ha! Então, essa visão começa pelo selo das aparências. Então a gente vai dizer, como Guru Rinpoche no Pico do Junípero, daí é que vem os seis selos, então ele diz: "sele as aparências com a vacuidade". Então isso a gente olhou um pouquinho hoje de manhã; as aparências surgem dentro de bolhas; elas surgem como círculos que brotam de uma brasa que gira. Aí nós olhamos as aparências e damos nome. Um outro exemplo para as aparências é a gente tomar argila, barro, e moldar aquilo; quando a gente molda a argila, a gente pode olhar e ver diferentes coisas. Então os objetos todos que brotam dos sentidos físicos são espelhos que refletem dimensões internas. Então eu giro a brasa e esse giro da brasa reflete o círculo. E assim, tudo o que eu olhar reflete uma componente interna. Isso me permite ver que os objetos são, depois a gente vê que eles não são, depois a gente vê que eles são. No caso da brasa dá pra olhar assim também: a gente vê o círculo, depois a gente diz que não há o círculo, no fim a gente sorri e vê o círculo.
Esse princípio da brasa é o mesmo princípio pelo qual aparecem imagens na TV; ou seja são pontos que aparecem que piscam, e aquilo vai se fundindo dentro da nossa mente e nós terminamos vendo imagens. E se eu não tiver, por exemplo, brasas, mas eu tenho uma luzinha que gira, eu vejo um círculo. Agora, se eu tenho uma configuração de diferentes luzes, eu escrevo letras, eu escrevo coisas com as luzes. Eu acho interessante a gente também observar aqueles painéis luminosos que agora estão muito sofisticados, agora eles são painéis de led que a gente vê como se fossem telas de TV mesmo, mas teve um tempo que eram lâmpadas. Então a gente via as palavras passando. Eu acho que Porto Alegre nos anos 1970 tinha várias dessas coisas, tinha noticiários que tu podia ler, aí aquelas palavras iam todas olhando. Como hoje na TV tem umas barrinhas, tu ta vendo TV e tem uma barrinha ali falando, contando. Aí também era assim, tinha um painel luminoso e as pessoas botavam coisas. Tinha propagandas, depois tinha notícias. Aí tu para assim: como é que tu vê as letras andando, se as lâmpadas estão paradas? Essa era uma coisa que eu ficava assim "como é que está andando se está parado?". Isso era, assim, um problema conceitual para mim; nada se move, mas aquilo está andando! Como que isso é possível? Então é parecido. Aí eu tenho o círculo né. Aí eu tenho uma bolinha. Por exemplo, se eu acender uma lâmpada, apagar e acender a do lado, apagar e acender a do lado, apagar e acender a do lado eu vou ter uma sensação de que tem uma luz deslizando ali. Eu estou construindo o deslizar de uma luz, ainda que não haja uma luz deslizando. O que tem é uma lâmpada que apaga, depois a outra acendeu, depois a outra acendeu, depois a outra acendeu e eu vejo aquilo assim. Então aquilo é uma construção, eu construo com minha mente o trajeto daquilo. Isso é semelhante ao círculo. Por exemplo, a gente tem muitos e muitos e muitos painéis, tudo pequeninho assim; aí acendo um, apago o outro, acendo um apago o outro, aí começo a fazer aquilo cada vez mais rápido daqui há pouco aparece um círculo, ainda que eu tenha pontos acendendo e apagando, acendendo e apagando, acendendo e apagando. Eu posso começar a complicar. Eu faço aquilo assim e pronto. Aí eu vejo não um círculo, mas eu vejo uma cobra andando em movimento circular, faço qualquer coisa, pessoal. Isso é a TV, entende? É assim. Mas aí a mente vê aquilo. Isso é luminoso; ao mesmo tempo que é luminoso é vazio. Luminoso por quê? Porque ali só tem lâmpada acendendo e apagando, entende? Mas eu estou vendo uma outra coisa. Nós construímos. Então as aparências surgem desse modo. Elas surgem através desse aspecto luminoso da realidade. Quando a gente olha esse tapete aqui também, pode ver flores, pode ver uma série de coisas né, mas isso são reflexos da nossa mente. Isso aqui é um espelho que reflete aspectos internos. Aí quando a gente olha um desenho num painel, como aqui também nessas pinturas, a gente vê figuras humanas, a gente vê uma série de coisas. Isso está desenhado para a gente ver mesmo, mas na verdade nós temos um painel e cores, a gente só tem isso. Do mesmo modo que la a gente só tem luzes que acendem e apagam e luzes paradas. Mas isso se torna um reflexo. A gente olha e "uau! Guru Rinpoche me olhando...". Aquilo é meio assim, né... bah! Então quando nós vemos isso, aquilo conecta com uma dimensão cármica nossa. Aquilo reflete uma estrutura interna, e a gente tem sequencias de pensamentos e avaliações e coisas assim. Então isso está dentro do primeiro selo, "sele as aparências com a vacuidade".
E quando a gente olhar as árvores, será que a gente vê as árvores mesmo, o que a gente vê? Quando a gente se olha uns aos outros, o que a gente vê? Isso é um ponto interessante, porque de modo geral nós nos olhamos a partir dos 12 elos da originação dependente, a gente não se vê direito, a gente apenas vê se a gente gosta ou não gosta. O contato é o sexto, a gente tem a impressão visual, aí o sétimo elo a gente olha e vê se gosta ou não gosta, aí baseado no gosto ou não gosto a gente tem uma estrutura de desejo e apego. Como é que a gente pode ver isso, né? A gente olha aquela árvore, agora a gente fotografa e olha a árvore. A impressão interna da árvore ou da foto da árvore é a mesma. Então na foto da árvore é visível que eu tenho um espelho aqui refletindo uma dimensão interna, as quando eu olho a árvore mesmo eu digo "uau! A árvore!". Eu estou refletindo essa dimensão interna também. Essa dimensão interna é o que? Ela é uma construção luminosa e vazia. Então eu vou dizer: os objetos que eu vejo sempre são formas, que são, enfim, imagens inseparáveis de nós mesmos. Mas a gente não tem essa noção. A gente tem a sensação de que a gente vê coisas. Mas eu acho que esse teste é um bom teste, tirar uma foto e ver que a gente está vendo a mesma coisa. Então seria, a vacuidade se refere a formas e a mais nada. Ela não se refere a coisas, se refere a formas. Ela não tem nem julgamento se as coisas estão ali ou não estão, nós só nos relacionamos com as formas, e as formas são vazias. Então o primeiro dos seis selos é assim, "sele as aparências com a vacuidade", e as aparências são as formas. Isso é um bom nome também, "aparência". As aparências são vacuidade.
Aí ele vai dizer "sele a vacuidade com as aparências", que é o sentido na outra direção. Então, por exemplo, a vacuidade aqui está sendo colocada como a própria luminosidade, então "pegue isso e sele com as formas". Você nunca vai conseguir falar na vacuidade senão na relação com as formas. A vacuidade não é um objeto. Ela mesma não é alguma coisa. As aparências e a vacuidade são vazias. Isso significa o quê? As formas aparentes podem mudar na tua cara, porque elas se referem a essa dimensão coemergente interna. Assim surgem as formas, e assim elas são vazias! Essa afirmação é super importante para a gente.... dentro do samsara nós transformamos tudo em coisas, então as formas são coisas e daqui há pouco a vacuidade é uma coisa também. Então é super importante a gente não só fixar esse primeiro dos seis selos como "as aparências são formas e forma é vacuidade", não tem solidez, como o contrário. A gente vê que a vacuidade é inerente à forma. Aí quando a gente fala de forma e vacuidade a gente está falando da mesma coisa. Então o segundo selo está falando "sele a vacuidade inseparável da forma".
O terceiro selo vai dizer "sele vacuidade e forma como inseparáveis". Eu estou falando da mesma coisa, não estou falando de duas coisas, estou falando da mesma coisa. Eu posso falar como vacuidade ou como forma ou como aparência. Aí ele diz "sele a inseparatividade de aparência e vacuidade com uma grande bem-aventurança". Aí nós olhamos aquilo, e aquilo nos dá uma liberação em relação ao mundo como nós nos relacionamos. Aí ele diz "sele a grande bem-aventurança com a ausência de fixações mentais", ou referenciais particulares segundo os quais as bolhas surgem. Aí quando a gente se livra desses referencias, aí nos temos a compreensão do quinto selo, ou seja, nós selamos a grande bem-aventurança com a condição livre da mente, que é a condição fora das bolhas. Aí ele vai dizer "essa condição é Darmata". Isso é o sexto selo, "sele essa mente livre, sem referenciais, com a Mãe Darmata". Então nós estamos nesse ponto, nós estamos na Mãe Darmata.
A primeira coisa que eu vejo na Mãe Darmata é a Sabedoria Primordial. Então isso pertence ao Tesouro do Espaço Básico, a Mãe Darmata é o Espaço Básico. Tesouro do Espaço Básico. Ou seja, nós olhamos as bolhas, e a gente não está preso a elas. A gente olha para as bolhas, e nós vemos como é que as bolhas se montam, como aquilo tudo ocorre, e nós não estamos presos. Isso vale para qualquer coisa. Por exemplo, essa perspectiva é também Dorje Drolö, que é simbolizado por aquela figura vermelha bem no canto esquerdo de quem olha de frente [na pintura de Guru Rinpoche no templo do CEBB CM]. É uma emanação de Guru Rinpoche, emanação irada de Guru Rinpoche. É chamado de "destruidor de demônios". Por quê? Porque os demônios são as ilusões da nossa mente. Então, Mãe Darmata, o Espaço Básico, é essencialmente Dorje Drolö, porque não tem nada que sobreviva à visão lúcida que brota do lugar não-elaborado, da base sem conteúdo; não tem nada que sobreviva. Então vocês podem imaginar assim - essa é uma afirmação super importante; isso está ligado aos Tesouros do Espaço Básico; nos Tesouros do Espaço Básico vão brotar todas as deidades, e a que brota em primeiro lugar é a Sabedoria Primordial, só que a Sabedoria Primordial é a base de todas as deidades. Então eu começo a olhar aquilo sob o ponto de vista do samsara, aí eu vejo, por exemplo, os demônios, as aflições, as negatividades, os medos (da morte, de uma porção de coisas), aí nós começamos a olhar esses medos na perspectiva do espaço, na perspectiva do Espaço Básico, aí os medos "Puf!". A gente olha e "uau! Isso é o devorador de demônios! Podem aparecer os demônios que não tem problema nenhum; não há demônio que consiga qualquer coisa a não ser destruir aquilo que, enfim, é artificial. Isso gera a solidez de Dorje Drolö, ele se desloca em direção aos demônios, aquilo não tem problema nenhum. É como, por exemplo, se vocês vão ser mortos sob tortura, vocês vão ter uma compaixão das pessoas que montaram aquele circo, do executor, do juiz, daquilo tudo, eles estão super presos às estruturas cármicas que produziram aquilo. Eles estão super presos, vocês estão livres! Vocês antes de morrer estão livres, durante a morte estão livres e depois de morrer também estão livres, porque vocês têm Dorje Drolö, vocês têm o Tesouro do Espaço Básico. Não tem tortura que alcance o Tesouro do Espaço Básico, aquilo não tem como... mesmo que vocês sintam sofrimento, aflição no meio daquilo, essa aflição pertence ao âmbito condicionado do corpo e das manifestações que vocês estão andando, mas aquilo não afeta o aspecto primordial. Então isso é essa clareza, e vocês vão ter compaixão daqueles seres. Como vocês estão morrendo desse modo, sob o domínio deles, se vocês tiverem um espaçozinho para dizer alguma coisa, vocês digam "que vocês sejam felizes, que vocês ultrapassem o sofrimento, encontre as causas da felicidade, superem as causas do sofrimento". É isso. É o que vocês vão dizer. Porque aqueles seres estão numa situação super difícil. Quanto mais maldades eles fizerem, quanto mais coisas negativas eles fizerem, mais fixados eles estão naquela bolha. Aquilo é inevitável! Eles vão passar por situações muito semelhantes, sob o ponto de vista causal, se eles não escaparem para a não-causalidade, eles vão sofrer aquilo de novo.
Tem esse filme, o Pequeno Buda, ele é tão bonito! Quando começa o filme tem uma pessoa contando para um menino a história de um carneiro que ia ser sacrificado e ria. Aí o sacerdote diz "mas como, você está indo ser sacrificado, como você está rindo", aí ele diz "quinhentas vidas atrás, eu era um sacerdote matando um carneiro; agora eu passei quinhentas vidas como carneiro e essa é minha última vida!". Aí ele estava se sentindo se livrando e ele fala "e você é o sacerdote" [que então] fala "aah!". Mas isso não foi bem, ele não era um carneiro budista, senão ele diria "que você seja feliz, é melhor você não matar! É melhor você não me matar!". Mas tudo bem. Mas ele deu uma risadinha, era um carneiro colorado, eu acho... aí deu uma risadinha, aí pela segunda divisão - o colorado não aconteceu - mas aí, passou por aquilo, e voltou né... então tem esse aspecto, esse aspecto cármico. Mas quando isso acontece, significa o que, ele cumpriu quinhentas vidas, mas agora ele vai fazer um movimento não-causal. Aquela ação negativa durou quinhentas vidas. Durante quinhentas vidas a pessoa ficou presa num tipo de ação. Então os torturadores, vamos supor, por quinhentas vidas eles estão presos a um tipo de jogo, a um tipo de ficção, aí eles têm aquele sofrimento. E a pessoa que já transcendeu, foi.
Chagdud Rinpoche que dizia que a gente tem que ter no mínimo igual compaixão pelo que sofre e pelo que causa o sofrimento, pelo torturado e pelo torturador; no mínimo igual, senão maior pelo agressor do que pela vítima. Porque a vítima, enfim, contabiliza aquilo com maior facilidade dentro do aspecto da sua própria prática, pela sua lucidez ela dá um jeito, mas a pessoa que ataca, que causa mal, ela tem uma sensação de vitória, e a sensação de vitória é mais difícil de desenraizar. Então a pessoa fica fixada nisso.
Então aí segue isso. Nós estamos nesse ponto. Então, Sabedoria Primordial, Sabedoria Primordial é isso: recuar e olhar as bolhas, desde uma perspectiva não-contaminada. Então a própria noção, a gente vem pelos seis selos, olha, contempla as aparências e vai até Darmata; Darmata, a pessoa olhou, e aí brota a Sabedoria Primordial; a Sabedoria Primordial está ali, ligada à vacuidade, luminosidade, inseparatividade de aparência e vacuidade. Isso é rigpa. Aí nós olhamos essas coisas todas. Aí tem a Sabedoria Primordial. E a gente começa a contemplar como é que as aparências enfim surgem. Bom, aquilo é um engano; mas como é que surge? Como é que aparece o engano? Ou seja, a gente pode pegar uma foto de um filho, pegar a foto de um inimigo... super útil! Eu acho que essa coisa de fotografar, tinha que fotografar tudo; não precisa nem fotografar, só imaginar que a gente está vendo uma foto daquilo, isso é suficiente. Aí vocês pegam alguém que perturba muito vocês. Aí nós vamos olhar aquela foto; aquilo perturba; essa perturbação não vem da foto. Aí quando a gente compreende isso a gente pode fazer um upgrade na nossa prática. Mas, por exemplo, eu posso compreender, isso não vem da foto, mas como é que isso surge? Isso surge do mesmo modo pelo qual uma brasa que gira, uma luz que gira, produz um círculo; eu tenho um círculo, a brasa que gira produz um círculo. Esse é o mesmo processo de um filme, que eu estou vendo na TV que é um monte de luzinhas [piscando] e eu vejo coisas assustadoras. Aí nós olhamos e vemos coisas assustadoras; então essas coisas assustadoras não vêm da luz, elas vêm da estrutura interna. Essa estrutura interna está sendo usada para produzir a aparência com que eu estou me relacionando. Essa aparência é uma aparência, portanto, é vacuidade. Ainda que aquela aparência seja vacuidade, ela continua assustadora. Aí a gente olha como é que ela é: ela tem um aspecto cognitivo que eu identifico, eu posso identificar sequências causais que poderiam produzir isso ou aquilo. Mas ela também tem um movimento de energia que, enfim, é a substância em ação. Se vocês olharem, ninguém se perturba sem se perturbar. E a perturbação, ela não é um pensamento de perturbação, ela é uma energia que se perturba. Aí o Buda vai dar exemplos simples, do tipo "se a pessoa pensar em limão, ela pode salivar; se a pessoa se imaginar no bordo de um penhasco, ela pode ficar tonta". Então, esse processo super simples: tem algo que não é lógico, não é conceitual, mas que responde, se move; tem algo profundo que responde e se move. Então, quando a gente vê imagens, ou sons ou luzes, brotam coisas que não são conceituais e movem a nossa energia. No caso do círculo de uma brasa, a energia é mínima dentro disso, mas, dependendo das imagens que a gente vê, a energia pode aparecer.
Então a gente reconhece que o surgimento das aparências depende de uma parte cognitiva e de uma parte que é energia. Aí a gente vê: como é que as aparências surgem? Elas são vacuidade, mas são luminosidade. Então, o aspecto luminoso da realidade, que faz surgir a aparência, movimenta uma parte cognitiva e uma parte de energia. Aí a gente percebe que, tendo essa experiência de energia e essa experiência cognitiva, e aquela aparência, aquele surgimento, a gente junta isso tudo como a propriedade do que nós estamos vendo. Ainda que aquilo seja vacuidade, está movimentando energia, está movimentando cognição, e aquilo está ali. Aí nós estamos olhando o Espaço Básico; a gente está nesse lugar livre, vendo isso aparecer. Aí nós olhamos o samsara: como é que o samsara aparece? Ele aparece assim. E a gente "Uau!". A gente reforça a visão da vacuidade das aparências a partir de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato.
Depois de reforçar as aparências que brotam dos sentidos físicos, tangíveis, a gente pode avançar mais um trecho contemplando os sonhos. Por quê? Porque quando nós contemplamos os sonhos, nós não temos objetos tangíveis. Aquilo que, dentro de um sonho, a gente não tem objeto; tem aparência mas não tem objeto. A gente não pode dizer que as aparências que surjam são provenientes de algum objeto. Então a gente reconhece mais facilmente o aspecto luminoso, a aparência luminosa das coisas que surgem dentro dos sonhos. A gente vai olhando esse aspecto luminoso, como o tempo, a gente vai se dar conta que o aspecto luminoso da realidade tangível, o aspecto luminoso da realidade onírica, dos sonhos, é o mesmo. A gente também tem medos, a gente vê os objetos, eles são da nossa própria mente, a gente vê os objetos como se fossem separados de nós, então tem uma luminosidade que produz os objetos, os objetos movem a nossa energia, e a única substancialidade é a luminosidade deles. Então a gente vê, de modo claro, o surgimento das aparências a partir da luminosidade, diretamente a partir da luminosidade da mente. E aí a gente entende de forma mais profunda as aparências. Porque antes a gente estava olhando as aparências, e elas pareciam tangíveis, porque elas estavam imersas com sentidos físicos. Agora não tem mais sentidos físicos, então eu mergulho um pouco mais no aspecto abstrato das aparências enquanto luminosidade. Aí eu vejo isso. Isso me permite agora fazer um upgradezinho, são sempre upgrades pequenos: passo da aparência tangível para a aparência de sonho; agora eu saio da aparência de sonho para a aparência imaginada. Se eu sou capaz de criar aparências de sonho de modo aleatório, eu sou capaz de criar coisas imaginadas. Eu posso imaginar aparências e observar o efeito das aparências imaginadas. Eu posso imaginar essas aparências sem nenhum apoio. Por exemplo, quando a gente está vendo filme ou vendo televisão, a gente também está imaginando! Mas a gente tem um apoio. Aquilo não é real! Mas apóia a operação da minha mente. Quer dizer, eu posso desenvolver uma habilidade de visualizar, olhar, ver; enquanto eu estou visualizando imagens, meus aspectos cognitivos se movem a partir das imagens apresentadas, e a minha energia também se move. Então a gente começa a pensar assim: "eu vou para a praia no próximo fim de semana. Talvez não seja uma boa ideia, eu acho que vai chover e vai estar esse frio... vai ser horrível!". Então eu imagino, e vou. Aí eu vejo a praia; aí eu vejo um vento, uma chuva miúda, tudo úmido, tudo molhado, e a gente em casa comendo pipoca, numa casa apertadinha na praia... comendo pipoca, e umas frestas na janela. Isso não é uma boa ideia, né?! Nenhum baiano ia gostar de ir para a praia aqui no Rio Grande do Sul, não tem como... então, essa conclusão não é porque eu fui lá, entende? É porque eu imaginei, aí me coloquei, olhei e vi, e a energia como é que reage? E o pensamento como é que reage? E eu vi que não era uma boa ideia. Aí quando a gente olha isso desse modo, a gente está entendendo que a gente também é capaz de criar realidades e avaliar essas realidades. Aí nós estamos a um passo da compreensão das deidades.
