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Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Tabela de conteúdos
- Meditação com o Prajnaparamita
- Introdução
- 1. A Verdade Naturalmente Presente
- 2. Construindo Realidades Transitórias sem nunca perder a Natural Presença
- 3. O Poder incessante de Kuntuzampo não é perturbado
- 4. A Natureza Fundamental de Kuntuzampo e as diferentes Inteligências
- 5. O Surgimento do Praticante
- 6. A Meditação
- 6.1. Pensar, contemplar e repousar
- 6.2. Shamata, Quiescência Impura
- 6.3. Quiescência Pura
- 6.4. Meditação com o Prajnaparamita
- 6.5. Meditação com o Mantra do Prajnaparamita
- 7. Confiança no Prajnaparamita – Ação sem Esforço
- 8. A Prática dos 17 itens
- 8.1. Superação dos Obstáculos Cognitivos
- 8.2. Superação dos Obstáculos no nível de Lung
- 8.3. Sentar na Confiança no Prajnaparamita
- 8.4. Reconstrução a partir do Lung dos Cinco Elementos
- 8.5. Manifestação das Cinco Sabedorias
- 8.6. Verdade
- 8.7. Coragem
- 8.8. Paciência
- 8.9. Perseverança
- 9. Refúgio
Meditação com o Prajnaparamita
Lama Padma Samten
Nestes ensinamentos o Sutra do Prajnaparamita é apresentado como um meio para superarmos obstáculos sutis que podem surgir durante a prática, e especialmente como um roteiro de meditação. Os ensinamentos estão estruturados a partir de uma visão geral, uma base, oferecendo um fio condutor, para que cada um encontre o ponto inicial da prática e saiba, com segurança, como avançar. O praticante irá seguir o roteiro de acordo com o seu próprio amadurecimento, sem se deixar estagnar, mas compreendendo que uma prática conduz à outra naturalmente.
O roteiro inclui aspectos preliminares que explicam nossa situação em samsara, como surge a ignorância, ao mesmo tempo em que aponta para a natural presença, nossa verdadeira condição. Aqui, a meditação é apresentada como uma prática para a recuperação dessa condição de liberdade e possibilidade de uma manifestação positiva no mundo, incluindo nove formas de meditação para se atingir esse objetivo.
O ponto culminante da prática será a ação sem esforço pela confiança no Prajnaparamita, a manifestação natural da sabedoria dos Bodisatvas para benefício de todos os seres.
Ao final, reconhecendo a dificuldade dos praticantes, Lama Samten sugere a prática dos 17 itens, que será uma referencia para lidarmos com as dificuldades objetivas do caminho. Dos dezessete itens, os dois primeiros são de purificação, e o terceiro, de liberdade. Os dez itens seguintes são de construção positiva no mundo, e os quatro últimos, o caminho de prática: “Verdade, coragem, paciência e perseverança”, o que manterá o nosso voto de seguir incansavelmente o caminho da liberação.
Introdução
No Budismo Tibetano, os ensinamentos se apresentam dentro de uma classificação geral que abrange três aspectos: Visão, Meditação e Ação. Estes ensinamentos, em particular, são instruções sobre a Meditação. Mas antes de falarmos sobre a meditação, incluiremos alguns pontos preliminares. Nesses preliminares, examinaremos a realidade. Vamos distinguir a realidade última da realidade convencional, e ver como a meditação pode ser introduzida como um caminho de superação das dificuldades, a partir da linguagem do mundo, onde ela é necessária. E sendo o nosso foco o Prajnaparamita, vamos examinar como, afinal, este sutra pode ser um roteiro de meditação, incluindo a meditação com o mantra, assim como a noção de ação e meditação pela confiança no Prajnaparamita.
Essas diferentes etapas nós já praticamos nos Cebbs, em diferentes horários, como um método didático, pois eu observei o fato de que as pessoas perdem facilmente aquilo que é explicado. Elas ouvem, entendem e do que há pouco a compreensão desaparece. Portanto, eu tenho procurado estabelecer horários de prática em que nós retomamos os vários temas, muitas vezes. Chagdud Rinpoche dizia que no ocidente nós temos uma característica: nós entendemos alguma coisa e logo pensamos “Isso está entendido, e agora qual é o próximo ponto?” Nós deveríamos, na verdade, tomar a mesma compreensão até o ponto de estabilizá-la, torná-la residente, permanente. Essa é a diferença entre visão e meditação. A visão abre, permite a compreensão, mas se não tivermos a meditação na seqüência, a visão se perde de novo.
Somente depois de estabilizarmos os ensinamentos com a meditação é que se torna mais fácil utilizá-los no mundo. Por isso há as diferentes etapas. Eu procuro explicar as várias práticas de tal modo que elas se tornem práticas constantes. Também tenho tentado dar os ensinamentos dentro de uma estrutura, para que os pontos apresentados não pareçam algo novo. Quando ouvimos várias vezes os ensinamentos dentro da mesma estrutura, isso vai reforçando o que já ouvimos, vamos rememorando e aprofundando nossa compreensão.
O nosso tema é a meditação dentro do Sutra do Coração do Prajnaparamita. Ele será apresentado de uma forma abrangente, mas ainda assim, muito mais ampla do que poderemos praticar de imediato. O objetivo é podermos estabelecer uma prática favorável e consistente. Para isso, teremos um quadro geral, e dentro desse quadro, cada um poderá eleger um ponto inicial para fazer suas práticas. E como sabemos qual é o fio condutor, a visão geral que está por trás, ao terminarmos essa prática ou a melhorarmos, poderemos passar para uma próxima, com segurança, pois sabemos como os processos se encadeiam.
Quando não há essa visão geral, surgem os obstáculos, como apego ou resistência àquilo que ouvimos. Ao ouvirem instruções é muito comum que algumas pessoas se apeguem à prática, ficando presas a ela. E eu digo “presas”, porque, na verdade, praticando nós deveríamos reconhecer que surgem méritos que nos levam a outras práticas e assim avançamos. Se ao contrário, simplesmente nos adaptamos à prática, não andamos, ficamos estagnados.
Também pode surgir resistência, e nesse sentido, algumas pessoas, ao ouvirem os ensinamentos, dizem: “Eu já ouvi isso de um outro jeito, algo parecido com isso...”, ou resistem dizendo que há outras práticas ou visões mais prioritárias. Desse modo, parece que o que elas ouvem exclui todo o resto. Por isso é importante entendermos que esta prática não exclui as outras, é algo que tomamos como prioridade por um tempo e depois seguimos em direção a outras práticas. É dessa forma que vamos passando por todas as práticas, pelo caminho inteiro. Com o tempo, nós superamos o próprio caminho.
Portanto, quando alguém ouve os ensinamentos com olhos e ouvidos de quem já ouviu outras coisas e ao invés de ouvi-los, passa a compará-los, então aquilo que já se ouviu passa a ser um obstáculo. É muito comum esse tipo de dificuldade. Essa é a razão pela qual eu não introduzo uma prática de meditação, mas um conjunto de práticas encadeadas onde entendemos os ensinamentos como se fosse um tratamento completo: primeiro tomamos esse remédio, depois o outro e depois aquele outro, e assim por diante. Acima de tudo, nós entendemos o processo.
Mas para que nós possamos entender efetivamente esse processo, nós desenvolvemos um olhar abrangente. Antes mesmo de especificarmos a meditação, nós reconhecemos através da visão a nossa própria situação e o que a meditação pode fazer por nós. Dentro desse quadro geral, entendemos porque tomamos um ponto como inicial, porque vamos fazer esse trajeto e entendemos até onde podemos chegar. Assim, parte dos objetivos desses ensinamentos é justamente abrir esse quadro, falar sobre isso de uma forma geral.
1. A Verdade Naturalmente Presente
Nós vamos começar tentando superar o seguinte obstáculo: a crença de que aquilo que nós estamos vivendo aqui, nesse momento da nossa vida é a realidade. Essa é, na visão budista, a realidade da roda da vida. Nós estamos presos a um tipo de visão limitada que nos condiciona. Como não conseguimos ultrapassar esse obstáculo, olhamos essa realidade como se fosse a realidade mais elevada. No entanto, há uma verdade maior, naturalmente presente.
Nós, como meditantes, vemos muitas coisas surgirem dentro da nossa mente. Nós podemos também perceber que ao longo da vida nós tivemos muitas diferentes identidades vivendo diferentes circunstâncias. Na época em que nós estávamos vivendo cada uma dessas diferentes circunstâncias, nós nos caracterizávamos, nos descrevíamos através de certas identidades e descrevíamos as situações através daquelas condições particulares também. Porém, hoje, nós estamos vivendo outras experiências, outras vidas, outras identidades. Isso mostra que não fomos exatamente aquilo que nós vivemos no passado, do mesmo modo que não somos o que vivemos hoje. E no futuro nós também vamos manifestar outras aparências e identidades. Isso é o que nós chamamos de impermanência.
A compreensão da impermanência nos introduz ao fato de que há uma natureza misteriosa por trás de tudo isso. Essa natureza misteriosa é contínua e permite a manifestação das diferentes inteligências, diferentes imagens, assim como as identidades de cada período da nossa vida. A isso nós vamos dar o nome de natural presença. A natural presença tem uma continuidade incessante, e quando nós meditamos sobre isso, constatamos que aquilo que é flutuante passa, mas espantosamente há uma condição de energia, de presença que permanece. Quer entendamos isso ou não, essa condição está presente. Esse é o ponto mais importante, para onde o Budismo inteiro vai convergir: a natural presença.
Hoje, nós experimentamos a natural presença como se fosse algo particular, nosso. Mas uma vez ultrapassado esse aspecto, nós ultrapassamos vida e morte também. Este é o ensinamento do Buda. Esta natural presença está além dos seis bardos, além das várias circunstâncias da nossa vida. Quando olhamos isso de forma mais ampla, ultrapassamos também a noção de separatividade e compreendemos essa natural presença como a base que sustenta a experiência de todos os seres, não apenas os seres humanos, mas todos os seres em todas as direções. Assim, estamos reconhecendo o que é chamado de Buda Primordial, não como uma figura etérea em algum lugar, mas como uma natural presença íntima, ativa, dentro de cada ser.
Na expressão “natural presença incessante”, a palavra “incessante” é muito importante, e ela conduz a uma outra palavra, que é “continuidade”. Há algo descontínuo, impermanente, mas também há uma continuidade. O nosso objetivo nesse treinamento é localizar o que está além da impermanência, que é a natural presença. E a natural presença tem um princípio ativo chamado luminosidade, que permite o surgimento das várias construções, das parcialidades e dos aspectos transitórios. Uma outra expressão importante é espacialidade, cuja característica básica é o aspecto não impeditivo, não obstruído, não há limites para o que possa ser manifestado através da luminosidade. E todas as construções ficam caracterizadas também por uma energia dinâmica. Tudo o que surge é dotado dessa energia. Basta olharmos para os objetos. Todos eles, em qualquer direção, têm uma energia que nos impulsiona para algum tipo de ação. Isso é a energia dinâmica.
Em meio ao mundo nós podemos perceber a energia dinâmica como uma energia confusa, mas ela é a mesma energia dinâmica dos Budas, ela dá sustentação à ação dos Budas e Bodisatvas no mundo. Guru Rinpoche manifesta essa energia dinâmica, uma ação no mundo. Ele se move, mas não por um processo ilusório, ele se move pela liberdade natural dessa energia. Então, a presença natural é ativa e incessante, e a energia dinâmica dessa presença corresponde ao que se chama corpo de juventude incessante, o que significa que há uma energia básica que não flutua.
2. Construindo Realidades Transitórias sem nunca perder a Natural Presença
Há, portanto, uma natural presença, mas nesse momento, nós estamos em uma condição de ignorância, estamos imersos na roda da vida. E o que vem a ser essa ignorância, como isso opera? Esse mesmo princípio da luminosidade que faz as várias aparências surgirem e as dota de uma energia dinâmica, produz um nível de separatividade que é característica básica da ignorância. Por exemplo, um escultor ao trabalhar com a argila, passa a ver uma forma. Se o escultor considerar que a forma é externa a ele, o trabalho pára. Mas ele sabe que é o criador, ele não considera a forma externa, portanto ele tem a liberdade de ir dando novas aparências, construindo e destruindo com liberdade. Ainda que ele veja aquilo como aparentemente separado, ele não tem nenhum tipo de pudor em transformar essa realidade aparentemente externa. Ele desfruta desse princípio de liberdade natural, de luminosidade, atuando de forma livre. A separatividade ocorre quando o escultor termina a obra e diz “Ela está pronta!”. Ele vai congelar o que criou, e aquilo passa a ter uma existência própria – ela está lá e ele está aqui.
Quando surge a separatividade e as formas passam a ter uma vida independente, nós estamos abdicando da inseparatividade, da noção de que o que há fora é inseparável de nós. Ao olharmos os objetos, em vez de reconhecermos a liberdade de produzir as formas, os objetos é que passam a exercer um poder sobre nós. Nós olhamos para os objetos e dizemos: “Eu gosto” ou “Eu não gosto”, “Isso ficou direito” ou “Isso não ficou direito”, “Ficou bom” ou “Não ficou bom”. Ao invés de termos poder sobre o objeto, o objeto passou a ter poder sobre nossas emoções, sobre nossos pensamentos, ele passa a ter uma existência própria. Isso é chamado de separatividade.
No início, a energia era nossa, mas agora a energia vem do objeto. Se olhamos para o objeto e gostamos, a energia se movimenta de certo jeito, mas se não gostamos, ainda que sejamos o criador, a nossa energia se deprime, ou vai em outra direção. Isso mostra que não só a nossa percepção cognitiva do objeto passa a flutuar, mas a nossa energia também, ela vai flutuar em função de um objeto que nós mesmos produzimos. Aqui a responsividade já está atuando. Nós olhamos para os objetos como num sonho, ou seja, a imagem que nós mesmos produzimos em nossa mente nos domina. Por exemplo, se em nosso sonho estamos presos em um pequeno cômodo, e ao olharmos para a porta vemos uma caixa com muitas cobras, como é que nós vamos abrir a porta enquanto as cobras estão olhando para nós? Ainda que tenhamos criado essa imagem, podemos ficar sob o seu poder. Isso é responsividade. Nós criamos, e ficamos sob o poder da imagem. Se fosse um chinês a ver essa imagem, ele diria “Que bom! Comida! Só falta uma frigideira!”.
Ao olharmos para isso nós temos liberdades ou não temos? Assim como nós fizemos essas cobras surgirem, agora nós podemos fazê-las dormir, por exemplo. Se a porta está trancada, nós podemos destrancá-la e sair. Mas não é isso o que ocorre, pois quando olhamos para essas situações, nós as congelamos. Esse congelar o conteúdo e ficar sob o poder da energia que brota da aparência é a própria responsividade. A responsividade é o aspecto básico de Samsara, o aspecto básico da ignorância. Nós separamos, vemos a energia e respondemos de modo automático. Esta resposta é mais rápida do que o pensamento, ela não se dá por pensamentos. Ela se dá por dentro dos sentidos físicos.
