Conteúdo
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
Caso tenha contribuições para melhorar esta transcrição, entre em contato pelo email repositorio.transcricoes@gmail.com.
Tabela de conteúdos
- Os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente e o Refúgio
- 1. Introdução
- 2. Pensar, Contemplar e Repousar sobre os ensinamentos
- 2.1 - Evitar os defeitos do pote
- 2.2 - Primeira etapa: ouvir
- 2.3 - Segunda etapa: contemplar
- 2.4 - Terceira etapa: repousar ou silenciar a mente
- 3. Os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente
- 3.1 - Pensamento preliminar: Homenagem ao Lama, aquele que conhece
- 3.2 – Primeiro Pensamento: Vida humana preciosa
- Abordagem da consciência livre
- Abordagem da análise numérica dos seres
- Percebendo a preciosidade da nossa vida
- 3.3 – Segundo Pensamento: A impermanência
- 3.4 – Terceiro Pensamento: O Carma
- 3.5 – Quarto Pensamento: O Sofrimento
- 3.6 – Pensamento subseqüente: O Refúgio
- 4. Perguntas e Respostas:
Os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente e o Refúgio
por Lama Padma Samten
1. Introdução
De início, vou introduzir o primeiro método de meditação, que nos ensina como utilizar os ensinamentos verbais como método de meditação. Ou seja, como aproveitarmos a escuta dos ensinamentos como prática de meditação também. Chagdud Rinpoche, meu mestre, sempre enfatizava a importância de nós praticarmos a meditação sobre o que nós ouvimos. Progressivamente, fui desenvolvendo uma apreciação maior dessa instrução. No inicio, rejeitei um pouco esses ensinamentos porque imaginava que os ensinamentos da meditação silenciosa eram melhores.
Na verdade, dentro de uma gradação de ensinamentos, a meditação silenciosa é muito mais sofisticada do que os ensinamentos do pensar, contemplar, repousar. Mas não há ensinamento que não possamos olhar de uma forma mais e mais sofisticada. Esses ensinamentos sobre pensar, contemplar e repousar podem ser o início do processo. Mas, dependendo de como nós os enfocamos, eles também podem ser abordados de uma forma sofisticada.
Então, explicarei um pouco as diferentes formas de examinar esses ensinamentos. Antes mesmo de entrar no conteúdo dos ensinamentos sobre os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, vou começar falando sobre o pensar, o contemplar e o repousar.
2. Pensar, Contemplar e Repousar sobre os ensinamentos
2.1 - Evitar os defeitos do pote
O pensar-contemplar-repousar é um método muito útil para transformarmos efetivamente a nossa forma de examinar a realidade. Assim, quando ouvirmos os ensinamentos, devemos ter muito cuidado para não praticar nenhum dos defeitos, chamados de “defeitos do pote”. Por exemplo, nós deveríamos ser como um “pote límpido”, “vazio” e “pronto para receber seja o que for”. Se nós não estivermos receptíveis ao que vamos ouvir, vamos apenas desperdiçar o nosso tempo.
Hoje pela manhã vimos que, se quisermos ser céticos, precisaríamos primeiro ouvir, para só então criticar. Se não ouvimos é porque devemos estar apegados às nossas crenças, o que nos impede de sermos verdadeiros céticos. Estaremos operando com um nível de apego que nos impede de ouvir. Então, esse primeiro nível de receptividade significa o pote límpido, vazio e voltado para cima. A limpidez significa que não há contaminação. Ou seja, quando ouvimos, ouvimos sem apego, ouvimos sem perturbação interna. Simplesmente ouvimos e procuramos entender. A partir disso, nós poderíamos criticar esses ensinamentos. Então, esses ensinamentos de pensar-contemplar-repousar estão dentro desta categoria de operação como um “vaso límpido”.
Se tivermos o “vaso emborcado”, por exemplo, isso significa que não somos receptíveis, que não queremos nem pensar, nem olhar o que está sendo dito. Eventualmente, podemos ter o “vaso cheio”, que equivale ao fato de nós termos muitas idéias e não querermos mais nenhuma outra, não estando também receptíveis. Podemos, ainda, ter um “vaso contaminado”, ou seja, terminamos transformando o que ouvimos em alguma coisa menor, alguma coisa poluída. Ou ainda, podemos ter um “vaso rachado”, ou seja, as coisas são colocadas dentro, mas esquecemos. Então, há os ensinamentos de como não esquecer, de como manter o vaso puro, como ser receptível, etc.
Por que esses ensinamentos? Porque ao longo do tempo o próprio Buda foi percebendo que os alunos tinham dificuldades de um jeito ou de outro. Então, ele foi explicando como fazer para superar essas dificuldades.
Conversando com Alan Wallace, que se submeteu ao treinamento para monge, ele explicou como é que eles fazem para lembrar dos ensinamentos. É que os monges precisam decorar todas as categorias dos ensinamentos. Ele afirmou que quando eles ouvem, eles não apenas ouvem, mas treinam internamente muitas vezes em se lembrar daquilo que ouviram. Eles aprendem a “ouvir de fora” e depois a “ouvir de dentro” muitas vezes, até o ponto em que os ensinamentos brotem facilmente. Por exemplo, nós ouvimos uma vez e pensamos que será fácil lembrarmo-nos do que ouvimos. Mas essa nossa lembrança é muito frágil. Precisaríamos de novo e de novo ouvir ou ler.
Por isso, existem esses métodos de memorização que são desenvolvidos dentro dessas culturas orais. Por exemplo, eles colocam números e nomes em tudo, como os ensinamentos das Quatro Nobres Verdades, do Nobre Caminho de Oito Passos. São números e títulos que ajudam na lembrança dos conteúdos, pois, ao invés de terem que lembrar de todo o conjunto de palavras, eles lembram de títulos e números. Assim, mais facilmente eles recobrem a memória sobre aquele conjunto e fica tudo organizado dentro da mente. Se tivéssemos ouvido os ensinamentos de hoje de manhã sem o apoio dos títulos e dos números, vocês teriam mais dificuldade de lembrar depois.
Esse é, pois, o ensinamento de “como não esquecer”, de “como curar a rachadura do pote”. Ou seja, ouvimos os ensinamentos, mas perdemos! E temos que ouvir tudo de novo! Então, nós precisaríamos desenvolver esses métodos para podermos até mesmo ajudar as outras pessoas. Precisaríamos ser capazes de lembrar esses ensinamentos.
Uma vez que tenhamos desenvolvido a capacidade de ouvir os ensinamentos com o “pote límpido”, nós precisaríamos saber o que fazer com eles. Vocês podem imaginar que esses ensinamentos vêm de uma cultura de vinte e seis séculos, herdeira de uma cultura que já monta agora a cinqüenta séculos, uma cultural oral muito antiga da Índia. Eles desenvolveram a sofisticação de cada detalhe, pelas tantas vezes que aquilo foi feito. Assim, quando vamos olhar o que fazer com os ensinamentos, vamos entender que tudo aquilo que ouvimos, deveríamos primeiro acolher para somente depois criticar.
Esse processo de acolher e criticar está dentro da primeira categoria, que é chamada de “ouvir ou pensar”. Assim, é isso que eles fazem: primeiro, ouvir e pensar; depois, contemplar, e, por fim, repousar. É sempre assim. Então, aqui nós temos esses três itens: pensar, contemplar e repousar.
2.2 - Primeira etapa: ouvir
Assim, quando ouvimos os ensinamentos, deveríamos ser capazes de ouvir com atenção e entender aquilo que está sendo dito. Se fizermos isso, então podemos ser céticos, críticos, em relação àquilo que estivermos ouvindo. É por essa razão que, no budismo, se diz que se você não for crítico, você não desenvolve uma compreensão adequada dos ensinamentos. Assim, é necessário que sejamos críticos, que olhemos com distanciamento, sem a necessidade de “aceitar” o ensinamento. Primeiro, devemos apenas ouvir o ensinamento. Depois, o testamos à vontade.
No Budismo em geral, o próprio Buda diz: “Nós deveríamos testar os ensinamentos como quem compra ouro”. Ou seja, pelo calor derretemos o ouro e vemos se ele se separa dos outros elementos. Se ele não se separar, se não de dividir, isso significa que é ouro puro mesmo. O que significa o “calor” no caso dos ensinamentos? Significa a própria prática, a argüição, a experimentação que fazemos dos ensinamentos, a partir das nossas próprias experiências. Vemos se aquilo que ouvimos é razoável e se faz sentido.
Vemos que os ensinamentos são compostos de vários itens. Após ouvirmos, o ponto seguinte seria examinar um a um esses itens e ver se são verdadeiros. Será que nós estamos realmente entre Quatro Montanhas? Será que nós estamos verdadeiramente presos pela aflição de “duka”, pela insatisfatoriedade? Será que, efetivamente, tudo que nós tocamos está preso pela experiência cíclica? Então, precisaríamos olhar criticamente e tentar encontrar algo que não seja assim. Tentamos vasculhar isso com a mente. Dedicamos algum tempo para essa etapa. Depois que entendemos e tiramos nossas conclusões, então passamos para a etapa seguinte, que é o contemplar.
2.3 - Segunda etapa: contemplar
Nesse contemplar, nós olhamos o ensinamento e buscamos experiências positivas, experiências que confirmem esses ensinamentos a partir do que já vivenciamos e do que podemos olhar à nossa volta. Com isso, tentamos apontar nas várias direções e confirmar se tudo o que vemos está ou não na experiência cíclica, por exemplo. Vemos a cadeira onde estamos sentados, esse livro, esse papel, o prédio onde estamos; vamos olhando todas as coisas assim e vamos vendo que também estão na experiência cíclica. Constatamos que tudo o que apontarmos, toda a experiência que identificamos, é uma experiência cíclica: tem início, meio e fim.