Então aqui nós temos essa possibilidade agora, ou seja, eu construo realidades, eu construo mundos, a partir de aspectos luminosos. Então agora nós vamos utilizar, por exemplo, a gente volta para Prajnaparamita. A deidade de Prajnaparamita corresponde à nossa capacidade de ver a vacuidade. Nós tomamos essa visão particular e olhamos em todas as direções, e nós terminamos por ver todas as coisas representando exemplos diretos da vacuidade. A gente começa a olhar assim: esses desenhos aqui, as mesas também; a gente pega tábuas e faz mesas. Isso também é origem dependente: a gente pega o que não é mesa, no caso, tábua, pega prego, pega cola, pega verniz, corante; corante, verniz, cola, prego, madeira não é mesa; eu pego aquilo e faço uma coisa, e quando olho: "oh! Uma mesa!". Não, isso não é uma mesa, é madeira, é cola, é corante, é tinta, prego... não tem nada aí que seja uma mesa. Assim surgem as coisas. As coisas não são explicadas pela substância delas. Então nós temos a capacidade de tomar a mente livre, de operar sob condições e produzir aparências. Todos os seres vivos têm essa propriedade; têm uma capacidade luminosa de produzir as aparências, mas as aparências construídas são vacuidade. Então é maravilhoso, a gente vê os pássaros construindo ninhos, vê as abelhas construindo... todos os seres com uma capacidade de modificar o ambiente onde eles estão, e produzir coisas que eles entendem dentro dos mundos deles. Mas a gente quando olha, vê de um outro modo, mas eles constroem aquilo dentro dos mundos deles; aquilo tem uma causalidade, opera e funciona, e dá certo!
Aí nós olhamos assim. Isso é o olho de Prajnaparamita, está olhando tudo. Não tem nada que não seja assim; tudo funcionando assim em todas as direções. Aí a gente entende: o olho de Prajnaparamita é um olho de lucidez; esse olho de lucidez quando olha as aparências, as aparências surgem como a mandala de Prajnaparamita. Então aí surge essa expressão, mandala. Antes a gente tinha bolhas, os mundos eram bolhas; agora como eu estou olhando com olho de lucidez, eu não chamo mais de bolha, eu chamo de mandala. Então tem uma mandala das deidades. Aí surge um número grande de deidades. Por exemplo, vai surgir a mandala de Akshobia, Sabedoria do Espelho. A gente olha em todas as direções e vê os seres vendo os seus próprios mundos. Essa visão ja é a Sabedoria do Espelho. A gente pode olhar em qualquer direção: as árvores se abrindo, elas têm água, têm ar, têm as raízes no chão, têm a seiva, têm as múltiplas substâncias, elas vão pegando do ambiente as coisas e vão criando folhas, e vão criando raízes, e criando células da própria planta, e a planta vai expandindo e dá super certo aquilo.
Então a gente vê como os seres todos têm a capacidade de olhar para o mundo segundo o seu próprio olhar e construir realidades. Então eles vão construindo realidades, vão construindo seus corpos e vão andando. Esses seres olham do seu próprio jeito. Aí é super bonito, aí as pessoas começam a cuidar dos animais. Aí elas vêm que os animais também olham ao seu próprio jeito. Elas domesticam os animais, vão oferecendo o que eles querem ver, e levam eles pra cá levam para lá, vão domesticando os animais, vão acalmando e eles vão fazendo o que as pessoas querem. As pessoas vão olhando para eles, elas olham com um olhar de espelho: "eles estão vendo tal coisa, então eu faço assim." Aí, por exemplo, todo dia a pessoa chama as vacas oferecendo cana-de-açúcar para as vacas; pega uns feixes de cana e bota no cocho. Aí a vaca ja sabe, tem um horário que ela vem direto esperando o feixe de cana-de-açúcar que está no cocho. Naquele dia, a pessoa não corta cana-de-açúcar, ela bota outras coisas, e as vacas nem se dão muita conta. Aí abrem a porteira, "brlum!", elas vão para os seus lugares, quando olham para aquilo [ficam descontentes]. Mas ele enganou elas. Ele criou aquilo e a vaca entendeu, de um certo jeito. Esse processo pelo qual a gente é capaz de enganar o outro, isso é Sabedoria do Espelho: tu estás entendendo o que ele vê e o que ele pensa quando vê; então eu produzo um aparência, ele olha para aquilo pensando de um jeito condicionado como ele sempre pensa. Mas aquilo não é assim, mas ele faz o movimento dele como se fosse. Então Sabedoria do Espelho. Essa é uma Sabedoria do Espelho malandra, vamos supor assim.
Mas a pessoa pode desenvolver essa capacidade de ver o outro, mesmo dentro do mundo condicionado, tu podes desenvolver a capacidade de ver. Já o Buda Akshobia está olhando com o olho compassivo, ele é o próprio Buda Primordial. Ele manifesta compaixão e amor por todos os seres. Então ele olha para os seres e vê como os seres se enganam; como é que eles estão operando a realidade, e aquilo que surge diante deles espelha o mundo interno que eles estão operando, então, a Sabedoria do Espelho. Aí nós olhamos em volta: tudo se manifesta desse modo. Todos os seres vivos operando desse modo, mesmo as substâncias. As substâncias também vão operar assim. Então tem algumas substâncias, por exemplo, a hemoglobina. A gente pode morrer com monóxido de carbono porque a hemoglobina se fixa ao oxigênio. O dióxido de carbono não tem problema para nós, mas o monóxido de carbono tem. Por quê? Porque ele tem só uma molécula de oxigênio. Aí quando a hemoglobina se fixa nisso, o monóxido de carbono se fixa e fica grudado. Não é como, por exemplo, o dióxido de carbono, CO2, e a hemoglobina o transporta, mas o libera; ela solta dióxido de carbono, mas o monóxido de carbono ela não consegue soltar. Então se a gente ficar num ambiente com monóxido de carbono por muito tempo, a hemoglobina toda começa a ficar contaminada por monóxido de carbono. Nós vamos morrer por asfixia, sem perceber que nós estamos asfixiados. A gente segue respirando, mas vocês começam a perceber que o coração começa [a bater mais rápido] porque está com falta de oxigênio no corpo, então ele começa a bombear mais rápido para o sangue poder trazer o oxigênio necessário. Mas ali tem muito monóxido de carbono, então a hemoglobina vai ficando toda contaminada. Daqui há pouco vocês estão um pouco tontos, estão suando frio, o coração está disparando: "tomei chimarrão demais", algum problema assim, aí vocês tonteiam e [morrem]. Então isso é, vamos dizer, a própria substância. Ela se engana, Sabedora do Espelho; ela adere a uma coisa, e aquilo parece que é e não é.
Aí nós olhamos com o olho de Sabedoria do Espelho: as coisas todas se manifestam assim. Nos templos, é muito comum ter protetores na frente. Protetores é assim, por exemplo, no Ocidente as pessoas colocam leões, seres assim; mas os protetores são seres que espelham, quando a pessoa chega e olha para esses espelhos, toda a maldade que a pessoa tiver dentro, ela encontra; ela olha para aquele ser e vê aquilo: "Oh! Talvez esse não seja um bom lugar de eu entrar! Porque, olha a cara deles! Aqui não é do bem!" Mas aquilo é uma arte em pedra, tem uma coisa em pedra ali, não tem nada! Mas quando a pessoa chega ali ela "Ooooh!" porque ela espelha aquilo. Então são os protetores. Põe na frente assim. A pessoa para cruzar ali ela tem que passar juntinho dos protetores. Sem ela perceber, aquilo faz brotar justamente as regiões de aflição da pessoa, as regiões de más intenções. Aquilo aparece, assim. Aí tem um nível de perturbação que brota. Tem uma história de um Dalai Lama que ele tinha protetores físicos do lado de fora. Então, eram como pessoas; eram emanações, e ele fazia essas pessoas baterem em outras na frente do Potala, e eram guardas muito ferozes. E era assim, Tcherezig era o próprio Dalai Lama, e era o guarda que batia e era a pessoa que apanhava. Aquilo era, vamos supor, um teatro. Nesse teatro, as pessoas olhavam, elas sentiam que elas deviam ter um tipo de comportamento e não outro. Era uma forma direta de apresentar as coisas. Então tem a história dos praticantes que estavam em retiro, e resolveram ver o Dalai Lama no Potala, e eles foram até lá. Quando chegaram lá, não estavam nem querendo subir, sentiram que a coisa estava séria. Aí o Dalai Lama, que não é esse atual, explicou isso para eles. Então, Sabedoria do Espelho, entende? A gente está olhando assim.
Aí tem, por exemplo, Sabedoria da Igualdade. A Sabedoria da Igualdade tem esse aspecto profundo, secreto: todas as aparências surgem do mesmo modo. E tem esse aspecto mais grosseiro de nós podermos compreender que é uma característica dos seres imersos no samsara. Eles têm a capacidade de viver as circunstâncias que os outros estão vivendo; eles têm a capacidade de simular na sua própria mente, entender a situação do outro, a mente deles não está presa à própria identidade. Eu considero isso de grande importância, a nossa mente não estar presa àquilo que nós chamamos de "nossa identidade". A gente consegue se interessar pelo outro, entender a situação pelo outro, agir pelo outro e a nossa energia se move como se aquilo fosse conosco. Por quê? Porque nós não estamos presos, não há uma identidade que nos prenda, nossa mente é livre, ela pode alcançar qualquer direção. Aí a gente olha assim, a gente entende que os seres também têm isso, a gente pode entender os seres em qualquer lugar e ter essa capacidade de protegê-los, de cuidá-los, de entender, etc. Então isso é uma coisa possível. Aí nós começamos a entender isso.
Aí quando nós estamos olhando as muitas e múltiplas sabedorias desse tipo, as Cinco Sabedorias, Prajnaparamita, Tcherezig e mais outras infinitas, a gente vai entendendo os Tertons. Isso vai caracterizar o bloco 3. O bloco 3 é aberto pela prática da presença. Na sequência, os Tesouros do Espaço Básico. Todas as deidades são tesouros do espaço básico. Isso é super importante. Aí vai acontecer o quê? Aí nós vamos perceber que cada aparência, cada obstáculo que surge para os seres, aquela aparência é vacuidade; aquela mente que está operando e rege aquela bolha, rege aquela bolha de realidade, ela não é "do mal"... não tem um "centro do mal" que cria as bolhas. Não tem isso. Tem uma construção luminosa que vai construindo as bolhas de realidade a partir das inteligências que estão operando, entende? É como um jogo, é como um jogo de futebol, é como um time de futebol, é como um clube de futebol: tem uma inteligência particular; essa inteligência termina virando uma visão de mundo, uma visão das coisas todas. Aquilo não é "do mal", aquilo é uma inteligência luminosa, capaz de construir coisas. Quando a gente entende como é que essa inteligência parcial que está gerindo, gestando aquela visão de mundo parcial, quando a gente entende isso como vacuidade e luminosidade, a gente é capaz de utilizar aquela aparência particular a qual nós estamos aderidos, como um caminho que nos leva até o ponto último da presença e do reconhecimento de vacuidade e luminosidade, dos Seis Selos, etc. Nós somos capazes de pegar aquela aparência que antes nos iludia como uma inteligência que a gente, entendendo como ela está operando, ela nos leva até o ponto final. Então, é como se a gente retornasse aos Seis Selos. Aí eu sei: tomo uma aparência, e vou até o ponto final. Só que a aparência que eu tomo é surgida por uma inteligência do samsara. Então eu tomo uma inteligência do samsara e vejo ela, enfim, como Darmata, que é o sexto selo. Eu começo: sele as aparências com vacuidade; aí sele a vacuidade com as aparências e assim eu vou indo. Mas aí eu retorno: como é que as aparências surgiram? Essas que eu estou selando com a vacuidade, né. Elas surgiram pela luminosidade. Então essa luminosidade particular que produz aquilo nada mais é do que a luminosidade de Darmata. Aí a pessoa olha aquilo e "Uau! Que incrível!". Aí nesse momento surge uma deidade, porque aquilo que era um obstáculo agora é um caminho que me permite reconhecer Darmata. Então aí eu posso ver: todas as aparências surgem através desse processo luminoso. Então aqui em particular, eu estou olhando o surgimento dos times de futebol. Então, aquilo não é do samsara, aquilo não é do mundo "do mal", aquilo é uma mente luminosa que produz isso. Aí a partir desse momento, nós conseguimos transformar todo aquele tipo de universo num universo que me remete para a liberação. Então eu sinto que aquele universo, tem uma inteligência, ele tem uma aparência, ele tem alguma coisa profunda, então eu tomo aquilo como se fosse uma deidade, então aquele tipo de engano, a coemergência daquele engano, agora virou a regência que me conduz à iluminação.
Então os Tertons vão gerar essas inteligências. Eles vão absolver as inteligências do samsara uma a uma. Isso significa o quê? Eles vão iluminar uma a uma as inteligências do samsara. Vocês ja vejam que o caminho para a liberação, o caminho para a emancipação, para liberação e para a iluminação não é um caminho no qual a gente vai se contrapor às coisas. A gente não vai lutar contra. Nós vamos iluminar as coisas. E aí surgem esses grupos de inteligências. A gente pode dizer ainda: o Buda encontrou oitenta e quatro mil obstáculos, por isso ele falou oitenta e quatro mil ensinamentos. Todos os ensinamentos começam com uma aparência e remetem para o aspecto último. Então aí nós estamos no terceiro bloco. É o bloco onde nós estamos olhando as inteligências iludidas como expressões de vacuidade, expressões dinâmicas, que se manifestam por vacuidade e luminosidade. Quando elas produzem as aparências, as aparências mesmo reproduzem vacuidade e luminosidade. Então eu não tenho uma contradição entre as aparências e Darmata, não tenho mesmo. Logo, as inteligências que produzem as aparências comuns elas estão como deidades especiais, que me permitem escapar daquilo. Vocês entendem? Então eu transformo o caminho pelo qual eu fui até a confusão, e eu transformo aquilo através da deidade que produziu aquela sustentação de toda aquela confusão e transformo aquilo num caminho que remete de volta.
Então vamos supor, vamos tomar um exemplo, um exemplo que, assim, é um "neo-exemplo": vamos imaginar o Super Mario. Então as crianças estão jogando, estão na TV la com o Super Mario. Se eles entenderem como é a relação emocional-cognitiva deles com aquele gráfico, eles podem se defrontar com alguma coisa muito profunda, que é: como as aparências me arrastam, mobilizam a minha energia, fecham minha mente e criam um mundo particular, produzem um impulso e me mantêm operando por horas em alguma coisa. Ali tem um exemplo direto. Então, o Super Mario, com o tempo, agora eu estou vendo com meu olhar onsiciente, ele vai se transformar numa deidade budista; um mundo só de sambogakaya, aquilo ali é certo! Senão as crianças não vão se livrar dos jogos. Mas não tem nada nos jogos que não seja isso, vacuidade e luminosidade! Eu acho muito mais difícil a pessoa se livrar da sensação como há cem anos de que ela tinha que, a vida dela era o quê? Cuidar das vacas, cuidar dos porcos, cuidar das galinhas, cuidar das plantações e lutar contra os gambás e contra os ratos, e cuidar daquilo tudo e casar e ter seus próprios filhos e botar os filhos para trabalhar... muito mais difícil isso. Porque aquilo parecia super denso. Quando nós olhamos um jogo de computador, aquilo não tem densidade nenhuma. Qualquer mãe ameaçadora consegue algumas vitórias. Tipo "está na hora de fazer os deveres da escola, está na hora de tomar banho, está na hora disso, daquilo", a gente consegue né. Mas as outras realidades são realidades que prendem os pais e mães, prendem todos dentro daquilo. Então hoje o samsara, ainda que ele seja super atraente e luminoso, o samsara é frágil, porque as múltiplas coisas com as quais nós temos conexões não são vitais para nós, e houve um tempo em que aquilo tudo era vital. As coisas do samsara eram muito graves. Hoje tem uma vasta quantidade de pessoas que não sabe cuidar de si, que não sabe lavar louça, não sabe uma porção de coisas e estão atuando, estão andando. Um tempo atrás, se a pessoa não soubesse realmente se mover, ela passava mal. E as pessoas eram forçadas a aprender. Entre os sintomas disso também é o suicídio. A vida era super dura, as pessoas se suicidavam num certo ponto, às vezes no início das suas vidas também.
Então aí surge esse âmbito que é chamado de sambogakaya. Eu acho isso completamente maravilhoso, muito sofisticado, muito extraordinário. Porque nós estamos entrando - não sei quantos se reconheceriam no bloco dois aqui. Porque quem não estiver em treinamento, está no bloco um; bloco dois é quem está em treinamento - agora, o final do bloco dois envolve esse tipo de compreensão. Aí nós entramos no bloco três, quando nós estamos olhando a realidade totalmente como mágica. Nós ja estamos fora, estamos olhando a partir do espaço. Aí, as aparências não são mais obstáculos para nós. As aparências agora são ornamento; são ornamento da Sabedoria Primordial; são ornamento de como as realidades brotam. Isso é sambogakaya! Nós estamos brincando agora, a gente começa a fazer surgir as deidades, reconhece as deidades, movimenta para cá e para lá. É isso.
Aí nós vamos indo até o final do bloco 3. A gente treina isso. Aí tem um ponto também super interessante que é assim: dentro dessa visão, aí nós olhamos o aspecto de que... a gente retorna aos Tesouros do Espaço Básico, a gente olha de novo. A gente pára, assim: "ok, já brinquei bastante de sambogakaya". A gente pára de novo. A gente vê: sambogakaya, as múltiplas deidades, elas brotam do próprio espaço básico. Ou seja, as ilusões brotam do espaço básico, as deidades também brotam do espaço básico. Então a gente vai entender essas deidades como inseparáveis do Buda Primordial; Buda Primordial Kuntuzangpo ou Samanthabadra. Então agora a gente vira devoto de Kuntuzangpo. Nós "Uaau!". Então assim, nós estamos olhando o Buda Primordial: "já brinquei bastante com várias coisas. Agora eu vejo todas elas, retorno ao Espaço Básico".
Então eu volto e reconheço todas as manifestações como Tesouros do Espaço Básico. Mas aí nós repousamos no Espaço Básico. E a gente vê que o Espaço Básico se movimenta de que modo? Como é que o Espaço Básico se move? Ele se move produzindo cognição, luminosidade e energia. A gente pode dizer, luminosidade, energia e cognição. Então, luminosidade: aquilo surge como aparência. Mas a gente não dá nenhuma sustentação a uma aparência se não colocar energia, então a energia sustenta aquela aparência, e não existe aparência que não tenha um significado e não esteja dentro de um contexto. Então a gente cria um mundo e as aparências de modo luminoso. É como, por exemplo, para criar o jogo de xadrez não tenho só as pedras, eu tenho que criar o tabuleiro e as regras, senão não tem jogo, entende? E eu precisaria ainda criar o adversário. Tem que criar os dois jogadores, tabuleiro, as regras... aí cada peça passa a ter sentido. Então os objetos só passam a ter sentido dentro de um universo. Então tudo isso é luminosidade, a gente produz isso. Mas a gente bota energia. Se não botar energia, aquilo não anda. Se eu não botar cognição em cada peça, aquilo também não anda, então eu boto energia e cognição. Aí aquilo começa a andar sozinho, começa a funcionar. Então assim a gente percebe: as manifestações todas de todas as aparências são luminosidade, energia, cognição. Que está em todo o lado luminosidade, energia e cognição. Aí eu estou olhando desse modo. Aí eu vejo: luminosidade, energia, cognição é a minha experiência incessante. Eu só tenho experiência disso: luminosidade, energia e cognição. É o que eu faço o tempo todo. Não importa o conteúdo do que eu estou vendo, nem a bolha, nem o que for. Mas é luminosidade, energia e cognição. Mas eu não tenho a sensação de esforço. Simplesmente manifesto luminosidade, energia, cognição de modo natural, sem esforço, "a manifestação desobstruída", aí surge essa expressão. A sabedoria, aliás, é uma manifestação desobstruída da Sabedoria Primordial. As aparências são isso. Tem um surgimento desobstruído, nós não temos esforço nenhum. Assim, eu tenho uma forma direta de perceber. Não preciso nem olhar para as aparências e dizer: "elas são vazias". Não preciso mais dizer isso. Não preciso mais dizer "elas são sem sentido". Não. Agora nós vemos que as aparências que brotam dos sentidos físicos, ou aparências noturnas que brotam nos sonhos, ou seja qual for a aparência, elas são uma configuração dessa ação desobstruída da Natureza Primordial, da Mente Primordial, do Espaço Básico. Então eu tenho tudo isso surgindo de modo não-obstruído. Aí nós meditamos sobre isso, nós contemplamos isso, surgimento não-obstruído das aparências. Mas eu não estou mais achando que as aparências são boas ou ruins, que elas são obstáculos, que elas têm que ser reduzidas à vacuidade, que elas têm que ser neutralizadas, eu não estou mais nada. Agora eu estou olhando e vendo na própria luminosidade. Na própria energia, na própria cognição, eu vejo diretamente a manifestação não-obstruída da Mente Primordial, do Espaço Básico.