Quando olhamos para as coisas, a resposta já está presente, e nós obedecemos primeiro pela própria compreensão do que se dá, pela compreensão da situação. Por exemplo, quando nós dizemos “uma caixa com cobras e uma porta trancada” parece que isso entrou pelos olhos, não houve um raciocínio. Portanto, a responsividade atua por dentro da mente que opera junto com os sentidos físicos, não há um raciocínio, há uma aparente percepção. E tão pronto essa percepção se dá, surge a energia de ação, de resposta, e é por isso que nós a chamamos de responsividade.
De um modo geral nós atuamos presos às responsividades, que é o que caracteriza Samsara. Para exemplificar, vamos retomar nossa experiência com as cobras: todo mundo pode passar livremente pela porta dessa sala, mas se eu disser que tem uma cobra do outro lado esperando o primeiro que cruzar, nós trancamos a porta. Por quê? Não que haja realmente uma cobra, não precisa haver, mas ao criarmos essa imagem, ficamos paralisados no nível de resposta. Diante da porta, pensamos “E agora?”. A energia muda, e porque a energia muda se torna impossível agir. Esse é o poder de Samsara. O teor dos obstáculos vem da responsividade.
Se analisarmos os objetos, veremos que eles são produzidos pela luminosidade, que é a mesma luminosidade da natural presença, é ela que produz os objetos. Mas quando algo é produzido, nós perdemos a habilidade do escultor que produz as formas, mas segue livre, apenas movimentando as formas. Em nosso caso, o objeto fica pronto e nos fixamos na energia do objeto sobre nós. Então aqui, temos esses dois elementos: energia dinâmica e responsividade. Quando essas estruturas de resposta estão automatizadas, percebemos que a porta é uma estrutura, a cobra é uma estrutura, e aí vamos percebendo que há muitos diferentes elementos compondo a experiência.
Por exemplo, hoje nós estamos estruturados de tal forma que quando pensamos em nossos filhos, temos um impulso, quando pensamos no trabalho, outro impulso, quando pensamos em cada rua de Curitiba, há impulsos diferentes. Mas sob um ponto de vista sutil, não se trata propriamente de objetos, pessoas ou situações, e sim, de características internas, de respostas automatizadas. Nós podemos estar diante do nosso filho e alterar a forma de resposta. Então não se trata do filho, mas de uma estrutura interna que produz esse conteúdo.
Essas estruturas nós vamos chamar de samskaras – respostas internas automatizadas. Há um grande espaço, uma liberdade muito ampla que é Dharmata, o céu dos Budas, o espaço onde os Budas existem. Os Budas se movem livres, não há nenhum lugar onde eles não possam chegar, não há limites. Mas dentro dessa enorme espacialidade, surgem estruturas que correspondem a experiências construídas com respostas automatizadas. Ainda que esse grupo de elementos exista dentro de um grande espaço, da mesma forma como os objetos existem dentro de um grande espaço, a soma desses elementos não corresponde à vastidão desse espaço que os contém. Para tornar isso mais claro nós tomamos o espaço infinito e todos os planetas, por exemplo, nós não podemos dizer que a soma de todos os planetas termina ocupando o espaço inteiro. Porém se nós quisermos nos deslocar, nós nos deslocamos de um objeto para o outro.
Portanto, a mente que surge observando as coisas de forma cognitiva não vê o espaço, ela só vê coisas, e, assim ela só se desloca por dentro do espaço onde há marcas mentais – samskaras. É aqui que surge a mente. A mente é justamente essa operação dual que fica saltando de um conteúdo para outro. Ainda que ela se mova por dentro desse espaço infinito, ela não percebe isso. É como nós, por exemplo, viajando de Curitiba a Ponta Grossa, nós não temos a sensação de estar viajando pelo espaço infinito, o espaço interplanetário, nós não temos essa idéia. Nós temos a experiência de viajar sobre uma BR em direção a Ponta Grossa. E do mesmo modo, quando estamos raciocinando, não temos a sensação de estar em um espaço infinito, nós estamos apenas saltitando entre conteúdos, e parece que isso é a mente, parece que isso é o mundo inteiro. O fato de saltarmos de um objeto para outro, caracteriza a visão limitada, nós perdemos a visão ampla, a visão da espacialidade, e ficamos presos a conteúdos predeterminados.
Os conteúdos que nós podemos acessar são muito específicos. Por exemplo, aqui na região sul do país, nós temos alguns conteúdos, as pessoas que vivem na África têm outros, ou mesmo quem vive nessa região onde estamos, e está na periferia de Curitiba, tem outras visões de mundo. Há muitos diferentes mundos se interpenetrando, porém com uma escassa compreensão uns dos outros. Nós temos dificuldades para viver nesses vários mundos que estão dentro da nossa própria cidade.
Esses mundos limitados são chamados de loka, porque eles têm a aparência de um mundo completo. A nossa vida parece completa: temos a nossa rotina, trabalhamos, levamos os filhos para o colégio, no fim de semana saímos e fazemos alguma coisa diferente, e assim nós vamos indo. As pessoas vivem em diferentes lokas, mundos aparentemente completos, com suas linguagens e palavras específicas, e desde que estejamos nesses diferentes lokas, há vezes em que não conseguimos propriamente nos entender. Às vezes há choques entre mundos, eles se interpenetram e se atritam uns com os outros, e nesses casos não há muita possibilidade de conversa, não conseguimos nos entender, disputamos as coisas de uma forma muito crua, o que gera um tipo de exclusão, nós excluímos os outros e os seus lokas.
Mas além dos lokas de cada um, há a possibilidade de uma tarefa muito interessante, que é a tarefa dos professores. Todos nós, em alguma medida, temos essa tarefa e fazemos isso uns com os outros, mas os professores são profissionais nisso, eles tomam as pessoas de um loka e conseguem abrir as portas e fazer com que elas entendam outras realidades, eles as levam em direção a outras compreensões. As crianças nunca iriam se imaginar aprendendo matemática, mas elas são forçadas a entender, e elas vão desenvolvendo habilidades que não imaginavam possível. Os professores, portanto, as introduzem a outros mundos. A criança descobre que vive em Curitiba, mas que Curitiba está no estado do Paraná, e isso é espantoso, porque o Paraná, por sua vez, está no Brasil, o Brasil está na América do Sul, a América do Sul está no Planeta Terra, um pequeno planeta que gira freneticamente em volta do Sol, que por sua vez, é uma estrela pequena se comparada com outras em uma galáxia num mundo infinitamente maior.
Mesmo que uma pessoa esteja vivendo como um catador de lixo, olhando tudo de forma estreita, não há nenhum impedimento para que ela termine vendo essa realidade maior. Porém a partir do seu loka seria impossível que ela chegasse a ver essa outra realidade, ela está em um ambiente restrito, mas alguém pode ajudá-la a ver. Esse aspecto maior também condicionado, mas muito mais amplo, é como se fosse uma mente coletiva que pode ser acessada, mas não necessariamente. Por exemplo, cada um de nós pode aprender medicina, ou direito, mas não aprendemos. Há muitas habilidades, especialidades que nós podemos desenvolver, mas em nossos lokas nós não temos esse conhecimento e ele parece muito difícil.
Eu venho de uma geração que ainda sofre com os celulares, por exemplo. A minha geração pensava antes de pôr o dedo em algum botão. As gerações atuais põem o dedo antes de pensar, elas pensam com a ponta do dedo. Eu sou do tempo em que se apertássemos o botão errado, explodia tudo! Hoje tudo é amigável, podemos apertar do jeito que quisermos que nada explode, não há problemas, começamos apertando tudo para ver o que acontece. Mas no caso da minha geração, ouvimos muitas vezes os nossos pais gritarem: “Não toque!”. E por que eles faziam isso? Porque era assim mesmo, era perigoso.
Os tempos atuais são muito interessantes, porque há muitas diferentes realidades se sobrepondo e que podem ser acessadas. Isso nos permite a experiência de uma mente coletiva. É algo que podemos acessar, mas não quer dizer que estejamos acessando. Essa estrutura muito ampla é chamada de Alayavijnana. E agora nós podemos entender a diferença entre Alayavijnana e Loka, esses dois tipos de espacialidade. O loka é o nosso mundo particular, bem estreito, e Alayavijnana é um mundo muito mais amplo, e todos os seres terminam compondo esse mundo, mesmos os animais e as plantas. Por exemplo, nós olhamos para as plantas e entendemos o que está acontecendo com elas, e isso significa que penetramos sua região. Com os animais é a mesma coisa, nós olhamos e sabemos o que se passa com eles. Mas nem todos os seres conseguem entender isso. Um outro exemplo, nós podemos ver um ratinho passeando rapidamente e entendemos o seu mundo, mas nós não temos certeza se ele entende o nosso. O ratinho é muito esperto, mas nós conseguimos olhá-lo e entendê-lo, e por mais rápido que ele seja, é bem provável que o peguemos.
Mas como é que nós podemos entender um ser que é de outra espécie? Como podemos entender outras coisas, estabelecer uma comunicação? Isso é possível, justamente porque podemos penetrar nas regiões que cada ser habita. Existe um nível de inteligência lógica, nós ficamos presos dentro de um mundo, onde agimos muito rápida e responsivamente, mas existe uma outra inteligência que é a capacidade de nos retirarmos desse mundo mais estreito e olharmos tudo de outra forma. A inteligência que opera a partir de um conjunto de regras e respostas muito rápidas é a inteligência causal. Mas também existem as inteligências não causais. Nós podemos olhar tudo ao nosso redor, e em vez de respondermos aos impulsos, nós subvertemos o processo, desenvolvemos outras formas de compreensão, outras regras, ou acessamos outras realidades. Esse é um tipo de inteligência muito importante.
Mas ainda assim, tudo isso se dá por dentro de Alayavijnana, nós estamos saltando a partir de condicionamentos. Nós entendemos os condicionamentos dos ratos, das plantas, do solo, do ar, da terra, da água, mas nós mesmos estamos operamos dentro de condicionamentos. A própria noção de leis físicas do universo está presa a isso. Todas as leis físicas são estruturas que podem ser compreendidas, mas nesse caso, já não se trata nem de seres vivos, mas de átomos, da matéria, nós começamos a olhar outros condicionamentos. E tudo isso, num sentido geral, pertence à Alayavijnana. Os cientistas se deslocam por dentro de Alayavijnana. Mas Alayavijnana se expande, é possível criar outros elementos, expandindo sempre. A vida se expande. Portanto, enquanto seres condicionados, Alayavijnana é a nossa casa maior.
O elemento central da nossa prisão a esse processo segue sendo a responsividade. No contato com as coisas, temos respostas imediatas, localizamos responsividades e usamos o processo causal, inclusive manobramos uns aos outros pela responsividade. Nós sabemos que os outros estão presos a respostas automáticas e então criamos circunstâncias que os aprisionam e condicionam a fazer certas coisas. O nosso raciocínio é todo causal, inteligência para nós é localizar os elementos favoráveis e ver como é que eles estão operando para manipulá-los de tal forma que obtenhamos os resultados desejados. Nós acreditamos na responsividade.
3. O Poder incessante de Kuntuzampo não é perturbado
Em tudo isso nós vemos o surgimento da mente. A natureza viva se separa numa estrutura que é a mente que observa e outra que são os objetos produzidos e observados por essa própria mente. E assim surge a separatividade. Essa mente que olha a outra parte é, enfim, o que nós chamamos de mente. A mente tem uma visão interna, a característica da mente é ver. Mesmo que nós fechemos os olhos, nós seguimos vendo, ou seja, estamos operando por dentro da mente, a mente vê. Mas em tudo isso, em qualquer traço dessa experiência, a manifestação de Kuntuzampo, do Buda Primordial segue intacta. Por quê? Porque há continuidade. Nós estamos aqui saltitando entre coisas impermanentes, mas há algo permanente por baixo, isso é a continuidade, é o aspecto incessante, é o Buda Primordial. Há uma espacialidade que não é a espacialidade dos elementos, mas a espacialidade que contém esses elementos. Por exemplo, há o espaço infinito onde estão os planetas, do mesmo modo que há um espaço cognitivo muito amplo onde estão as idéias construídas.
A espacialidade incessantemente presente é Kuntuzampo, e ela tem um sentido prático. Por exemplo, se hoje nós nos sentimos aprisionados a determinadas coisas, amanhã isso já é diferente. Isso é resultado da espacialidade, ela cria outros atalhos. O poder criativo continua intacto. Nós não estamos em um mundo fixo, ainda que ele pareça fixo aos nossos olhos. A cada geração o mundo é diferente, os prédios, os objetos, as alternativas de vida são diferentes. Nós estamos construindo novos elementos o tempo todo! Esse é o aspecto da luminosidade. Cada elemento novo construído tem uma energia dinâmica. Por exemplo, no passado nós tínhamos paixões por cavalos, por cachorros, pela natureza. Hoje, ainda que os cavalos tenham poder, eles já não são mais os nossos objetos de consumo. Agora são os automóveis, os aviões e outras coisas. A energia dinâmica está presente nesses novos objetos. Quem trabalha com design trabalha diretamente com a energia dinâmica, porque de acordo com a configuração do objeto, a energia dinâmica estará mais presente ou não, mas a essência é a energia dinâmica.
Logo, mesmo que estejamos presos à ignorância, a um mundo confuso como o que estamos vivendo, aparentemente sem saída, essa natureza última está presente através da continuidade, da espacialidade, da luminosidade e da energia dinâmica. Há uma presença ativa e incessante que vai reconfigurando as possibilidade do mundo. Mesmo que estejamos sob o domínio da ignorância, esse mundo é como alguém que está sentado no sofá de sua casa tendo um sonho. Ao acordar do sonho, a pessoa está no sofá da casa! Ela nunca saiu dali. Do mesmo modo, a realidade maior é a natural presença. Dessa natural presença nós construímos muitas realidades transitórias, fugazes, mas sem nunca perder a condição da natural presença.