Com essa contemplação, nós desenvolvemos a capacidade de usar o ensinamento na vida cotidiana, diretamente. Pois a contemplação é justamente isso: olharmos aquilo que nos cerca e vermos se isso é verdadeiro. Nós pegamos a informação que recebemos - que era apenas teórica - e começamos a transformar em uma informação viva. Nós geramos como que um método interno, pessoal, de olhar para as coisas e ver aquilo funcionando. Depois, vocês vão entender que cansamos um pouco, e aspiramos entrar na terceira etapa, que é quando silenciamos a mente e repousamos.
2.4 - Terceira etapa: repousar ou silenciar a mente
Essa é uma etapa muito interessante e também muito importante, porque nós nos percebemos “vivos” sem precisarmos ficar pensando ou analisando seja lá o que for. Nos vemos vivos, inteiros, presentes e em silêncio. Isso nos introduz numa experiência que depois vai culminar com a meditação da Oitava Etapa, que é o que chamamos de “meditação na presença”. Nós ocupamos a mente e depois silenciamos a mente. Ocupamos e silenciamos. Com isso, ganhamos essa habilidade de ocupar a mente de forma direcionada e depois silenciá-la. Ocupá-la e silenciá-la.
Essa inversão de expectativa é muito importante, bem como essa capacidade nossa de dirigir a mente: “Agora você ouve”, e a mente fica disciplinadamente ouvindo e lembrando; “Agora você analisa, você pensa” e a mente obedece; “Agora você encontra exemplos e contempla”, e “Agora você silencia”. Então, lentamente, a mente começa a se tornar dócil. Quando não temos ainda essa habilidade, é difícil para nós ouvir alguém falando algo, porque a nossa mente fica saltitando. Escutamos um pouco “dentro” e um pouco “fora”. Se estamos muito ansiosos, ouvimos mais o nosso diálogo interno, que estou chamando de “dentro”, do que o que nos está sendo dito de “fora”.
Ou seja, vamos perdendo os ensinamentos que estão diante de nós porque a nossa audição fica deficiente. Eventualmente, nós apenas guardamos aquilo que ouvimos, mas não somos capazes de criticar, não somos capazes de avaliar. Então, precisaríamos desenvolver essa capacidade de avaliar.
Se não tivermos a mente disciplinada, não conseguiremos ouvir agora e avaliar depois. E muito menos seremos capazes de usar o ensinamento para contemplá-lo junto com a nossa experiência. Também vai ser difícil silenciar a mente, pois vamos ter perturbações em todas essas áreas. Chagdud Rinpoche dizia: “A meditação é tornar a mente dócil”. Para mim, essa é a melhor definição de meditação. Tornar a mente dócil é, então, a nossa capacidade de direcionar a mente para uma função ou outra, e a mente obedecer. E isso é uma habilidade da meditação. Meditação não é simplesmente ficar em silêncio.
Quando fazemos essas atividades, nós nos preparamos lentamente para ajudar as outras pessoas também. Por exemplo, quando eu converso com vocês, uso naturalmente esse processo. Por que? Porque, primeiro, eu lembro os ensinamentos. Depois, eu falo sobre os ensinamentos, e vocês podem observar que eu fico dando exemplos. Durante essa fase, fico prestando bem atenção nos olhos de vocês. Não passo para outro item enquanto não percebo que eles brilham, que me dão algum indício de compreensão. Enquanto isso não acontecer, fico dando exemplos e mais exemplos. Isso é um método. E mais adiante vocês vão conseguir fazer isso também.
Não seria nada interessante eu apresentar os ensinamentos de uma outra forma, como às vezes os professores fazem: vão enchendo o quadro sem olhar para a cara dos alunos, sem ver se eles estão entendendo. Essa não é uma boa forma de ensinar.
E podemos sempre praticar desse modo, nos reunimos para pensar, contemplar e também repousar. Vocês vão perceber que, às vezes, no meio da palestra, eu paro. Esse parar é também um momento, mesmo breve, em que podemos analisar e entender melhor o que estamos estudando. Esse é um método natural de tratar dos ensinamentos tanto quando recebemos os ensinamentos ou quando os oferecemos aos outros. Normalmente, quando eu paro, mentalmente observo qual a seqüência: “Vi isso, aquilo e o que vem depois?” Vejam que eu não tenho nenhum papel junto comigo, pois não é preciso. Está tudo arrumado dentro da minha memória. Eu passo às vezes muitas horas falando direto, sem qualquer anotação de apoio, porque está tudo dentro de mim, dividido em cada quadradinho, e cada quadradinho foi pensado, contemplado, repousado. Já encontrei muitos exemplos na minha vida e na vida dos outros.
Com o tempo, mesmo sem o esforço de ter que memorizar, será natural que isso vá surgindo. De tanto em tanto, vem mais um pedaço agregado, outras categorias dos ensinamentos que se conectarão de forma surpreendente, como se fosse uma porta tipo “USB”, deixando aquela parte do ensinamento ativo. Começamos a ver as conexões de uns ensinamentos com os outros e vamos alargando e aprofundando a compreensão.
Então, sugiro que vocês comecem com o pensar, contemplar e repousar. Ou seja, pratiquem isso. Temos uma lista de temas expostos nos quadros resumos, sobre as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho de Oito Passos, que são temas excelentes para fazer essa prática de contemplação.
Esse é um processo pelo qual pegamos cada item dos ensinamentos e transformamos num item vivo. Antes eram itens amorfos, mas eles têm que ganhar vida a partir de nós mesmos. E essa vivificação dos ensinamentos só é possível quando formos capazes de praticar a contemplação, a buscar encontrá-los nas nossas próprias experiências. Mais do que isso, passamos a descobrir um meio de tornar as coisas vivas. E esse meio de tornar as coisas vivas é muito útil porque transforma a nossa prática em algo vivo, real, deixando de ser algo burocrático.
Eu aconselho vocês a tomarem esse método, que é olhar todas as categorias dos ensinamentos budistas, sempre item por item, desse modo: pensando, contemplando e repousando. Dito isto, nós podemos entrar nos ensinamentos sobre os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente.
3. Os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente
O primeiro desses pensamentos é um ensinamento preliminar aos chamados Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, e depois esses quatro são sucedidos por um outro ensinamento. Então, na verdade, os Quatro Pensamentos formam um grupo de seis. Ou seja, tem mais um prévio e um posterior. E essa é uma maneira que usamos para lembrar: os quatro pensamentos são seis!
3.1 - Pensamento preliminar: Homenagem ao Lama, aquele que conhece
Para ajudar na lembrança desse primeiro pensamento, nós começamos com um versinho para cada um dos ensinamentos. O versinho do ensinamento preliminar é assim: “Homenagem ao Lama, aquele que conhece”. Se lembrarmos do versinho, isso funciona! Depois, vem um comentário. Como é que surge o comentário? Ele surge porque nós ouvimos os ensinamentos, pensamos, contemplamos, conversamos com outras pessoas sobre isso, lemos em outros lugares. Assim, quando ouvimos o versinho, sabemos tudo o que está envolvido por trás dessa expressão.
Mas o que significa, então, esse pensamento preliminar “homenagem ao Lama, aquele que conhece”? Sempre gosto de explicar esse ponto assim: nós não estamos sozinhos, ou seja, é importante sabermos que há uma “conspiração do bem”. E essa não é uma conspiração do bem surgida nos nossos tempos. Ela é muito antiga, pois desde o início das complicações surgiram seres que estão voltados para gerar todos esses benefícios. Ou seja, os Budas existem. E esses ensinamentos estão presentes e se manifestam dentro de uma linhagem.
Assim, geração após geração, vocês vão encontrar pessoas que ouviram dos seus mestres mais velhos, que ouviram de outros mestres, que ouviram de outros mais antigos, e aquilo vem vindo. Mas, muito mais do que apenas a memória do que é falado, a cada geração, a cada mestre, todos os ensinamentos ganham vida de novo, através do pensar, do contemplar e do repousar. Com o tempo, os mestres manifestam, dentro deles mesmos, a realização dos primeiros mestres ou dos primeiros Budas, que falaram sobre aquilo.
Como isso acontece? Acontece porque a nossa natureza é idêntica. Lentamente, esses ensinamentos passam de “simples memória” para visão. Eles passam da visão de um para a memória do outro, e da memória desse eles se tornam vivos. Ou seja, eles são vistos de novo como realidade. Quando isso vai acontecendo, as próprias pessoas ao verem isso operando dentro de si, têm a sensação de que elas vão morrendo para o que elas eram, e vão nascendo como instrumentos dessa sabedoria que não é delas. Assim, é para lembrar dessa seqüência toda de ensinamentos que chegam até nós, que dizemos: “homenagem ao Lama, aquele que conhece”. Isso significa que alguém traz para nós isso e é essa a função dos Lamas. Eles chegam numa determinada região onde não há ensinamentos e os oferecem.
Quando o Lama surge, surge com ele o Darma. O Darma é o ensinamento. E num certo sentido, surge o Buda, porque “quem” falou o Darma foi o Buda. Então, o sentido do Buda fica claro. Nós passamos a entender o que o Buda falou, o que ele foi e o que ele fez. Com isso nós vamos entender que, dentro do Lama, tem uma “energia natural”, uma “vontade natural” de ajudar os seres. Mas essa vontade natural não é dele. Ela é “um potencial dentro de cada pessoa”. Então, nós sofisticamos a nossa noção de Lama, saindo da noção de uma pessoa para a noção de uma “energia” capaz de trazer benefícios.
Veremos que essa energia de trazer benefícios não é algo que se manifesta num determinado tipo de pessoa, mas que está presente dentro de cada um de nós. O diferencial é que algumas pessoas, a partir dessa compreensão, irão dedicar suas vidas dessa maneira, como eu por exemplo, que sou chamado de Lama. Mas não é o fato de eu ter sido ordenado, de ter recebido esse título que faz de mim um verdadeiro Lama. É a operação dessa energia que indica a operação do Lama. Ou seja, se nós confundirmos o aspecto pessoal, nós não vemos propriamente o verdadeiro Lama.