Aí isso é Samanthabadra. Samanthabadra produz a multiplicidade das deidades. Aí agora eu estou olhando assim: Samanthabadra extingue a morte, e, portanto, o nascimento e portanto permite a gente entender porque o Buda vai dizer "eu estou extinto". Aí as bolhas, as identidades, a energia, a cognição, a luminosidade e as substâncias do mundo incessantemente operando, de modo não-obstruído. Se o que nós estamos vendo é nascimento, se é vida, se é morte, é a bolha! Nós sempre vamos ter algum nível de manifestação, mesmo que a gente esteja, por exemplo, condicionado e obtuso, não entenda nada, simplesmente tem uma mente operando com luminosidade e reagindo às aparências. Mas quando aquelas aparências cessam, aquela bolhas cessam, algo segue. Por quê? Porque a bolha é apenas com um sonho! Tem a base da Presença, do Espaço Básico, ela está ali! Então, todas essas categorias de transformações se dão dentro dos mundos oníricos. Se a pessoa consegue se colocar atrás disso, ela vê todos esses surgimentos, mas não pensa que isso é com ela, ela vê esse processo todo ocorrendo. Então aqui a gente está olhando a presença espontânea, sem nenhum condicionante. Então isso é Samanthabadra. Isso seria o final do bloco três.
Nesse final do bloco três, a pessoa poderia pensar: "e eu, enfim, eu seria o quê?" Mas não tem essa resposta, porque não há alguém ali. Aí a pessoa pode pensar "bom, mas no mínimo o meu Espaço Básico é meu!" Aí a pessoa vai olhar e "não tem como dividir o Espaço Básico". Daí, ainda que possa surgir uma aparência de individualidade, essa aparência de individualidade surge como uma chama dentro de uma fogueira, tem labaredas que aparecem, mas o fogo é um único fogo. Então, há um Espaço Básico; esse Espaço Básico é a ausência de conteúdo. Não é nem um objeto. Não é como o espaço que nós olhamos e parece um objeto. Espaço Básico não é um objeto. É a liberdade diante das manifestações e uma Presença que não é um objeto. Então, a nossa visão de luminosidade parte de uma perspectiva individual e desaparece dentro de uma visão ampla, que não é alguma coisa. Isso significa "a extinção do Buda", o Buda extinto, porque a mente dele é ampla desse modo. Ela não é uma mente particular de alguém e alguma coisa que chegou a algum lugar. Olhando sob a perspectiva do samsara, no mundo condicionado que a gente possa estar operando, olhando nessa perspectiva, a nossa visão fica novamente depressiva: "não, mas eu pensei que eu ia chegar a algum lugar! E eu estou chegando à extinção! Isso é horrível!". Mas na perspectiva ampla, quando o Buda olha isso, Buda não tem nenhuma depressão! Não há depressão nisso. Nós vamos encontrar uma ilusão vasta dos seres imaginando que são alguma coisa a partir de componentes kármicas, e nós ja estamos há muito tempo sem falar em karma. Então karma funciona assim: bloco zero e bloco um. A partir do bloco dois nós ja estamos liberando a linguagem do karma.
Aí o Buda olha desse modo. Ele tem um movimento de energia desobstruída, ele tem cognição desobstruída, luminosidade desobstruída. O que caracteriza a existência dos seres é energia obstruída, cognição obstruída, luminosidade obstruída. Mas se fosse obstruída mesmo a gente diria "o ser existe". Mas não! É uma obstrução de um jeito, daqui a pouco é uma obstrução de outro jeito, aquilo vai indo... é muito interessante. A gente diz "não, eu sou alguém sério! Minhas obstruções são reais!". Tudo bem. Aí eu me movo de modo causal, previsível. Ah, que maravilha! Aí o que acontece? Vocês observem. As nossas estruturas kármicas, quando a gente sai de uma bolha e vai para outra, aquilo mais parece um salto quântico. Por quê? Porque a gente estava operando de um jeito e vai operar de outro jeito! E o fato de a gente mudar não tem uma explicação, propriamente. Não é assim "mudou porque houve um trajeto", não, não tem trajeto. A gente saiu de uma coisa, foi para outra. E isso é bem a aparência do salto quântico, a gente sai de uma coisa e vai para outra sem trajeto. Sem explicação, sem tempo também. A gente estava aqui e agora está lá. Isso é não-causalidade.
Então a causalidade são pequenos intervalos ilusórios do processo não-causal, que é o que domina tudo! A nossa liberação se dá por não-causalidade, ela não se dá por causalidade. Não é assim "eu vou fazendo coisas, aí eu vou acumulando e vou chegando e vou indo... não é assim. A gente vai liberando. A gente vai fazendo saltos não-causais, e aí a gente vai tendo a impressão de que a gente vai mudando. Porque, naturalmente, eu tenho outros componentes, então esses outros componentes me permitem descrever uma outra coisa. Mas a mudança de uma coisa para outra é uma mudança não-causal.
Os filósofos sabem que a causalidade não produz mudanças. Isso é um ponto super delicado, assim, sabe? Mas não há a possibilidade de nós fazermos uma mudança causal, as mudanças sempre são por saltos, sem trajetória. Tem uma análise dos gregos, Zenon de Eléia, Parmênides, eles analisam isso, que é muito interessante. Isso eu terminei estudando porque, enfim, a Física Quântica trabalha com essa questão. Aí quando começa a trabalhar com esse salto quântico, as pessoas se arrepiam. Aí tu começas a olhar, vai examinando, aí alguns autores localizaram nos gregos - Zenon de Eléia e Parmênides - essas ideias. Eles viram que a questão do contínuo e do discreto era uma questão que ja tinha sido tratada há muito tempo, e essa é uma questão interessante. Na época, eles usavam muitos exemplos a partir de flechas arremessadas. Parece que eles só faziam isso, né, usando exemplos de flechas. Um dos exemplos é assim: "por que o mundo é infinito?". Aí tu arremessa uma flecha até o fim do mundo... bateu na parede do fim do mundo. Aí tu chega na parede do fim do mundo, sobe na parede, olha adiante e joga uma flecha de novo. Tu encontras uma parede do fim do mundo. Aí, naquele lugar, tem o espaço adiante. Aquilo é o fim do mundo. Dali tu jogas mais uma flecha. Aí, naquele lugar, tu pegas de novo a flecha e joga adiante. Eles usavam muitos desses exemplos. Aí tem esse exemplo do Parmênides e do Zenon de Eléia que é assim: você pode ver, tem uma pessoa que vai atirar uma flecha em você, aí você se despreocupe. Por quê? Porque a flecha nunca vai chegar em você. A flecha primeiro cumpre a metade do trecho. Depois a metade da metade, depois a metade da metade da metade. Ela sempre está cumprindo uma metade e falta uma metade, então pode ficar aqui, tranquilo. Naturalmente, isso foi o fim do filósofo (risos). Isso é um ponto tão interessante, né? Na verdade, ele está rindo do raciocínio lógico. Mas aí tem assim: a flecha não consegue avançar senão através de um processo descontínuo. Por quê? Porque, vamos supor, a flecha tem que ir de um lugar a outro; se ela for por um processo contínuo, para ir de um ponto a outro próximo, ela tem que passar por todos os pontos entre um ponto e outro. Então vamos supor que os pontos são muito próximos. Mas mesmo que aquilo seja muito próximo, eu consigo gerar um número infinito de pontos entre um ponto e outro. Aí eu pego aquele número infinito, pego dois deles. Aí digo, "bom, aquilo já é um nada, né?", mas não é um nada. Eu digo nada porque aquilo é muito pequeno, tem alguma coisa, porque tem um ponto e tem outro e tem uma distância "ha ha ha!". Então, eu pego aquilo e divido por um número infinito de pontos. Aí penso "agora a flecha vai!", mas aí eu vejo: número infinito de pontos aqui e ainda tem dois pontos e eles são separados um do outro! Então eu não consigo fazer aquilo ser assim. Aí eu não tenho como, a flecha vai ter que saltar de um ponto, saltar para um outro ponto, saltar para um outro ponto. Por isso quando a gente vê uma flecha a gente vê ela "tum tum tum tum" [andando sem continuidade], essa é a razão né? Então é interessante. Ele usa, ele mostra como a linguagem da posição e deslocamento são contraditórias, que é uma coisa que o Niels Bohr vai descobrir também. Ele vai encontrar, por exemplo, as variáveis de velocidade e posição são não-comutáveis; elas não pertencem ao mesmo universo lógico. Portanto, quando estou tratando de velocidade, estou dentro de um universo lógico, quando estou tratando de posição, estou dentro de outro. Eu não consigo usar uma linguagem compatível dentro disso.
Essa é a Física Quântica. Ela foi encontrando esses obstáculos, obstáculos da própria linguagem. É que, não é que a flecha não vá, a flecha vai, ela só não vai como eu estou descrevendo! Eu não consigo descrever como é que ela vai, porque ela não vai por todos os pontos. Aí o que vai acontecer? Nós vamos encontrar dentro da Física Quântica também fenômenos, assim: aí o elétron estava aqui, ele aparece lá. E também tem os saltos quânticos entre os níveis, e os elétrons saltam de uma posição para outra sem passar pelo meio. Aí a gente diz "bom, isso aí é brincadeira!", mas aí surge o tunelamento, que é uma coisa super interessante que, eles vão descobrir o tunelamento - não me lembro, acho que ele ganhou o prêmio Nobel - aí descobre o tunelamento, e cria um diodo, cria um componente eletrônico que funciona a partir do tunelamento. Tunelamento é assim, por exemplo, vamos supor que a gente precisa empurrar um carro e ele tem que subir, tem que passar por um quebra-molas. A gente chega no quebra-molas e aquilo não vai. Tunelamento é assim, a gente empurra, ele passa por dentro do quebra-molas e sai do outro lado. Entenderam? É isso. Então por que a gente não consegue empurrar? A gente vai empurrar, não dá. Eu preciso colocar muita energia, porque o carro vai ter que levantar para poder descer do outro lado. Depois, a outra roda de trás eu vou ter que empurrar, ele vai ter que subir e descer. Para subir, eu preciso realizar um trabalho, eu preciso uma energia para fazer aquilo acontecer. Se eu não tiver muitas pessoas empurrando, eu não consigo comunicar energia para ele subir e descer. Então, esse é um ponto. Agora, vamos supor que eu quero arremessar um projétil e eu tenho uma montanha, que eu vou arremessar o projétil para ou outro lado da montanha. Mas a pólvora que eu tenho não consegue gerar a energia suficiente para que ele galgue a parte mais alta e desça. Não tem importância nenhuma: eu dou um tiro na montanha, "pá!", ele passa por dentro da montanha e surge do outro lado! É simples. Então isso é o tunelamento. Aí eles viram o efeito do tunelamento. Então o tunelamento existe. As partículas podem aparecer do outro lado sem ter energia suficiente para atravessar aquela barreira. Então surge o diodo de tunelamento. Aí começam a surgir esses efeitos quânticos. Está certo que se a pessoa medita, aí o tunelamento acontece mais fácil. Se a pessoa não medita... isso é brincadeira, não é assim. Aí vai surgindo esse tipo de situação.
Então isso é não-causalidade. A gente está acostumado ao processo causal, mas o processo causal é limitado; ele funciona só dentro de bolhas de realidade. Na verdade, a realidade toda é não-causal. Por exemplo, a gente constrói o jogo de xadrez por um processo não-causal. A pessoa inventa: "ah, vou botar uma torre! Ah, duas! Vou botar um cavalo! Não, dois! Vou botar um rei! Não, dois! Não... dois reis não vai ficar bem... vou botar uma rainha. Assim fica melhor. Mais equilibrado. Vou botar um bispo. Não, dois. Tudo bem. E o pessoal para trabalhar? Ah, tem que botar os peões ali, um monte de peão. Então, está bem, eles são os protetores, ficou legal! Gostei disso aqui. Agora vamos ver o tabuleiro, retangular ou quadrado? Não sei, retangular fica melhor né? Não, vou fazer quadrado! Vamos fazer quadradinhos azuis e vermelhos... não não, isso é muito gremista, colorado, vou botar branco e preto, mais corintiano, assim." E pronto. As opções são todas não causais, pessoal. Aí o jogo ficou causal. O jogo opera causalidade. Qualquer criança chega ali - quanto menor, melhor - e faz o jogo de um outro jeito. Se aquilo fosse uma causalidade respeitável, nenhuma criança conseguiria isso, só um gênio conseguiria alguma coisa. Mas não. Qualquer criança chega ali e destrói aquilo tudo. Aí o pai e o amigo do papai acham aquilo horrível. Então, essa não-causalidade é o movimento das coisas! A gente luta duramente para estabelecer causalidade, e não consegue. A gente não tem causalidades sérias. As causalidades duram um tempo, depois aquilo afunda. A matemática toda, a filosofia, opera dentro disso. Eu acho bonito isso, super bonito. Por exemplo, a matemática, a gente consegue matematizar uma situação, aí a gente consegue prever o movimento daquilo. Mas eu preciso operar com os fatores causais correspondentes. Se eu não estiver operando com os fatores causais correspondentes, aí aquilo não funciona, mas eu monto a situação causal toda.
Então, a gente vai até esse ponto. Então o Buda Primordial, Samanthabadra, opera de modo não-causal. Ele vai operar dessa forma, né. E a gente vai entendendo as bolhas com as causalidades específicas, dentro de cada uma. Não é que não tenha causalidade, nós consideramos que a causalidade são o atestado da realidade das coisas. É bonito de ver isso. É assim "isso aí é tudo bolha? Tudo bem, então não pague os impostos, então não pague isso, então não faça aquilo, então não trabalhe. Sem dinheiro agora vá no supermercado que eu quero ver". É assim. Então isso é, a gente tende, no samsara inteiro, a privilegiar a causalidade. Mas quando a gente está raciocinando em causalidade, está dentro de bolhas específicas. A gente pega aquelas bolhas e transforma no mundo inteiro. Aí dentro da área, por exemplo, de sociologia, antropologia, a gente não entende as outras culturas, porque elas estão operando com outras causalidades, a gente não entende eles. Eventualmente considera eles inferiores; acha eles estranhos... é assim. Essa é a situação. Então, mesmo que sejam mentes super lúcidas, capazes de sustentar as aparências sem esforço, sustentar as bolhas sem esforço e se mover, elas estão além de vida e de morte, elas se tornam identidades operando dentro disso e lutando. Então esse é o tema do nosso texto. O Salistamba Sutra, a origem dependente, a originação dependente. Então a gente vai olhar ainda, a gente nem começou o texto.
Segundo Dia - Noite: Perguntas e Respostas
Pergunta: por que a gente, se a liberação é não-causal, se a sabedoria já está presente, de forma não-causal, por que a gente pratica meditação e coisas que parecem estar dentro da causalidade?
Resposta: essa é uma boa pergunta. Na verdade, quando a gente começa o caminho a gente tem essa característica, que é uma característica, eu diria assim, quase obsessiva, porque nós temos uma, no meio do samsara nós temos esse comportamento, é fixo; tomar alguma coisa fixa e seguir por aquilo por um tempo. Mesmo que tenha vários sinais negativos, obstáculos, a gente segue daquele modo. Isso é uma característica nossa, no samsara, não apenas os seres humanos, mas os seres em geral têm isso. Isso é uma característica da ignorância também, do aspecto de avydia, ou seja, nós tomamos uma bolha, depois daquela bolha nós tomamos uma paisagem, e a gente segue aquilo, que aquilo é o único jeito que a gente entende, e a gente segue daquele modo. Então, no budismo, quando a gente vai encontrar os ensinamentos, a gente não vai encontrar um ensinamento que vá nos dizer "não, não siga assim". Por quê? Porque os ensinamentos todos eles são de Tcherezig, eles nós pegam no lugar que nós estamos. Então, nós somos convidados a direcionar o nosso aspecto obsessivo numa outra direção. Então a gente constrói uma identidade de praticante e começa a fazer aquilo de um certo modo. Então essa é uma forma. A gente é acolhido dentro desse processo. Então esse processo obsessivo é um dos elementos que nos retira do caminho, nos retira da lucidez, nos coloca dentro do samsara mesmo, a girar; então a gente começa a substituir os conteúdos desse processo obsessivo. Começa a fazer alguma coisa que nos deixa mais próximos de um lugar onde a gente pode ver os aspectos mais profundos. Então, em parte, é isso. A gente direciona o nosso movimento e a nossa mente começa a se direcionar para um lugar onde a gente vai poder ver melhor, mas quando a gente vê, todas as transições que a gente faz são transições não-causais. Um processo causal seria assim: se eu levantar dois quilos em cada braço, 108 vezes todo dia, meu braço vai crescer. Esse é um processo causal, né? Se eu sentar todo dia 108 respirações, eu vou ficar com a mente mais concentrada. Mas se eu estiver com a mente mais concentrada, eu não estou nem mais próximo nem mais afastado do aspecto último. Mas, como eu tenho a mente mais concentrada, eu posso ouvir melhor os ensinamentos que vão fazer as transições não-causais. Se eu em vez de 108 respirações eu ficar dez vezes 108 respirações, eu vou começar a ampliar, ampliar, ampliar, e isso não quer dizer que eu vá atingir a liberação. Então não importa o quanto eu faça disso, eu vou precisar uma alteração de, vou precisar de visão, como a gente vai chamar - rigpa, a visão. E esse é um processo não-causal.
Como Tokuda-san dizia, "com esforço a gente não vai a lugar algum; sem esforço também não vai". É assim né. Eu preciso de uma malandragem (risos), uma malandragem japonesa. Eu não sei se eles são bons em malandragem, mas a gente vai precisar é um jeito; esse é um processo não-causal. A gente vai precisar desse processo não-causal. É uma habilidade, é rigpa, é um jeito de olhar. Esse rigpa está ligado, olha o seis selos e nós vamos estar entendendo o que nós vamos precisar. Mas aí tem, por exemplo, Tulku Ordjen, ele vai convertendo isso. Tu podes tomar o processo, esse processo de se mover, de obter e andar, né, é um processo obsessivo. Tu podes pegar isso e refinar também. Aí Tulku Ordjen vai dizer: primeiro lugar, visão; depois, a gente faz acumulação da visão; ou seja, muitas vezes a gente treina aquela visão em diferentes ambientes; aí em terceiro lugar a gente remove obstáculos. Eu acho essa instrução super preciosa. É isso que a gente precisa fazer, pessoal. Essa é a nossa prática.