4. A Natureza Fundamental de Kuntuzampo e as diferentes Inteligências
A natureza fundamental de Kuntuzampo, a natural presença, pode produzir muitos diferentes tipos de inteligência. Ao olhar o mundo, ela pode engendrar, criar formas de inteligência benignas que ajudem a retirar os seres do lugar onde eles estão. Como há essa natural presença e como as inteligências são construídas, é possível surgirem inteligências positivas voltadas a dissolver a ignorância. Entre essas várias inteligências positivas, surge, por exemplo, o Sutra do Prajnaparamita, que é o tema desse nosso estudo. Por exemplo, a nossa capacidade de ficar aqui, contemplando esses ensinamentos, isso já é alguma coisa diferente. Nós estamos passeando por dentro dessa estrutura, e nós não podemos dizer que essa é uma inteligência comum da roda da vida. Nós não estamos nos movimentando através de apego, atrás de objetos, não estamos presos à energia dinâmica dos objetos. Nós estamos gerando uma capacidade de olhar como que todas essas operações se dão. Isso não é a natureza última, mas é uma inteligência construída, capaz de olhar dessa forma. É uma inteligência produzida por essa liberdade natural. Nós podemos construir inteligências do mundo, inteligências comuns, ou inteligências que nos ajudem a sair dessas prisões. Então a isso nós vamos chamar de inteligência do Prajnaparamita.
Se observarmos com cuidado, junto dessa inteligência há também uma energia se movimentando, que seria o lung correspondente. Esse lung pode nos sustentar, pode sustentar nossa vida, ele estimula a nossa existência, nós existimos a partir disso. No budismo tibetano para tornar isso mais claro, nós vamos falar das deidades. Em nosso caso, então, podemos falar de uma deidade que se chama Prajnaparamita, ou também podemos chamar de Manjurshiri. Manjurshiri tem esse lung, a característica de cortar a ignorância, de olhar as coisas como elas são. Portanto nós personificamos. Eu explico isso, apenas para entendermos um pouco melhor as diversas linguagens dentro do Budismo. Mas por trás dessa personificação tem um lung, algo que mobiliza a nossa existência. Se olharmos para nós mesmos enquanto seres limitados, é possível ver qual inteligência se movimenta dentro de nós e produz um lung que nos faz viver. Se olharmos com cuidado, vamos perceber que é desejo e apego.
O que nos faz brilhar é desejo e apego. São inteligências menores e que, inevitavelmente, vão produzir confusão, porque nós nos fixamos a aspectos limitados e ficamos correndo atrás deles e assim nos perdemos, nos frustramos. Aí corremos atrás de alguma outra coisa, e depois outra, e mais outra. Ainda que os objetos mudem, o tipo de inteligência é sempre o mesmo, é um tipo de inteligência baseada em desejo e apego, explicada pelos doze elos, o que caracteriza, enfim, a roda da vida. Com essa inteligência, nós não vamos a lugar nenhum. Mas é um tipo de inteligência, também construída de forma lúdica pela natureza última, por Kuntuzampo, por essa liberdade, luminosidade e energia dinâmica que constrói as inteligências. O fato é que essas inteligências menores são inteligências frustrantes. Nós passamos a vida muito ocupados, ou muitas vidas ocupados, e o que obtemos agora, perdemos depois, e não há solução.
Mas essencialmente não há um erro em nós. É apenas uma liberdade usada para gerar um tipo de inteligência limitada. E nós não somos isso também, não somos essas inteligências, nós as manifestamos, e podemos manifestar outras inteligências, como por exemplo, o Prajnaparamita. Além do Prajnaparamita, há inteligências, como as dos Bodisatvas, que ao olharem os seres brota a energia para ajudá-los a ultrapassarem os seus obstáculos. Esses são os Bodisatvas, são inteligências cognitivas e emocionais também. Todos os Budas manifestam essa inteligência, como Guru Rinpoche, o Buda do Tibet, completamente poderoso, andando em meio aos mundos, com uma capacidade enorme de olhar os vários aspectos limitados e transformá-los em protetores do Darma, transformá-los em portas de saída do mundo condicionado. Guru Rinpoche é essa energia fulgurante, uma inteligência fulgurante.
Também há as inteligências e lungs dos cinco Dianibudas, caracterizadas por cinco cores. Akshobhya, a cor azul, com a sabedoria do espelho; Ratnasambhava, a cor amarela, com a sabedoria da igualdade; Amitabha, a cor vermelha, com a sabedoria discriminativa; Amoghaciddhi, a cor verde, com a sabedoria realizadora e Vairochana, a cor branca, com a sabedoria de Dharmata, que é a natureza última. São sabedorias que ajudam os seres no mundo. Eles detêm o lung, a energia correspondente a cada uma dessas sabedorias.
Ainda que nós estejamos dominados por inteligências menores da roda da vida, baseadas nos doze elos, no desejo e apego, isso não quer dizer que não possamos acessar as inteligências dos cinco Dianibudas, ou do Prajnaparamita. Isso é possível, porque nós não somos inteligências menores, nós somos a liberdade. Nós podemos nos conectar a um tipo de inteligência ou outro. Quando estamos efetivamente presos, terminamos dizendo “eu sou isso”. Essa afirmação faz parte dos nossos problemas, mas nós não somos verdadeiramente isso, porque as visões mais amplas continuam intactas, e continuamos perfeitamente capazes de acessar as inteligências mais amplas, sem nenhum problema. O poder das inteligências mais elevadas continua presente, disponível, atuante, operando. Kuntuzampo segue operando, mesmo que estejamos confusos.
Em vista disso tudo, reconhecemos o surgimento da roda da vida concomitante com a própria natureza ilimitada. Dentro da roda da vida, nós temos sofrimentos, e porque há a aspiração de ultrapassá-los, os budas olham para nós. Alguns budas talvez digam “Não tem importância, tudo isso é só um sonho, uma brincadeira dos seres, esse sofrimento não é grande coisa. Eles pensam que vão morrer, pensam que está tudo perdido, mas isso não é muito importante, porque, enfim, nada acontece com eles.” E aí decorrem eons, onde nenhuma estrutura de ensinamentos surge, nenhum apoio, mas também nada desaba, porque os sofrimentos vêm e vão, o que não é lá grande coisa mesmo. Diz-se que por milhares de eons, não há o Darma, não há os ensinamentos. Os seres ficam presos em suas confusões e seguem assim. Porém, há os tempos extraordinários, como os que estamos vivendo agora, em que os budas surgem. É como se eles dissessem “Vamos nos divertir um pouco, vamos lá ver o que podemos fazer pelos seres. Ainda que todos os seres estejam naturalmente salvos, eles pensam que estão perdidos. Então o que nós podemos fazer por eles?”.
Assim surgem os budas. O Buda Amitaba emana Cherenzig, e Cherenzig vem ao mundo e ouve as pessoas. Ao ouvir as pessoas, ele estabelece o caminho, um método que irá tomar a pessoa no ponto onde ela estiver experimentando a realidade, e vai levá-la em direção a algo mais elevado. Aqui está o poder das instruções dos mestres. Os mestres surgem como emanações dos próprios budas. Isso significa que eles vão usar, ainda que parcialmente, a inteligência dos budas.
5. O Surgimento do Praticante
Há seres que podem seguir um caminho de instruções e há os seres que não conseguem. Por quê? Porque é necessário um primeiro elemento. Não basta estarmos confusos para podermos sair. Como os budas vêm ao mundo na forma dos Bodisatvas e falam aos seres, é necessário que os seres sejam capazes de reconhecer o que está sendo dito. Portanto, quando examinamos como esse processo se dá dentro de nós mesmos, percebemos que é necessário surgir um praticante. Esse praticante começa como um observador. Isso seria assim: nós fazemos as coisas em nossa vida, mas talvez façamos de forma tão automática que nós nem cheguemos a observar o que estamos fazendo. Aí vem um companheiro de trabalho e nos diz: “Todas as manhãs você chega irritado!”. Naquele momento nós paramos e vemos que nunca tínhamos percebido aquilo, e pensamos: “Mas eu estou normal, sou eu mesmo, não estou irritado!”.
O outro, ao fazer essa observação, nos ajuda a construir um observador interno, que passa a olhar para si mesmo. Da mesma forma, eu posso fazer surgir uma esfera flutuando aqui dentro, mas sem perceber, quando fazemos surgir a esfera, fazemos surgir o observador que vê a esfera. Se for difícil ver uma esfera, nós também podemos nos perguntar se é possível ver o nosso quarto, e vamos ver que é possível. É possível ver o rosto de um filho? Quando nós vemos o rosto de um filho, nós não só construímos o rosto aqui diante de nós, mas nós construímos o observador desse rosto, senão nós não o veríamos. Esse é o poder de construção dos objetos e observadores.
Mas enquanto falamos sobre isso, na verdade nós já construímos um outro observador, que é o observador que está vendo o processo de construção, não é verdade? E agora nós já estamos observando que há um observador que observa o processo de construção. Então, em verdade, podemos construir observadores como quisermos. É muito importante percebermos isso, porque não há como andar no caminho se não houver um observador que veja o que está acontecendo. Há pessoas que se movimentam sem esse observador, não há um interlocutor. Se falarmos para os cachorros “agora você pare um minuto e veja o que você está fazendo!”. Nada acontece, o animal está lá, nos olhando com a língua de fora. Nós colocamos um prato de comida para ele e dizemos “Um minuto! Observe que você tem apego a essa comida!”. Ele continua nos olhando com a língua de fora. Portanto, isso não é muito fácil, e essa também é a nossa dificuldade. Se colocarmos, por exemplo, um prato de batatas fritas diante das crianças e dissermos para elas “Observem! Vocês tem apegos a essas batatas fritas ou não?” As crianças também, como o cachorro, vão ficar nos olhando, talvez também com a língua de fora! Isso também não é fácil!
Quando surge o observador o caminho se torna possível, porque ele é o interlocutor dos budas. Ele é os Bodisatvas implantados em nós, ele é o mestre interno que vai surgir. Quando nos observamos, dizemos “Oh, nunca havia observado que tinha esse apego a batatas fritas! Há muitas vidas eu estou correndo atrás disso!” Então surge esse ser lúcido, e esse é o ser que vai seguir o caminho. Essa é uma consciência, ainda que não totalmente lúcida, mas que faz com que o praticante, esse observador interno surja. Se não houver esse surgimento, nós não temos como seguir o caminho. Com o praticante e as instruções dos mestres, automaticamente, surge o caminho.
O caminho está ligado à própria causalidade. No caso das “batatas fritas”, é como se o mestre dissesse: “Observe as batatas fritas! Veja a gordura saturada, e veja o que vai acontecer na seqüência!” E o praticante pode se surpreender e perguntar “Isso significa que eu não posso mais comer batatas fritas?” Ao olhar dessa forma, as instruções podem surgir, faz sentido surgir o caminho. Aí o mestre diz “Você coma uma batata frita a menos por dia! Ao final de dez anos você se livrará de...!”. Esse é um caminho gradual, em que vamos reduzindo algumas coisas e melhorando outras. Por isso nós dizemos que é possível surgir o caminho, quem vai aprender o caminho é esse ser que observa. Esse ser que observa vai ver a responsividade, a prisão às estruturas automáticas, ele vai observar tudo isso. Nem sempre ele consegue observar, mas de tanto em tanto ele consegue. E nem sempre que ele observar, ele vai conseguir assumir o controle, mas aí começou o caminho.
Na seqüência, nós vamos ouvir sobre as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho de Oito Passos, os Doze Elos da Originação Interdependente, meditação, vamos ouvir vários ensinamentos, que seria o aspecto de visão. Então nós ouvimos. Mas o fato é que nós ouvimos e depois perdemos, não é verdade? Nós ouvimos e dentro de um tempo aquilo desaparece. Logo, nós estamos justamente no ponto onde a meditação vai começar. Até agora nós vimos a introdução, para que nós pudéssemos entender qual é a função da meditação. Tendo entendido isso, nós vamos, então, entrar na meditação.
6. A Meditação
6.1. Pensar, contemplar e repousar
Para entendermos a utilidade da meditação e para que ela funcione, devemos ter compreendido a necessidade de tornar mais nítido tudo o que já ouvimos. Então surge a meditação do pensar, contemplar e repousar. Nós ouvimos os ensinamentos e agora vamos pensar sobre o que ouvimos, e depois contemplamos e repousamos. A primeira meditação será essa: pensar, contemplar e repousar. Esse é o início da prática de meditação. Qual o objetivo? Tendo ouvido os ensinamentos, nós precisamos olhá-los de novo, pois os ensinamentos a princípio não estão claros para nós. Nós precisamos olhar item por item do que foi explicado e duvidar. Nós vamos questionar item por item, examinar ponto a ponto. Nós estamos fazendo um trajeto em que as instruções dos budas nos tocam onde estamos e nos levam paulatinamente para fora da confusão.
Para não esquecermos as estruturas dos ensinamentos, precisamos ouvir e depois pensar sobre o que ouvimos, e tendo pensado nós precisamos contemplar encontrando exemplos, para em seguida repousarmos em silêncio. Essa será a estrutura da nossa prática. E qual será o conteúdo do “pensar, contemplar e repousar”? Serão as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho de Oito Passos e todas as explicações que vimos até agora. Mas a prática do “pensar, contemplar e repousar” tem vários níveis de sutiliza.
Quando pensamos, estamos duvidando. Esse é o ponto inicial, pois nós temos conexões com as sabedorias convencionais, e por isso nós duvidamos, vamos averiguar se aquilo é verdadeiro. Essa avaliação é importante, porque as instruções que tenham sido dadas devem fazer sentido para as mentes comuns. As mentes comuns recebem os ensinamentos e elas reconhecem o sentido daquilo que está sendo dito. Essa é a habilidade dos budas. Os budas vão começar com uma explicação do tipo “Todos os seres aspiram pela felicidade e desejam se afastar do sofrimento”. Os seres reconhecem e dizem “Sim! Estamos todos perdidos!”. Esse é o início do processo. Nós podemos até duvidar e internamente nos perguntamos: “Eu realmente gostaria de ser feliz?”. E constatamos: “Sim! Eu gostaria!”. Aí começou o caminho: primeiro nós duvidamos e depois concluímos que aquilo é verdadeiro.
Portanto, o caminho não precisa começar com um salto radical, em que nós abandonamos tudo e dizemos “Então agora, por favor, me leve para um outro mundo!”. Nós começamos exatamente no mundo como nós estamos. E no mundo onde estamos, nós aspiramos à felicidade e aspiramos a nos afastar do sofrimento. É assim mesmo, nesse ponto começa o caminho espiritual. Nós começamos pensando. Nós pensamos e depois contemplamos, e contemplar é avaliar “Será que isso é verdadeiro mesmo?”, e aí nós encontramos exemplos e percebemos: “Sim, eu quero a felicidade, eu quero me afastar do sofrimento!”. Nós olhamos nas várias direções e percebemos que tudo o que estamos fazendo ganha sentido a partir dessa aspiração de felicidade. Aquilo que concluímos já faz parte do contemplar, nós estamos examinando. E aí repousamos, ficamos em silêncio.