O próprio Buda dizia: “Se você olhar para o meu corpo e disser que vê um Buda, isso não é verdade, isso é um engano”. O Buda não pode ser visto no fenômeno de sua aparência. Na verdade, o Buda significa a lucidez e a compaixão em ajudar os seres. Mas isso não pode ser colhido através de uma fotografia. Isso é algo sutil. Pensando assim, nos damos conta de que há uma “presença” dentro de cada um de nós, que é compassiva e que está disponível para ajudar os seres. Então, isso tudo representa o Lama.
3.2 – Primeiro Pensamento: Vida humana preciosa
Assim, nós passamos para o primeiro dos Quatro Pensamentos que Transformam a Mente. Ele tem um título: Vida Humana Preciosa.
Abordagem da consciência livre
Começamos entendendo que todos nós temos vidas humanas. Isso não é uma coisa simples, esse ensinamento já é complexo. Explico: a consciência que estamos manifestando, não é apenas uma consciência humana; ela é uma consciência vasta, livre, e pode se manifestar sob diferentes condições. Esse “princípio vivo” que somos se manifesta em uma diversidade enorme de seres: entre animais e vegetais, por exemplo.
Esse princípio de ação está presente em todo organismo vivo. Quando esse princípio de ação se manifesta através de um corpo humano, ele ganha uma característica humana. Por exemplo: mesmo quando esse princípio se manifesta através de um corpo humano, e esse ser humano dirige um fusca, ele passa a ser um princípio limitado pelo automóvel. Aquela mesma pessoa chega em seu local de trabalho, encosta o fusca e pega um caminhão de entrega dentro de Recife. Agora o automóvel é um super-caminhão, poderoso, pesado. E esse ser humano já se manifesta de uma forma diferente de como ele se manifestava quando dirigia o fusca. Então, se ele chegar ao seu local de trabalho de moto ou de bicicleta, ele manifestará uma outra característica. Quando se está no trânsito, de carro, de moto ou de bicicleta, é uma outra consciência que está operando. O automatismo é diferente. A forma de perceber os diferentes veículos é também diferente no trânsito. A forma de perceber os faróis, os semáforos, as sinaleiras, é diferente. A forma de perceber os pedestres, a velocidade, tudo, é diferente. Os automatismos são outros.
Então, nós temos uma consciência que se filtra e se adapta aos diferentes veículos. Por exemplo, mesmo que tenhamos a habilidade de dirigir um automóvel, quando pegamos um caminhão grande é completamente diferente. Vamos precisar dessa nova habilidade. Assim, percebemos que temos uma “consciência livre” que é capaz de se adaptar a diferentes veículos. A cada veículo que essa consciência é submetida, ela vai precisar gerar outro tipo de automatismo, outras formas da percepção da realidade.
Assim, cada veículo gera uma consciência própria. Ou seja, temos uma consciência humana porque temos um corpo humano, mas nós não “somos” uma consciência humana. Somos uma consciência livre, que é capaz de se adaptar a diferentes corpos. Quando o nosso corpo humano entra em uma deficiência, por exemplo, quando por acidente alguém fica paraplégico ou tetraplégico, é espantoso que a pessoa não morra de tristeza. Nós vamos ver pessoas tetraplégicas ou paraplégicas que estão ativas. Ou seja, surge uma nova consciência dentro dessa limitação, e ela segue operando.
Quando eu era muito jovem lembro que achava muito estranho o fato de que os velhos pudessem ainda ter alguma vontade de viver. Eu olhava para eles e não conseguia entender a felicidade deles. Achava que apenas o corpo jovem é que valia a pena. Agora, com meus 56 anos, já acho que vale a pena! Fiz uma adaptação, pois já não vejo uma grande diferença, nem um grande problema! Então, a vida segue, a nossa consciência vai se adaptando à forma do corpo. Confesso para vocês que para mim foi mais difícil e mais abrupto mudar de professor universitário para Lama. Quando eu chegava junto das pessoas como professor, eu fazia de um certo jeito. E como um Lama, não podia ser igual. Ou seja, passei a ter algumas dificuldades. Por exemplo, andar nos shoppings, nos aeroportos, com essa roupa de Lama é uma coisa muito diferente do que andar com roupas convencionais. Então, isso tudo requer uma adaptação na consciência.
Estou dando esses exemplos apenas para que vocês lembrem esse ponto. Ou seja, enquanto estou dando esses exemplos, estou contemplando, estou ajudando vocês a entender isso. Mas, enquanto estou dando os exemplos, tenho que lembrar do que estamos fazendo, senão, nos dispersamos. O que nós estamos fazendo? O que estamos contemplando? Estamos contemplando o Primeiro Pensamento que Transforma a Mente. E, então, o que é que eu estava falando sobre esse aspecto de consciência? Vimos que a vida humana é preciosa e que precisamos introduzir essa noção de consciência livre. Então, qual é a tese que eu estou trazendo por trás dessa reflexão de que a consciência se adapta ao veículo? Por que eu estou dizendo isso? É apenas para facilitar que entendamos que nós podemos embarcar em um outro veículo, um veículo peludo, com rabo, de unhas (risos), um veículo alado, um veículo réptil....
Para alguns, essa tese é considerada inaceitável. Por exemplo, na visão espírita, o ser humano está sempre ascendendo, eles não vêem a possibilidade de uma vida posterior num veículo inferior. Mas, na visão budista, nós vamos encontrar essa situação. Ou seja, nós temos uma natureza livre que se torna uma mente ou consciência quando ela começa a operar sob as condições do veículo. E isso nós podemos constatar na nossa própria experiência, quando trocamos de veículo de transporte ou quando o nosso corpo humano altera a sua capacidade de mobilidade ou de operação. E vemos que ainda assim seguimos vivendo... Como isso é possível? É possível porque a consciência se adapta, ela opera de uma outra forma, e aquilo segue.
Assim, quando olhamos desse modo, meu objetivo é introduzir a preciosidade da vida humana. Ou seja, a vida humana não é tão simples e fácil de nós alcançarmos.
Volta e meia vemos notícias de algum acontecimento extraordinário relacionado aos animais. Temos notícias de uma porca alimentando, através da amamentação, filhotes de tigre. Isso é extraordinário! Na história romana, nos contam que uma loba alimentou Rômulo e o Remo. Falam que é mito, mas talvez não seja! Nós vamos ver relatos de cachorros vira-latas protegendo crianças de ataques de animais maiores, como os pitbulls. Os vira-latas não teriam nenhuma razão para isso, pois não se trata de auto-defesa. Mas eles tiveram a capacidade de defender uma criança.
Outro dia vi um relato que achei emocionante. Uns nadadores estavam em alto mar e surgiu um conjunto de tubarões próximo a eles. Eles não teriam nenhuma chance. Mas eis que apareceu um grupo de golfinhos que os cercou, impedindo que os tubarões se aproximassem. Os golfinhos levaram os nadadores para um local seguro, onde eles conseguiram sair do mar e se salvar. Os golfinhos conseguiram entender a situação dos nadadores e isso significa compaixão. Outro exemplo desse tipo de compaixão vi hoje na internet. Na Etiópia, uma menina de doze anos estava ameaçada e agredida por vários homens adultos, e ela chorava muito. Três leões se aproximaram e espantaram os adultos e protegeram a criança até que apareceram familiares ou pessoas confiáveis. Na presença dessas pessoas os leões saíram, voltaram para a floresta e não causaram nenhum mal a ninguém. Na verdade, eles protegeram a criança dos maus tratos que aqueles adultos estavam lhe causando.
Então, é possível que, com o tempo, nós vamos encontrando mais e mais relatos como esses. Claro que, na visão budista, vamos dizer que esses animais são seres que estão operando com uma consciência muito mais ampla do que o corpo deles permite. Do mesmo modo que nós, seres humanos, temos uma consciência que pode ultrapassar a nossa condição e entender os outros seres, vemos que os outros seres também são capazes de nos entender e desenvolver compaixão.
A compaixão é um elemento muito importante, porque ela representa, de um modo prático, essa liberdade que temos de ir além da nossa consciência humana, além da nossa consciência de individualidade e de corpo. Então, estou falando sobre isso para trazer essa noção de liberdade, ou seja, nós temos uma essência, e essa essência, de acordo com o veículo, ela se adapta, mas segue com liberdade.
Nesse momento, nós temos um corpo humano. Mas temos também outros exemplos da nossa proximidade com os animais. Existem seres humanos que desenvolveram ou desenvolvem “visões românticas” em relação aos animais. Ou seja, desenvolveram atividades sexuais com os esses seres. Uma comprovação desse relacionamento é o fato de que várias doenças, que são vírus residentes em animais, passaram a ser patológicos para os seres humanos. Um exemplo é a sífilis, que dizem ter sido adquirida dos porcos. Conta-se que nas viagens dos navios veleiros, os homens tinham esse pensamento romântico em relação aos animais que eles traziam nos navios para a sua própria alimentação. Também se diz que na rota da AIDS estão os macacos, porque eles não desenvolvem a doença, mas têm o vírus. E assim tem uma listagem de vírus adquiridos dos animais pelo contato sexual.
Então, se as pessoas desenvolvem esse “olho apaixonado” pelos animais, isso também revela a liberdade da nossa consciência. Por isso, quando nós morrermos, é bom que visualizemos pais humanos, senão podemos ser conduzidos a um renascimento em reino não-humano! Os mestres Tibetanos analisam, etapa por etapa, como desenvolvemos a nossa proximidade com os seres humanos. Eles vêem que todo ser humano que nasce, visualiza pai e mãe humanos. Ele aspira estar entre o pai e a mãe humanos. Assim, podemos desenvolver essa conexão. Mas, na visão budista, a forma humana não é a única forma possível de renascimento. Podemos nascer como outros animais. E isso é bem forte na cultura chinesa, que acreditam que os parentes mortos podem retornar à família em forma de animais de estimação, tentando retornar de algum jeito àquela casa.