Aí o aspecto de visão, ele vai dizer "bênção". Eu acho que é uma boa definição. Porque, por exemplo, o que vai fazer toda a diferença para nós, é a gente entender como é que é o pulo do gato, como é que é o jeito, entende? E é sempre um processo não-causal. A gente pode botar o outro a fazer aquilo, fazer fazer, mas se ele não tiver o jeito, ele não faz. Então, aquele detalhe é que é o ponto. Então, isso é uma bênção. Então essa bênção ela vem por uma transmissão. Se aquilo é dado, se aquilo acontece, a gente vê. Se a gente vê, é uma perda de tempo a gente não fazer acumulação da visão. Aí nós estamos perdendo tempo. É o que acontece. A gente perde tempo. Eu da minha parte também não me importo. Aí eu explico tudo de novo. Explico tudo de novo. Enquanto eu puder, vou explicando. Depois não posso mais, não pode mais, acabou! Mas eu não desanimo também. Esse é o meu aspecto obsessivo (risos). Não desanimo! (risos). Aí eu vou explicando, vou explicando, de um outro jeito, vou explicando. Aí a pessoa, lá pelas tantas, eu não sei, 108 vezes, 108 mil vezes, não sei quantas vezes a pessoa precisa ouvir e entender, para então pensar "quem sabe eu faço acumulação? Tive uma ideia! Acumulação!", aí a pessoa faz acumulação. É isso! Acumulação, de modo geral, a gente pode fazer no cotidiano, mas eu acho interessante fazer em retiro. Porque a pessoa pode ficar mais focada. Aquilo funciona. E naturalmente os retiros sempre têm um contato com o mundo externo, aí a pessoa é sempre testada. Testada significa "batida na testa" (risos). É assim. Vai andando. Aí a pessoa vê "oooh!" deu uns probleminhas! Esses probleminhas é bom a pessoa anotar com cuidado, esses são os obstáculos a remover. Então esse é o teor. Quando encontrar um lama, "lama, tem tais probleminhas", não vai esconder os probleminhas né, melhor falar. Não vai fazer como a gente faz com um médico, a gente vai no médico, o médico fala "você está bem?" [a gente responde] "não, eu to bem!", "alguma dor?", "não, nenhuma!", "e tal coisa, tudo bem?", "tudo bem?", "tudo bem? Então tá, tchau", ele sai de lá rengueando. Isso sou eu visitando o médico (risos). Chego lá, o Felipe vai me examinar "não, to bem!" "aqui dói?" "Não, não dói não, isso foi ontem, agora não dói nada"... vai que ele resolve botar aquela agulha, né... então aquilo é hiper perigoso. É melhor escamotear tudo, não falar nada (risos). Não, é melhor falar né... Assim a gente, no mínimo, olha os obstáculos. Aí a gente olhando os obstáculos, a gente foca: "bah, como é que eu me livro disso? Uau!". Aí aqui está na bolsa das complicações. Aí tem um arquivo word, aí escreve lá "Problemas" (risos). Vai listando situações, pessoas e dúvidas, vai anotando aquilo. E aquilo é bonito. Vai anotando, aquilo vai aumentando por um lado e diminuindo por outro lado, fazendo prática aquilo vai sumindo também, vai ficando tudo mais claro. Então esse é o processo. O treinamento é isso. Tem a transmissão, visão, acumulação. Acumulação, para deixar bem curto, acumulação é os seis selos. Vamos simplificar. Acumulação é seis selos. Remoção de obstáculos é aplicar o seis selos nos seis bardos, cinco bardos. Isso é remoção de obstáculos, entende? Aí tudo bem, eu estou andando bem. Mas e no sonho, como é que é? No sonho é mais ou menos. E na morte, como é que é? E quando isso, e quando aquilo, como é que é? Aí começa a olhar nessas áreas. Então vai removendo obstáculos. Então essa é a nossa prática, constantemente. A pessoa [pensa] "não, acho que ja atingi um nível de realização", então que bom, pode aplicar em tudo. Aí, bom, tem algumas áreas que não dá para aplicar. Aí quando a gente vai entendendo isso, vai entendendo onde está os obstáculos, onde é que está o local onde a gente tem que fazer a acumulação, a gente vai ampliando.
Mas enfim. Quando algum nível de realização de fato acontece, a pessoa vê que ela pode fazer práticas repetidas obsessivamente que aquilo não vai produzir isso. Mas ao mesmo tempo a pessoa entende, se ela não fizer isso, se ela não tivesse feito prática, aquilo também não iria funcionar. Então, na dúvida, a prática não faz mal, tudo bem, a gente faz prática, mas só a prática não resolve. Ela teria que ser isso: transmissão, visão, acumulação da visão. Com acumulação da visão nós ja estamos do lado de fora, do outro lado, nós estamos alterando as nossas experiências e remoção de obstáculos.
Pergunta: o senhor chamou a atenção sobre causalidade, e o senhor falou de uma questão de ordem matemática, e eu lembro que na década de 1990 eu li um livro de um jornalista, James Gray, que se chamava "Caos", e é uma teoria matemática que parece que tinha uma ordem; eu não sei se o princípio holográfico surgiu dali, mas aquilo sempre me pareceu uma coisa como fora da causalidade. Eu queria que o senhor falasse alguma coisa sobre isso.
Eu vi isso, não cheguei a estudar isso quando eu estava na universidade não tinha o caos, o caos surgiu depois (risos). Fazer o que né, a gente nunca estudou isso... mas de qualquer maneira, eu vejo essa natural organização, uma organização espontânea, que é um ponto interessante. Aí eu tinha que contemplar isso com cuidado, porque a impressão que eu tenho é que as coisas, enfim, parecem organizadas pelo olho que olha. O olho que olha vai terminar vendo de um certo jeito. Então, eu não saberia dizer. O que acontece, vamos dizer, quando a gente vai estudando física, o que acontece é que a gente vai olhando a entropia, né, a entropia aumenta sempre. Agora, se eu encontrar um sistema desorganizado que se auto-organiza, isso seria um movimento anti-entrópico. É um pouco estranho, assim, né. Então eu teria que olhar com cuidado. Eu tenho a tendência a acreditar que, por exemplo, os cristais crescem com uma tendência anti-entrópico. Mas, os cristais têm uma inteligência que filtra. Ele não cresce de uma forma aleatória, ele vai crescendo de acordo com os minerais que ele vai encontrando ali. Ele vai crescendo... a mente, toda ela é anti-entrópica, nós somos a capacidade de organização. Se eu não tiver uma capacidade de organização de filtro, aí surge isso. Agora, um sistema aleatório, eu não sei quão aleatório é um sistema aleatório, entende? Não sei se ele é verdadeiramente aleatório. Mas esses números eram uma outra coisa. Eram uma tendência nossa de acreditar que tem uma lei dentro. A gente olha um número limitado de eventos e une todos por uma lei e extrapola disso. Dali para frente também é assim, né.
Continuação da pergunta: a partir do momento que eu comecei a ouvi-lo, eu pensei assim, passou na minha cabeça que isso fosse uma inteligência, uma coisa dentro desse próprio processo.
É provável.
Pergunta: o lama poderia comentar que, contemplar o ensinamento, contemplar uma situação... o lama poderia explicar o que é esse contemplar?
Resposta: por exemplo, a pessoa está tomando, ela recebeu essa visão dos seis selos, então agora ela vai contemplar. Ela olha, por exemplo, o sino; é que o sino é uma aparência, e eu vou olhar a aparência como vacuidade. Aí, aparência e vacuidade... "será que isso é vacuidade?". Então isso é contemplar. Eu vou examinar isso. Aí vou examinando as várias coisas, tomando esse exemplo. Aí eu olho para o tambor. Aí daqui a pouco eu estou vendo: "isso é vacuidade". Eu vejo vazio, vejo vazio como forma, vejo como vazio, vejo inseparáveis. Aí eu vejo "uau, eu não estou nem preso nisso nem preso naquilo!", isso é o que eu vejo. E isso é Darmata. Aí fechou os seis selos.
Ou a pessoa olha pelos oito pontos da Prajnaparamita: então ela vê uma bolha, dentro de uma bolha de realidade aquilo surge desse modo; fora da bolha aquilo não é assim. Então a gente vê esses fatores internos e externo, o aspecto grosseiro externo surge de modo coemergente com o aspecto interno. Aí eu vejo "Isso é, isso não é, isso é". São formas de contemplar. Então pego verdades desse tipo e olho. Pode ser mais simples ainda. Em vez de pegar os seis selos e olhar "isso é, isso não é, isso é". Aí a pessoa olha para a namorada: "ela é, ela não é, enfim, ela é". Mas, assim, melhor não confiar muito. Aí vai indo. Aí tem essa mobilidade e a coemergência; aquilo surge por coemergência, fica claro né, totalmente claro. Aí a verdade que a gente está olhando, a visão que a gente está olhando, termina manifestando uma mandala. Em toda a direção que a gente olha a gente está vendo aquilo.
Pergunta: para continuar a pergunta [anterior], e esse processo tem que ser sempre racional, discursivo? Porque é o seguinte, recentemente eu tive a experiência de participar do Vipássana, e o que me causou estranheza e ao mesmo tempo me pareceu bastante interessante foi que me pareceu ser um processo que não passa tanto pelo campo da razão, e ainda assim tem desdobramentos, você conhece coisas através daquilo. E essa é a primeira vez que eu venho aqui e, por um lado muitas coisas que o senhor disse parecem claras, mas é um caminho também de muita pesquisa mental, a pessoa tem que ir desenvolvendo mesmo para entender, tem várias coisas que ficam uma incógnita; a pessoa tem que estudar, através da razão, e não sei se todo mundo vem com esse atributo...
É que eu estou falando para todo mundo que tem uma cabeça deste tamanho (risos). Mas isso não é uma necessidade. Porque tu já olhas com os seis selos, aí o quarto selo é justamente o fato de que a mente está livre de conteúdos, porque ela está livre de conteúdos, ela vê claramente as coisas. Isso é o Vipássana. Então se eu simplesmente esquecer de tudo e for treinando agora manter minha mente viva, independente dos conceitos e das coisas, a pessoa pode chegar à sabedoria completa do Buda, sem nunca ficar pensando em coisas e puxando para aqui, para lá, não precisa. E é justamente esse aspecto, aí surge essa minha bem-aventurança, a bem-aventurança do fato de que não há conteúdos, e essa ausência de conteúdos é a mente do Buda, então a gente não vai precisar desses conteúdos.
Mas na verdade eu estou te enganando enquanto digo isso (risos). Porque tu não vais conseguir ultrapassar o samsara; o samsara está cheio de conteúdos. Então o que é mais natural quando tu sentas em silêncio, aí tu podes esvaziar a mente: "uau!". Aí quando tu "blim!", olha para o relógio: "Oh! Buscar as crianças na escola!" "oh, tenho que botar gasolina no carro ainda! Oh!". Aí fico assim "hoje é sexta, amanhã é sábado, domingo, segunda-feira eu tenho dentista!". Esse é o mundo real, entende? O dentista, o carro, as crianças, as outras coisas... parece um mundo real, e quando tu simplesmente sentas em silêncio, aquilo gera uma dicotomia: um mundo calmo, pacífico, concentrado e um mundo agitado, que parece real! Então, o que vai acontecer é assim: isso que nós estamos falando aqui é como ultrapassar os conceitos e as aparências de um mundo que parece real. É que esse mundo é discursivo. Por exemplo, a gasolina, o carro, o livro, a professora, são tudo conceitos; conceitos e energias. E tu não consegues te livrar disso sem olhar dentro disso. Tu não consegues de livrar disso simplesmente virando o rosto para outra direção. Esse é um processo.
Então, por exemplo, existem tradições espirituais, que incluem o budismo em algumas abordagens, aonde tu podes pensar que o treinamento é entrar dentro de uma bolha onde as coisas não chegam em ti. Na visão budista, isso não sobrevive, porque as coisas vão chegar em ti. Se tu não tiveres carma ligado aos conceitos, eles nem te afetam, mas todos nós temos carmas ligados aos conceitos, porque a gente está se movendo em meio ao mundo! Nós estamos todos estruturados. A gente pensa que o tempo está dividido em semanas, em meses, em anos... a gente acredita em segunda-feira, sábado, domingo, etc... está tudo assim, acredita nas vinte e quatro horas do dia, acredita em tudo isso, os meses do ano... então nós estamos dentro de estruturas. Essas estruturas nos pegam direitinho; fica esperando as férias para certas coisas. E como é que nós vamos nos livrar de tudo isso? Se a gente simplesmente fixar a nossa mente em algum lugar e não olhar mais, não adianta. A gente precisa se livrar do karma: olhar aquilo e atravessar aquilo; aquilo não é sólido. Nós precisamos olhar desde uma posição não-construída, e aí a gente vê que aquilo não é sólido.
Então, naturalmente, os seres, em diferentes tempos, eles têm diferentes coisas que assediam eles, que são os conteúdos mentais deles; e esses conteúdos mentais surgem de modo coemergente com as aparências. As aparências e o mundo interno nosso é o mesmo, mesma coisa. A gente vai precisar ultrapassar isso. Não adianta [apenas] sentar. Acho que todo mundo que seguiu pela prática um tempo teve essa sensação um dia: "bom, agora eu sento aqui, e não tem mais nenhuma razão para levantar. Adeus mundo cruel!". Confesso para vocês que mais de uma vez eu sentei assim, também me despedi do mundo... depois eu me levantei! Não sei bem por quê, mas me levantei... então essa é uma visão. Aí tu vai aumentando a tua capacidade de meditar...mas essa é uma visão dicotômica: pensa que o mundo externo é externo; ele não é externo, o mundo externo é interno, e os conceitos são relativos a esse mundo externo, portanto eles são internos também. É o mundo da nossa confusão, é o próprio samsara, a gente vai precisar trabalhar no samsara. Mas a gente pode seguir por um longo tempo antes de fazer isso, ou seja, a gente pode seguir por um longo tempo acumulando estabilidade. Aí está bem. Aí vai chegar o tempo em que aquilo que perturba a nossa estabilidade se torna um néctar, porque aquilo que perturba a nossa estabilidade é justamente a nossa dimensão kármica, que a gente está associado, e se a gente não superar aquilo a gente não vai a lugar nenhum. Então não tem chance nós criarmos uma bolha especial e flutuarmos por essa bolha. Isso não vai funcionar. Nós vamos precisar estabelecer relações de todos os lados, relações lúcidas, entender o que está acontecendo. Fora de rigpa não tem solução. Seria isso.
Tem um debate em Samye que é justamente essas duas posições. Uma posição vai dizer que a liberação é realmente a fixação da mente numa vacuidade sem conteúdo, e essa posição foi derrubada. Esse é o debate entre a sanga Mahayana e a posição indiana. A posição indiana venceu. Essa posição era chinesa, essa posição da fixação numa vacuidade. Vacuidade enquanto um estado, e não como característica das coisas. Vocês podem experimentar. Eu acho que todo mundo tinha que experimentar isso: sentar em silêncio e se livrar da necessidade de se levantar e ver o que acontece. O karma vai aparecer. A gente vai ver o karma. Só que a gente não sabe de onde ele vem, a gente não sabe qual é a sede do karma, onde é que ele está, por que eu levanto, enfim? Por que eu volto para o samsara? Essa é uma visão dicotômica do samsara: nós temos uma pureza, e o samsara está do lado de fora esperando. Aí eu sento na minha pureza. A gente não se dá conta que essa pureza é uma pureza samsárica também. Ela é dicotômica, é conceitual também. Se a pessoa seguir por shamata ou seguir por zazen ela tem um risco de passar por isso. Mas no zen japonês tem muitos métodos para ultrapassar isso também. Tem muitos diálogos, tem os koans, processos pelos quais nós somos convidados a ultrapassar isso; os mestres não são bobos, eles não estão fixados nisso; a gente ouvindo parece que é assim, mas não é, eles sabem que não é. Aí tem aqueles diálogos, assim: aí chega o aluno e o mestre pergunta: "o que você sabe fazer?" Aí o aluno senta em silêncio. Aí o mestre fala "vá embora! Buda de pedra a gente já tem muitos aqui!". Aquilo é um ensinamento profundo; não basta eu me tornar um Buda de pedra, meditar como uma montanha, isso não basta. Uau! Como é que é né? Aí quem está nesse caminho da meditação do silêncio pode ficar sem resposta, não sabe como fazer né.
Eu acho que é muito maravilhoso o texto esse da Iluminação da Sabedoria Primordial do Gyatrul Rinpoche; aí o Gyatrul Rinpoche vai mostrar o que acontece quando a pessoa faz shamata e chega num ponto de realização, aprofunda aquilo. Ele descreve aquilo tudo. Aquilo é muito profundo... aí ele diz: "mas isso é uma ilusão! A gente tem que ir adiante". Eu acho maravilhoso isso. Aí a gente avança mais um trecho. Aí a pessoa pensa: "bom, agora que...!", mas isso ainda não é. Aí a pessoa vai indo. Então eu acho muito compassivo o ensinamento de Guru Rinpoche, de Trungpa, de Gyatrul Rinpoche tratando disso. Mas sob o ponto de vista conceitual, enfim, esse silêncio, silêncio verdadeiro, é a iluminação do Buda. Só que ele não é um silêncio verdadeiro; ele é um silêncio tendo por base a nossa confusão, a confusão está adormecida, ela retorna; a gente se levanta e ela retorna. Aí o mundo parece que tem a mesma aparência.
(37:02) Pergunta: uma pergunta sobre raiva. A gente até colocou isso no grupo de estudos e ficaram algumas pontas que era bom a gente falar novamente: a raiva, a somatização e o karma. A gente entende que se você tem uma situação que perturbou, alguém que foi a causadora, não adianta. Então, se a gente acaba reagindo à situação perturbadora com raiva a gente está gerando mais karma. Mas há um entendimento, na área terapêutica, um pouco, que pelo menos você não está engolindo sapo, você não está somatizando. Mas eu também entendo que isso vai gerar karma, a gente discutiu isso com a Stela, a gente tem que evitar. Mas aí vem agora uma outra tendência terapêutica em que você, quando está com uma situação de raiva, de uma emoção muito quente, você fazer isso contra objetos, com travesseiros, gritar, simulando a explosão daquela raiva. Isso aí veio com a terapia Reichiana. Então, essa nuance, isso seria uma visão que iria ajudar ou iria acabar reforçando aquela marca kármica; não contra a pessoa, contra uma simulação da pessoa. [E quando não se lida com ela, a raiva acaba se somatizando, podendo gerar doenças]. Enquanto não sai [do bloco], tu estás no [bloco] -1, no zero, tu queres clarear um pouco.
Eu acho melhor entender que aquilo é uma bolha, entende? Delimitar a bolha do conflito. Aí perceber que numa outra bolha, pelo menos na bolha do início da relação, não era assim. Aí como é que é possível que aquilo tenha mudado, né? Aí a gente está olhando de um jeito, aquilo... a gente também pode pensar assim, uma coisa meio astrológica: o que as estrelas diriam disso? As estrelas imersas nos bilhões de anos? O que elas diriam disso? As estrelas, a trinta bilhões de nós, olhando para aquilo né... aquilo não é nada né... a gente pega alguma coisa e transforma numa grande seriedade, aquilo se transforma em tudo. Aí a gente vê isso e a gente toma uma distância. Quando a gente consegue olhar a uma certa distância, isso desaparece, a importância desse aspecto; a gente vê que está reificando, tornando isso super grande
(continuação) Mas quando a pessoa está com a raiva, ela não consegue ter uma visão imediata...
Lama: É que a explosão da raiva também é curta, não dura muito tempo.
Mas aí não teria problema? Ela pode acontecer? Ela deve acontecer?
Lama: Não, quando a raiva acontece é melhor não dar sequência. Por que, isso é fácil de ver, por exemplo, a pessoa faz uma bobagem num minuto; aí depois, dois minutos depois a pessoa percebeu "o, foi uma bobagem, não deveria ter feito". Então a gente não deveria se movimentar desse modo enquanto está com raiva. Agora, essa raiva é explosiva, mas nós temos um ódio lento, esse é o problema maior. Então, o que vai somatizar vai ser o ódio. Aquilo não é propriamente uma explosão de raiva, aquilo é um ódio intestino; aquilo tem um fogo por baixo, e tem uma articulação. Esse processo é que vai nos roubar o sono, vai causar uma série de problemas. Esse é mais fácil de neutralizar pelas paisagens mentais, pelo nascimento no Lótus, pelo Boddhichitta, por várias coisas aquilo desaparece, é tirado fora. Porque ele opera dentro de um cenário; se não estiver operando dentro daquela bolha, aquele ódio vai desaparecer. Mas a raiva é como se fosse mais episódica, mas instantânea, mais uma explosão, e também é curta. Ninguém consegue ficar com raiva por muito tempo. Se tiver alguém com raiva na tua frente tentando te agredir, é só tu te escapares um pouquinho. Aí tu escapa mais um pouquinho, mais um pouquinho, aí pronto, a raiva do outro não consegue se sustentar. Mas aí tem um rancor, um ódio, uma mágoa. Aí nós articulamos tudo; na nossa mente tudo passa a se articular a partir desse sentimento. Aí nós vamos passar mal, porque aí tu olhes o ódio e olhes a energia do teu corpo enquanto tu estás com aquilo. Aí aquele processo todo condicionado começa a se estabelecer, a se estampar sobre o corpo. Melhor desarticular isso, desarticular as raivas; as raivas já estão dentro de um panorama, às vezes tem um panorama de ódio e a raiva explode. Uma bolha onde já está aquilo alimentado, como se faltasse só um pouquinho para a gente ter uma explosão. É melhor não alimentar isso, né.