Ao ficarmos em silêncio, nós também nos livramos de todo esse conjunto de reflexões. Nós percebemos a artificialidade que é o pensamento e a presença que é justamente apontada pelo silêncio. E aí nós vamos para o item seguinte, cada uma das Quatro Nobres Verdades, cada elemento do Nobre Caminho de Oito Passos, e cada um dos itens dos Doze Elos, e assim nós vamos passando um por um desses itens. Com isso, vai ficando mais claro o que os budas disseram, vai ficando mais claro que os ensinamentos são úteis para nós, e assim as instruções ficam claras. Mas sem percebermos, justamente porque fazemos isso, surge algo extraordinário, que é a inteligência que compreende o que os budas falaram.
Essa inteligência começa a operar de forma semelhante à inteligência dos budas. A inteligência dos budas expressou os ensinamentos, mas o que foi expresso é como se fosse letra morta, não vai produzir nada em nós, a não ser que nós pratiquemos o “pensar, contemplar e repousar”. Quando nós olhamos os ensinamentos, e aí pensamos, contemplamos e repousamos, os ensinamentos se tornam nossos, eles não são mais do Buda, eles não são mais de um livro, não são mais alguma coisa que ouvimos, agora eles se tornam presentes, vivos dentro de nós.
A prática do “pensar, contemplar e repousar”, portanto, torna os ensinamentos vivos, temos a sensação de que os ensinamentos são nossos, de que são pensamentos nossos. Nós somos capazes até mesmo de explicar tudo de um outro jeito, porque nós temos a sabedoria, não é mais uma simples memória, mas a sabedoria operando dentro de nós. E não há outra forma de acessarmos os ensinamentos, senão ouvindo e duvidando, até que nós sejamos capazes de vê-los vivos dentro de nós. Ao ouvirmos, pensarmos, contemplarmos, buscarmos exemplos, olhando os ensinamentos sob vários ângulos, isso os tornará realmente vivos dentro de nós. Através de letras, palavras aparentemente mortas, nós acessamos uma realidade viva. Os textos se tornam vivos, e surge uma inteligência viva dentro de nós, resultado desses itens aparentemente mortos. Com isso nós copiamos a mente dos budas, copiamos o processo pelo qual os budas operam.
Isso significa que essa prática converge para Guru Yoga, tanto no conteúdo quanto no silêncio. O conteúdo é expressão dos Budas, mas o silêncio também é expressão dos Budas. Pensar e contemplar, isso é os budas, e ficar em silêncio também. Nós estamos fazendo a prática de Guru Yoga através dos textos, e durante um bom tempo é necessário que pratiquemos assim. Mas não pensem que esse é um ensinamento menor ou uma prática menor. Há pessoas que se afligem, dizendo “Eu pensei que meditação era ficar em silêncio”. Esse é exatamente o obstáculo que eu estava mencionando no início, ou seja, quando escutamos um tipo de instrução, pensamos em outro. Até aqui, ouvimos as instruções para a prática do pensar e contemplar, não são instruções sobre a meditação em silêncio. A instrução da meditação em silêncio vai surgir na etapa do “repousar”. O método “pensar, contemplar e repousar” é chamado de meditação porque a partir dele nós dirigimos a mente, a nossa mente, agora, é dócil.
Sendo assim, se nós quisermos internalizar esses aspectos e torná-los vivos, se pretendemos no futuro ajudar outras pessoas, o caminho é esse: pensar, contemplar e repousar sobre cada pensamento dos budas, sobre cada frase dos textos sagrados. Cada explicação precisa ser contemplada até o ponto de ser tornar clara. Somente quando nós adquirirmos essa inteligência, e ela se tornar nítida e viva dentro de nós, nós não precisaremos seguir pelos textos. Por quê? Porque quando abrirmos os livros em qualquer texto, qualquer página, e lermos os ensinamentos, vamos reconhecer que aquilo é verdadeiro, porque nós já temos a inteligência, ela está viva. Essa inteligência viva foi a geradora de todos os textos e, portanto, ela não é uma inteligência pessoal, ou uma propriedade pessoal, nós a estamos apenas manifestando. Ao morrermos essa inteligência não morre, ela segue. Ela não começou conosco e não vai terminar conosco, e nós podemos acessá-la ou não.
Essa inteligência operando dentro de nós é Guru Yoga, o que pode surgir através do “pensar, contemplar e repousar” linha por linha dos ensinamentos até o ponto em que eles passam a operar. Os mestres, como Chagdud Rinpoche, nos aconselham esse método. Eles vão nos estimular a fazer essa prática com respeito aos Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, por exemplo. Eu citei as Quatro Nobres Verdades, mas poderia ser perfeitamente os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, depois as Quatro Nobres Verdades e assim por diante, como está descrito nessa estrutura. Essa estrutura começa, na verdade, com o Bom Coração, com a Responsabilidade Universal, e daí segue.
6.2. Shamata, Quiescência Impura
Tendo praticado o “pensar, contemplar e repousar”, vamos entender que ainda é necessária uma outra forma de meditação. Nós vamos utilizar a meditação em silêncio. Esse vai ser o nosso desafio, pois a meditação em silêncio tem como poder básico, confrontar o movimento cármico com o poder da natural presença. Na meditação em silêncio nós sentamos e o observador - esse que surgiu como o praticante que se movimenta no caminho - é que vai dirigir a meditação. Nós nos sentamos, mas quem está dizendo “sente”? É esse observador. Quando brotarem os pensamentos, eles não são os pensamentos desse observador, o observador apenas observa os pensamentos. Quando a energia oscilar, não é o observador que tem a sua energia oscilando, e da mesma forma, quando brotarem os vários níveis de carma, são as nossas estruturas, as nossas inteligências cármicas se manifestando. O observador pode estar ativo, ou pode desaparecer, mas a princípio, se estamos meditando, esse observador está lá.
E qual é a energia que sustenta esse observador? Uma energia de estabilidade fora da roda da vida. E qual é a energia que perturba? É a energia da roda da vida. Então essencialmente nós, agora, nos confrontamos. Tem uma inteligência fora da roda da vida e uma inteligência dentro da roda vida. Na meditação vai haver esse encontro. Se nós optarmos por essa inteligência fora da roda da vida, pela fonte de energia estável, nós meditamos. Cada vez que nós esquecermos disso, nós nos movimentamos, sentimos dores, movemos os braços, suspiramos, pensamos, nos perdemos. Qual é a nossa chance de avançar no caminho, senão através de uma prática em que recuperamos a capacidade de dirigir as nossas ações independentemente da operação das inteligências confusas? Nós não temos chance alguma, senão através desse processo em que recuperamos o controle.
Existe uma natural liberdade, e agora nós estamos usando essa natural liberdade, essa paisagem ampla, sustentada pela energia, pelo lung do próprio Buda Primordial, sereno, e assim, nós também sentamos serenos. Mas logo as inteligências comuns da roda da vida sacodem tudo. Nós podemos observar isso ou sermos arrastados pela responsividade. A nossa prática é mantermos a estabilidade. Essa prática, que não é mais o “pensar, contemplar e repousar”, nós vamos chamar de Shamata. Shamata é descomplicada, nós simplesmente repousamos. Se apenas mantivermos a posição do corpo, já estaremos fazendo Shamata. Por quê? Porque é impossível manter a posição do corpo se não houver essa energia também direcionada. A posição do corpo é como se fosse um Mudra, que não há como sustentar se não tivermos a mente também posicionada. Dessa forma, nós ajudamos na sustentação desse processo independente pela própria posição do corpo. Com a posição do corpo, o processo fica mais claro, porque logo que nos perdemos o corpo também se move. Logo é completamente necessário praticarmos por um longo tempo até obtermos um nível de estabilidade.
6.3. Quiescência Pura
No início, é melhor praticarmos sem mosquitos, sem frio, sem calor. Mais adiante os mosquitos serão bem vindos, porque eles vão ampliar a nossa estabilidade. No início é preferível sem ruídos. Mais adiante, com os ruídos, a nossa estabilidade é testada e ela também pode se ampliar. Portanto, há muito que fazer dentro dessa prática. Eu não vejo, nesse caminho, a possibilidade de ultrapassarmos a responsividade se não a enfrentarmos. Se nós ficarmos simplesmente respondendo em meio ao mundo, a nossa vida vai passar, e praticamente nada vai mudar a não ser os tipos de respostas - no passado respondíamos de um jeito, agora de outro, mas na verdade, não houve grande mudança. É necessário praticarmos.
Por outro lado, não devemos nos fixar a essa prática. Essa é uma prática também, e mais adiante nós vamos fazer outras coisas. Do mesmo modo que é necessário “pensar, contemplar e repousar”, chega o momento em que é necessário praticar o silêncio. Se não ultrapassarmos a responsividade - o surgimento das coisas nos condicionando a fazer outras coisas - não há possibilidade de progresso. Por quê? Porque as coisas aparecem e nós vamos agir apenas de acordo com o impulso cármico. A nossa chance de mudança é zero.
Assim, depois de avançarmos um pouco nessa prática, nós somos capazes de manter a estabilidade em meio a circunstâncias positivas. Esta é uma etapa que nós chamamos de Quiescência Impura, ou seja, a nossa prática depende de condições especiais para que ela funcione. Por isso é que nós nos reunimos em lugares especiais, em condições especiais para que a prática efetivamente ocorra. Mas isso abre a possibilidade de fazermos um terceiro tipo de prática. O primeiro é “pensar, contemplar e repousar”, o segundo é o silêncio praticado em condições favoráveis. E agora vem um terceiro tipo, que é a prática da meditação em silêncio em condições um pouco adversas, ou em um ambiente controlado, porém resgatando memórias de situações aflitivas, seja por atração ou aversão.
Nesse tipo de meditação, quando surgem as situações aflitivas, percebemos através da sabedoria do espelho, que as situações aflitivas não são externas, mas estruturas internas que se manifestam como se fossem externas. Com essa prática, vamos perceber pela primeira vez que nós temos apego às estruturas cármicas. Isso vai se revelar, ao vermos as situações se repetindo uma vez, duas vezes, três vezes. Diante das mesmas pessoas, nos veremos novamente com raiva, ou com medo, ou diante de objetos, ou de certos alimentos, por exemplo, sempre com o mesmo tipo de impulso. Estas são as nossas estruturas cármicas. Até então, sempre dissemos “Bom, isso sou eu!”, mas agora temos a capacidade de olhar à distância e reconhecer essas estruturas como estruturas cármicas que se manifestam desnecessariamente. Nós não somos isso. Essas estruturas são inteligências pelas quais nós desenvolvemos mecanismos de responsividade, e por tanto, logo que elas aparecem, nós respondemos de forma automática.
Mas agora nós vamos desafiar esse processo, nós vamos tentar ultrapassá-lo. E por sentarmos e observarmos o que ocorre, entendemos de forma clara que a responsividade que brota dentro de nós é protegida por nós mesmos. Nós tomamos todos esses mecanismos de responsividade, agrupamos todos eles e dizemos: “Eu sou isso!”. Ao reconhecermos que estamos protegendo nossas estruturas cármicas, percebemos como estamos confusos no mundo. Desse reconhecimento surge a aspiração genuína de ultrapassarmos essas fixações. Mas por enquanto, é como se ainda não tivéssemos meios para isso. Embora tenhamos pensado, contemplado e repousado sobre todos os ensinamentos, ainda que tenhamos praticado a meditação em silêncio, e a meditação em meio às circunstâncias, as coisas seguem poderosas, elas seguem com o poder de nos arrastar.
Se, por exemplo, através da meditação em silêncio, nós já desenvolvemos a capacidade de interromper as experiências e não segui-las, isso ainda não é a solução completa, porque as coisas taticamente apenas recuam, ficam aguardando um outro momento para ressurgir. Talvez vocês já tenham percebido isso. Nós nos livramos apenas temporariamente das dificuldades, elas ficam nos aguardando, pacientemente. Há também a possibilidade de passarmos por um processo de repescagem. Samsara faz isso! Nós lutamos muitas vezes contra alguma coisa, mas aquilo fica aguardando até o ponto em que nós dizemos “Bom, eu sou isso mesmo”, e aí desistimos. Há bons praticantes que desistem, especialmente quando eles entram no caminho com a motivação equivocada, como por exemplo, para aprender a manobrar a sogra, a esposa ou o marido e aquilo vai até certo ponto e de repente não funciona mais. Chega o ponto em que a pessoa diz “o Darma não funciona”.
Isso pode acontecer quando o objetivo não for propriamente a liberação, mas apenas estender o processo de fixações sobre os outros. Nós achamos interessante entender como a mente dos outros funciona para então, criar mecanismos de manipulação e aprisioná-las ao mesmo mecanismo no qual nós já estamos aprisionados. Mas como a outra pessoa tem liberdades nós não conseguimos um sucesso absoluto. E aí a pessoa vai buscar outros processos, porque ela pensa “O Darma não é muito útil”. Assim, nós podemos terminar abandonando o próprio budismo porque não ficamos mais ricos, mais poderosos. Esse pode ser um limite para todo o processo.
Mas aqui nós estamos fazendo uma outra coisa, nós estamos localizando essas estruturas cármicas, e estamos nos libertando delas. Mas como estávamos vendo, nesse processo de busca da liberdade há o recuo tático dos problemas. Nós fazemos a meditação e ela funciona, é maravilhoso, nós estamos serenos. Ao terminarmos a meditação, nos levantamos, colocamos os sapatos e todos os demônios retornam alegremente, são os nossos assessores. As inteligências confusas retornam. Na próxima sessão, nós nos sentamos e a serenidade retorna, anjos e santos ao redor, tudo perfeito! Então saímos para testar outra vez, mas as várias circunstâncias produzem de novo o surgimento das inteligências confusas. E aí paramos e nos perguntamos “E agora, o que eu faço?” É nesse ponto que entra o Sutra do Coração. Demorou não é mesmo? Mas é que tudo o que vimos até agora foram os preliminares, e agora vem o Sutra do Coração.
6.4. Meditação com o Prajnaparamita
Qual seria o obstáculo sutil que está atuando e que faz as dificuldades ressurgirem? Esses processos aflitivos internos, as inteligências aflitivas e negativas que vão se traduzir em problemas, surgem a partir da compreensão de que o mundo, na sua aparência, é sólido. Nós olhamos para as coisas, e internamente surge esse diálogo: “Bem, o budismo é ótimo, a meditação funciona, mas eu queria ver o que o Buda faria com a minha sogra! Porque enfim, ela é concreta, ela é real! Eu queria ver o que o Buda faria com a minha conta bancária, ou com a execução das minhas dívidas pelo cartório. Como é que o Buda resolveria isso?”.
A nossa tendência é olhar as coisas como concretas, reais, o mundo verdadeiramente como ele é, e separar isso do mundo ilusório, do mundo puro dos budas. Quando nós meditamos em uma sala de meditação parece que um outro mundo se abre e dentro desse outro mundo as nossas ações serão naturalmente puras, ao passo que quando saímos da sala de meditação vamos para o mundo real, e esse mundo é realmente complicado. O que o Buda faria com isso? Podemos pensar “Naquele tempo estava tudo muito bem e, aliás, o Buda deixou a esposa, os filhos e foi para o meio da floresta! Assim a coisa fica fácil, não há problema. Eu queria ver ele no mundo de hoje, na floresta de Curitiba, no meio dessa complicação!”.