Abordagem da análise numérica dos seres
No entanto, mesmo que não entremos neste tipo de abordagem, nós poderíamos fazer uma análise numérica da situação humana. Veremos que o número de outros seres não-humanos - os insetos, por exemplo - é muito, muito maior, do que o número de seres humanos. De um modo geral, os animais são muito mais numerosos do que os seres humanos. Então se diz que não é fácil nós desenvolvermos a proximidade com o corpo humano, por uma dificuldade numérica. Vejam que daqui onde estou até onde vocês estão, quantas formigas poderiam ocupar esse espaço? Pensamos que estamos todos perto uns dos outros, mas, para os insetos, essa distância é enorme, pois o corpo deles é muito menor. Numa caixa de abelhas tem cinqüenta mil abelhas. Para nós, humanos, essa caixa é muito pequena! Mal caberia uma criança nela!
Por essa razão se diz que o nascimento humano é muito raro. Muito raro porque, quando comparamos numericamente esse nascimento humano com o dos outros animais, ele é muito pouco provável. Os tibetanos ilustram esse tão raro ou tão improvável nascimento, com a coincidência fortuita de uma tartaruga cega, que passa cem anos no fundo do oceano e de repente vem à tona para respirar, encontrar o centro de uma bóia perdida no mar revolto! Isso é muito raro! A cegueira da tartaruga representa que, quando vamos renascer, nós não temos a visão para onde estamos indo. Vamos renascer aleatoriamente. E o mar revolto representa o “mar cármico”, com a vastidão de ventres que esperam por nós (a superfície do mar). Um ventre humano é “uma bóia”. Muito raro esse encontro, tendo em vista o número de ventres que nos esperam! É uma situação grave! É melhor morrer com uma cordinha enrolada no dedo e grudada na futura mãe para ver se aquilo dá certo, não é? Claro que esse exemplo é uma metáfora que tenta ilustrar a extraordinariedade do nascimento humano, pois os tibetanos sequer conhecem o mar, muito menos os hábitos de uma tartaruga marinha, que, com certeza, não passa cem anos debaixo d’água, no fundo do oceano!
Assim, quando vocês tiverem filhos, vocês pensem: “Eis um ser que encontrou uma bóia! Isso é muito raro! Vemos, então, que a possibilidade de oferecer o cuidado para uma criança é muito extraordinário! Mas, ainda assim, tem muitas crianças sobrando, não é verdade? Não é fácil acolher todos esses seres que chegam.
Com isso podemos comemorar: nós acertamos a bóia e fomos acolhidos! Poderíamos ter acertado a bóia, mas a nossa mãe poderia ter pensado que não estava na hora, pois precisaria primeiro concluir a pós-graduação. Ela poderia ter apertado o botão “delete” e teríamos voltado ao grande mar, ao fundo do oceano, já com um pouco de raiva da mãe. Ainda assim, poderíamos ter nascido, e a nossa mãe poderia ter olhado e dito: “É a cara do pai, esse eu não crio.” Ou seja, a mãe olhou para nós e não achou isso muito bom. Então, o simples fato de nós termos sido acolhidos, isso também é muito importante e extraordinário!
Em seguida, vamos precisar ser acolhidos pela família. Podemos ter sido acolhidos pela mãe, mas termos tido algum problema de aceitação pelo resto da família, por algum tipo de preconceito. Ou seja, poderíamos não ser bem vistos pela família. Mas nós tivemos a sorte de sermos acolhidos pela família! Ainda poderia ter ocorrido que a nossa família não tivesse um lugar na sociedade. Poderia ser uma família marginalizada. Então, nós estaríamos no mesmo barco que os nossos pais, que a nossa família. Ou seja, não teríamos um nascimento social, não teríamos um lugar no mundo esperando para ocuparmos. Mas nós tivemos a felicidade de encontrar um lugar na sociedade, tivemos uma inserção, e isso é maravilhoso! Eventualmente, nós fomos ajudados, alguém nos empurrou daqui, ou dali, abriu um espaçozinho, nos colocou em algum lugar e ai nós seguimos. Isso é muito raro! Poderíamos ter estudado ou não ter estudado, mas nós estudamos e nos tornamos pacíficos. Não cometemos nenhuma grande não-virtude que tenha sido – pelo menos até agora - notada ainda. Não cometemos nada terrível. Então, nos encontramos de posse de qualidades muito especiais.
Percebam que todo esse trajeto é muito difícil de ser alcançado por grande parte dos seres humanos! Nascer, tomar mamadeira, muitas fraldas; crescer, acordar, tomar banho, ir para o colégio, aprender a segurar o lápis, merenda, tarefas, aprender a ler.... ufa! Isso é muito demorado! Então, é bom que lembremos disso. Se formos reprovados no fim da vida, a melhor coisa que pode acontecer conosco é a repetência. Começará tudo de novo, sabe lá que mãe virá e a vida irá seguir. E nós teremos que transpor muitas diferentes barreiras, até chegar ao ponto em que estamos hoje - se tivermos um pouco de sorte! Portanto, é bom que lembremos dessa trabalheira toda, para tratar de aproveitar a nossa vida agora!
Então, dizemos que temos uma vida humana. Mas essa vida, essa circunstância, poderia ser diferente. Por exemplo, poderíamos ter nascido entre os seres dos infernos e estaríamos completamente dominados por sentimentos negativos de agressão e de medo, com corpos específicos de seres desse reino. Mas, felizmente, isso não aconteceu. Poderíamos ter renascido no reino dos seres famintos, ter corpos específicos dos seres famintos, completamente dominados pela sensação de carência. Felizmente, não passamos por isso também. Nós poderíamos ter renascido em algum tipo de corpo animal, pela vastidão de seres que oferecem ventres. Mas, felizmente, também não passamos por isso. Poderíamos ter nascido entre os seres poderosos, que são os semi-deuses, e estaríamos dominados por sentimentos de competição e não teríamos a liberdade da vida humana.
Por exemplo, se vocês estivessem dominados por competição, por disputas, vocês não estariam com essa cara tranqüila. Ou seja, vocês não estariam aqui ouvindo, pois teriam coisas urgentes nesse momento para serem feitas, batalhas que vão explodir hoje ou amanhã. Esses são seres poderosos, porém excessivamente ocupados; poderosos, porém sem disponibilidade de crescer. Ou nós poderíamos ter nascido no reino dos deuses, ou seja, estaríamos intoxicados pela felicidade das circunstâncias. Tudo seria muito fácil, muito bonito, muito favorável, mas estaríamos dominados por essa condição. E dominados pela condição favorável, nós pensaríamos que estaria tudo resolvido, que já teríamos atingido tudo que seria possível atingir. Então, teríamos perdido a nossa vida. Mas, felizmente, nós estamos no reino ou na condição humana.
Percebendo a preciosidade da nossa vida
A condição humana é considerada muito favorável porque nunca ficamos numa situação boa por muito tempo. Eu gostaria de avisar isso a vocês... Ficamos um tempo numa situação boa, aí temos um percalço qualquer que acaba com a festa. Não sei se vocês já observaram isso! No entanto, os percalços também nunca são tão graves, apesar de pensarmos que “agora é o fim” ou “não tem mais jeito”. Mas, repentinamente, acontece alguma coisa boa, aí pensamos: “Agora estou por cima!”. E vamos indo... E essa é a condição humana: esses aspectos cíclicos, sucessivos, de aflições e melhorias.
Mas poderíamos estar numa condição humana problemática. Por exemplo, poderíamos ter alguma deficiência, auditiva, visual ou algum tipo de impossibilidade que obstaculizasse nosso encontro com os ensinamentos espirituais, como faculdades mentais prejudicadas. Mas, felizmente, ao que posso ver, estamos todos inteiros!
Também poderíamos ter nascido numa região onde as emoções perturbadoras são dominantes e não conseguirmos praticar virtude. Um exemplo disso é nascer numa grande cidade em conflito, como o Iraque, ou nascer nas regiões dominadas pelo tráfico de drogas das grandes cidades, ou em alguns países que têm vastas regiões também dominadas por tráfico de drogas e guerras incessantes. Nesses ambientes nós iríamos ser convidados a trazer à tona nossas negatividades e não nossas virtudes. Seríamos convidados a construir as nossas vidas a partir das possibilidades do local. Nessas condições, mesmo que não tivéssemos a motivação de produzir sofrimento, de produzir dificuldades, seria provavelmente isso que faríamos. Mas, felizmente, estamos livres dessas condições, pois nascemos em regiões pacíficas.
Por fim, poderíamos ter nascido em regiões pacíficas, mas onde não haveria os ensinamentos disponíveis. Mas, felizmente, nascemos em região pacífica onde há os ensinamentos. Então, isso é uma boa coisa! Devemos entender que isso é muito raro! Se entendermos que a situação na qual nos encontramos é muito rara, desenvolvemos a compreensão de que o Buda e os grandes mestres de outras tradições nos trouxeram uma benção (pois eles poderiam não ter vindo até os seres humanos, mais vieram; poderiam não ter dado os ensinamentos, mas deram). Os ensinamentos poderiam ter desaparecido no tempo, mas não desapareceram. Os ensinamentos poderiam existir em lugares afastados de nós, mas não, eles existem onde nós estamos. Então, isso é uma grande vantagem! Somos abençoados pelo fato de que o Buda e os grandes mestres de outras tradições vieram.
Agora, tudo isso poderia estar presente, mas ainda assim poderíamos estar sob o poder de outros seres. Ou seja, poderíamos ter um marido ou uma esposa poderosa, ter um filho poderoso, ter uma circunstância de vida ou um chefe perigoso, circunstâncias essas que nos impossibilitariam de aproveitar os ensinamentos. Não conseguiríamos ouvir os ensinamentos, ou fazer as práticas, ou ir adiante com elas.