(continuação) então, isso que eu estava pensando, se essa catarse iria acabar alimentando o hábito de ter raiva.
Lama: os Reichianos usam isso né, eles batem, gritam. Eu acho melhor trocar a bolha. Porque enfim, depois de tu gritares, o que vai acontecer é que a bolha murchou, mas se a gente tiver mais lucidez é melhor. Porque daí tu não precisas ficar naquele ambiente que produz aquilo. Ali é um obstáculo. A gente pode começar olhando assim: quatro ações; substituir o ódio por quatro ações. A primeira delas é assim: o outro pode fazer qualquer coisa, mas eu não me abalo. Ódio frio. Mas não seria ódio, né, é ação de poder: minha energia está estável, e eu não vou deixar as circunstâncias fazerem oscilar a minha mente nem a minha energia. Primeiro ponto. Segundo ponto é assim: a pessoa que está fazendo isso tem qualidades. A gente não permite a nossa mente ficar toldada, não ficar estreita, a ponto de não ver qualidades no outro; o outro tem qualidades. Pode ser um monstro, mas tem qualidades. Aí o terceiro aspecto: a gente faz o voto de estabelecer a relação com a outra pessoa através das qualidades dela, e não nos defeitos, não dos problemas, mas a partir das qualidades. Então a gente constrói uma relação positiva. Isso é ação incrementadora. A gente vê como a gente pode estabelecer uma relação a partir de coisas positivas. Aí vem a quarta ação, que é a ação irada: a gente olha os aspectos negativos da ação do outro e faz pelo menos o voto de ajudar o outro a se livrar daquilo, porque aquilo não é bom para o outro, o outro não precisa daquilo; aquilo é negativo para ele, aquilo não é bom. Então, por exemplo, uma pessoa da qual tu tem ódio, ela está fazendo alguma coisa. O obstáculo que está acontecendo é assim: enquanto ela faz, tu prendes ela à visão da negatividade que ela está agindo. Isso se é efetivamente uma negatividade, porque pode não ser. Mas vamos supor, seja como for tu estás vendo características nela, e aí tu estás prendendo ela ao aspecto negativo que te parece, e à emoção negativa também. Então tu não estás vendo nem qualidades, nem tu estás estável, com a tua energia estável, nem tu estás estabelecendo relações a partir das coisas positivas que o outro tem e nem tu aspiras que o outro se livre das coisas negativas. Tu prendes ele e agora tu queres explodir o outro. Aí aquilo não vai dar certo. A gente explode junto.
Mesmo nas lutas marciais é isso que tem que fazer. Em primeiro lugar, não te abalar pelo movimento do outro; ver as qualidades do outro, estabelecer relações positivas e cortar as negatividades. Aí tu estás inteiro para poderes de movimentar. É muito conceito né? Eu acho.
(48:35) Pergunta: ainda dentro disso, das ações, das quatro ações, e também lembrando agora o que o Lama falou de o Lama não se cansar de falar o mesmo, mesmo que a gente não entenda, esteja praticando o que está falando, qual a diferença entre uma ação, por exemplo, uma ação de um praticante do caminho do ouvinte, como o Lama disse que a gente entraria com uma noção de ponto final: a gente tem um objetivo, a gente está fazendo esforços... qual a diferença dessa ação para a ação de um Boddhisattva, que não se cansa de agir com as ações, com essas quatro ações ou com outras práticas das cinco sabedorias para benefício dos seres. Porque pode ser que um ser, como por exemplo, no caso Buda Shakiamuni ou o primo dele o Devadata, que passou vidas sem entender o ensinamento do Buda, e o Buda não se cansava. Ele não dizia "sai pra lá". Isso não é uma ação com objetivo também? Eu não tenho um objetivo de liberar aquele ser? Os Boddhisattvas não têm aquele objetivo?
Lama: os Boddhisattvas de fato não vão trabalhar de modo causal. Eles vão se movimentando e manifestando aquilo, e as coisas vão se arrumando com o tempo. Não movimentar o aspecto causal significa assim: eles não vão fazer musculação, imaginar que eu vou repetir muitas vezes uma certa coisa e eu vou me construir uma pessoa melhor de fato. Essa "construção da pessoa melhor" é uma imagem causal de fato; o progresso verdadeiro é nós podermos repousar e olhar as coisas a partir de um substrato menos contaminado. E nós vamos indo em direção à liberação da contaminação, aí nós desenvolvemos visão. Mas essa visão não vem porque eu repeti alguma coisa muitas vezes. A visão vem porque ela é praticada desde um lugar mais amplo. Aí a visão acontece; do mesmo modo que a gente se prende numa visão comum das coisas, a visão lúcida também aparece do mesmo modo que a visão comum aparece: aparece como uma coisa natural, clara, sem esforço.
Por exemplo, os meninos numa FEBEM (atual FASE): eles aprendem a tocar música, aprendem a tocar uma porção de coisas, aprendem uma porção de habilidades. Isso está dentro da noção de que a pessoa é o conjunto de habilidades que a pessoa manifesta. Aí eles saem da FEBEM daqui há pouco eles estão assaltando de novo. Mas ninguém entende, nem eles entendem também "por que eu estou assaltando de novo?". "Mas como, você sabe tocar violino, sabe cantar, sabe isso, sabe aquilo, agora você está assaltando?". São bolhas de realidade, entende? E a gente trabalhando na noção de que a pessoa é construída pelas aptidões que ela vai desenvolvendo, aquilo não vai a lugar nenhum! Eu posso ter muitas aptidões, não quer dizer que eu vá usar! E dentro das bolhas de realidade que eu estou trabalhando, eu posso simplesmente voltar a operar daquele mesmo modo que eu sempre operei. Dentro daquelas bolhas de realidade aquilo parece o mais lúcido. Não é o fato de que eu posso visitar outras bolhas agora que resolve. Aí eu volto para dentro da bolha, me sinto dentro daquilo e vou operar com aquilo. Eu vou precisar olhar isso, ser capaz de ultrapassar essas fixações, identidades que brotam dos vários ambientes. É isso que a gente vai precisar fazer. Por isso que a meditação em silêncio, a meditação Vipássana, é super importante: nós vamos sentar em silêncio. Esse silêncio vai nos dando distanciamento das bolhas. Se ele não der distanciamento da bolha, parece que não aconteceu nada. E o distanciamento das bolhas é um processo não-causal. Mas durante um bom tempo eu tenho a impressão, que é, justamente as aptidões é que fazem a diferença. Se fosse assim, se a pessoa não conseguisse sentar em lótus, não atingiria a liberação. A pessoa pode atingir a liberação de qualquer jeito, não precisa sentar em lótus.
(54:22) Pergunta: do ponto último, eu queria falar um pouco sobre a diferença entre Darmata e a sabedoria de Darmata, porque, pelo que me parece, o Buda Samanthabadra se desdobra, mas eu não consigo entender a diferença entre os dois.
Lama: um dos Tesouros do Espaço Básico é a Sabedoria Primordial, que a nossa mente não só constrói as coisas através da originação dependente, mas ela vê como é que as coisas se constroem; enquanto ela constrói, vê que está construindo. Então ela desenvolve essa capacidade, que é a Sabedoria Primordial: ela está num lugar e ela viu como que a bolha aquela toda se desenhou. Como é que os referenciais se desenharam e, a partir daquilo, como tudo decorreu. O que aconteceu na sequência a partir daqueles condicionamentos. Então a pessoa vê isso. Isso é a Sabedoria Primordial. É a Sabedoria de Darmata. Eu preciso do silêncio não-condicionado para ver os condicionamentos. Vamos supor, se eu olhar o jogo de xadrez com o olho condicionado, eu começo a ter ideias sobre qual jogada fazer, entende? Se eu olhar sob o ponto de vista não-condicionado, eu vejo como é que o jogo surgiu, como é que as regras surgiram. Eu vejo todo o panorama, mas não estou preso ao jogo.
Então o silêncio é como essas quatro ações. Essa primeira capacidade de ficar parado, não perturbado pelas aparências, é essencial para poder fazer os seis selos, ou seja, reconhecer que aparência é vacuidade. Quando nós olhamos de modo condicionado, a partir de uma bolha, nós olhamos as aparências, as aparências não parecem vacuidade, parecem super sólidas. Objetivas, claras.
(57:05) Pergunta: eu estava pensando um pouco nessa questão da acumulação da visão e um pouco sobre o que o sr. tinha falado hoje de manhã do escritor que consegue criar mundos, baseado no que ele observa fora e dentro e é capaz de criar uma personagem. Mas se fosse próximo do real, cria verossimilhança, a gente acredita. A minha pergunta é a seguinte: quando a gente procura conhecer a si mesmo, tal como disse o Sócrates 'procure entrar dentro de si mesmo', e começa a perceber que as outras pessoas também funcionam de maneira parecida, muitas vezes com a maneira como tu funcionas. Quer dizer, quando tu começas a olhar como tu sentes raiva, tu começas a entender mecanismos que as outras pessoas também estão sentindo quando sentem raiva. Talvez não seja igual, mas parecido. Então, de certa forma essa auto-análise vai dando, de certa forma, material para compreender os outros também nos seus mundos. Eu queria saber se isso é uma prática espiritual e pode ser considerado, essa coisa de sentir o outro como igual, se isso é um caminho válido.
Lama: isso é um caminho; na verdade, é uma conclusão. Na medida em que a pessoa vai contemplando as suas ações e vai entendendo a partir de um ponto não-contaminado, a pessoa quando olhar para o outro, ela começa a ver o outro também a partir dessa visão não-contaminada e ela vê a semelhança. Isso não precisa ser um ponto de partida de fé em que a pessoa começa então, mas sim um ponto que a pessoa vai encontrar, ela vai ver isso. Não só os seres humanos mas ela vai ver os outros seres também.
(59:21)(continuação) e a questão do humor dessa caminhada espiritual. Quer dizer, o humor de de repente se deslocar da posição que ocupa, digamos, não levando a sério ou não dando materialidade para aquilo, como, digamos um professor que diga que não é o professor, mas é o aluno que está aprendendo e tal, se o humor tem um papel.
Lama: o humor eu acho muito útil, porque ele quebra a bolha; o humor é sempre uma troca de bolha para outra bolha. Por isso que a gente ri. Então a gente vai contando uma coisa, a tensão vai aumentando, vai aumentando, aumentando dentro de uma bolha, aí tu quebras a bolha.
Teve uma época em que eu viajava com a Sofia, a minha filha do meio, aí ela sabia uma porção de piadas. Aí ela estava sempre comigo. "Agora conta aquela", aí ela ia lá e contava. Era muito gozado isso. Aí eu lembro de uma, ela contando isso, que era a história de um menino que não queria comer. Aí os pais insistiam, insistiam, forçavam, forçavam, e era sempre aquele sacrifício. Aí eles resolveram levar num psicólogo. Então é uma piada com psicólogo. A gente vai rir do psicólogo, na verdade. Aí o menino foi para o psicólogo, e o psicólogo usou várias formas e não conseguiu. Aí levaram para outro, e ele não conseguiu, e nunca ninguém conseguia. Aí apareceu um que disse "não, eu resolvo!". Aí vocês vejam como é que é a coisa: quando vem um e diz "eu resolvo", a gente está aumentando a tensão, não está? Aí levaram o menino, o menino assim [porque] não queria ir (estou aumentando a tensão, então. Depois nós vamos [mudar de bolha]. Aí vocês vêem como é que esse processo é louco, ele explica até a piada antes, é um processo super mental (risos). Mas isso não vai tirar [a graça], vocês vão ver! Aí o menino - eu na verdade estou aumentando a tensão. Aí o menino não quer, não quer... aí ele já não fala, não responde, aí o psicólogo: "o que você quer? Diga alguma coisa! O que você quer comer?". O menino olhou assim para ele: "minhocas! Minhoca cozidas". Aí o cara [pensa] "sim! Minhocas cozidas, ele vai comer agora, ele pediu!". Aí trouxeram um tanto de minhocas "agora você vai comer!". E o menino [começa a chorar]. Era sempre assim, ele chorava né (na verdade é uma forma de aumentar a tensão). [o menino diz] "eu só como se você comer a metade". Aí o psicólogo ja estava perdendo a compostura - que todos têm, naturalmente - aí ele diz "pois eu como!". Aí [o menino chorando diz] "você tem que comer primeiro!". Aí o psicólogo ja estava passado, aí ele comeu. Dividiu a metade e comeu. Aí o menino chora. O psicólogo diz "o que foi agora?" e o menino responde "você comeu a minha metade!"(risos). Aí ele pegou o pior dos ogros, fez comer minhocas e saiu rindo. Mas vocês viram como é que é? A gente vai aumentando a tensão, vai aumentando a tensão. Aí nós "e aí? Ele vai comer? Não vai comer?". Aí ele quebra aquilo para uma outra bolha. Aí tu olhas de um outro jeito, aquilo ganhou uma outra lógica que derruba aquilo, e pronto. É isso pessoal. Espero que vocês nunca mais riam, porque o riso é isso (risos). É assim. Aí quando a gente tem uma tensão numa coisa, quando troca aquilo [se esvazia].
Eu acho interessante, porque a gente sempre vai rir porque alguma coisa abriu. No budismo tem essa noção de liberação pelo riso. O Chagdud Rinpoche contou duas piadas, que eu me lembre. Na época eu era super sério do zen, eu não gostei dessas piadas. Eu sentava sempre assim, sério. Eu na verdade era da Vipássana. Aí Rinpoche contando, liberação pelo riso. Aí tinha um unze; unze é aquele que fica cuidando do lama, fazendo tudo para o lama. E estava sempre cuidando, cuidando, cuidando, fazendo tudo; e leva guarda-chuva, traz comida, faz isso, faz aquilo. Aí tinha um unze. E o seu lama. Seu Lamas. Aí, um dia teve uma ideia que não era muito boa. Ele pensou "Uau! Eu não faço prática, eu só fico de um lado para o outro, ajudando! O que vai acontecer comigo?". Aí ele pediu "lama, eu acho que eu precisava fazer práticas. Eu preciso fazer práticas para atingir a liberação, porque a minha vida está passando e eu estou só de um lado para outro aqui, e onde é que eu vou parar?". Aí o lama disse "olha, não vai ser possível. Nessa vida você vai precisar fazer isso. É assim. Não tem como sair da coordenação (risos). Aquilo ó [gesto de cortar a garganta]". Aí ele parou assim, estava aquela sanga toda, 1250 bikshus, arahats, pradieka-budas, a sanga toda. Eles eram uma sanga monástica, um pouco tensa também. Aí passou um tempo ele perguntou "mas lama, então me diga, onde é que eu vou renascer? Me tranquilize, eu vou renascer num bom lugar, então tudo bem". O lama olhou, assim... "como vai renascer? Você vai nascer como um cavalo!". Bah! Que desgraça! "Mas mestre, por favor me dê uma prática que eu possa ter um renascimento auspicioso, agora vou renascer como cavalo! Bah! Horrível!". Aí o mestre olhou: "Não tem. Não tem como". Aí passou um tempo. Aí ele insistiu: "mestre, por favor, veja se tem alguma possibilidade!". [o lama respondeu] "Não tem. Não tem possibilidade". Aí ele ficou triste. "Mestre. Então dê um jeito que pelo menos eu nasça num lugar que tenha muitas éguas!". Aí, naquela comunidade monástica um pouco tensa, aquilo [repercutiu]. Aí, em função disso, [o lama] disse "você se livrou desse karma". Agora vai renascer como égua! (risos) Não, essa parte eu botei. Ele se livrou do karma, ou seja, ele não vai ter mais aquele renascimento. Porque tantos praticantes riram, aquilo tudo ficou assim, e ele quebrou a fixação que poderia levar ele a isso.
Aí tem várias. Aí tem uma outra que é de um praticante que foi visitar um Dalai Lama, um Dalai Lama anterior a esse de hoje, eu não sei qual deles, que era onisciente. Aí quando ele chegou no Dalai Lama, fez uma longa peregrinação, chegou la, deu os presentes, fez prostrações, e tudo né, aí pediu: "por favor mestre, me diga qual será meu renascimento na próxima vida?". Aí o Dalai Lama parou, olhou e disse: "quando você veio, você viu, num certo lugar da estrada, você viu um velho iaque, numa colina, sentado numa posição digna, e aquilo causou uma impressão muito profunda em você. Você vai renascer como um velho iaque". Aí ele "Bah! Por favor mestre, me diga que prática eu posso fazer para me livrar disso?". Aí o Dalai Lama olhou e disse "Não tem nenhuma prática, você vai renascer desse modo". Aí, o tibetano - que também não era tão bobo assim - pensou assim: "mas mestre, me explique, como é que eu vou nascer como um velho iaque, não teria que nascer como um bebê iaque no início?", aí também, todo mundo riu e o mestre disse "olha, você se livrou de renascer assim". Aí tem a liberação pelo riso. Tem várias dessas assim.
Tem uma outra história que Rinpoche conta também - nesse frio, nessa chuvinha também, é bom contar uns causos né - aí ele conta - essa eu acho que é a melhor. Os tibetanos gostam disso. Por exemplo, eles valorizam uma pessoa que faz práticas, que faz acumulação e bota a mente em alguma coisa, mesmo que ela seja intelectualmente meio desajeitada, eles gostam desses seres assim. Então tem muitas piadas desse tipo. Ela é uma conexão entre mestres, eruditos, que sabem tudo, e um outro que era bem humilde mas fazia prática mesmo, treinava a mente, e aquilo ele desenvolveu a habilidade, e ele tinha aquelas habilidades. Então tem muitas dessas histórias. O Rinpoche gostava disso. Então ele conta que havia um pastor que era uma mente muito estreita, e ele vivia numa encosta de montanha. Acima, na montanha - vamos supor, 500 m acima, 1000 m acima, vivia um grande mestre. Mas ele tinha a mente meio estreita, assim, e ele era um pastor mesmo, e era isso que ele fazia. Mas ele via as caravanas de pessoas passando por ali, indo visitar o mestre acima. Mas nunca passou na mente dele "vou lá ver o mestre". Aí, uma vez, passou uma caravana e disse "você está sempre aqui, a gente passa por aqui e sempre encontra você, quem sabe você vem junto conosco e vamos lá visitar o mestre?". Aí ele pensou "acho que vou!", aí foi junto. Aí chegou lá, todos ofereceram katas, ofereceram presentes, fizeram prostrações e ele ali, não sabia muito bem o que fazer. Aí todo mundo pedia prática e tudo, e ele também fez prostração, ofereceu kata e ficou ali. Aí o mestre olhou para ele, e ele tinha o nariz grandão. Aí o mestre falou aquilo em tibetano, do tipo "nariz grande", uma coisa assim. E ele "oooh! O mestre me deu um mantra!". Porque o mestre olhou para ele e "parará parará", ele "bah!". Aí ele pegou aquilo. Aí ele voltou e começou "nariz grande, nariz grande, nariz grande", aí começou a concentrar a mente dele a partir do mantra, desse mantra. Ficou [recitando]. A mente dele começou a ficar concentrada. Aí ele adquiriu alguns siddhis, ele começou a curar pessoas. Ele tinha uma mente, ele focava e aquilo começou a acontecer. Aí, passou um tempo, as pessoas vinham para visitá-lo para ele curar. Aí ele recitava sempre o mesmo mantra "nariz grande, nariz grande", e aquilo "puf!", todo mundo ia se curando. Aí aconteceu que o mestre que vivia acima começou a ter uma bola no pescoço. Aí as pessoa que passavam por ele começaram a dizer "olha, tem um mestre de cura um pouco aqui abaixo, quem sabe a gente convida ele para vir aqui fazer uma prática para ver se cura". Aí o outro "ah não, isso aqui eu resolvo", mas aquilo continuou crescendo. Até o dia que ele pensou assim "sim, então tragam esse mestre". Aí ele veio. Aí chegou o Nariz Grande. Aí quando o Nariz Grande começou a recitar o mantra, ele reconheceu que era a pessoa que tinha ido la. Aí ele deu uma risada tão grande que aquilo "ploft!", e se dissolveu e ele ficou bom. Isso é cura pelo riso.