Se a nossa forma de olhar é essa, então nós precisamos do Sutra do Coração. Ainda que tenhamos avançado, falta alguma coisa: precisamos superar o obstáculo que nos faz considerar que aquilo que está diante de nós é sólido, real, denso. Nesse ponto nós vamos retomar o nível de visão, quando Cherenzig surge e percebe que as pessoas conseguem meditar, mas seguem aprisionadas a um tipo de visão. Cherenzig vem e ouve o que as pessoas estão falando. Elas falam sobre a solidez das formas, solidez das sensações, das percepções, das formações mentais, das identidades, das consciências, ou seja, dos cinco skandas. As pessoas consideram tudo isso sólido. Então Cherenzig pára e vê: isso não é sólido. Forma, sensações, percepções, formações mentais, consciência, todos os darmas são vacuidade. Vida e morte são vacuidade. Existe uma natureza, que é a vacuidade, que está além de tudo isso.
Então nesse ponto se vocês tiverem dúvidas, voltem ao aspecto de visão. Aqui entra o Prajnaparamita que retira a solidez daquilo que nos circunda, e a partir do Prajnaparamita nós vamos ter várias compreensões. A primeira é a vacuidade que retira a solidez. Depois nós temos a compreensão de que essa vacuidade tem uma qualidade luminosa, ela constrói a realidade. E aí nós vamos ver que dentro dessa vacuidade não há pressupostos, não há estruturas cognitivas nem emocionais que estejam presentes originalmente, elas são todas construídas posteriormente. Nós vamos estudando isso até o ponto em que ultrapassamos o próprio caminho, com as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho de Oito Passos, porque ao contemplar a realidade tal como ela é, nós vemos que o próprio caminho, com todos os ensinamentos, também é uma construção que brota dessa vacuidade que enfim é o Buda Primordial.
Compreendendo esse processo, nós entendemos o que se chama visão. Mas nós precisamos aprofundar essa visão. E como nós vamos aprofundar a visão do Prajnaparamita? Nós vamos também pensar, contemplar e repousar sobre cada linha do Prajnaparamita, do início ao fim. E esse é um outro tipo de meditação. E quais foram as meditações que nós vimos até agora? Nós vimos “pensar, contemplar e repousar” sobre as Quatro Nobres Verdades, sobre os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente e sobre os Oito Passos do Nobre Caminho. Depois de compreender isso, praticamos a meditação em silêncio tentando ultrapassar a responsividade. No final do processo da meditação em silêncio, nós descobrimos que ainda tínhamos obstáculos, como se o carma taticamente recuasse para aparecer em outros momentos, e o que nós precisávamos então, era do Sutra do Coração. Com ele, diante dos vários surgimentos, em vez de empurrarmos tudo para longe, nós chamamos as experiências e usamos um olhar “mágico” e aí tudo perde o poder. Assim, ao invés de pensarmos nos vários surgimentos como obstáculos que precisamos afastar, nós olhamos para eles como quem degusta algo especial, e aquele tipo de ilusão cessa.
Para poder fazer isso, precisamos entender linha por linha do Sutra do Coração e ativá-lo, porque nesse momento o Sutra do Coração ainda é um conjunto de palavras. Nós precisamos pensar, contemplar e repousar para que ele ganhe vida. E aí sim, nós temos o Sutra vivo. Portanto, não pensem que é perda de tempo pensar, contemplar e repousar linha a linha, palavra por palavra, em cada expressão do Sutra do Coração. Esse é o processo pelo qual aquilo vai se tornar vivo e com a capacidade de operar. Quando o Sutra se torna vivo, com a capacidade de operar, o mantra faz sentido, pois o Sutra todo converge para o mantra “Om gate gate paragate parasamgate bodi soha”. Se o Sutra for apenas um conjunto de palavras, o mantra também será um conjunto de palavras, e não terá nenhum poder, mas se o sutra se tornar vivo, o mantra também se tornará vivo.
6.5. Meditação com o Mantra do Prajnaparamita
Quando nós olhamos para as coisas e dizemos “Om gate gate paragate parasamgate bodi soha” todas as coisas se dissolvem, a visão muda, a nossa experiência muda. Se o Sutra não estiver vivo, nós podemos recitar o mantra, mas nada acontece. Essa é a diferença. Nós precisamos ouvir os ensinamentos e contemplá-los com cuidado. Quando o ensinamento se torna vivo, o mesmo acontece com o mantra. Mas isso pode funcionar por um tempo, e depois pode se perder outra vez. Então nós precisamos praticar e sustentar essa visão. Desse modo, vamos descobrir o poder do mantra como algo verdadeiramente vivo e estável. E quando o poder do mantra surgir, nós poderemos testá-lo, e a melhor forma de vê-lo surgir é na ação.
Com o poder do mantra, podemos localizar as mandalas onde estamos presos, contemplar os nossos vários níveis de ignorância. Por exemplo, recitando o mantra, nós olhamos para a nossa vida comum, para a nossa identidade e para o sentido que atribuímos a nossa vida de um modo geral. É bem provável que na terceira recitação já nos demos conta de que perdemos tempo. Nós temos a sensação de que construímos artificialidades e ficamos presos a elas por um tempo vasto, tudo praticamente sem sentido. É como quem passou uma semana vendo televisão e de repente diz “Om gate gate paragate parasamgate bodi soha” e nada daquilo faz mais sentido.
Olhando a própria vida dessa forma, percebemos que durante muitos anos apenas saltitamos de um lado para o outro, mas não fomos a lugar algum, nada aconteceu. Nós olhamos as nossas mandalas, os mundos que criamos e por onde nos movimentamos, e ali não encontramos muito sentido. Por outro lado, ao olharmos tudo isso pode ser que também localizemos as inteligências dos Budas, ações virtuosas: “Eu fui compassivo, amoroso, cuidei das pessoas, eu tentei seguir um caminho, que em alguns aspectos foi útil, em outros, não”. Nós também localizamos esses méritos.
Ao percebermos as nossas mandalas, as nossas visões de mundo, de novo contemplamos a noção de Dharmata, esse espaço do Buda Primordial, que permite o surgimento das limitações, dos lokas, de Alayavijnana, como já foi descrito. Ao olhar esses mundos, nós vemos o nosso próprio mundo, e chegamos à conclusão de que é um mundo realmente estreito e de que estamos presos a ele por um tempo muito longo. A responsividade é o que nos aprisiona, e nós atribuímos um sentido sólido a todas essas realidades. Com isso, nós estamos olhando as mandalas da ignorância, as mandalas dos lokas, da roda da vida, e mais especificamente da secção da roda da vida em que nós estamos vivendo. Eventualmente nós podemos reconhecer que vivemos no reino dos fantasmas famintos, ou no reino dos seres invejosos, ou da infelicidade, nós podemos descobrir o reino onde operamos predominantemente. Essas constatações não são tomadas como sendo nós mesmos, mas como um obstáculo que pode ser ultrapassado, pois ele não é sólido. Pela primeira vez nós olhamos para os nossos obstáculos com o poder do mantra e descobrimos que eles não são sólidos, não precisamos nos aprisionar, nós podemos ultrapassá-los. Esse é um nível de prática com o mantra.
6.5.1. Recitando para os seres dos Seis Reinos
Nós podemos também, de um modo prático trabalhar com o mantra focando os seis reinos da roda da vida, um por um. Por exemplo, quando nós contemplamos o reino dos deuses, nós estamos nesse reino, estamos na verdade contemplando as nossas estruturas do reino dos deuses. E da mesma forma, seguimos por todos os reinos, contemplando a nós mesmos pela conexão com cada um deles. Se nós formos efetivamente capazes de olhar para esses reinos, para os seres desses reinos, um a um, e recitar desse modo, nós nos livramos do renascimento nesses reinos de sofrimento, mesmo dentro dessa vida nós nos libertamos dessa conexão.
Se nós não fizermos isso, qual é a nossa chance? Quem meditar em silêncio e conseguir estabilidade, encontra liberdade somente naquele momento. Nós precisamos olhar isso com cuidado, porque se nós praticarmos para os seis reinos desse modo, ao encontrarmos os seres desses reinos, eles não terão o poder de nos arrastar para esses mundos. Olhando para eles, recitamos o mantra, e dizemos “Você pode sair disso!”. Usualmente, nós não temos essa lucidez. Ao invés disso, quando encontramos os deuses, eles nos levam para o reino da felicidade; quando encontramos os seres agressivos, eles nos levam para a agressividade e medo; com os seres carentes, ficamos carentes, e assim por diante. Já em nossa prática, justamente porque rezamos por eles, reconhecemos que aquilo não é sólido, que eles podem fazer diferente, nós ultrapassamos as estruturas cármicas.
Se pretendemos nos libertar, isso só será possível libertando os outros seres. Libertar os outros seres é reconhecer que eles já são livres, que eles não estão solidamente presos em seus mundos. Precisamos ser capazes de olhar para os seres sem responsividade e sem congelá-los em suas aparências, pois assim estaremos libertando não apenas a eles, mas a nós mesmos. Esse é o processo, pois ninguém atinge a liberação pela exclusão. Nós atingimos a liberação ao incluirmos o outro dentro de uma visão de sabedoria. Não há possibilidade de atingir a liberação sozinho. Nós existimos num processo de relação, e a liberação pressupõe liberar todos esses processos de relação, começando pelos seis reinos. Esse é o poder do mantra. E o poder do mantra surgiu, porque nós pensamos, contemplamos e repousamos linha a linha, palavra por palavra do Sutra. Isso o fez vivo, assim como o mantra, que agora, sintetiza o sutra. E pelo poder do mantra nós recitamos para cada ser, mas sem congelá-los em suas aparências, reconhecendo a sua liberdade.
O reconhecimento de que os seres têm a liberdade de ultrapassar suas próprias limitações faz com que nós abandonemos o apego a nos tornarmos iguais a eles, e ao impulso de respondermos de forma automatizada aos outros. Esse é um nível de prática com o mantra. Existem cinco formas de usar o mantra, e essa seria a primeira delas.
6.5.2. Purificando Obstáculos Pessoais – Quadro de 240 itens
Nesta segunda forma de prática com o mantra, fazemos uma listagem de tudo aquilo que nos afeta, das agulhas que temos dentro de nós. Em verdade, carmicamente, nós estamos inteiramente fragilizados, pequenas coisas que aconteçam em algum lugar nos afetam e ardem dentro de nós. É com essa compreensão que nós fazemos uma listagem das situações aflitivas, ou potencialmente aflitivas. Pode ser uma lista de pessoas, situações e locais, do passado, presente e futuro; fazemos uma grade de obstáculos, seres desse mundo ou de qualquer outro mundo; seres do passado, fantasmas, monstros, seja o que for, aquilo que aparecer em nossos sonhos, acordados ou dormindo nós colocamos tudo na lista. Por quê? Porque na verdade não há nenhuma ilusão que seja na verdade uma ilusão, não há nenhum sonho paranóico que não seja real, pois a realidade das perturbações não está na solidez dos monstros, mas na solidez do carma que dá vida aos vários medos e atrações, ou seja, o carma está presente, senão aquilo não apareceria.
Portanto, nós não precisamos pensar se o problema é real ou não, ele é sempre real. Se você se sentir perseguido ou ameaçado, seja pelo que for, aquilo é real, não tenha a menor dúvida de que é real. Eu não quero, com essa afirmação, assustar ninguém, mas isso é real no sentido de que as nossas estruturas estão vivas, presentes, senão aquilo não iria aparecer. Logo, é melhor não empurrarmos essas estruturas para algum canto dizendo que aquilo não é real. Não, isso é real, está ali. Nós não enlouquecemos, aquilo está ali. Portanto, se vocês tomarem algum remédio, ele não vai resolver, vai apenas borrar a capacidade da mente reagir àquilo, mas as perturbações são infinitamente pacientes. Até agora ninguém descobriu um processo químico para a remoção do carma. O carma se manifesta por dentro do nosso corpo, e então tentamos manipular a reação do corpo ao carma, mas o carma segue ativo e aguarda a oportunidade de reaparecer.
Em ensinamentos preliminares, quando preferimos dizer “Isso não é real”, isso pode ser útil até certo ponto, mas agora, quando focamos as estruturas cármicas com a sabedoria do Prajnaparamita, os surgimentos deixam de ser fenômenos externos, para serem compreendidos como fenômenos das estruturas cármicas. Se algo aparece como uma fantasia paranóica, isso ocorre através da realidade da estrutura cármica presente. Nesse ponto da prática, não estamos mais pensando que há situações externas e precisamos saber se ela é real ou não, nós estamos agora trabalhando com as estruturas cármicas, não mais dentro da roda da vida, mas com a sabedoria do Prajnaparamita.
Sendo assim, o menor traço que aparecer é real, seja o que for, não tem mais sentido pensar que as coisas não são reais. Quando pensamos que elas não são reais, nós perdemos a possibilidade de ultrapassar os obstáculos. Se, por exemplo, nós temos um sonho no qual o nosso time de futebol é campeão nacional por dez anos, essa é uma estrutura cármica que se apresenta, não importa que seja um sonho. Portanto, nós fazemos uma listagem de todos os desejos, apegos, consideramos isso válido e usamos o mantra do Prajnaparamita para ultrapassá-los.
Quando nós fazemos a prática com o mantra, nós estamos trabalhando, em verdade, com o conjunto de ensinamentos do Sutra do Coração do Prajnaparamita, que fica condensado na forma do mantra. Ao fazermos a listagem de pessoas, situações e locais do passado, presente e futuro, nós abrimos a possibilidade de purificar esses elementos. Esse é um tema realmente importante, pois a meditação de purificação vai significar a nossa transformação. Quando pensamos em mudar, em melhorar, dito assim não fica claro o que é que muda exatamente, o que melhora, o que acontece de fato. Porém, quando examinamos o nosso surgimento como identidade, entendemos que as identidades surgem justamente pela forma como nos relacionamos com o mundo e com as várias circunstâncias que para nós parecem externas.
Através da sabedoria do espelho, entendemos que as relações são o aflorar das nossas estruturas internas nas aparências que surgem como se fossem externas. Quando nós mudamos por dentro, o que está fora também muda. Logo, se quisermos mudanças internas, nós podemos, com o mesmo objetivo, mudar a forma como nos relacionamos com o mundo externo. Esse seria um meio hábil. O modo como nós nos relacionamos com o mundo produz uma outra aparência para o mundo externo. E ao mesmo tempo, essa outra aparência do mundo externo produz uma nova forma de surgimento interno. Então, através de um método indireto, nós alcançamos as regiões internas.