Assim, olhamos todas essas dificuldades e vemos que temos muitas vantagens. Temos essa capacidade toda, todos esses aspectos favoráveis. Então, dizemos: “nós temos as liberdades e os dotes de um nascimento humano precioso”. Ou seja, temos uma vida humana e poderemos “nascer” para uma vida humana preciosa. Nascer para uma vida humana preciosa significa nós dedicarmos a nossa vida ao crescimento e à lucidez e não tomarmos todas essas vantagens simplesmente para obtermos resultados dentro da experiência cíclica. Ou seja, coisas que hoje obtemos, amanhã perdemos. Aí obtemos de novo, e perdemos. Isso seria desperdiçar a vida! Então, deveríamos entender que a nossa vida deveria tomar um rumo claro em direção à lucidez, caso contrário, estaremos perdendo tempo. Desse modo, todo esse esforço cósmico, que nos possibilitou estar com saúde, com liberdade, com capacidade de ir adiante, tudo isso se esvai, se não tivermos esse foco de lucidez!
Então, quando entendemos isso e decidimos seguir o caminho da lucidez, nós dizemos que temos um nascimento humano precioso. Nesse momento, nasce a vida humana preciosa, com as liberdades, dotes e facilidades todas.
Assim, quando nos damos conta disso, pensamos: “Bom, daqui para a iluminação é um passo!” Mas, sem querer desencorajar vocês, isso não é nada ainda! Nós estamos ainda um pouco longe, que é o que veremos no segundo dos Quatro Pensamentos que Transformam a mente.
3.3 – Segundo Pensamento: A impermanência
O Segundo Pensamento que Transforma a Mente vai tratar da impermanência. Os mestres, como Patrul Rinpoche, dizem: “A impermanência é um tema sobre o qual deveríamos meditar constantemente”. Chagdud Rinpoche sempre dizia que “nós deveríamos viver na consciência da morte”. Isso pode parecer meio tétrico ou agorento, pois comumente pensamos: “Como é que vamos pensar o tempo todo na morte se ainda estamos vivos? Durante a vida devemos pensar na vida! Deixemos para pensar na morte depois que morrermos!” Mas o fato é que a nossa vida ganha um outro sabor quando nós, uma vez que seja, tivermos uma experiência de proximidade com a morte. Nós entendemos a fragilidade da vida, a beleza e profundidade dessa experiência e a importância disso.
Tem um grande mestre que dizia: “Um minuto dentro de um corpo lúcido equivale a um campo de ouro!” A experiência comum de nós olharmos o mundo com os sentidos físicos vivos, abertos pela lucidez, é uma experiência extraordinária. Para nós, tudo o que experimentamos é uma experiência banal. Mas, na verdade, é uma experiência extraordinária. Com a nossa visão estreita, não nos damos conta disso.
Quando os mestres percebem o que significa estar vivo e consciente de todas as coisas, eles se dão conta de que um minuto nessa experiência tem um valor incrível. Para os demais seres, o mundo ao redor é algo banal. Mas para os mestres, a experiência comum do mundo não é banal. É uma apresentação maravilhosa, luminosa, extraordinária, da natureza última. Como se dois sois brilhassem simultaneamente! Essa é a forma como eles a descrevem. Isso se dá porque todos os objetos passam a brilhar com o significado da natureza última. Eles não têm mais brilho decorrente de significado banal. Então, os que têm essa experiência, andam como se estivessem num campo de ouro e jóias, encontradas em todas as direções.
No entanto, essa experiência, apesar de extraordinária, é transitória. Os mestres justamente enfatizam isso. Você tem algo extraordinário, mas esse algo extraordinário passa. Assim, é muito importante nós termos essa consciência de que não temos domínio sobre o momento da nossa morte. A qualquer momento, tudo aquilo a que temos apego ou que nos traz segurança, pode simplesmente desabar. Não temos garantia nenhuma.
Chagdud Rinpoche conta que um dos seus mestres era muito austero, muito severo, mas era um dos grandes lamas que os tibetanos anualmente visitavam, após uma longa peregrinação. Essas viagens sempre foram muito longas e difíceis, em face da geografia do Tibete e da ausência de meios de transporte modernos. Eles tinham de viajar à cavalo, em longas distâncias. Portanto, as viagens eram muito lentas e eles eram obrigados a levar comida, pois como a população sempre foi pequena, eles não dispunham de estrutura nessas viagens, tais como hotéis, estradas, ou qualquer tipo de apoio. Eles levam meses para chegar. Logo, eles têm que levar comida viva, que são os animais. Os animais vão pastando e eles vão comendo os animais; e os animais vão nascendo e eles vão seguindo, em caravana. Como eles viajam em grupo, com as famílias inteiras e suas tendas, eles se tornam uma presa fácil para assaltos, pois tem grupos que prendem, matam e roubam os animais e as propriedades. Vocês podem imaginar isso, vejam que complicação!
Então, aos poucos esses grupos conseguem chegar até o mestre do Chagdud, o Tulku Arik. Quando esse mestre os recebia, ele dizia ao grupo: “Meditem sobre a impermanência. A impermanência é um fato. Vocês estão envelhecendo. Tratem de meditar sobre isso e de utilizar bem o tempo da vida de vocês”. Aí as pessoas oferecem katar, fazem oferenda de dinheiro, ouro, jóias, pedras, animais, levantam-se juntos e a equipe toda da caravana começa a voltar.
Anos depois, eles fazem novamente a mesma viagem. Quando eles chegam lá, Tulku Arik diz a mesma coisa: “Vocês estão ainda mais velhos. Vocês meditem sobre a impermanência.” Então, eles juntam todas as coisas, fazem as oferendas e retornam. Lá pela quarta ou quinta vez Chagdud Rinpoche conta que um deles perguntou: “O senhor não teria outro ensinamento para dar?” Eles já tinham ouvido várias vezes sobre a impermanência! E depois do trabalho enorme que era empreender cada uma das viagens, terem que ouvir de novo o mesmo ensinamento!? Então, Chagdud conta que o Tulku Arik ficou furioso (os grandes mestres são assim, ficam furiosos!) e respondeu-lhes: “Vocês estão mais velhos e teimosos! Meditem sobre a impermanência, porque o fim está próximo!”
Chagdud contou essa história uma vez numa palestra, para convidar as pessoas para meditar sobre a impermanência. Um dos primeiros livros que ele publicou no Brasil foi justamente sobre esse tema, “Vida e Morte no Budismo Tibetano”, que ensina como viver sempre lembrando da impermanência, que é o fato de que todos nós vamos, num certo momento, morrer. Mas esse não é um objetivo de natureza mórbida, é somente para entendermos que é preciso aproveitar o tempo.
Isso até me lembra uma história, que uma vez li numa revista americana, de uma pessoa que narrava a esperteza de uma enfermeira. O narrador dessa história fora companheiro de quarto, num hospital, de um milionário americano que estava internado e desenganado. Ou seja, o milionário achava que ia morrer, mas ninguém descobria a causa da sua doença. Era como que uma doença “hipocondríaca”. Ele tinha medo da morte e assim ele sempre estava com dores, com sintomas variados, sempre achando que ia morrer. Ele tinha uma esposa meio histérica que simplesmente se preocupava com aquilo, achando tudo horrível, horrível, horrível, mas não fazia nada.
Então, a pessoa que conta essa história, diz que após alguns anos, depois que deixara o hospital, reencontrou o tal milionário “desenganado” com ótima saúde e muito feliz ao lado da enfermeira que cuidava dele. Curioso, ele não resistiu e foi falar com a enfermeira: “Olhe, eu tive hospitalizado naquela época. Lembro que ele estava sempre muito doente, muito mal, o que você fez? Você conseguiu provar para ele que ele não estava doente?” Para sua surpresa, a enfermeira explicou: “Não, fiz justamente o contrário! Disse-lhe que, como ele estava muito doente e desenganado, ele deveria aproveitar o pouco tempo que lhe restava.” Simples e surpreendente, não! Esse é o sentido desse ensinamento, ou seja, devemos realmente aproveitar o presente porque a impermanência (a morte, a mudança) pode surgir a qualquer momento!
Agora, eu não aconselho esse caminho do milionário, pois seria uma perda de tempo. Não que eu tenha algo contra as enfermeiras, mas é que aqui, nesse contexto, “não perder tempo” significa praticarmos o darma, dedicarmos tempo para pensar, contemplar, repousar sobre as várias categorias de ensinamentos do Buda e tentar praticar isso na nossa vida. Mas, num certo sentido, o ensinamento é o mesmo, ou seja, nós precisamos aproveitar o tempo que temos, porque já estamos condenados ao fim! Então, é uma questão de aproveitar o tempo!
Patrul Rinpoche, esse grande mestre, quando queria enfatizar esses ensinamentos, pintava um quadro ainda pior, e dizia: “Todos os grandes mestres morreram; todos os curadores morreram, todos os grandes médicos morreram; todas as pessoas importantes - reis, grandes políticos, imperadores - também morreram; até Miralepa, grande mestre, que era capaz de voar, também morreu! Então, você que se cuide! Isso é coisa séria!”
E Patrul Rinpoche continuava: “Vai chegar um momento em que todos os seres vivos irão morrer. A água vai se extinguir do planeta. O sol vai aumentar de tamanho, aquecendo o planeta, e a morte vai progressivamente se estabelecer sobre toda a vida do planeta, até o momento em que a última gota d’água se evaporará. Todos os seres morrerão na seqüência e os planos sutis se extinguirão.” E podemos perguntar: “Não sobra nada, nem nos planos sutis? Será que nos planos sutis a água seja necessária?” Então, entendemos que todos os planos sutis conectados à ignorância das nossas impressões mentais, eles realmente se extinguem. Por que? Porque quando morremos, nós guardamos na memória os ambientes, os rostos, as pessoas, as conexões. A nossa consciência grosseira se mantém. Mas, quando não há mais o ambiente físico onde essa consciência possa seguir, ela também se extingue.