Mas o Rinpoche era assim, tinha muitas histórias. Eu lembro dele contando da existência da realidade das bruxas. Aí ele falando assim, por exemplo, a pessoa, como se fosse um ser que ele desconhecia pediu carona para ele no cavalo. E aquele ser de repente se transforma e é uma bruxa. Histórias desse tipo. O imaginário tibetano é super fantasmagórico. Por isso que é super importante o Dorje Drolö. Isso para mim, quando fiz contato com o budismo tibetano, eu guardava Prajnaparamita. Ja era o meu foco. Aí eu olhava sempre com esse olho, o olho de Prajnaparamita, que é Dorje Drolö, o devorador de demônios; se as coisas todas são vacuidade, os demônios também, vamos simplificar né? Então isso nos ajuda a penetrar no imaginário. Aí, com respeito às bruxas, a gente diz "isso é, isso não é... pero que las hay las hay!". Yo no creo, pero... (risos). Mas se aplica isso, né. É, não é, é. A gente vai entender assim. Aí a gente não vai tirar o "é" da terceira afirmação, mas a terceira afirmação inclui a compreensão da coemergência. Aquilo é coemergente com a minha mente. Aí, se a gente está dentro de uma bolha mental aonde essas coisas todas acontecem, a gente encontra uma causalidade para isso, a gente considera que isso é verdadeiro. Uma linguagem! Uma linguagem é assim. A gente está imerso na linguagem da causalidade. A causalidade é um perigo verdadeiro. Vai passar o tempo que a gente vai olhar a linguagem da causalidade como uma época obscura semelhante a da Inquisição. Aquilo era uma coisa densa. Tem uma obviedade do aspecto não-causal, mas a gente não vê isso. A gente vê tudo causal. A gente vai convertendo tudo. Do mesmo modo que nesse tempo a gente vai convertendo tudo para economia, a gente converte assim, "desenvolvimento é crescimento econômico". A gente não consegue raciocinar ... Todo mundo raciocina desse modo. Isso é uma nuvem de obscuridade. Então do mesmo modo, a gente fica olhando processos de transformação a partir de causalidade; a gente esquece o fato de que a gente pode simplesmente mudar. A gente acredita em diagnóstico, fixa, prende o outro em diagnóstico, depois usa um método causal para mudar, e não tem resultado. Por exemplo, nós não estamos num tempo em que a luminosidade é o nosso recurso. Nós temos a liberdade de fazer as transformações, a gente não trabalha nenhum método desse tipo. A gente trabalha em métodos causais, e acredita que nós somos fixados, e a gente justifica a nossa fixação por eventos que aconteceram... a fixação não vem dos eventos, a fixação vem da fixação! A solução para a fixação não é um outro evento, é a não-fixação. A não-fixação está sempre disponível para nós. A gente não vê isso. A gente vê a necessidade de um outro evento, de um outro treinamento, de uma outra coisa, de um outro condicionamento. Isso complica as coisas, assim, isso complica, atrapalha. Com respeito à saúde também, é uma coisa curiosa. A gente poderia, por exemplo, estimular todo o processo óbvio, que e o processo natural de sustentação da saúde do corpo. Mas a gente tem uma tendência a acreditar que eu tenho que fazer alguma coisa heróica e diferente para contrabalançar um efeito. Então a gente trabalha menos com a nossa capacidade de cura, de estimular a própria capacidade de cura. A gente fica localizando desequilíbrios para introduzir métodos artificiais para reequilibrar. Mas a gente não se dá conta que nós temos os processos naturais para nos reequilibrar, senão nós ja estaríamos mortos há muito tempo. Aí a gente introduz os fatores artificiais, eventualmente os fatores artificiais prejudicam a saúde, trazem outros problemas, problemas colaterais. O fato de a gente perder a saúde e ter vários danos a partir de tratamentos é uma coisa hoje super conhecida. Tem um número expressivo de pessoas que têm agravamentos e sequelas de uso de medicação e tratamentos variados. A sequela é causal. Ela toma um medicamento que causa um dano. Aí pode ser que ela consiga se recuperar. Aí tem os medicamentos que têm as contra-indicações e de repente aquilo opera. A causalidade ocorre, mas ao noção de que a causalidade é o único recurso e tudo e causal, isso é assim... por exemplo, os tratamentos têm mudado. Por exemplo, tinha uma época em que as pessoas tinham a noção de que elas tinham que combater. A noção de saúde vinha dentro de uma perspectiva militar: eu tinha que combater inimigos dentro de mim. Então isso é uma perspectiva causal desse modo. A gente não entendia bem o processo do próprio corpo. Hoje, eu acho que nós temos a tendência de interferir menos. Por exemplo, eu tenho um ferimento, eu procuro intervir menos. Mas houve uma época em que tu tinha um ferimento e tu tinha que intervir: tinha que botar mercúrio cromo, mertiolate, botar alguma coisa. Hoje é assim, tu lava com soro ou com água, porque o corpo cura. Aí quando tu tem um ferimento e começa a botar medicação, pode ser que aquilo não cure. Porque pode ser que o ferimento comece a reagir ao remédio, que pode ser um pouco agressivo e começar a irritar ali, aí porque não cura tu começas a botar outros remédios. Aí com o tempo tu tens um problema. Mas não é o remédio que cura, é o corpo que cura. Então é super importante entender isso, como é que o corpo cura, como é que ele faz esse processo. Mas a gente tem a tendência a pensar que a saúde vem através de recursos de manipulação. Não que não possa vir também, mas essencialmente o corpo vai curar. Pode ajudar esse processo; se o corpo não ajudar, tu não tens chance alguma. Então na Naturopatia tu vais trabalhar com isso: tu vais ajudar o corpo a se ajudar.
Terceiro Dia - Manhã
Esse tema da originação dependente é uma coisa tão profunda, pessoal. De modo geral é apresentada - claro, a gente pode apresentar no aspecto grosseiro, sutil, secreto, como tudo. Mas, de modo geral, a gente vai ouvir sobre a originação dependente como se fosse um processo, quase uma causalidade. A gente escamoteia o ponto principal, a gente escapa do ponto principal. Porque o ponto principal a gente precisa, por exemplo, nós estamos olhando desde o aspecto condicionado. Nós estamos buscando desde o mundo comum olhar o absoluto, nós estamos fazendo esse esforço. Mas a originação dependente vai trabalhar - o Buda com certeza, o Buda não tinha os pés no chão, Buda tinha os pés no céu, então ele tinha uma outra perspectiva para olhar - aí não tem jeito de olhar isso, de fato, sem olhar isso na perspectiva do Buda. Aí o Buda está dizendo uma coisa muito extraordinária. Então tem um contraste grande com a forma como a gente lida. A gente não consegue propriamente criar uma coisa suave, eu tento criar uma coisa suave e não consigo; tem uma radicalidade nisso. Aí essa radicalidade permite ver como nós estávamos incrustados em visões que a gente não pensa que a gente está fixado, mas a gente está fixado. Aí eu fico olhando como a gente também se fixou a essas visões, como é que foi isso; se isso foi a Ciência ou se isso vem de que modo? Não consigo ver bem, porque eu olho a partir da Ciência sempre. Então eu não consigo ver, aí eu tento esvoaçar mítico; eu gostaria de ver como é que os povos nativos vêm essas coisas, porque eles também não tem Ciência. Agora, por exemplo, a Ciência é muito, muito, muito antiga. Porque, vamos pensar, o pensamento científico remonta os egípcios, vamos simplificar isso. Aí aquilo tomou diferentes visões, foi mudando um pouco, mas a base do pensamento científico é que o mundo externo existe e foi criado de modo independente do observador. Isso é a base. Isso é filosofia natural. Esse é o ponto.
Então quando nós começamos a estudar o budismo a gente não afeta isso. Mesmo que a gente esteja falando de vacuidade - quando a gente olha que ele é inseparável etc. - aquilo não chega a afetar uma visão extensa de como as coisas são. Então a gente pode também pensar "bom, as coisas estão estabelecidas de um certo jeito, quando eu olho para elas, elas aparecem de um certo modo, a gente olha aquilo, a gente aplica em algumas coisas, se livra de alguns problemas, mas pontualmente. A gente não chega a mudar a base de como as coisas surgem. E a originação dependente vai nos atingir. Não tem como; a gente poderia dizer: é uma outra teoria. Se fosse Ciência ou filosofia, a gente poderia dizer "não, agora é uma outra perspectiva filosófica. Ela não está baseada na noção de que o mundo é fundado por uma dimensão externa a nós, que também nos criou e que isso, enfim, é regido pela vontade desse poder ou pelas leis emanadas disso. A gente vai ter que lidar com essa questão. Então, a visão do surgimento do mundo, na perspectiva budista, é outra. Isso não é muito falado. Eu também fico admirado que isso é pouco falado, e que essa radicalidade também não é muito apontada. Está certo que o Buda não achava muito interessante a gente ficar olhando visões filosóficas. Eu estou entrando pela visão filosófica, comentando isso, para tornar um pouco palatável, para a gente ter como conversar um pouco. Porque na visão do Buda, ele faz assim, [divide] "isso aqui para um lado, agora olhem isso aqui, vejam isso aqui". Mas como nós temos uma estrutura kármica complexa, se a gente não examinar as estruturas kármicas a gente fica num diálogo de mudos: a gente segue pensando de um certo jeito e começa a ver outras coisas como se fossem coisas separadas. Mas inevitavelmente, se a gente entende de um jeito, aquilo vai se refletir sobre outra forma de pensar. Então, eu estou fazendo volta, desde o início do retiro, dando uma voltinha assim, localizando, começando por esse aspecto, reforçando essa questão da realidade e tudo, porque a gente gera uma linguagem que a gente consegue trabalhar melhor. Mas enfim, hoje é domingo, termina amanhã o retiro, eu reluto, assim... então eu ainda vou fazer mais uma voltinha, mas já tratando do tema.
O tema é assim: nós fomos até presença, não foi? Final do bloco dois. Então a gente andou em direção aos Tesouros do Espaço Básico. Então, isso aqui é um "pós" tesouros do espaço básico, um pouquinho adiante. Eu fico muito admirado, porque esses ensinamentos são considerados, na perspectiva Vajrayana, por exemplo, são ensinamentos da primeira volta do Dharma! Vamos deixar assim: segunda volta do Dharma. Mas aí tu vais encontrando, por exemplo, vem Nagarjuna, que é o fundador da segunda volta do Dharma e da terceira volta do Dharma; ele é mestre, ele é considerado um dos referenciais fundamentais para Guru Rinpoche também; para todo o Vajrayana, para todo o pensamento do Dzogchen também. Aí vem o Nagarjuna e diz: "quem vê originação dependente vê a mente do Buda". Então é por aí, entende? Agora, quando a gente começa a trabalhar com a originação dependente, a gente tem uma noção assim, de que as coisas vão decorrendo, de que são camadas kármicas que nós vamos estruturando. Então essa é uma forma de a gente explicar a originação dependente, especialmente os doze elos da originação dependente, que explica como a gente chega. Aí o Buda toma o caminho inverso e vê como que, das aparências, a gente termina chegando à liberação. Assim, percorrendo os doze elos no caminho inverso. Mas tem a questão, a questão central que vai brotar é assim: já nem é se aquilo é vazio ou não, é a questão da universalidade e do aspecto absoluto da construção, entende? Então por exemplo, como é que a gente constrói imagens quando olha para painel e tinta? Como é que brota isso, né? Aí o Buda vai encontrar nisso a força que sustenta o universo inteiro. É mais ou menos como o Newton: leva uma maçã na cabeça, "puf", aí ele "uau! Que incrível! A força que puxou essa maçã é a que atrai os planetas em direção ao sol, a lua em direção à Terra e o cosmos inteiro gira em função disso. Aí surge essa teoria. Aí na visão budista, a originação dependente é a origem do Universo. Nesse sentido assim, aquilo que é originação dependente, por exemplo, como é que faz um jogo e agora tu moves a tua mente, a tua energia, a tua causalidade, aí surge a bolha, e aquilo tudo está ocorrendo e tu te moves assim. Então é como se a gente levasse esse princípio da vacuidade, luminosidade e energia, a gente levasse para todas as manifestações. Então não tem manifestações que não sejam isso. Por exemplo, quando nós estamos trabalhando no tema da presença, nós ainda estamos centrados, entende? Eu estou aqui, e agora eu me livro disso tudo e exerço essa liberdade além das bolhas, além dos contaminantes, além de tudo; aí eu recuo até esse ponto. Mas nós estamos, ainda, fazendo uma análise centrada. É como se a gente estivesse olhando clara luz filha, na linguagem Vajrayana tibetana, do caminho gradual Vajrayana como sinais, que vai resultar no Mahamudra e nessa linguagem do clara luz, clara luz filha e clara luz mãe. Por quê? Porque eu ainda me sinto pontual; ainda estou me sentindo pontual vendo essa vacuidade, essa luminosidade. Mas aí vem esse ponto; aí mesmo que eu não consiga entender o que são os outros seres - porque eu sempre intermedeio ele com formas e imagens que são vazias - com certeza, do mesmo modo que eu olho para mim e eu não sou esse corpo, os outros seres também manifestam isso. Ainda que eu possa dos outros seres, ser uma questão filosófica isso, aí eu posso ver que esse fenômeno que acontece aqui não está limitado a mim. Aí eu começo a olhar esse fenômeno como geral. Aí quando nós começamos a olhar dentro de nós, não iremos encontrar uma solidez. Inicialmente eu vou escapar da questão, porque eu vou olhar o aspecto grosseiro e em vez de olhar o aspecto grosseiro eu digo "ele surge pelo aspecto sutil". Então, por exemplo, "eu não sou esse corpo", aí eu escapo do grosseiro. Por quê? Porque o corpo, essencialmente, é a operação dos sentidos físicos. Ele é que suporta os sentidos físicos, o meu corpo é isso, mas os sentidos físicos atuam através da mente, da energia, das emoções, etc. Então o que conta mesmo não é o corpo. Além do mais, meu corpo mudou ao longo do tempo. Ao longo do tempo ilusório, de um mundo ilusório, meu corpo ilusório foi mudando. Então eu não sou o corpo que eu era no início, nem o corpo agora, nem o corpo que vai surgir mais adiante... eu não sou isso. Eu não sou esse substrato. Mas o que há de permanente, o mais estável nisso? As estruturas kármicas, as emoções, os movimentos, etc. Então eu escapo do corpo e começo a olhar o aspecto mais sutil. Dentro do aspecto mais sutil eu vejo como é que as emoções, pensamentos , etc, são, como eles flutuam e que eu também não sou isso. Eu escapo disso em direção ao aspecto secreto. Aí no aspecto secreto eu vejo, eu vou até a prática da presença e eu vejo como que, dessa prática da presença, através da clara luz, através da luminosidade, da energia dos Tesouros do Espaço Básico, nós manifestamos estruturas kármicas, nós manifestamos energias, manifestamos referenciais, que são crescentemente mais sólidos, mas eles não são sólidos na verdade. Eles são apenas referenciais que, pelo fato de eu usar de novo, de novo e de novo, do mesmo jeito, eles aparentemente são sólidos. Eles são tão sólidos quanto as regras de um jogo que eu estabeleço; são super sólidos, são passíveis de tribunais, punições, suspensões, multas... mas aquilo não tem solidez. É mais ou menos como - assim, para a gente quebrar um pouco a seriedade - mais ou menos como a regra do extintor de incêndio nos carros: depois que todo mundo já comprou, agora eu retiro a regra e agora não precisa mais de extintor nos carros. É um pouco isso. Ou seja, tem alguém que é o dono da regra e impõe a regra sobre todo mundo; quando a regra está ali, eu ganhei cinco pontos na carteira e estou cumprindo ainda algumas exigências e outros problemas também, que não vêem ao caso (risos). Mas eu tenho que rir, porque agora eu não preciso nem mais de extintor no carro. Aliás, para informação de vocês, se vocês tiverem extintor no carro, ele tem que ter validade. O extintor que não tem validade dentro do carro nos torna passíveis de multas; se vocês não tiverem extintor aí não tem multa, mas se tiverem extintor vencido, aí tem multa (risos). Isso é só para ver como é a questão das regras, que são fluidas, criativas; tem um aquariano lá! Aquilo é super bonito... agora minha dúvida é assim: se o extintor estiver lá, mas não estiver dentro do carro, ele está carregado como bagagem se ainda assim tem multa. Isso é um pensamento Virgo, assim...
Então tem esse ponto. Ou seja, aí nós olhamos que as coisas não têm aquela solidez; ou quando elas apresentam solidez, é uma solidez de quando nós olhamos uma regra, que também pode mudar. Então é muito bonito de ver, vamos dizer, a Ciência buscando as regras sólidas, buscando a seriedade e as coisas teimando em não revelar a rigidez de tudo... e para quem busca a regra sólida, vai se defrontar inevitavelmente com a Física Quântica, que aquilo dá um problema. Então essa regra sólida estaria baseada na noção de que nós vamos encontrar coisas totalmente estabelecidas do lado de fora independentes de nós mesmos e a gente não vai conseguir isso. É muito interessante esse fato. Mas a gente não desconfia o suficiente da coisa toda. Aí vem esse tema da origem dependente, que é o tema da origem, vocês entendem? E é uma origem que pode surgir de um referencial particular, de um referencial parcial. Isso é muito interessante. Por exemplo, o argumento que é usado é assim: não é que o surgimento se dá na dependência de fatores; ele se dá pela não ausência de fatores. Isso é muito... é um argumento filosófico. Eu peço desculpa para parte dos praticantes que estão aqui, que podem pensar que o silêncio é mais profundo. Por exemplo, pensa assim, como é que o Buda vai explicar isso? Porque ele precisa explicar esse assunto. Porque por exemplo, se a gente disser que as coisas surgem assim, eu sou obrigado a pensar que, por exemplo, o jogo de xadrez com torres, peões, etc, aquilo eu já tinha uma noção de torre, eu já tinha uma noção de etc, aquilo não veio do zero, entende? Agora, se eu disser que as torres que eu tinha visto são torres mesmo, eu estou contra a noção de vacuidade, entende? Então eu sou obrigado a pensar que as torres existem e que isso influenciou a noção da torre que eu vou colocar, que os reis existem, enfim, que o mundo é todo sério. Mas agora eu criei um jogo que não é muito sério. Então se eu digo que tem uma origem dependente de coisas que são verdadeiras, eu estou indiretamente afirmando uma realidade. Então eu digo que aquilo surge por fatores, por uma coemergência e com fatores que não estão ausentes, em vez de dizer que eles estão presentes. Aí a gente entende isso. Por quê? Porque se eu disser que aqueles fatores da origem dependente são reais, são sólidos, eu estou adotando uma posição filosófica; mas se eu disser que aquilo é não-ausente, eu não to dizendo que aquilo é real, eu estou dizendo que aquilo surge de um modo enganoso que eu não tenho como negar que surgiu. Mas eu não estou afirmando a realidade independente daquilo.
Aí tem esse aspecto que a gente sofre quando vai lidando com essas questões filosóficas, com esse jogo dessas palavras, entende? Eu acho melhor meditar em silêncio (risos). Mas se a gente quiser penetrar nessa coisa, porque isso vem também por uma questão, vocês imaginem aqueles mestres la [meditando em silêncio], eu acho isso comovente, acho também que isso é pouco falado - acho também que o Maca ia gostar de falar isso de novo e de novo e de novo - a pessoa quando era ordenada na sanga do Buda, ele não só tinha um tutor - ela só poderia ser ordenada tendo um tutor; isso não é o ponto mais importante que eu queria lembrar - mas ele tinha que escolher uma árvore. E ele ia morar, a residência dele era sobre as raízes dessa árvore. Não é comovente, pessoal? Eu acho comovente. Botar uma plaquinha assim: aqui, Padma Samten. E viver sobre as raízes daquela árvore. Eu acho maravilhoso. Super maravilhoso. Aí vocês imaginem aqueles mestres todos. Depois de meditar um monte sobre silêncio, eles resolvem ter umas ideias, esse que é o problema; eles começaram a ter umas ideias. Aí a coisa aparece como, né? Como é que as coisas aparecem? É assim, tipo aquele filme, a Escolha da Realidade (Choosing Reality), aí tinha assim, ele fazia assim, escolhia a mesa e "flop!" aparecia a mesa no meio. Então a realidade é assim, faz "flop" e tudo aparece. Isso é considerado uma visão extrema. Isso não é o caminho do meio. O caminho do meio está entre aquilo aparecer e a solidez concreta da coisa existente. Mas o caminho do meio não é o meio entre duas posições, tem mais isso; o caminho do meio não é um partido político que resolveu adotar, assim, às vezes vai mais para um lado, às vezes vai mais para o outro lado e garante a governabilidade; não é isso. Aquilo é uma outra posição, que não é nem um extremo nem o outro extremo. É uma posição livre dos extremos, que não é uma composição das duas posições. Esse é o caminho do meio.