De forma geral, mudar internamente parece difícil. Nós nem sabemos direito onde é que nós estamos. Nós procuramos, mas não encontramos muita coisa. Por quê? Porque essas regiões como Alayavijnana, não aparecem em si mesmas. Elas são algumas vezes comparadas com filtros coloridos para a luz. Se nós estivermos em um lugar escuro, o filtro não aparece, mas se houver a luz da consciência sobre aquilo, aí a cor aparece. Da mesma forma, as perturbações se dão na medida em que os eventos ocorrem. Os eventos é que produzem a possibilidade da aparência. Quando nós procuramos os nossos conteúdos internos, como por exemplo, a raiva, nós não encontramos. Não encontramos a raiva, nem a inveja, nem desejo e apego, não encontramos nada. Nós vamos encontrar essas emoções apenas em circunstâncias específicas. Para podermos trabalhar sobre as estruturas cármicas, as circunstâncias são necessárias, somente assim elas afloram. E, portanto, quando surge a oportunidade, nós tratamos de nos comportar de modo diferente, de estabelecermos relações diferentes com o mundo, ou com as circunstâncias, ou com os locais, ou com as pessoas, pois são eles que permitem o aflorar das nossas estruturas.
Assim, a vida cotidiana é o único local onde podemos praticar. A nossa purificação é, ao mesmo tempo, a purificação do mundo. Porque o mundo, como nós o vemos, é o produto das nossas estruturas, vem tudo junto, não há como separar. Por isso a importância de fazer essa listagem de pessoas, situações e locais. E pode ser do passado, porque se o passado nos incomoda, onde é que ele está? Ele está aqui! Quando nós pensamos que é passado, não é bem assim, porque se fosse passado não estaria nos incomodando. Se nós estamos focando o passado hoje, ele é um tema de hoje, não do passado. É curioso como algo, mesmo sendo do passado, pode ser transformado. Os sofrimentos, as dificuldades, todos eles podem ser alterados, podem mudar. O passado pode ser reprocessado. O passado também é uma forma de relação com as nossas memórias. E nós podemos trabalhar não só com o passado e o presente, mas com o futuro também. Quando nós pensamos no futuro, nós pensamos no futuro agora. Nós não estamos pensando no futuro adiante, nós sempre pensamos no futuro agora. O futuro também pertence ao presente. Logo, nós podemos trabalhar com ele. Em síntese, nós podemos purificar pessoas, situações e locais, seja no passado, no presente ou no futuro.
E quais são os conteúdos que afloram como problemas? Esses conteúdos estão listados no quadro de 240 itens, que caracteriza um conjunto de obstáculos. Nesse quadro, nós temos as seis emoções perturbadoras (orgulho, inveja, desejo e apego, preguiça, carência e raiva) e as dez ações não virtuosas (Corpo: matar, roubar, praticar sexo impróprio; Fala: mentir, agredir verbalmente, causar intriga, fala inútil; Mente: aversão, avareza e heresia) em quatro níveis: paisagem, mente, energia e corpo. Da relação desses elementos entre si surgem 240 itens. Por exemplo, através de uma emoção perturbadora como o orgulho, nós podemos manifestar as dez ações não virtuosas, ou seja, os impulsos e a energia correspondente a cada uma das dez ações não virtuosas. Desse modo, quando produzimos as ações não virtuosas a partir do orgulho, nós temos um surgimento. Esse surgimento já é o aflorar das estruturas de Alayavijnana, que são as nossas estruturas internas, aquilo que nos dá um nascimento e uma sensação de existência.
Mas em nossa prática, ao recitarmos o mantra, o orgulho não resistirá por muito tempo, pois o orgulho é uma manifestação construída, uma forma, e como forma, ele é vacuidade, não há substancialidade no orgulho. Existem práticas que fazem o orgulho desaparecer, mas aqui o orgulho pode existir, nós não precisamos derrubá-lo, pois as práticas mais sofisticadas não derrubam o orgulho. Por quê? Porque se nós derrubarmos o orgulho, o nosso objeto desaparece e não podemos meditar sobre ele. Então nós deixamos o orgulho aparecer. Para entendermos o orgulho, é melhor que o tomemos enquanto existente, enquanto experiência de orgulho, aí sim podemos contemplar.
A purificação do orgulho não é propriamente o desaparecimento dele, mas a sua vacuidade. Para poder ver bem a vacuidade do orgulho, nós vemos a sua forma, como ele surge, eventualmente sem nenhuma razão. E assim nós vamos olhando e podemos reconhecer a vacuidade do orgulho, da inveja, do desejo e apego, e das várias emoções perturbadoras, até a raiva. Nós vamos ver todas elas construídas dentro de um mundo fantasmagórico. Contemplando as emoções desse modo, vamos purificando um por um dos 240 itens.
Essa meditação é muito importante, nós deveríamos realmente testá-la. A própria prática do Prajnaparamita ganha densidade pelo surgimento das emoções perturbadoras em meio às condições da vida. É nesse contexto que a prática vai ganhar consistência. Essa é uma prática crucial. As outras práticas também são cruciais, mas sem esta prática não há possibilidade verdadeira de mudar, porque se nós não fizermos essa transformação, essa purificação, ainda que nós digamos “agora eu efetivamente mudei”, quando nós nos encontrarmos com as situações objetivas, elas estarão com a mesma face, iguaizinhas, e nós teremos os mesmos impulsos comuns.
Assim, é necessário que nós olhemos um por um desses processos de relação para que as mudanças efetivamente aconteçam. Tomamos a nossa família, os nossos vizinhos, o nosso trabalho, as pessoas que encontramos na rua, e vamos olhando todas essas situações e ultrapassando a fixação. Quando nós decidimos examinar essas pessoas, nós podemos também incluir seres de outros reinos, seres fantasmagóricos, seres de existência etérea, podemos incluir todos. Afinal, é possível que alguém se sinta ameaçado por seres de outras dimensões, isso pode acontecer. E nesse caso, não é necessário procurar outra tradição, a própria tradição budista pode resolver isso. Nós olhamos para esses seres e recitamos “Om gate gate paragate parasamgate bodi soha”. E aqui nós também vamos ver que há uma conexão cármica, não há dúvida. Se não houvesse conexão cármica, como é que isso iria aparecer? Não há como!
Portanto, seja o que for, ao aparecer nós agradecemos. Quando os problemas aparecem, nós dizemos “ótimo!”, é o momento exato para que em nossa relação com eles possamos purificá-los. Nós podemos, por exemplo, olhar os seres que nos assustam como seres profundamente ameaçadores, e justamente por isso, vê-los como protetores do Darma, porque ao nos ameaçarem, eles nos fazem praticar. Eles são realmente Bodisatvas, quando eles nos ameaçam, nós recitamos, praticamos, nos aproximamos dos ensinamentos porque nos sentimos de algum modo ameaçados. Então está bem.
Por outro lado, se olharmos o que eles realmente podem ameaçar, concluiremos que só se ameaça o que pode ser ameaçado. E o que pode ser ameaçado não é a natureza última. Então, em verdade, nós nos ligamos a coisas menores, e agora estamos aflitos. Essas coisas menores são as únicas que podem ser atacadas, porque a nossa natureza não pode ser atacada, não há como. Esses seres estão apontando diretamente para nossas regiões de dificuldade, nossas regiões de apego. Às vezes essas regiões são tão caras, tão preciosas, que nós relutamos em abandoná-las, em tirar a sua densidade e lutamos por elas até o fim.
Mas ainda sim, olhando com olhos de sabedoria, reconhecemos que nenhuma dessas áreas está livre da impermanência. Qualquer uma dessas áreas pode ser tocada pela impermanência. Uma vez que elas sejam alcançadas, é melhor que nos recuperemos rápido, ou seja, que compreendamos que a impermanência só toca aquilo que é construído, o que é limitado. Aquilo que corresponde a nossa natureza não pode ser tocado pela impermanência. Tendo compreendido isso, seria muito importante termos horários para fazer as práticas de purificação, que é a segunda forma de meditação usando o mantra.
6.5.3. Surgindo de Forma Positiva no mundo – Quadro de 200 itens
Na seqüência, nós temos a terceira forma de meditação utilizando o mantra. Nós vamos usar o mesmo Prajnaparamita, compreendendo como as construções são feitas, mas em vez de nos dedicarmos à remoção dos obstáculos, que foi o objetivo das duas formas anteriores de utilização do mantra, nós vamos usar o mantra como um poder construtor de algo positivo. Os aspectos positivos estão descritos no quadro de 200 itens. E aqui, nós podemos tomar a mesma lista de obstáculos e considerar que ela se refere a obstáculos nas relações.
Através da meditação de purificação, utilizando o quadro de 240 itens, nós removemos os obstáculos, mas através dessa terceira forma, com os 200 itens, nós vamos construir algo positivo. Essa construção vai se dar, inicialmente, através das cinco cores dos cinco Dianibudas, pelas quais nós vamos estabelecer uma forma lúcida de relação com os seres. Tomando a nossa lista de obstáculos, vamos supor que tenhamos um problema com alguém dentro de casa. Em nossa prática, vamos começar recitando o mantra do Prajnaparamita com a sabedoria do espelho, cor azul, ou seja, nós vamos dizer “Todas essas qualidades negativas que eu vejo nesse ser são, na verdade, inseparáveis de uma forma de olhar, e agora eu posso olhar a partir da Mandala do Lótus.” Dessa forma, nós construímos paulatinamente a Mandala do Lótus, ou a Mandala da Sabedoria dos Bodisatvas.
Se alguém está se comportando muito mal, nós podemos pensar: “Ele está se comportando mal, mas não quer dizer que ele seja assim, ele está assim”. E isso é muito interessante, porque, por exemplo, quando nos deparamos com alguém gripado, nós não vamos dizer “aquele ser é um gripado”, mas “ele está com gripe”. Essa é a forma de olhar através da cor azul. Nós escolhemos a forma de olhar, reconhecendo a natureza límpida do outro. Mesmo que o outro se manifeste de forma negativa, ele tem uma natureza límpida. O obstáculo que ele está manifestando é algo agregado, é algo artificial, construído. Então, nós olhamos com esses olhos.
Depois nós tomamos a sabedoria da igualdade e olhamos para a mesma pessoa pensando em como ajudá-la. Nós nos imaginamos fazendo algo positivo pelo outro. Com essa prática vamos perceber que quando o outro recebe aquilo que oferecemos e se transforma, nós nos alegramos. Nós descobrimos que essa prática é possível, e isso nos dá muito conforto e estabilidade, porque ajudar o outro deixa de ser artificial. Através da sabedoria da igualdade, nós nos damos conta de que ajudar nos deixa feliz.
Com a sabedoria discriminativa, focando a mesma pessoa, reconhecemos que o que ela está fazendo apenas a afasta de uma compreensão mais elevada. Nós entendemos exatamente onde é que estão os seus equívocos, os obstáculos. Através das Quatro Nobres Verdades e do Nobre Caminho de Oito Passos, nós examinamos as ações da pessoa, e com isso, constatamos que ela está presa à primeira nobre verdade, o sofrimento, porque ela construiu as causas desse sofrimento, que já é a segunda nobre verdade; a liberação é possível, mas está um pouco difícil; mas há um caminho para isso. Então, o nosso olhar não é de oposição à pessoa, mas o olhar da sabedoria discriminativa.
Já com o olho da sabedoria realizadora, que corresponde à cor verde, o Buda Amogaciddhi, nós entendemos que as ações positivas produzem resultados positivos, e as ações negativas, resultados negativos. Dessa compreensão brota o impulso de ajudar os seres a não cometerem ações negativas, e consequentemente, a não colherem o resultado dessas ações. Nós podemos intervir diretamente e ajudá-los a ultrapassar a fixação às ações negativas.
E finalmente, nós usamos a cor branca do Buda Vairochana, a sabedoria de Darmata, que produz a liberação das condições usuais da vida: nascimento, esforço pela vida, decrepitude e morte. A sabedoria de Darmata traz a compreensão de que todos os seres, incluindo os mais próximos, que vivem conosco em nossa casa, não importa como eles se comportem, todos estão presos a nascimento, esforço pela vida, decrepitude e morte. Não há saída, eles estão presos a isso. Logo, surge a compaixão para ajudá-los a superar essa condição. E o que verdadeiramente pode ajudar a superar essa condição é a sabedoria do Buda Vairochana, a sabedoria de Darmata, a compreensão daquilo que está além de vida e morte, além da impermanência.
Nesse sentido, focando a pessoa com quem temos problemas, nós recitamos o mantra do Prajnaparamita e superamos as cinco emoções perturbadoras. Superamos o orgulho, a inveja, desejo e apego, depressão ou ignorância, carência, raiva, rancor, ódio ou medo. Nós liberamos todas essas emoções, e depois nos reconstruímos. Nessa meditação, a terceira que estou descrevendo, geramos um olhar lúcido, olhamos e reconhecemos a natureza de Buda no outro, reconhecemos que ele não tem negatividade, a negatividade não é dele, é algo aderido. Nós fazemos tudo isso recitando o mantra. E, depois, nos alegramos em imaginar coisas positivas que possamos fazer pelo outro, e que o ajudem a reconhecer a sua verdadeira natureza e a superar as próprias negatividades, sempre recitando o mantra. Depois nós olhamos a doutrina, a sabedoria discriminativa, e avaliamos a ação do outro a partir das Quatro Nobres Verdades e do Nobre Caminho de Oito Passos e vamos recitando o mantra. E então, procuramos ver onde seria necessário intervir para remover a raiz dos seus obstáculos. E finalmente, contemplamos aquele ser se defrontando com a decrepitude e com a morte, e reconhecemos que ele tem uma natureza que ultrapassa tudo isso.
Com esses olhos, as relações vão mudando uma a uma, completamente. Se a pessoa nos venceu, ou se nós a vencemos, isso não tem a menor importância, porque toda vitória causal é uma vitória que hoje se dá e amanhã nós perdemos, e portanto esse não é o ponto. O jogo dentro do mundo não é o ponto. O ponto é mantermos a visão adequada, e a visão adequada brota dos cinco Dianibudas. Os nossos olhos vão se transformando em olhos de mandala, porque se para cada pessoa, situação ou local nós recitarmos e fizermos essa mudança, sempre que encontrarmos aquelas mesmas pessoas, situações ou locais irá brotar em nós a transformação que já fizemos. Com o tempo, em qualquer direção que olharmos, estaremos sempre olhando com esses olhos de mandala, onde as negatividades foram neutralizadas e os aspectos positivos foram ampliados.