No entanto, isso não quer dizer que as consciências “mais sutis” se extingam. A consciência mais sutil, aquela que surge e que opera independente da própria mente ligada ao corpo, essa segue. Mas os planos sutis grosseiros, todos eles desaparecem. Podemos ilustrar isso assim: os mamutes desapareceram, e os planos sutis ligados aos mamutes se transferiram para os elefantes, que são os seres mais próximos dos mamutes na cadeia evolutiva. Contudo, os elefantes não são os mamutes. Outras espécies diferentes vão precisar de transições maiores. Mas, quando não houver mais nenhum desses seres, tudo se extingue. A vida como nós conhecemos, também se extingue. Assim, o conjunto de impressões mentais ligadas aos corpos como nós conhecemos, também é perecível. Esse conjunto de impressões mentais depende do planeta terra, depende das condições em que estamos vivendo aqui. Quando a biosfera se for, mesmo as regiões sutis, incorpóreas, vão ser afetadas.
Com isso, podemos verdadeiramente sentir o poder da impermanência, o poder da transitoriedade de todas as coisas. Desse modo, entendemos melhor o que significa nós termos uma vida humana preciosa; podermos fazer as práticas, atingir a liberação das Quatros Montanhas, ultrapassar essa noção de que, tanto no plano sutil quanto no plano grosseiro, nós estamos presos às noções de nossos corpos e das nossas identidades. Por isso, entendemos que precisamos, o quanto antes, aproveitar os ensinamentos que surgiram para a condição humana, e atravessar isso antes que essa dissolução ocorra.
Ouvindo esses ensinamentos, também vemos que, sob o ponto de vista causal, somos profundamente impotentes. Nós não temos o poder de evitar esses eventos todos! Vivemos num planeta, onde, inicialmente, os continentes eram grandes blocos que, um dia, se fracionaram nos grandes continentes que hoje conhecemos (Ásia, América, Oceania, etc...). Não temos nenhuma capacidade de controle sobre essas forças maiores. Somos muito frágeis e nossas vidas são muito curtas. Por isso, não temos nenhuma razão para sermos orgulhosos enquanto membros de “espécie superior”.
Então, a impermanência nos introduz a essa sensação de fragilidade. Com isso, entendemos que não temos domínio sobre nenhuma circunstância positiva. Os ensinamentos do Buda hoje existem, mas podem desaparecer. Temos saúde nesse momento, mas podemos adoecer. Estamos vivos agora, mas daqui a pouco podemos estar mortos. Neste momento não estamos sob o domínio de outros seres, mas podemos ficar presos a qualquer momento. Então, tudo isso é muito rápido!. Lembro de um praticante gaúcho, que morava em Florianópolis, e que entrou num retiro longo. Só que, no meio desse retiro, o Chagdud Rinpoche morreu e ele teve que sair do retiro. Pouco tempo depois, a mãe dele esteve muito doente, ficou incapacitada, e ele foi obrigado a assumir o trabalho dela. Ou seja, pouco tempo antes ele estava profundamente imerso no Darma, mas hoje ele é diretor de uma escola de crianças pequenas, para poder sobreviver, e não tem mais tempo de fazer práticas!
Isso nos mostra que, mesmo que tenhamos méritos, que estejamos fazendo práticas e conectados ao Darma, repentinamente podemos perder todas as boas condições e sermos desconectados. Nós temos laços em várias direções que podem rapidamente nos fazer abandonar o que estamos fazendo. Eu lembro também de um outro praticante, que também esteve nesse retiro longo que o Chagdud Rinpoche conduziu, e, seis meses depois que ele saiu do retiro, foi atropelado e morreu. Vejam vocês que ele aproveitou bem a vida. Ele fez retiros e seguiu de uma forma lúcida. Ele veio de uma condição muito humilde, mas a vida dele era curta. No entanto, ele aproveitou-a bem até o fim e isso foi uma grande coisa. Isso serve para nos lembrar como as circunstâncias são muito difíceis e que nós não temos garantia nenhuma sobre as nossas próprias vidas.
3.4 – Terceiro Pensamento: O Carma
Depois, nós temos o Terceiro Pensamento que Transforma a Mente que são os ensinamentos sobre o Carma. Quando examinamos a noção do carma, vamos reconhecer assim: “Se nos oferecessem coisas muito elevadas, muitos felizes, rapidamente diríamos: ‘sim, sim, eu sou tal pessoa’“. No entanto, se viesse alguém e dissesse: ”Você é muito maravilhoso! Eu tenho uma conexão cármica de outras vidas com você. Minha missão nesta vida é fazer você feliz!” Diríamos: “Sim, você demorou para aparecer, mas tudo bem, pois era exatamente o que eu estava esperando!”. Ou seja, temos uma conexão com o reino dos deuses. No reino dos deuses, as pessoas têm esse tipo de ligação entre elas.
Eu lembro também de uma praticante de Florianópolis, uma distinta senhora, praticante do Zen e muito séria. Um dia, veio literalmente “do ar” um ser (ele havia descido de avião em Florianópolis) que olhou para ela e disse: “Você é a mulher da minha vida!” E ela foi a mulher da vida dele por seis meses. Viajou por todos os lugares, andou de avião por todos os lados e um dia ele pousou em Florianópolis e a deixou. E o que ela fez? Ela voltou a fazer prática! Nós todos estamos suscetíveis a isso. Pode aparecer do ar para nós alguém que nos olha e diz: “Eu amo você e você é a pessoa da minha vida”. E nós abandonamos o Darma alegremente, deixamos de fazer prática, e seguimos o sonho do reino dos deuses, o sonho da felicidade. Por que isso acontece? Porque nós temos internalizado em nós o Carma relativo à felicidade sob as condições do mundo.
Se isso vier a acontecer conosco, deveríamos pensar e dizer: “Um momento! Se você viu tudo isso em mim, ótimo! Então, podemos fazer práticas juntos!” Mas é muito difícil fazermos isso. Nós vamos alegremente trocar o Darma pelo apelo do amante. Seremos até capazes de dizer exatamente o contrário, concluindo: “Eu fiz prática direitinho, rezei e por isso esse ser maravilhoso apareceu.” Teremos todas as explicações para isso. Então, o importante é nós entendermos isso, que temos essa conexão secreta e latente com o reino dos deuses.
E nós também temos uma conexão com o reino dos semi-deuses. De acordo com as circunstâncias, podem surgir pessoas que tocam os nossos brios, tocam “num nervo exposto” nosso. Aí, pronto! Entramos numa briga e não queremos mais sair. Se formos baianos, vamos “rodar a baiana”; se gaúchos, “damos um boi para não entrar numa briga, mas daremos uma boiada para não sair”. E a disputa segue, com dificuldade de parar. Isso significa a nossa conexão com o aspecto competitivo e eventualmente invejoso também. Nós temos essa dificuldade! Por exemplo, se nos encontramos com um colega de turma, que estudou física e agora se tornou o primeiro astronauta brasileiro da Nasa, ficamos um tanto surpresos, com uma certa inquietação em saber como é que essa pessoa conseguiu chegar até lá! E identificamos isso como uma “inveja positiva”, uma coisa que nos torce por dentro! E assim, nós temos conexões com os seres competitivos...
Temos, ainda, uma conexão com o reino humano básico, quando acreditamos que a nossa vida pode melhorar em 24 prestações ou em 48 meses. E se recebemos do banco um aviso do banco de que temos uma linha de crédito pré-aprovado de 15 mil reais, a pessoa olha e diz: “Oh! Que maravilha! Agora eles estão me reconhecendo. Posso comprar isso, posso comprar aquilo.” Ou seja, a pessoa começa a achar que finalmente alguma coisa boa está acontecendo. E esse é o típico comportamento dos seres humanos, que acreditam que as coisas causais mudam a vida. Desse modo nós terminamos perdendo a vida, pois é a através dos processos causais que obtemos coisas impermanentes e ficamos somente girando, presos, no meio disso. Então, cuidado!
Quando eu falo isso com vocês, na verdade, todos esses aspectos são itens para pensar, contemplar (encontrar outros exemplos) e repousar. Nós precisaríamos passar por dentro de tudo isso com esse esforço. Se fizermos isso, nossa vida vai mudar, podem ter certeza disso! Então, nós olhamos a situação humana, e vemos que temos carmas humanos. Por exemplo, nós como praticantes, vemos a nossa família se reunir todo final de semana ao redor da churrasqueira, e pensamos: “Oh! Eu, todo final de semana, me reúno com grupos em redor de um altar. Mas ao redor da churrasqueira parece ser bem melhor! Eles tomam cerveja, conversam, estão tranqüilos e eu aqui fazendo esforço, com olheiras de tanto estudar, de tanto meditar... Acho que tudo o que eu queria era uma vida ‘normal’!”. Ou seja, nós, como seres humanos, queremos uma vida humana básica, com um pouco de conforto e estaria tudo bem! E vamos constatar que 99% das pessoas estariam muito bem com uma vida humana básica. No entanto, para nós budistas, o fardo é longo, difícil, pois a vida humana básica também não serve! Mas temos conosco esse carma da vida humana básica.
Tem uma praticante que, certa vez, me disse ter descoberto que o budismo não servia para certas coisas. Então, ela encontrou São Judas Tadeu, cuja intermediação ela pensava que a ajudava a obter muitas das coisas que ela precisava na sua vida! Já com a ajuda do Buda, isso não seria possível, pois não dava para rezar ao Buda para pedir favores! Aí, ela abandonou o budismo por São Judas Tadeu! Na linhagem Nyngma especialmente, os lamas estão proibidos de rezar por coisas comuns. Podemos rezar para melhorar nossa condição de vida, nossa saúde, para podermos seguir no caminho de prática, e aumentarmos nossa lucidez.