Então a visão do Buda é a visão do caminho do meio, então é a visão da coemergência. Esse ponto é super interessante, e coemergência é a mesma coisa que originação interdependente. Porque eu tenho uma posição interna; ela coemerge com a aparência, que não é existente, ela é não-ausente. É assim, pessoal. Ela é não-ausente. Aí aquilo coemerge e dá surgimento a alguma coisa, que é não-ausente, ela não é existente. Por exemplo, Guru Rinpoche ali, eu não posso dizer que ele é existente; ele é não-ausente, porque se eu disser que ele é existente está errado; se eu disser que ele é não-existente também está errado. Então, todos os objetos, todas as coisas são não-ausentes; elas são surgidas por um processo extraordinário, que é a originação dependente. E aí vem um detalhe, pessoal, um detalhe que é assim: a originação dependente é aquilo que sustenta Guru Rinpoche ali. Guru Rinpoche não está ali nem deixa de estar; ele é não-ausente. Então tem alguma coisa que sustenta a não-ausência de Guru Rinpoche ali. E isso é origem dependente. Agora eu esqueço Guru Rinpoche por um instante. Eu olho Guru Rinpoche mesmo; Guru Rinpoche mesmo é o princípio ativo que sustenta a imagem. Então as coisas, por exemplo, o que sustenta a bolha? Seja qual for a bolha. Originação dependente. Aí tu, invés de pensares no objeto da originação dependente, tu começas a olhar o princípio ativo que sustenta a ilusão - se eu quiser chamar de ilusão, entende? Aí tu descobres que esse princípio ativo sustenta tudo, porque a gente já estava olhando em todas as direções e a gente via a vacuidade em todas as direções; a gente via a natureza vajra em todas as direções. Mas eu olhava desde um ponto pessoal. Agora vocês olhem os seres se olhando uns aos outros com as suas naturezas, com suas experiências próprias de naturezas vajra, olhando as naturezas de suas realidades. E olhem isso numa direção macro e olhem numa direção micro; vocês vão ver a origem dependente produzindo todas as manifestações.
Então vamos tomar assim: a gente pega barro, que é não-ausente, vamos começar assim. Não vamos dizer "o barro existe"; por quê? Porque se eu pegar o barro, eu posso decompor ele em coisas mais fundamentais, que eu posso decompor em coisas mais fundamentais, que eu posso decompor em coisas mais fundamentais... mas para não ficar numa coisa até uma coisa infinitamente remota, que eu vou encontrar vacuidade no sentido de espaço vazio, eu paro no barro. Para não dizer que o barro existe e não ficar preso à inexistência do barro, eu digo que ele é não-ausente. Aí tudo bem. O barro é uma experiência que eu tenho. Aí, por exemplo, eu acho interessante a gente olhar para Guru Rinpoche não-ausente (não não-existente) com respeito à presença não-ausente dele. Vamos deixar assim. Então a gente olha isso e aí tem esse ponto. Tem um princípio ativo, mesmo que eu saiba da não-presença. Então eu estou trabalhando com a não não-presença. Tem um princípio ativo na não não-presença. A não não-presença é diferente da não-presença, que é diferente da presença. É assim: a não não-presença é diferente da não-presença, porque eu estou negando a não-presença; e é diferente da presença também. A presença é a filosofia natural, "Guru Rinpoche está ali"; o outro extremo é assim "Guru Rinpoche não está ali". E a outra é assim "Guru Rinpoche não deixa de estar ali". Isso é parecido com isso, por exemplo, isso é, não é, é; Guru Rinpoche é a terceira afirmação. Ele não é o extremo do ser, não é o extremo do não-ser, mas ele é o caminho do meio, que é o é, que é o caminho do meio. O terceiro é é a não-ausência. Não não-presença. Estamos indo? Então a coisa é complicada! A gente rezou, rezou para a coisa ficar simples, mas a coisa ficou assim. Mas é que esse processo nos ajuda a entender o princípio que sustenta as aparências, só que a gente precisaria contemplar isso, pessoal. Não basta explicar esse aspecto. A gente teria que contemplar como a realidade das coisas se sustenta. Aí aquilo, cada vez que tu chegas num ponto, tu descobres que tem mais um detalhe. Então quando tu descobres, por exemplo, que tem esse princípio da manifestação das coisas e que isso a gente vai chamar de origem dependente, aí tu vês que isso sustenta as aparências em todo lugar. Aí tu descobres por exemplo que isso está livre de qualquer das coisas surgidas ou não não-existentes, portanto, manifestas através da origem dependente. Que eu poderia chamar de ilusórias, mas eu já não uso essa expressão "ilusória", porque quando a gente usa essa expressão "ilusório", eu não posso dizer, por exemplo, que o rei do jogo de xadrez é ilusório; não dá pra dizer. Por quê? Porque ele não é ilusório! No jogo, ele faz sentido! Então a palavra "ilusório" não vem ao caso. Além do mais, a noção do que é ilusório dialoga com a noção de realidade. Então eu estou trabalhando com a noção de que as coisas são de um certo jeito em algum lugar de um modo independente, por isso aquilo que não é assim é ilusório; tem um diálogo de opostos aqui. Então a palavra "ilusório" não é interessante. É mais fácil a gente dizer que é como um sonho. Mas como um sonho é um exemplo; aqui nós estamos tentando divisar um princípio. Então esse princípio é o princípio da originação dependente. Nem é origem, é originação; originação é um processo ativo.
Aí quando nós olhamos em volta, nós vemos a multiplicidade dos seres, cada um criando as suas próprias bolhas, uma coisa que a gente ja conhecia, a gente já viu. Só que daí a vocês olham para cima e para baixo e vocês só vêem bolhas. Os seres se relacionando com bolhas o tempo todo. Aí tem um detalhezinho adicional, que é assim: quando nós manifestamos as bolhas, isso é a manifestação da nossa mente, ou seja, o pensar, a ação da mente, o aspecto cognitivo, o aspecto de energia, etc, é a criação e sustentação de bolhas e objetos referenciados dessas bolhas, que, enfim, surgem por originação dependente. Mas a gente faz isso sem nenhum esforço! Vocês ja viram isso? Sem nenhum esforço. Também de modo incessante. E a gente faz isso no bardo da morte, no bardo do vir-a-ser, no bardo da vida, no bardo da vida, no bardo do sonho, no bardo da meditação, no bardo do morrer; nós fazemos isso o tempo todo, pessoal. A gente fica construindo. Quando a gente constrói realidades, a gente constrói através da originação dependente coisas que, o que elas são? São não-ausentes; não posso dizer que elas são reais, elas são não-ausentes. Elas são não não-existentes. Elas são não não-existentes. Mas eu não posso dizer que elas sejam existentes, mas não consigo negar a existência nem negar o aspecto absoluto. Então eu vejo que aquilo é operativo. Essa é a argumentação de Maitréia, aquilo é, não é, é. Mas eu não tenho palavras para explicar essa terceira afirmação. Não tem uma palavra na nossa língua que permita a gente dizer esse segundo é. O primeiro é é um é firme; quando a gente diz não é, isso é um não é firme; aí o terceiro é é um é que eu precisaria de um outro verbo, entende? O verbo ser não serve. Então por isso que eu tenho que explicar desse modo. Porque na nossa experiência nós não temos um verbo para isso, a gente não tem uma palavra para isso. E nenhuma dessas línguas tem. Portanto, eles usam esse artifício de explicar desse modo. Mas aí o que nós vamos observar é o esforço natural que, enfim, é sem esforço, de surgimento das aparências. Então a gente está olhando aquilo e a gente está vendo essa manifestação das coisas. Então quando nós vemos a manifestação das coisas, isso é o aspecto visível da originação dependente, que, enfim, é a ação da nossa mente primordial. Então, acionada pela mente primordial sob a dependência de fatores não-ausentes (ou não não-presentes) surgem as configurações. Então o que são fatores não não-presentes? Eu olho o jogo de xadrez, eu digo "em vista da posição das pedras onde elas estão, a única alternativa de jogada é essa". Só que as pedras não são realidades, elas são realidades luminosas dentro de um jogo que é uma bolha, que não tem solidez; mas quando eu olho aquilo, eu me referencio a posições de coisas que - eu não vou dizer ilusórias, porque não são ilusórias - mas elas são não-ausentes; mas elas não têm uma realidade sólida. Mas referenciadas pelos condicionamentos a esses fatores, eu gero minha jogada. A minha jogada é, a minha posição, o que eu vou fazer, é referenciada por isso; tem um impulso luminoso, que poderia ser em outra direção, outra direção ou outra direção, mas eu estou fazendo esse impulso luminoso - e ele é livre - condicionado a um fator desse. Então aí eu tenho a origem dependente, a originação dependente, que é a originação, mas referenciada a alguma coisa, que é diáfana (eu não sei como é que eu vou falar isso); eu tenho uma referência, só que essa referência não é sólida; ela não é absoluta, ela não é criada, ela não é prakrti, ela não é matéria. Ela é alguma coisa assim. Então do mesmo modo a gente pode pensar assim: "eu quero ir para um lugar, escapar da chuva, ir para um lugar quente; eu fico olhando os paulistanos e acho que lá é um bom lugar porque lá não chove. Aí eu quero ir para um lugar, enfim, melhor; não estou mais aguentando". Isso é um referencial abstrato, uma construção abstrata. Mas eu tomo isso e começo a ter ideias. Então essas ideias todas brotam da origem dependente. Aí eu faço contas, compro passagens aéreas, reservo hotéis, faço alguma coisa em outro lugar, me mudo para outro lugar. Aquilo parece super concreto. Mas tudo está baseado nesse tipo de visão que não é sólida, mas é não-ausente; não não-presente.
Mas aí o ponto fundamental é que a natureza livre da mente é a base para a sustentação das aparências todas, que surgem sem esforço. Então quando nós olhamos para as aparências, independente do conteúdo que elas possam ter, nós já estamos vendo a base da operação incessante da mente, não importa de que ser seja. Isso tem um efeito direto em relação à nossa liberação. Por quê? Porque isso encerra o caminho de Tcherezig; o caminho de Tcherezig terminou; ele desembocou em Samanthabadra. Terminou o caminho. Porque no caminho de Tcherezig, o que eu penso, o que eu gosto, o que eu quero, as minhas fixações, minhas visões de mundo, todas elas importam. Então Tcherezig é aquele que ouve a nossa confusão. Nossa confusão parece uma confusão séria. Aí está lá Tcherezig fazendo aquilo: "quem sabe você faz isso? Você não briga com ele? Você então pense que ele é uma boa pessoa que enfim tem boas componentes internas". Então é o psicólogo. Tcherezig poderia ser representado com um charuto, a pessoa deitada num divã e ele falando, ouvindo... tem muitos consultórios que ele é representado na parede, com um charuto. Então isso é uma coisa maravilhosa, ouvir as pessoas. Aí "conte mais, e a sua mãe? Ah, sim...". Aí vem Jung: "mas e a sua mãe na vida anterior, como é que era?" Aí começa a ficar mais profundas as experiências; "e o seu pai, como é que era? Ausente? Ah sim, normal." Aí vai assim "e os seus irmãos? Problema com a sua irmã? Normal!" Aí aquilo vai indo, assim. E sem fim. Mas nós estamos tentando encontrar uma cadeia causal que explique, enfim, por que a pessoa é assim. A pessoa na verdade é como se ela não tivesse o poder, ela surge por causalidade. Esse processo de surgimento por causalidade vem na ligação com o fato de que a pessoa está respondendo através dos condicionamentos que ela adquiriu. Então ela não tem como atuar senão na linha do karma. Então eu começo a desenrolar aquilo desse modo. Mas toda a argumentação de Tcherezig vai chegar num ponto que diz "agora você tem uma opção, você pode fazer isso, pode não fazer", por exemplo. Que é um ponto super interessante do Buda, que é ele dizendo que o ódio não se resolve por amor, mas se resolve pelo não-ódio. Isso é super importante. Nós temos a capacidade de nos defrontar com o ódio e simplesmente manifestar o não-ódio. Nós temos essa possibilidade. Mas sob o ponto de vista causal não, porque o ódio veio de um trauma; ele veio de uma ação que pode ser ilusória, mas ela está real, entende? Aí "você acha que é ilusório porque não é com você! Mas comigo não, aquilo ali é assim!". Aí nós "ah ta!" aí Tcherezig "ah, ta!"
Agora nós estamos andando numa direção em que isso não importa mais. A argumentação de Tcherezig foi! Agora é assim: não importa qual é aparência que surja, essa aparência é sustentada pela luminosidade e pela origem dependente. Ela é isso. Mas ela representa o que? Ela representa a luminosidade da condição básica da natureza primordial. Não importa a aparência que for! Não vamos lutar com as aparências, nem transformar as aparências; as aparências são o que são! Elas brotam da origem dependente. É assim, elas brotam! Aí por que eu vou me preocupar em mexer se ela é de uma cor, trocar de cor; se ela está com fogo vou trocar por água. Eu não preciso trocar nada por nada. Todas as aparências têm origem dependente e são sustentadas. Se por um instante a sustentação for retirada, as aparências somem. Essas aparências são sustentadas desse modo. Então não precisa mais a gente mudar. Então nesse momento Tcherezig se sente inútil. "Tudo bem. Chegou o chefe, Samanthabadra, agora fui demitido! Tudo bem!". Aí Samanthabadra agora significa isso. Aí por exemplo, se nós morrermos, aí nós estamos morrendo, aí nós estamos com muitas aflições, com muitos pensamentos. Esses pensamentos todos eles brotam por origem dependente, pessoal! Eles são justos, está tudo direito, está tudo bem! Mas não tem por que seguir aquilo! Por quê? Porque a minha natureza, minha própria natureza, está além daquilo. Aí nós vamos sorrir porque a nossa própria mente está criando aquilo tudo. Aí se nós estamos meditando e nossa mente está esvoaçando, nós vamos sorrir, "isso é originação dependente, que incrível!". Aí cada vez que você dizem "isso é originação dependente, que incrível!", retorna para a presença. Retorna para o estado que está livre das bolhas. Então esse é um processo pelo qual qualquer aparência me remete - sem eu precisar pensar, sem raciocinar, sem filosofia, sem nada - me remete para o estado livre das aparências e dos conteúdos. Aí não tem caminho, não tem trajeto, porque qualquer ponto que a gente localizar, aquilo nos dá a saída. Eu não preciso pegar um ponto e transformar aquilo numa outra coisa ir indo até que eu chego numa coisa e aí eu saio. Não preciso mais. Qualquer aparência me permite a saída. Então a origem dependente me permite isso.
Aí nós vamos olhar as aparências agora constituídas por aparências mais fundamentais, que surgem de aparências mais fundamentais, que surgem de aparências mais fundamentais, que surgem de aparências mais fundamentais; nós vamos ver o universo inteiro vivo pela origem dependente. Aí eu vejo por exemplo os seres humanos, aí tudo bem. Aí vou ver que os cachorros também. Aí gatos também. Aí a pulga do gato, a pulga do cachorro também. Aí eu vou olhando: todos eles têm ideias próprias e fazem coisas e organizam seus mundos e os seus mundo são não-ausentes, e eles, por originação dependente, vão criando aquelas aparências todas. Aí a forma pela qual nós juntamos, por exemplo, barro - que é não-ausente - faz um tijolo existente. Mas aí eu penso que o tijolo é existente e me dou conta: ele não é existente! Ele é não-ausente! Aí eu pego isso e faço uma parede não-ausente. Os cupins, pessoal, não ficam olhando aquilo que eu construí. Eles olham para aquele tijolo, não vêem tijolo nenhum! Eles vão lá e furam aquilo. Do mesmo modo, a gente pega uma árvore, que é não-ausente, faz tábuas não-ausentes, seca as tábuas não-ausentes, faz móveis não-ausentes - os cupins olham para os nossos móveis não-ausentes e têm ideias próprias. E essas ideias próprias permite que eles criem uma família, que expandam, que criem uma cidade de cupins. Que quando a gente olha, a gente diz "uau! Isso é um ataque não-ausente de cupins!". Aí os cupins olham para nós "eles são não-ausentes também!". Então, os seres têm essa capacidade também. Eles vêm suas próprias coisas e constroem seus próprios mundos. Aí nós vamos descendo. A gente vê essa multiplicidade de seres, todos eles manifestando esse aspecto primordial da origem luminosa dependente de fantasias não-ausentes. Aí aquilo [vai sendo construído] camada por camada. Independente do que é criado, está ali. Aí vocês olhem a complexidade: o que nós fazemos o tempo todo? Nós construímos mais uma camada, depois mais uma camada, depois mais uma camada e vamos construindo camadas e camadas e camadas... nosso corpo é um exemplo perfeito da multiplicidade de camadas que a gente construiu. A gente foi rápido. Porque lá do tempo da sopa primordial para esse tempo de agora a gente até andou bem, não foi tanto tempo! Aí nós estamos gerando isso, mas nós estamos mudando. Aí vocês vêem que as espécies estão mudando as aparências delas. Tudo é não-ausente. Mas vai mudando, justo por isso. Aí nós vamos olhando. Aí a gente pensa "o código genético, aquilo a gente obedece", obedece nada! Nós estamos mudando o código genético o tempo todo, pessoal. É assim. É simples. Nós estamos fazendo essa transformação. Por quê? Porque o princípio da luminosidade é o princípio maior. Então eu tenho a originação dependente: eu pego um outro fato, adiciono outro fator, o código genético começa a mudar também. O cérebro muda, as coisas todas mudam. O código genético é o que representa, essencialmente, a média do nosso karma. Nós vamos atuando assim. Aí aquilo se estabiliza. Nós vamos atuando sobre esse referencial e vamos produzindo esse aspecto. Mas a originação dependente é a base disso tudo. Aquilo vai andando. Nós vamos construindo organizações humanas. Aí tem as pessoas que estão em diferentes funções dentro das organizações humanas. Elas são aquilo, mas na verdade elas são a não-ausência daquilo. A pessoa não é um funcionário do Banco do Brasil, mas também não deixa de ser; ela é a não-ausência do funcionário. Não é que ele tenha presença, é não-ausência, pessoal. A pessoa diz "Fulano!", [fulano responde] "não-ausente!". Não é presente, é não-ausente! (risos).
(1:19:30) Pergunta: eu estava pensando
Lama: a resposta é "não". (risos)
Continuação: posso perguntar mesmo assim? sobre a carga kármica. A carga kármica é causal?
Lama: ela é não-ausente.
(continuação): eu penso que, enfim, no momento da iluminação do Buda ele lembra de todas as vidas passadas, de quem foram as mães e de quem ele foi mãe e etc. Também se fala que ele teve um acúmulo ao longo de muitas vidas. Então parece que foi o acúmulo ao longo de muitas vidas o que está por trás da iluminação. E, digamos que, eu penso que ele tenha limpado uma carga kármica, no sentido de que ele foi eliminando, talvez um a um, ao longo de muito tempo - não sei se estou pensando errado, estou pensando materialmente, certamente - e aí então ele vai limpando um a um e por fim parece que abre uma janela para tudo o que ele foi, e ele se liberta. Então estou pensando se a gente ao longo das vidas não vai acumulando e vai nessa assim também. Apesar de que se possa se dar em qualquer momento, a iluminação parece que tem um processo linear que é de acúmulo...
Lama: e a resposta é?
(continuação): não! (risos)
Lama: (risos) é que é classe de ensinamento. Isso aí é Tcherezig ainda. Aí se tu vais andando, vais andando, chega no oceano, que é Samanthabadra. Então esse ensinamento é interessante, mas ele é relativizado por outros ensinamentos do próprio Buda.
(1:22:20) Pergunta: a natureza luminosa ou livre é real?
Lama: ela é não-ausente.