Todos nós temos variadas situações aflitivas. Mas essas situações são sempre construídas, elas se referem a coisas que não são nossa verdadeira natureza, como por exemplo, o apego. Nós temos apego a nossa vida, ao nosso corpo, apego a continuarmos respirando, ou apego a determinadas circunstâncias, como não ficarmos contidos, trancados. Nós temos apegos muito sutis que se referem aos ventos internos, apego a cada um dos ventos correspondentes aos cinco elementos. Quando esses ventos surgem, nós somos impelidos a nos movimentar, é impossível não realizar alguma ação a partir desses ventos. Quando há o vento da respiração, do elemento ar, nós temos que respirar, pois se ficarmos contidos, sem poder respirar, ficamos alucinados. Na relação com o vento do elemento terra, nós fazemos força, se não pudermos nos esticar, nos mover, também ficamos mal. Com o vento do elemento fogo, sentimos calor, e é preciso extravasá-lo, caso contrário, passamos mal. Da mesma forma, se esse vento se deprimir, sofremos por frio, ficamos aflitos se não tivermos um agasalho qualquer.
Mas em qualquer uma dessas circunstâncias, é possível reconhecer a vacuidade dos próprios ventos. Não há nenhuma sustentação sólida, eles são lung, vacuidade. Com essa compreensão, superamos essas aflições também. Esses lungs também são o teor dos nossos sonhos. Nós não sonhamos racionalmente, mas pela configuração dessas energias e lungs. Então, as estruturas de aflição, mais ou menos sutis, estão todas presentes. E com cada uma delas nós praticamos o sutra e recitamos o mantra do Prajnaparamita, liberando as fixações cármicas. E assim, nós completamos o quadro de 200 itens.
6.5.4. A Coragem Desestruturadora de Samsara
A quarta forma de meditação com o mantra, foi recomendada pelo próprio Guru Rinpoche. Ele nos aconselha a gerar um desencantamento em relação ao samsara. Nós deveríamos ter essa coragem. E este, não é um ensinamento introdutório. De modo geral, eu não gostaria de levar meus filhos para cumprir essa recomendação de Guru Rinpoche, pelo menos por enquanto. Mas Guru Rinpoche sugere irmos a lugares como abatedouros de gado, ou salas de necropsias, locais onde pessoas foram assassinadas, especialmente pessoas que um dia tiveram vitórias, eram poderosas. Nós vamos a esses lugares e contemplamos a sua derrota. Deveríamos olhar isso com cuidado, porque daí virá a maturidade do desencanto em relação ao samsara. De acordo com as instruções de Guru Rinpoche, nós vamos a esses locais, sentamos e contemplamos até surgir uma depressão, uma poderosa depressão, segundo Ele. Essa depressão corresponde ao desencanto completo em relação ao samsara. Ou seja, samsara não nos leva a lugar algum. Essa é uma prática poderosa.
A sugestão é que nos deparemos com essas circunstâncias, usando os olhos do Prajnaparamita. É assim que vai surgir uma coragem desestruturadora de samsara. O objetivo não é nos fixarmos nessa depressão, mas percebermos tudo isso como vacuidade. Tomamos as derrotas das pessoas, por exemplo, e recitamos o mantra do Prajnaparamita. É possível ficarmos presos à depressão, mas melhor que isso é reconhecermos como as vitórias e as derrotas são vacuidade, não há nelas nenhuma substancialidade. Nós nos liberamos recitando o mantra do Prajnaparamita, e também olhamos esses seres e os ajudamos a se liberarem. E como nós ajudamos esses seres? Se eles entenderem a realidade que eles viveram, então isso pode produzir a liberação. Porque justamente a fixação àquilo que é limitado é que produz a sensação de derrota. Mas se houver o olho de sabedoria, eles ultrapassam. É assim que a consciência dos seres é liberada. Mesmo que a pessoa já tenha morrido, nós reconhecemos que a natureza última não foi atingida por qualquer desgraça. E então nós vamos para os piores lugares e recitamos para os seres.
Desse modo, nós praticamos a coragem desestruturadora de samsara, e ao mesmo tempo a liberação das suas condições negativas. Por isso é que um bom lugar são as portas de pronto socorro, cemitérios, etc. Os cemitérios são ótimos, nós podemos ir todos os dias ao cemitério, passar por todas as capelas, recitamos o mantra do Prajnaparamita, ao final assinamos o livro de presença e vamos embora. Passeamos pelos túmulos e paramos diante dos mais bonitos e dos mais humildes também, todos eles tem energias que se dissolveram. Essas energias, ainda que a pessoa pensasse “Eu sou isso”, ela não era, tudo foi apenas uma ilusão. Mas a natureza luminosa segue. Assim nós podemos liberar os seres. Eles pensam que morrem, mas eles não morrem na verdade.
7. Confiança no Prajnaparamita – Ação sem Esforço
Essa meditação do Prajnaparamita converge para o que nós vamos chamar de ação sem esforço, o que é muito importante, porque ela á e a culminância da prática. Eu descrevi quatro formas de meditação com o mantra, e agora nós vamos fazer uma prática em que já não há o mantra, mas a prática da confiança no Prajnaparamita. Por termos passado pelas várias circunstâncias onde as pessoas surgiram e afundaram, onde os seres tiveram suas derrotas, terminamos por solidificar em nós a clareza sobre aquilo que não morre, aquilo que não cai, não aumenta e não diminui, aquilo que é estável. E essa natureza estável, nós entendemos que ela está presente mesmo quando tudo afunda, ela continua estável. Ao compreender isso brota a confiança no Prajnaparamita.
Portanto, nós sentamos em silêncio - em silêncio interno - mesmo em condições aflitivas externas, e repousamos nessa natural presença. Essa natural presença é construtora de todas as coisas. E ela não só constrói, como sustenta, e também dissolve aquilo que é ilusório. Ela é construtora, preservadora e destruidora, ela atua incessantemente. E nós contemplamos isso, contemplamos esse mistério, fora da influência dos aspectos comuns de todas as coisas. Quando despertamos esse olho que vê o aspecto comum, e vê a natureza última incessantemente presente, então, o aspecto comum fica muito pequeno, um traço pálido. E diante dessa experiência, desde essa natureza, pode surgir a pergunta: “Como é que nós nos fixamos por um tempo tão longo em coisas transitórias?”.
E não há esforço nisso, nós não estamos nos afastando de alguma coisa negativa que quer nos prejudicar para ir a um outro lugar difícil de chegar. Não é isso. Seja qual for a experiência, isto está internamente presente. Nós praticamos essa confiança e nada mais. O aspecto culminante dessa confiança é tal, que depois não há nem confiança, ela não é necessária, há apenas a natural presença. Ela é confiante porque não há temor, e por reflexo nós dizemos que há confiança, há uma lucidez natural. Essa é a culminância da compreensão do mantra do Prajnaparamita, é o ponto final da nossa prática.
O reconhecimento dessa manifestação natural, não fabricada e naturalmente protegida também, permite o terceiro nível da prática. O primeiro nível da prática é visão, o segundo é meditação e o terceiro é ação. Quando a confiança se estabelece, a ação pode se exercer. Nós podemos andar no mundo mantendo essa lucidez não fabricada, não artificial, natural. Desse modo, junto com as aparências que surgem diante de nós, há as sabedorias que brotam e oferecem a clareza sobre como ajudar os seres e como se comportar no mundo, sem a necessidade de nenhuma artificialidade. Aqui está o ponto final.
8. A Prática dos 17 itens
Mas depois de todo ponto final, vem um outro ponto! E qual seria o ponto depois desse ponto final? O ponto depois do final é a nossa realidade, ou seja, nós não estamos com essa bola toda, isso não é tão simples assim. Então é bom que nós tenhamos uma prática mais real, mas que essa prática una a possibilidade de chegarmos a esse ponto. E eu tenho uma sugestão que é a prática que eu tenho chamado “A prática dos 17 itens”. É uma estrutura compacta, e, portanto ela também não é muito fácil de seguir, mas ela fica como um referencial para a prática que possamos fazer. Então vamos para os 17 itens.
8.1. Superação dos Obstáculos Cognitivos
Como a nossa experiência de mundo é variada, eu vou descrever essa experiência usando uma expressão única, vou simplificar dizendo “diante da nossa experiência de mundo”, seja ela qual for. Então, diante da nossa experiência de mundo, nós superamos os nossos obstáculos cognitivos. Um obstáculo cognitivo seria, por exemplo, uma afirmação do tipo “a única coisa aceitável é a vitória”. Se nós estivermos fixados ao aspecto cognitivo, teremos problemas. De acordo com a nossa prática nós superamos isso, reconhecemos que é uma construção. E esse é o primeiro item.
Vamos supor que haja stress em nossa relação com alguém. Para descobrir o obstáculo cognitivo, nós paramos e vemos qual é a explicação que daríamos para esse stress. Pode ser que a explicação seja essa: “Há muito tempo nós fizemos um acordo e estava tudo muito claro, o acordo era assim...”. É dessa forma que começamos a explicar todos os obstáculos cognitivos. Portanto, nós nos imaginamos explicando para alguém a nossa razão em uma disputa. A explicação irá revelar os obstáculos cognitivos. A nossa argumentação parece completamente certa, real, concreta, mas não é assim. E também não quer dizer que seja o oposto, mas apenas que tudo pode ser construído de outro modo. Esse é o ponto.
A configuração que se apresenta foi criada por nós, e ela termina nos aprisionando. Isso não quer dizer que nós vamos simplesmente concordar com a outra pessoa, ou que nós vamos nos tornar uma ovelhinha. Não é isso. Nós não precisamos concordar com nada, mas nós podemos entender que há muitas formas de construir as realidades. Nós não precisamos nem mesmo ficar presos nisso. As nossas identidades que estão no meio desse stress também são construídas. Se estivermos em dificuldades podemos nos perguntar: “Daqui a cinqüenta anos o que eu pensarei sobre esse assunto?” Ou se a dificuldade for ainda maior, podemos pensar: “O que as estrelas no céu diriam sobre essa questão tão séria?” E assim, vamos ver que aquilo não tem muita importância. Daqui a 300 anos o que as pessoas vão lembrar dessa questão tão grave? Nós vamos chegar à conclusão de que o fato do nosso irmão ter tomado a nossa coca-cola que estava na geladeira não é tão grave assim! Nós não vamos conseguir explicar isso daqui a 300 anos. Portanto, os obstáculos cognitivos começam com as explicações que parecem reais e concretas, mas que podem ser superadas.
8.2. Superação dos Obstáculos no nível de Lung
Depois de reconhecermos o obstáculo cognitivo, pode ser que nós o tenhamos superado apenas teoricamente. Por dentro ainda sentimos um fogo secreto, e aí descobrimos que o obstáculo segue no nível da nossa energia. A nossa energia continua perturbada e, portanto, precisamos superar os obstáculos no nível de lung. Essa não é uma etapa realmente fácil, porque dito assim, está muito simplificado, mas em verdade nós deveríamos purificar completamente os nossos obstáculos cognitivos, em relação a qualquer coisa. Isso é o que está sendo descrito até agora com a prática do Prajnaparamita. Neste ponto estamos tratando especificamente do caminho da meditação para a superação dos obstáculos cognitivos e no nível de lung. Tudo o que foi explicado converge para essa explicação tão simples. Esses são os dois primeiros objetivos.
8.3. Sentar na Confiança no Prajnaparamita
O terceiro item parece mais fácil: nós sentamos na confiança no Prajnaparamita. Nós temos confiança, e se quisermos testá-la, vamos a lugares, conforme nos recomenda Guru Rinpoche, com cobras, escorpiões, aranhas, ou seja, lugares com energia própria. Aí nos sentamos serenos e pensamos “últimos instantes dessa vida”. Essa é uma prática em que os obstáculos vão surgir como seres ao nosso redor. Nessas circunstâncias sobra apenas o quê? Apenas o refúgio na natureza última (e o mais rápido possível!). Repousamos naquilo que verdadeiramente somos. Quando a derrota é completa só nos resta o que nós somos. As identidades não têm lugar. Isso é fantástico! Esse é o terceiro item. Nós podemos também riscar da lista as cobras e escorpiões, e sentarmos em uma sala como essa, confortável, e repousarmos na presença, na confiança no Prajnaparamita, confiança não elaborada, não artificial. Esse é um bom tema para retiros longos.
Enquanto repousamos nessa presença, é como se estivéssemos no nível da espacialidade última, o espaço infinito. Espaço infinito é céu. Os elementos são quatro, mas em realidade, podemos falar de seis: terra, água, fogo, ar, éter, e o sexto elemento, do qual nós estamos falando agora: céu. Portanto, nós estamos nesse aspecto de vacuidade: céu, dharmata, natureza búdica, nada que diga respeito a qualquer aspecto do mundo, de samsara. E aqui nós podemos reconstruir a nossa manifestação no mundo. Nós literalmente surgimos do céu, como sua emanação.
8.4. Reconstrução a partir do Lung dos Cinco Elementos
O primeiro elemento da emanação desse céu, é a ausência de qualquer motivação, há apenas liberdade. É com o elemento éter que vai surgir eletricidade, ela vai vir pela motivação. Os nossos olhos fitam os seres e vêem o seu sofrimento, e assim brota amor e compaixão. O amor e a compaixão pelos seres produzem uma eletricidade e um propósito, que é o elemento éter. Vamos nos imaginar de manhã cedo, acordando, e não propriamente nesse céu, mas no reino da obtusidade mental. No meio disso, pode haver uma compaixão residual, que sacode a obtusidade mental do elemento éter para uma eletricidade do tipo “compaixão”: fazer o café das crianças, por exemplo. Também pode ser algo menor, como correr ao banheiro para fazer xixi. Mas o melhor é fazer surgir compaixão. Um outro exemplo: está frio, e pensamos “será que o meu filho está coberto? Eu aqui aquecido, mas está frio, será que o meu filho não se descobriu no meio da noite? Ah, mas eu estou muito cansado, eu não vou até lá.” Mas se surgir compaixão, surge a eletricidade. Quando a compaixão produz eletricidade é sinal de que o elemento éter se instalou. E se o elemento éter se instalar, nós vamos naturalmente encher os pulmões, respiramos, e quando os pulmões se enchem surge o lung do elemento ar.
Quando enchemos os pulmões, isso não é algo cognitivo, é devido ao lung. E quando nós respiramos, o nosso corpo se aquece, a energia percorre o corpo, o elemento fogo surge. Quando o elemento fogo surge, o elemento água, que é a mobilidade, também surge, e aí nós nos movemos. Quando nós nos movemos, sentimos a energia do nosso corpo, e nós nos levantamos: o elemento terra surge. E assim estamos com todos os elementos presentes: terra, a firmeza do corpo; água, a mobilidade; fogo, a energia, o calor; ar, a nossa respiração completa; éter, o propósito, a eletricidade. É dessa forma que nos levantamos e vamos ao quarto do nosso filho ver se ele está coberto. Depois voltamos felizes, deitamos de novo e tratamos de apagar o elemento terra, e ficamos pesados de novo; o elemento água, cessando o movimento; o elemento fogo, nos aquietando e buscando calor mais de fora do que de dentro; o elemento ar, esvaziando os pulmões, e assim voltamos a nos afundar no reino dos animais. Um por um dos lungs, eles vão se apagando.