Mas a tendência humana é de se voltar para a espiritualidade para obter condições materiais e emocionais mais favoráveis para ter mais felicidade. Acreditamos que, se fizermos determinada coisa, nossa vida melhora e tudo ao nosso redor melhora!
Vimos que temos carmas com os deuses, semi-deuses, humanos, mas temos carmas também com os animais. Ou seja, dentro de nós temos os componentes dos animais. Os componentes animais são componentes minimalistas, pois podemos ver que eles precisam de menos proteção do que nós. Por exemplo, muitos não precisam de uma casa, pois para alguns os seus próprios corpos têm essa função. Eles também não precisam de roupas, pois elas são seus próprios pêlos. Eles também têm uma grande camada de gordura que os protegem dos espinhos e de outros animais. Ou seja, eles têm um mecanismo no próprio corpo que os protege, fazendo com que eles repousem mais em mecanismos passivos do que numa vivacidade mental.
Por isso é que se diz que todos os animais tendem à tranqüilização, a ficarem mais parados. O objetivo central deles é encontrar uma boa almofada, num lugar fresco e que tenha uma água corrente de boa qualidade. De vez em quando encontramos seres humanos assim, parados, amortecidos... e isso é um perigo, pois revela nossa conexão cármica com o reino dos animais. E nós temos uma conexão verdadeira com o reino dos animais. Por exemplo, quando queremos descansar, é como se nos transferíssemos para o reino dos animais. Nós precisamos sentir peso no corpo, peso nas pálpebras, e no corpo como um todo, e assim como que afundamos. É desse modo que normalmente descansamos. Mas esse modo de descansar não é necessário! Nós podemos simplesmente relaxar, como uma sessão de relaxamento que é conduzida ao final de uma sessão de Yoga. O difícil numa sessão de relaxamento não é relaxar, e sim não dormir! Mas essa prática nos faz perceber o que significa “cair no sono” ou relaxar de forma lúcida.
Vocês podem experimentar. Quando vocês forem dormir, percebam que vem aquele peso no corpo. Esse peso no corpo é desnecessário. Na verdade, esse peso não é relaxamento, mas é um pouco de tensão que produzimos sobre o corpo. Quando vocês estiverem se aproximando do sono pesado, vocês experimentem conscientemente relaxar cada parte do corpo. Vocês verão o peso desaparecer. Ou seja, quando aumentaram o relaxamento, o peso desapareceu. Vemos então que o peso é tensão, uma situação construída. E esse peso é o reino dos animais; pensamos que esse peso é o justo resultado de uma atividade intensa que fizemos antes. Mas não é necessariamente assim. Vocês perceberão que, mesmo cansados, se surgir alguma coisa inesperada, vocês acordam e aquele peso desaparece.
Na seqüência, vamos perceber que temos uma conexão com o reino dos seres famintos. Em outras palavras, nós nos sentimos carentes e eventualmente dizemos: “Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém disca para mim, ninguém me manda e-mail, ninguém nem mesmo briga comigo!” Então, temos um nível de carência. Por exemplo, se alguém nos pergunta carinhosamente: “Como é que você está se sentindo? Você está bem? Eu acho que você está com uma carinha triste!” Aí nós facilmente nos conectamos com a condição de fragilidade. Se alguma coisa está sendo oferecida em algum lugar, nós imediatamente ficamos curiosos em saber o que é que está sendo oferecido gratuitamente. Se surge uma linha de financiamento, rapidamente queremos saber como poderemos nos enquadrar no processo. A coisa pode ser nada vantajosa, mas ficamos excitados com a possibilidade. Isso revela nossa carência, nossa busca incessante.
Por fim, nós também estamos conectados aos infernos. Você podem observar que existem algumas pessoas que não gostaríamos de reencontrar; tem alguns lugares que não queríamos entrar novamente; algumas pessoas que não queremos nem lembrar; tem meia dúzia de situações que, se surgissem, ficaríamos furiosos, inclusive com impulso de matar. Assim, nós temos os carmas relacionados ao reino dos infernos.
3.5 – Quarto Pensamento: O Sofrimento
Se formos dominados pelos pensamentos e impulsos correspondentes a qualquer um desses seis grupos de carmas, nós mais facilmente vamos entender o Quarto Pensamento que Transforma a Mente, que é o fato de que somos vulneráveis a surgir em situações de sofrimento. Se nos conectarmos ao reino dos infernos, temos várias respostas prontas que nos levariam a esse reino e, naturalmente, o sofrimento é garantido. Se nos conectarmos ao reino dos famintos, o sofrimento está garantido. Se nos conectarmos ao reino dos animais e também ao reino dos humanos no sentindo comum, ou se nos conectarmos ao reino dos seres invejosos, competitivos, e ao reino dos deuses, que estão dependentes de felicidade sob condições, então, inevitavelmente, num certo momento, pela experiência cíclica, vamos experimentando sofrimento. Mesmo que vivenciemos experiências de felicidades dos deuses, ainda que seja uma experiência de felicidade, mais adiante vamos ter sofrimento. Então, esses são seis níveis de carmas que nos conduzem a seis classes de sofrimento.
Assim, entendemos que, como seres humanos, temos variados carmas para surgir em condições de sofrimento. Esses carmas são chamados carmas primários. São chamados de primários porque dão origem a carmas secundários, ou melhor, os carmas primários representam nossa vulnerabilidade a situações secundárias. As situações secundárias acontecem quando surge uma situação prática na qual aquele carma primário então aflora. Por exemplo, posso não estar sentindo raiva no momento, mas tenho raivas latentes na forma de carmas primários. Então, quando surgem situações específicas, esse carma brota e eu faço coisas terríveis. Minha situação piora muito, entro em sofrimento e vou passa por dificuldades. Assim, não é que eu seja sempre uma pessoa raivosa, mas quando a condição secundária surge, o carma primário aflora enquanto uma ação, e assim os problemas acontecem.
Somos todos vulneráveis a ver os carmas primários, que estão presentes em nós, se manifestarem como sofrimentos completos quando as circunstâncias secundárias acontecerem. Assim, com este quarto pensamento, retornamos ao primeiro, que trata da vida humana preciosa. Entendemos que temos uma vida humana preciosa, que temos a possibilidade de fazer práticas, que temos ensinamentos disponíveis, e muitas outras facilidades. No entanto, todas essas condições favoráveis são transitórias, pois estão sujeitas à impermanência. Entendemos que temos carmas primários que, de acordo com as circunstâncias secundarias, podem se manifestar como sofrimentos completos.
3.6 – Pensamento subseqüente: O Refúgio
Então, diante dessa compreensão, entendemos que deveríamos tomar uma atitude bem clara na nossa vida. E é aí que surge o pensamento que chamei de subseqüente. Antes eu tinha iniciado explicando que os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente eram seis. Que tinha um antes, preliminar, e um posterior ou subseqüente.
Assim, no pensamento subseqüente, dizemos: “Eu tomo refúgio na natureza de Buda”. Ou seja, tomamos refúgio no referencial que pode nos levar para fora dessa circunstância. Então, entendendo que nesse momento estamos dentro de uma situação transitória favorável, para aproveitá-la melhor, deveríamos encontrar um referencial verdadeiro que pudéssemos utilizar para definir nossa prioridade de vida. Então, o correto seria tomarmos refúgio na natureza de Buda. A natureza de Buda está presente em todos os seres e em todas as direções. Assim, deveríamos nos tornar consciente disso e agir no mundo segundo essa visão.
Deveríamos olhar esse ensinamento todos os dias, nem que fosse de forma abreviada. Esse não é um ensinamento que um praticante deva fazer e outro não. Todos os praticantes deveriam entender isto de novo e de novo, e prometer a cada dia tentar realizá-lo estritamente, corretamente, tentar viver de uma forma lúcida, sem perder tempo. Porque nós, efetivamente, não sabemos se o dia de amanhã vai ser possível. Não sabemos como as circunstâncias secundárias vão se manifestar. Logo, é absolutamente necessário que aproveitemos muito bem a vida que temos disponível.
A partir desse ponto, vamos ouvir sobre o Buda, o Darma e a Sanga. Vamos ser introduzidos sobre a natureza última, sobre o que é o Buda. Então, nesse ponto, nós vamos ouvir sobre as Quatro Nobres Verdades e sobre o Nobre Caminho de Oito Passos. Por isso, entendemos que deveríamos tomar refúgio no Buda, no Darma e na Sanga.
O refúgio no Buda tem níveis grosseiros e níveis sutis. O refúgio grosseiro no Buda seria olharmos o Buda como se fosse uma imagem ou como se fosse um ser do passado. Isso pode nos oferecer um certo referencial, mas esse referencial é insuficiente. Melhor é entendermos o Buda dentro de uma perspectiva sutil. Essa dimensão sutil seria entender o Buda como uma dimensão de vida, uma dimensão latente, presente. Essa dimensão latente, presente, está representada aqui, por exemplo, pelo fato de existir uma energia que nos fez e nos faz estar aqui, juntos, nesta sala. Aqui nesta sala, todos nós temos essa aspiração, que é como se em cada um de nós tivesse um pouquinho do Buda vivo dentro de si. Aí nós nos reunimos, e juntos, manifestamos essa natureza de forma mais clara. E essa energia opera. Nós não estamos aqui para fazer outra coisa senão escutarmos e estudarmos os ensinamentos. É isso que nos motiva.
Eu tenho muitos amigos que fazem muitas coisas diferentes, mas recentemente me dei conta de que há mais de vinte anos eu nunca tive nenhuma relação com eles que não fosse dentro do Darma. Eu sei que eles fazem muitas outras coisas, mas cada vez que eu os encontro, é sempre para coisas do Darma. Então, isso significa o Buda nos unindo, o Buda vivo dentro de cada um de nós. Eu acredito que seja uma grande proteção nós temos esse refúgio, porque assim nos conectamos com as pessoas na parte melhor que elas têm. E ao nos conectamos desse modo, nós ajudamos a pessoa a tornar aquilo nítido na mente dela. Acho isso maravilhoso!