(continuação) tudo se remete a ela, né? Então se ela existe, algo existe.
Lama: é, mas o ponto disso é: ela é vacuidade. Nós vamos escapar desse tema pelo seguinte: se eu afirmar essa realidade, eu estou utilizando uma base comum de raciocínio; mas se eu disser que é vacuidade, eu estou me referindo à base comum, na base comum, aquilo é vazio. Porque não tem nada que pertença ao conjunto do raciocínio comum. Eu não tenho objeto, eu não posso me colocar aqui e olhar para aquilo. Então quando a gente diz que é vazio, nós estamos escapando de todo um conjunto de argumentações. A gente evapora o conjunto de raciocínios. E nós vamos negar a própria existência do vazio. O vazio não é uma existência do vazio, mas ele é a não-substancialidade de qualquer categoria filosófica ou aparência. Não substancialidade, é isso. Então, aquilo que nós temos por base é isso; é como se fosse de um outro âmbito, por isso nós vamos dizer vazio: não pertence a esse âmbito. Esse âmbito é um âmbito que brota da noção de separação. Eu não vou poder afirmar coisa alguma a partir desse âmbito. Então eu vou referir à vacuidade porque eu vejo que tudo brota de modo coemergente, ou seja, através da originação dependente. Mesmo a vacuidade a gente vai escapar. Esse é um ponto bem interessante, porque não há uma vacuidade. A gente tem a tendência a ir escapando das coisas, ir escapando, e aí a gente localizou um absoluto que está dentro desse mundo; esse absoluto desse mundo também não serve. Aí como é que a gente vai explicar isso? Que esse absoluto também não funciona? A gente vai dizer - isso é a abordagem Prasamica-Madhiamyka - a gente vai dizer que esse absoluto, aliás, esse vazio é um atributo das aparências, ele não é alguma coisa. Então quando eu falo em aparências, eu vejo que as aparências são vazias. Então o vazio se refere à aparência que eu estou, ele é inseparável das próprias aparências que eu estou lidando. Ele não é alguma coisa em algum lugar. Mas aí vem a abordagem Shantong; a abordagem Shantong é essencialmente o processo dos seis selos. Então ainda que eu diga que as aparências são vacuidade, a vacuidade são as aparências, as aparências e vacuidade são inseparáveis e isso é a grande bem-aventurança, eu me dou conta que essa grande bem-aventurança vem pela ausência de referenciais de qualquer tipo. Essa ausência de referenciais de qualquer tipo eu não estou mais nem chamando isso de vacuidade, vou chamar isso de Darmata. Então, esse é um ponto interessante, porque na perspectiva da Segunda Volta do Dharma, nós paramos na vacuidade; aqui, nós vamos até Darmata. Então a gente vê que na ausência de qualquer referencial, de qualquer coisa, há Darmata. Darmata não é um objeto também, mas é a experiência do espaço e a experiência do espaço está presente. Se eu não tiver a experiência do espaço livre da mente, eu não tenho a possibilidade de criar qualquer tipo de artificialidade, que é o que a gente faz! Então, quando as artificialidades cessam - que é a vacuidade - há experiência do espaço livre da mente; o espaço livre da mente está sempre ON, ele não desliga. Aí a gente pensa: "eu primeiro elimino todas as impurezas e aparece o espaço livre da mente, que é o que a gente mais ou menos pensa quando vai sentar sobre, ou buscar praticar a presença. Mas aqui é assim: eu não preciso tirar as coisas; esse é o ponto da originação dependente, pessoal. A gente deveria fazer no mínimo 108 mil prostrações! A gente não precisa tirar as aparências, porque as aparências, porque as aparências mesmo são luminosas. Elas já são, do mesmo modo que o silêncio é a Natureza Primordial, a forma é a Natureza Primordial. Porque ela é sustentada desse modo, é origem dependente. Assim: não tem que lutar contra as aparências; as aparências e a vacuidade, todas elas se fundem. A única coisa que Tcherezig diz "espera aí, pessoal! Não esqueçam disso! Não escutem só Samanthabadra, eu ainda tenho uma coisa para dizer!" é assim: só não se ocupem do conteúdo que aparece! Só não se ocupem do conteúdo! Se prendeu no conteúdo, aí nós agora vamos para cá, agora vamos para lá, agora isso, agora aquilo... não se preocupem com o conteúdo! O conteúdo parece porque há esse brilho incessante; então, vejam o brilho incessante. O brilho incessante que brota na relação dependente com outras coisas que são não-ausentes. Eu vou construindo coisas não-ausentes, aí vou pegando-as como referência e construindo coisas vou construindo por camadas. Aí é só não mergulhar naquilo. Aí vocês estão, por exemplo, afundando na morte; aí brotam várias coisas: "deixa eu ver como é que eu faço se eu precisar, se eu tivesse isso, será que eu não consigo ainda viver mais um pouco e dizer isso? Eu não assinei no cartório as coisas que eu tinha que ter assinado; eu estou achando estranho o sorriso da minha namorada, ela está com uma cara meio assim; estou achando que ela está achando bom, não estou gostando disso! Eu precisava voltar aqui, ir lá e ver 'por que você estava assim?' aí será que Guru Rinpoche me dá mais um tempinho para eu resolver umas coisas?". Aí nós estamos lidando com o aspecto causal, entende? Nós estamos imersos naquilo. Aí aqui nós vamos olhar isso. Nós vamos olhar "uau! Como a mente se ocupa de criar coisas!". Aí a gente vê aquela bolha, assim, aí assopra a bolha. É assim pessoal. Não precisa ficar preso às bolhas!
Mas isso não precisa ser na morte, pode ser na meditação também. Vocês estão lá meditando [gestos de incômodo]. Aí tem alguma coisa que a gente deveria fazer, né (risos). Mas isso tudo é desvio! Aí nós estamos escapando do ponto primeiro; se eu lutar contra isso, eu estou escapando; se eu me filiar, estou escapando. Tem alguma coisa sorridente que cria isso tudo. É assim. Essas realidades todas a gente cria e "uau! Que maravilha, como a mente se ocupa disso tudo!". Agora a gente vai botar tudo isso dentro de um pacote e [soprar para longe]. Aí nós estamos no meio do samsara assim "agora isso, agora aquilo, agora meu salário afundou, agora o dólar subiu, agora as ações baixaram, agora isso, agora aquilo, agora a estrada está toda esburacada, quando é que eles vão tapar esses buracos? E a minha carteira de motorista, quando é que volta? Não posso nem andar de bicicleta, não pára essa chuva! Eu to bem, assim, por enquanto". Isso tudo são elaborações. Aí junta tudo aquilo e "puf!": "que maravilha! Essa construção de elaborações todas! Que coisa linda! Essa é própria luminosidade!". A gente não está contra, não está a favor, mas não está preso.
(1:32:40) Pergunta: voltando ao primeiro elo da originação interdependente, que é a mente ignorante que faz isso, que acredita na questão concreta. Seria isso então, essa é a ignorância? E a sabedoria seria entender a natureza criativa da vacuidade e a partir de uma sabedoria criar as terras puras?
Lama: a ignorância é a fixação no cenário das bolhas; é jogar xadrez e estar preso naquilo. Sabedoria é a gente não estar gostando do jogo e dizer para pessoa com quem estamos jogando "olha, esse jogo é não-ausente, eu estou saindo. E o meu movimento é não-ausente. Mas eu estou indo". E aí pronto.
(1:34:35) Pergunta: quando foi falado que Buda descrevia a haste de arroz, que depois se desenvolvia o talo, que o talo desaparecia para dar origem à flor e etc, eu fiquei pensando "o que está dando essa origem? É o código genético! Mas a gente sabe que as plantas têm totipotência, então não é só a semente, mas a célula pode gerar uma nova planta". Mas aí então trazendo para a origem também de outros seres, ser humano, etc. Qual é a origem da vida?
Lama: é a origem dependente. Ela não só é a origem como é o pulsar da vida. A vida é origem dependente. Ela se manifesta assim: quando a morte vem, a gente sempre associa a vida a um corpo, então quando a morte vem, na noção de corpo, o corpo perde a capacidade de manifestar a originação dependente. Por exemplo, quando nós começamos a morrer, o processo digestivo ele já, os vários elementos, os cinco elementos vão parando; então, se tu olhares o processo digestivo, o processo digestivo é assim: tu pegas alguma coisa e transforma em outra coisa; essa é a digestão. Essa é própria origem dependente. Aí tu perdes essa capacidade. Aí tu pegas, por exemplo, as substâncias do corpo e vai transformar em calor, vai transformar em combustão; aí aquilo pára.
(continuação) sim, mas então seria o aspecto secreto da origem dependente que dá origem à vida? Porque o corpo seria o aspecto grosseiro? Aí eu tenho o sutil, não sei se eu posso pensar que o código genético seria sutil, faria essa ligação entre o secreto e o grosseiro?
Lama: eles são todos inseparáveis. Eu comecei explicando pelo aspecto grosseiro, porque o aspecto grosseiro, quando a gente fala em morte, de modo geral a gente está se referindo a corpo, porque se a gente não se referir a corpo, o processo segue. Vamos supor, como num sonho - agora estou tomando um exemplo sutil - como num sonho, o corpo está dormindo, mas nós estamos caminhando, nós estamos fazendo coisas; nós estamos andando por outros lugares! E o que significa "andar por outros lugares?" nós estamos no meio do sonho e nós estamos operando origem dependente! A gente está criando ideias e a partir das ideias a gente cria coisas, a gente vê "ah isso aqui não dá, então eu faço para cá, para lá", vou organizando. Isso é a mente da originação dependente, construindo mundos, construindo realidades, produzindo luz, produzindo as múltiplas aparências. Na morte é a mesma coisa. A gente só não está agora operando a partir do corpo, está operando agora a partir do aspecto sutil. Agora, o aspecto sutil, de onde é que ele se origina? Se origina do aspecto secreto, que é a luminosidade, enfim. Mas o aspecto sutil é a luminosidade operando sob condições. É a origem dependente. As condições também. Por exemplo, quando a gente está pensando no meio do sonho, construindo imagens, as imagens que eu uso por referência, elas são não-ausentes, mas elas não são existentes, elas são não-ausentes. Eu não preciso de coisas existentes para operar a origem dependente, eu preciso de coisas não-ausentes. O mundo inteiro é assim. O mundo inteiro é não-ausente, em vários níveis. Aquilo que é existente, todos deveriam ver; o que é não-ausente é visto numa bolha, noutra bolha não é visto. Porque ele é não ausente, porque a sua manifestação se dá por coemergência. Então a mente produz aquela aparência. A mente e um outro fator não-ausente produz um outro fator não-ausente.
Agora, enquanto a gente olha isso, isso ainda é um nível. O nível que realmente importa é o fato de que nós fazemos isso sem esforço. Enquanto a gente manifesta isso sem esforço, não há um instante em que a gente não esteja manifestando isso. Enquanto nós pensamos pensamentos comuns, não são pensamentos comuns: é manifestação da luminosidade operando sob condições e produzindo aparências. Aí eu me refiro às aparências. Esse processo de andar por meio dos mundos, as múltiplas vidas, aquilo tudo se funde numa única coisa. Eu tenho muitas bolhas durante uma vida, depois eu sigo tendo bolhas na outra vida, depois bolhas na outra vida e eu vou tendo bolhas e bolhas e bolhas... mas o que une isso tudo é essa capacidade luminosa de produzir bolhas. Aí nós vamos seguindo. E essas bolhas, nós vamos tomando outros referenciais e aquilo vai tudo se manifestando. Porque a origem dependente é dependente a alguma coisa que não é existente, é não-ausente. Ela também é uma construção. O princípio da cura é retomar esse ponto. É retomar o ponto da natureza primordial. Esse é o princípio da cura.
(1:41:16) Pergunta: uma vez escutando o Thich Nhat Hahn, ele diz que as flores são compostas por não-flor, que é o sol, que é a terra, que é a chuva...
Lama: isso é vacuidade.
(continuação) que por sua vez é composta por não-terra. Não sei se é a isso que o Lama está se referindo...
Lama: é isso. Porque quem vê origem dependente vê a vacuidade. E na verdade, nesse argumento de Thich Nhat Hahn ele está apresentando a vacuidade. Isso é super bonito, é a origem dependente.
(continuação) mas é isso? A flor é não-ausente, mas ela é o sol, ela é a terra, ela é a chuva...
Lama: é. Esse é um ponto interessante, porque é esse argumento, assim, por exemplo: o tijolo é composto de barro, que é não-tijolo. A parede é composta de tijolos, que é não-paredes. Aí eu vou indo. A escola é constituída de salas que não são salas, que são constituídas de paredes que não são salas. Aí eu vou indo. Mas em cada nível, aqui ele está usando a negação para ver a vacuidade. Aqui nós estamos andando no sentido, na outra direção. A gente está vendo que a gente pega coisas que não são tijolos e fazemos tijolos; pegamos coisas que não são parede e fazemos parede; pegamos coisas que não são sala e construímos uma sala. Mas como é que é essa construção? Essa construção é uma origem dependente. Em cada nível o barro é não-ausente, o tijolo é não-ausente, a parede é não-ausente, a sala é não-ausente, a escola é não-ausente. Aquilo tudo é assim, né. Aquilo está ali como não-ausente, e não como existente. Por quê? Porque a existência tem por base a luminosidade.
Aí é tudo assim. O cosmos é não-ausente. O tempo surge da noção de existência. Aí ele também é não-ausente. Por isso que eles vão mudando, por isso que as coisas vão mudando. Aquilo é óbvio. Eu acho que esse ponto nos convidaria a contemplar um pouco, a gente precisaria contemplar. A gente precisa ir tomando exemplo, tomando exemplos e vendo isso. Mas ele é um ponto libertador, porque ele é a bênção de Samanthabadra; é a bênção de Kuntuzangpo. É o ponto onde tu não precisas mais de Tcherezig. Aí é uma coisa curiosa: a gente faz um caminho longo por Tcherezig para depois não precisar mais de Tcherezig. Esse é um ponto interessante, que é o ponto que ele estava levantando: como é que a gente faz um trajeto longo para chegar num ponto onde a gente descobre que não precisava do trajeto longo. Mas se tu não fizesses o trajeto longo tu não descobririas que não precisava do trajeto longo.
Aí nesse ponto eu fico tocado pela compaixão dos Budas, de montar coisas complexas para que a gente possa se livrar das coisas complexas mais adiante. Como nós estamos muito presos nessa estrutura toda, aí vem essa habilidade de fazer a gente seguir alguma coisa que é o que a gente pode seguir, entende? Agora, quando a gente olha aquele caminho sendo feito longamente, a gente vê que aquilo poderia ter sido feito assim [muito rápido], fazer a transição. Mas a gente não ia entender, não ia se conectar, não ia ver. A gente não tem nem linguagem para isso. Se a gente quiser uma explicação, o que aconteceu foi o seguinte: nós adquirimos uma linguagem "capaz de"... acho que os filólogos iam exultar aqui, que é uma questão, enfim, apenas de palavras e linguagem. Nós fomos alfabetizados. A gente sem os conceitos, sem as palavras, sem as formas de explicar, não tem como acessar. Os tibetanos têm uma prática muito interessante, que a gente chegou a usar aqui uma época, que era recitar as letras e as sílabas, porque elas são consideradas todas sagradas. É como se tu recitasses todas as palavras; tu recitas as sílabas e tu recitas a raiz de todas as palavras. Aí tu te dás conta de que elas são mágicas, porque elas combinadas é que nos permitem acessar esse universo todo. Então, elas mesmas já brotam do universo de Tcherezig. Aí tu te dás conta que essas sílabas todas são extraordinárias, porque permitem abrir mundos e acessar mundos. Teve uma época que a gente fazia essa prática aqui no CEBB, quando a gente estava aprendendo tibetano também por aqui. A gente estava achando aquilo super importante. No fim a gente pulou fora disso. Acho que foi melhor. Mas eu acho que é importante a gente saber essas visões.
Mas eu ainda continuo escamoteando, né. A gente não entrou no texto. Mas agora está mais fácil, porque quando a gente vai entrar, tu vais tropeçar nas afirmações. Aí aquilo fica meio assim. Então agora a gente está olhando isso, nós estamos quase no ponto de entrar mesmo. Quase. Aí depois a gente lê e aquilo fica claro.
Então, eu queria falar, antes de dar sequência ao próprio texto, eu queria trazer esse texto que é o Madhyanta-Vibhanga. Nós estamos trabalhando no Salistamba-Sutra. O Salistamba-Sutra é de Maitréia, do mesmo modo que o Madhyanta-Vibhanga. Eles são textos fundadores do Mahayana. Eu acho isso maravilhoso. Eu não vejo, nessa abordagem, nada que falte em outras abordagens, tipo Dzogchen, Mahamudra, não falta nada. Ainda, essas outras abordagens são consideradas superiores. Mas eu olho aqui e vejo que está tudo presente aqui dentro. Aí, o Madhyanta-Vibhanga começa assim: "existe o criador universal dos fenômenos", ou das aparências; mas ele mesmo não se apresenta dividido. Por exemplo, ele não seria assim: ele é o criador, ele produz as aparências. Aí tem ele e tem as aparências. Ele não se apresenta dividido entre objeto e criador. Então aí vocês tomem, por exemplo, origem dependente de novo, originação dependente. Nós estamos vendo aspecto primordial, o aspecto luminoso da realidade, o aspecto luminoso da realidade não se apresenta dividido da própria aparência da realidade; mas a aparência da realidade apresenta diretamente essa aparência. Então, quando as aparências surgem, elas não são auto-sustentadas. Não são as aparências que se sustentam, como alguém que faz alguma coisa tem a sensação de que a sua obra é separada de si-mesma. Então, vamos supor, um pintor concluiu um quadro, ele tem a sensação de que o quadro terminou; aí o quadro tem existência própria. Então, o quadro nunca foi ele. Mas aqui não; por que não? Porque as aparências são dinâmicas. Sem esse fluxo luminoso, a aparência não se sustenta. Esse fluxo luminoso é o fluxo criador! Então, é como se a criação fosse dinâmica: se tu não tens esse sopro constante, a criação [se esvai]. Se por um instante o criador do universo parasse, o universo inteiro [se esvaziaria]. Não é assim, agora ele fez alguma coisa e agora aquilo flutua num espaço não-criado e anda por si próprio, não... o universo inteiro é sustentado desse modo. Ele tem essa sustentação. Então as nossas realidades pessoais também são assim, isso é a base da impermanência também. A gente cria de um jeito, daqui a pouco a gente cria de outro jeito. Então a gente vai encontrar esse aspecto: "existe o criador universal dos fenômenos, mas ele mesmo não se apresenta dividido como objeto e observador. O absoluto, entretanto, está contido nele e no absoluto ele se inclui". Então esse criador do universo é o aspecto absoluto. Ele é o Espaço Básico. Então isso é Maitréia. Isso é super maravilhoso. Aí ele diz: "Nem se afirma que todos os fenômenos sejam irreais, nem que sejam realidades completas; porque a existência e a não-existência e novamente existência, esse é o caminho do meio"; então é isso "é, não é e é", esse é o caminho do meio."A própria mente" - isso que é o aspecto mais profundo "aparece a nós como coisas diante de nós". Não é que hajam coisas, a mente aparece como coisas. "Assim como na aparência de seres vivos, como também de um eu e suas sensações, seus objetos não existem. Entretanto, sem eles também irreais são essas ideias". E assim segue o Madhyanta-Vibhanga. E nós vamos ver. São vinte e uma frases. Vinte e um versos curtos. Então a gente vai olhar isso nessa visão, nessa perspectiva que a gente está vendo da originação dependente. E depois eu vou entrar no texto mesmo da origem dependente. Esses textos dialogam entre si porque todos eles são fundadores do Mahayana. Eles se originam da mesma fonte, que é Maitréia. Então, o Salistamba-sutra não é um Sutra do Buda, ele é um Sutra de Maitréia e ele é falado dentro da assembléia do Buda, comentando uma afirmação do Buda que "quem vê a origem dependente vê o Buda e vê o Dharma", e vê a mente do Buda, portanto. Mas o sutra original do Buda é o Sutra da Haste de Arroz, que é um outro sutra ainda, que a gente não olhou ainda eu não consegui esse ainda. Mas eu fiz agora o pedido, consegui localizar e fiz o pedido. Então vai chegar esse sutra aí. Ele é um sutra grande, tem dois volumes. Mas esse é um comentário do outro a partir de Maitréia.