Isso também nos conecta com a noção de Sanga. Por exemplo, quando estamos aqui nessa sala, realmente não importa o que cada um de nós faz durante a semana. Realmente não faz diferença para mim quais são os filhos que vocês têm, ou se vocês são casados, como é que vocês ganham o sustento, no que vocês trabalham, isso realmente não é importante! O que importa é que estamos todos aqui unidos dentro da perspectiva na natureza de Buda que cada um tem. Então, isso é a Sanga. A Sanga é o lugar aonde nos unimos a partir dessa dimensão profunda. Se algum de nós fez alguma coisa horrível em algum lugar, ou não, isso realmente não importa. Porque todos nós temos a natureza ilimitada e na Sanga nós nos juntamos em função disso. Aqui, não nos julgamos, não nos condenamos. Apenas estimulamos uns aos outros naquilo que há de melhor dentro de cada um.
Então, tomamos refúgio no Buda, no Darma e na Sanga. O Darma são os ensinamentos, e estamos aqui falando sobre os ensinamentos. Quando tomamos refúgio no Darma, tentamos pensar, contemplar, repousar, para aprofundar nossa compreensão. Desse modo, vamos copiando a mente dos Budas que geraram os ensinamentos. Eles vão ficando tão claros para nós, que é como se nós mesmos estivéssemos falando de forma original os ensinamentos. É assim que copiamos as mentes do Budas. Esse é o aspecto sutil de tomar refúgio no Buda. Quando copiamos a mente do Buda, entendemos o Darma, que são os ensinamentos.
Do mesmo modo, manifestamos essa energia como a própria Sanga. Assim, o grupo surge a partir dessa energia. Então dizemos que o Buda está vivo na figura do Buda, que o Buda está vivo nos ensinamentos, e que o Buda está vivo na Sanga. Dessa maneira, nós tomamos o refúgio verdadeiro. O refúgio não é uma cerimônia burocrática, onde nos tornamos pertencentes a uma igreja budista, por exemplo. Isso não é assim. O refúgio é no sentido de que a nossa vida muda, os nossos referenciais mudam. Entendemos que é melhor seguirmos a nossa vida de uma forma mais perfeita.
No caso da Sanga, temos algumas vezes ilusões de que ela só tenha características positivas. Naturalmente, nós, seres humanos, temos dificuldades. Então, quando nos encontramos, às vezes surgem tensões, atritos. Nesse caso, deveríamos entender que a Sanga é como uma fogueira, com um fogo de chão feito de muitos e diferentes pedaços de madeira. Uma única chama e diferentes pedaços de madeira. Alguns pedaços estão sujos, outros estão com pregos, outros estão cortados, como madeira serrada, outros são galhos, etc. Ou seja, cada um tem um aspecto diferente. Mas, na medida em que tudo isso vai queimando, percebemos que o fogo tem o poder de uniformizar. O fogo vai transformando cada galho torto em chama, em luz. Todos os galhos, todas as madeiras, podem produzir aquela luz. A luz é a mesma. Enquanto a luz brota, o galho seco e torto vai desaparecendo e virando cinza. Enquanto cinza, nós também somos iguais. Então, a sanga tem esse poder.
Vocês vão entender porque o fogo fica mais fácil quando aproximamos os galhos. Se os afastamos, mesmo que cada um tenha uma chama, ela esfria e, eventualmente, o fogo apaga. Mas se pegarmos somente as brasas e as colocarmos todas juntas, a chama volta. Então, esse é o poder da Sanga. A Sanga nos consome, ela nos mata, destrói o nosso aspecto torto, nosso aspecto problemático. Ela vai transformando toda a nossa manifestação em luz. Então, o refúgio na Sanga é muito importante. O Buda diz: “A Sanga é o próprio Buda. Entre o Buda e a sanga, opte pela Sanga.” Então, na ordenação do budismo, a Sanga é muito mais importante que qualquer outra autoridade. Se diz que dentro da assembléia da Sanga está o Buda.
Então, esse é o ensinamento sobre os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, que são seis, e culminam no Refúgio.
4. Perguntas e Respostas:
Pergunta 1: Para que praticar, se há a impermanência?
Resposta: Nós praticamos para atingir a maior realização possível durante esta vida. Se pudermos atingir a realização final nesta vida, escapamos dos ciclos de mortes e renascimentos. Nós não estaríamos mais presos nisso. Enquanto estou descrevendo essa tragédia, das quatro montanhas, etc., eu não vou dizer que isso é o final. Isso é a descrição da Primeira Nobre Verdade, que é a verdade do sofrimento. Mas a Segunda Nobre Verdade diz: “todos esses aspectos são transitórios, ilusórios, virtuais. Tudo isso é construído. Essa não é a realidade.” Então, quanto antes acordamos para a realidade tal como ela é, melhor, porque escapamos desses ciclos todos. Nós não somos seres humanos, reencarnando sucessivamente por uma condenação. Temos uma natureza que está completamente fora disso. Mesmo que estejamos dentro desses ciclos, nossa natureza não está dentro desses ciclos. Nós apenas estamos presos às identidades, que são os javalis. São os javalis que renascem. Então, quanto antes nos livrarmos nossa identidade com aquilo que é ilusório, virtual, e que está preso nesse ciclo, melhor.
Assim, o ensinamento do Buda não é o de que estejamos presos. Ao contrário, ele nos ensina que isso é uma ilusão que podemos ultrapassar. Nesse sentido, o quanto antes acordarmos e pudermos sair, melhor. Agora, se não pudermos sair desse ciclo nesta vida, pelo menos podemos estabelecer conexões favoráveis, de tal modo que quando renascermos, a tartaruga deixa de ser cega. Existe essa possibilidade quando nós desenvolvemos essa conexão com a Sanga. Passamos a desenvolver olhos que vêem. Não somos mais tartarugas cegas. Mesmo que não consigamos atingir a iluminação, a liberação em uma vida, na medida em que fazemos prática, ganhamos olhos que irão nos direcionar positivamente no momento do nascimento. Essa é a razão para praticarmos.
Pergunta 2: Como saber se estamos fazendo escolhas corretas na nossa vida profissional e pessoal?
Resposta: Eu acho melhor evitarmos fazer acordos que não possuam uma base no Darma. Se pudermos nos livrar dessa condição, melhor. Por exemplo, profissionalmente, se assumirmos compromissos que não sejam baseados no Darma, isso já seria um problema, porque vamos ser cobrados a manifestar identidades que estão coerentes a esse caminho, a esse acordo. Mas, como essa opção não é o Darma, é como se estivéssemos perdendo nossa vida humana preciosa. Mesmo quando fazemos acordos com entidades ou com outros seres, devemos cuidar muito para que o Darma esteja em primeiro lugar. Não devemos fazer acordos de conveniência, acordos de identidades somente.
O Darma tem que ser o ponto central do acordo. Se não for isso, melhor não fazer, pois seremos arrastados para conflitos, para situações onde teremos que tomar atitudes muitas vezes negativas. Ou então, vamos ter que concordar com coisas ou ficar arrastados por coisas inauspiciosas. Então, é necessário que tenhamos muita pureza nesse processo. Pureza significa não fazer nenhum acordo, não prometer nada, dentro de um conjunto de regras em que haja alguma incompatibilidade com o Darma.
Por exemplo, vamos imaginar o mundo político. Há governantes que têm um ideal elevado, e eles vão para Brasília. Mas o funcionamento do Congresso é complicado. No entanto, uma vez que a pessoa aceitou essa condição, ela começa a dançar de acordo com a música. Não vai demorar muito para começar a sofrer acusações de má utilização do dinheiro público. Por que é assim que funciona no alto escalão. Então, a situação é muito delicada, e progressivamente vamos nos envolvendo, até que não temos mais como sair.
Frequentemente, digo para mim mesmo e para as pessoas que encontro: “Nós não temos nenhum acordo para fazer. Não precisamos de poder artificial. Nós simplesmente seguimos.” No Budismo, principalmente no Vajrahyana, isso é chamado de “orgulho vajra”. Não é propriamente um orgulho, mas eventualmente pode parecer que é. No entanto, nós estamos apoiados pela verdade das coisas. Não deveríamos fazer qualquer acordo ou criar qualquer espécie de vínculo que não seja positivo, ou que tivesse alguma mácula dentro, ou algum objetivo não-virtuoso dentro, alguma coisa incompatível com o próprio Darma. Deveríamos estar constantemente preparados para abandonar qualquer coisa que fosse feita dessa forma, mesmo que nos custasse eventualmente alguma conveniência aparente.
Mesmo sob o ponto de vista das conveniências, é muito melhor não fazermos qualquer ação dúbia ou negativa. Vejam os políticos em Brasília de novo. Seria muito melhor para eles se não fizessem nenhuma ação dúbia ou negativa. Caso contrário, como vamos pagar? Vai sair um custo altíssimo!
Quando fazemos coisas negativas, tem um ensinamento muito bonito que diz: “Quando eu fizer qualquer coisa negativa, que o carma venha rápido.” Ou seja, rezamos para que, quando estivermos praticando algo negativo, que ele já esteja sendo descoberto logo, para que seja evitado mais dano com o prosseguimento da ação encoberta. Pedimos: “Que quando eu falhar, que isso seja público, seja visível!” Nós temos a tendência para querer que ninguém descubra nossos erros, nossas ações negativas. Mas, se isso acontece, se ninguém descobre as nossas falhas, temos a tendência de sustentar aquilo. Então, pedimos: “Quando eu falhar, que seja arrasador! E que eu possa me recompor rápido!”
Texto extraído da palestra proferida pelo Lama Padma Samten, no CEBB-PE, em Recife, no mês de junho de 2005.
(Transcrito por Maria Patrícia da Silva, revisado e editado por Floridalva Cavalcanti, em fevereiro de 2006)