Mas na condição dos Bodisatvas, diferente do reino dos animais, nós estamos completamente lúcidos, com os olhos abertos, presença serena, lúcida, sem esforço, compreendendo todas as realidades com olhos de Prajnaparamita. Desse ponto, nós surgimos para ajudar os seres, brota o impulso de ajudá-los. Quando Buda Shakiamuni atingiu a iluminação, ele pensou: “como é que o problema surgiu?” E ele teve lucidez sobre os Doze Elos da Originação Interdependente, compreendeu como os obstáculos surgem e como podem ser dissolvidos. Ele viu que percorrendo os doze elos no sentido inverso, os obstáculos e o sofrimento poderiam cessar. E dessa compreensão é que surgiu a energia que o fez levantar e se dirigir aos seus primeiros cinco alunos, que foram os seus companheiros durante vários anos.
Durante toda a sua vida, o Buda Shakiamuni vai se movimentar a partir dessa energia, que é a energia de compaixão, essa eletricidade. Esse ponto é muito importante para nós, e daqui nós fazemos surgir os cinco elementos, não propriamente a matéria dos cinco elementos, mas o lung dos cinco elementos, a energia de acionamento. Quando nós estudamos, por exemplo, o processo da morte, entendemos que a morte começa com a dissolução do lung do elemento terra. Quando o lung do elemento terra se dissolve, o corpo fica pesado, é difícil levantar o braço. Dessa forma nós vamos lentamente nos aproximando da morte, o corpo fica pesado. Em seguida a mobilidade se torna difícil, o que corresponde à dissolução do elemento água, já não há mais a retenção de líquidos. Na seqüência, vem a dissolução do elemento fogo, o corpo esfria. Nós ainda estamos vivos, mas o corpo esfria. Depois disso, vem a dissolução do elemento ar, a respiração fica muito difícil, até o ponto em que ela cessa. Mas vida não cessou ainda. Temos ainda a dissolução do elemento éter, ou seja, a eletricidade que opera e mantém os sentidos físicos funcionando. Nesse ponto sobrevém a morte.
Mas nesse momento, nós estamos fazendo o caminho inverso. Vindo dessa região ampla de lucidez, estimulamos através da compaixão o elemento éter, e essa eletricidade é que acende os sentidos físicos. Depois nós ligamos o elemento ar, e o lung vem. Do mesmo modo o lung do elemento fogo aparece, e também do elemento água e do elemento terra, e aí estamos firmes. Assim, temos o surgimento do lung de cada um dos cinco elementos. Até aqui completamos oito dos dezessete itens.
8.5. Manifestação das Cinco Sabedorias
Na condição de lucidez, precisamos adicionar os elementos de sabedoria, que são os cinco Dianibudas. Na verdade os cinco Dianibudas, cada um deles, tem quarenta itens, porque o seu surgimento se dá em quatro níveis (1. paisagem, 2. mente, 3. energia e 4. corpo), e a partir das dez qualidades (1. amor, 2. compaixão, 3. equanimidade, 4. alegria, 5. generosidade, 6. paz, 7. moralidade, 8. energia constante, 9. concentração e 10. sabedoria). Relacionando todos esses itens, nós temos quarenta para cada sabedoria de cada um dos cinco Dianibudas. Por exemplo, o item 9 é a cor azul, o Buda Akshobhya. Somente esse item se subdivide em quarenta outros. O item 10 tem mais 40 subitens, e assim por diante até o item 13, completando os cinco Dianibudas. Temos, portanto, até aqui, 13 dos 17 itens.
8.6. Verdade
E assim o que nós fizemos até agora? Nós liberamos todas as nossas conexões com a roda da vida através dos dois primeiros itens. No terceiro, repousamos em uma condição de liberdade. Nos cinco próximos itens, geramos corpo, fala e mente úteis para agir no mundo, e nos últimos cinco, geramos as sabedorias como forma de ação física no mundo. E agora estamos prontos! Com treze itens nós chegamos a essa condição. Porém esses treze itens representam um único item que será o décimo quarto, que é a verdade. Ou seja, os treze itens são “verdade”, aquilo que nós temos que praticar.
8.7. Coragem
Mas para praticar a verdade, nós precisamos de coragem, porque essa verdade é muito diferente da verdade convencional no mundo. Nós precisamos de coragem para viver coerentemente essa verdade.
8.8. Paciência
E mesmo que nós assumamos essa verdade e tenhamos coragem, nós vamos ter falhas, e, portanto, precisamos de paciência. Paciência com nós mesmos, sem julgamento, sem cobrança, apenas refazemos a motivação e seguimos com a prática. E essa paciência, o fato de que não vamos nos cobrar nada, converge para a perseverança.
8.9. Perseverança
A essa altura, nós nos mantemos simplesmente refazendo a motivação. Cada vez que algo não vai bem, nós refazemos a motivação, arrumamos tudo e vamos seguindo. Dos dezessete itens, os dois primeiros são de purificação, e o terceiro, de liberdade. Os dez itens seguintes são de construção positiva no mundo, e os quatro últimos, o caminho de prática: reconhecemos os ensinamentos como verdade, reconhecemos a necessidade de coragem para segui-los coerentemente, de paciência com nós mesmos diante das nossas falhas, e a necessidade de manter a perseverança. E com isso, completamos os dezessete itens.
Aqui no Cebb, tratamos esses dezessete itens como o resumo do caminho, e cada um de nós está em algum ponto desse roteiro, e é o que nós vamos terminar por cumprir. Até aqui tornamos claro item por item, subitem por subitem, tentando praticar no nível de paisagem, mente, energia e corpo, superando os obstáculos. Esse é o fio que percorre todas as nossas ações. Nossas ações são meios hábeis, contas pelas quais passa esse fio que estamos percorrendo, e cada um de nós está em algum ponto.
Ao final de tudo surge esse processo livre de ação no mundo, que é ação baseada na natural confiança. Ela não é baseada em uma confiança reflexiva, pois ela dispensa a confiança baseada em alguma reflexão, é uma confiança residente, natural. A razão disso é que estamos na mandala da perfeição da sabedoria dos Bodisatvas, auxiliando os seres em meio ao mundo. Esse é o último ponto, e com isso encerramos esse ensinamento sobre o Prajnaparamita.
9. Refúgio
E agora nós vamos para o refúgio, que eu vou explicar fazendo a conexão com o que nós estudamos até agora. Esse ponto dos ensinamentos é um ponto perfeito para fazermos a prática de refúgio. O refúgio pode ser feito no início de tudo, ou pode ser feito no fim, porque essencialmente, o refúgio é a compreensão de que tudo o que é construído cessa e, portanto, é melhor que o nosso apoio, o nosso referencial seja algo verdadeiramente seguro. No budismo nós fazemos a cerimônia de refúgio como um processo formal, no qual nós dizemos “sim, eu me refugio naquilo que é ilimitado. Eu reconheço que o que é limitado não me oferece segurança. Eu tomo como referencial aquilo que é verdadeiramente seguro”. E o que é verdadeiramente seguro está representado pelo Buda Primordial. O Buda Primordial é o que há de verdadeiramente seguro.
Quando fazemos o refúgio diante do Buda Shakiamuni, nós o entendemos como expressão do Buda Primordial, não pensamos no Buda Shakiamuni em sua aparência física, porque a própria aparência física do Buda Shakiamuni desapareceu, portanto, ela não é uma boa fonte de refúgio. Mesmo a lembrança do Buda Shakiamuni não é uma boa fonte de refúgio, uma vez que irão surgir os tempos de degenerescência onde a própria lembrança da tradição budista irá cessar. Nós estamos em um tempo afortunado em que mil budas virão, e cada um dos budas que virá, virá quando a luz do buda anterior se apagar. Então se nós tomarmos a lembrança de um buda como nosso refúgio, esse não é o refúgio último, porque como está dito nos ensinamentos do próprio Buda Shakiamuni, a lembrança de cada um desses budas vai cessar. E assim, o nosso refúgio é o Buda Primordial, ou a manifestação dos budas enquanto uma emanação do Buda Primordial.
Nesse caso, também podemos olhar o próprio altar. Ainda que o altar surja composto de elementos transitórios, ele é uma emanação do Buda Primordial, e uma emanação do Buda Shakiamuni, porque é a energia deles que faz surgir dentro de nós o impulso de construir e manter um altar, pois em um nível sutil o Buda está presente. É nesse Buda que nós tomamos refúgio. Se nós ainda não conseguimos tomar refúgio nesse Buda, tudo bem. Nós tomamos refúgio nas manifestações do jeito que for possível, mas essencialmente nós vamos tomar refúgio nessa dimensão mais profunda que habita em nós.
O segundo refúgio é o Darma. Para aqueles que já estudaram, contemplaram, meditaram, ao ouvirem ou lerem as palavras dos ensinamentos em algum lugar, sentirão que aquilo ressoa dentro de si mesmos. As palavras são transitórias, os textos são transitórios, mas há uma audição interna, um ser interno que fala em nós, há um Darma vivo que brota dentro de nós. Então nós tomamos refúgio nesse Darma, que é a própria manifestação do Buda Primordial em nós. Se nós tivermos essa experiência, nós tomamos refúgio, se não a tivermos, tomamos refúgio nos ensinamentos como o Buda ensinou. Se pudermos verdadeiramente entender, assimilar esses ensinamentos como o Buda falou, então isso é tomar refúgio no Darma, nós tomamos isso como nosso referencial, como as recomendações que nós seguimos.
E nós deveríamos também tomar refúgio na Sanga, a terceira das Jóias. O refúgio na sanga se traduz como os nossos companheiros. Esse é um ponto em que há certa resistência por parte das pessoas, porque elas dizem “Se no grupo, eu sou um dos melhorzinhos, ao tomar refúgio nos outros, eu estou perdido! Há alguma falha aqui, eu não sei qual é, mas há!” Portanto, como tomamos refúgio na Sanga? A Sanga também tem um aspecto sutil, ela é o próprio Buda. Do mesmo modo que o altar não pode ser reduzido aos objetos, a sanga não pode ser reduzida às pessoas que estão aqui dentro. Em nosso caso, nós estamos aqui desde ontem, o que não é comum. Eu não sei se alguém já fez isso, ou seja, dedicar dois dias para ouvir ensinamentos, passar dois dias ouvindo algo sozinho. Isso não é fácil. Mas quando nos reunimos em grupo, somos capazes de sentar no chão durante dois dias. Se em casa fizermos isso por dois dias, é provável que acabemos em uma clínica psiquiátrica, todos os vizinhos vão querer saber o que houve, o que é que fizeram conosco, porque é que estamos tão mal (risos). Vamos receber telefonemas, cartas, torpedos de todo mundo, todos vão querer nos arrancar dali, de qualquer jeito.
Já aqui, não. Nós achamos normal estar aqui há dois dias, e não estamos pensando que há uma região do corpo que está aquecida, um pouco estressada, nós esquecemos isso. Também não estamos pensando nas costas, nos joelhos, estamos e permanecemos aqui. Isso é a sanga. A sanga é a energia, o lung, o buda se manifestando no nível sutil, como lung. O Darma surge como lung e a sanga também. Isso é maravilhoso. Por exemplo, se é necessário limpar a sala de meditação, mas tem apenas um limpando, há uma tristeza infinita. Mas se tem dois, a energia já dá um salto, e se três então?! Já tem general, coronel e soldado! (risos). Aí surgiu alegria, e nós vemos a sanga. Portanto a sanga não é o conjunto de pessoas, mas a energia que brota. Essa energia é muito importante, porque quando ela vai ocorrendo, as nossas escolhas pessoais vão sucumbindo a essa energia, vão se entregando. E por isso os atritos são bem vindos, porque eles ajudam a purificar. No Zen se diz que o pilão bate, e o grão de arroz em atrito com o outro solta a casca. Essa é uma boa imagem. A sanga é esse poder, a capacidade de produzir essa alteração interna em nós mesmos, esse fogo que não é nosso, mas é nosso ao mesmo tempo, e que faz as transformações acontecerem. E assim nós tomamos refúgio no Buda, Darma e Sanga.
Em verdade é muito difícil avançar sem a sanga. A sanga já o Buda e o Darma juntos. Não há possibilidade de atingirmos qualquer realização sem a sanga. A sanga só vai se ampliar. No início a sanga são as pessoas, mas depois ela se estende até a biosfera. Tudo aquilo que é inseparável de nós, interconectado, tudo aquilo que nossos olhos tocam tem um surgimento coemergente conosco. Se ocorrer um pensamento do tipo “Eu estou iluminado e o meu problema é a sanga”, isso não seria muito adequado. Por quê? Porque se os nossos olhos estão puros, a sanga está pura, não importa o que as pessoas façam. Mas se os nossos olhos estão impuros, nós vamos ver sempre impureza na sanga. Aqui está um bom medidor, um “iluminômetro”. O número de seres que nós somos capazes de incluir com um olho compassivo e lúcido, isso é o que vai determinar o nosso avanço no caminho. Mas se nós não conseguirmos nem mesmo com a sanga, então a situação é grave. Nós estamos com problemas, é certo! E se esses problemas se manifestam na sanga, eles se manifestam em todo lugar, isso é matemático.
A sanga é o nosso caminho de prática, é o nosso lugar, quer seja uma sanga formal, uma sanga budista, ou as pessoas que nós encontramos em nossa família, no mundo, no trabalho, todas elas enfim são a sanga. Não há possibilidade de atingirmos a liberação sem olharmos para essas pessoas, sem olharmos de forma benigna para todos os seres, sem reconhecermos a sua natureza ilimitada. Se estamos repousados na natureza ilimitada, para tudo o que olharmos veremos a natureza ilimitada. Da mesma forma, se estivermos nos infernos, tudo o que olharmos estará nos infernos também.
Por isso, vamos tomar refúgio nas três jóias - Buda, Darma e Sanga - de uma forma mais sutil, ou menos sutil, de acordo com a possibilidade de cada um. Hoje estamos reunidos aqui, e vamos dar seqüência a essa cerimônia. Nos ensinamentos tibetanos há seis refúgios e não apenas três. Os outros três refúgios são também manifestações dessas três jóias. O quarto refúgio seria o Lama. O Lama é considerado uma manifestação das Três Jóias, inseparável delas. Por quê? Porque o brilho e a sabedoria do buda é que vai emanar o Lama. Se não houver esse brilho, não há Lamas. E os Lamas vão ensinar o Darma, o que vai terminar dando origem às Sangas. Os Lamas participam das Sangas, eles mesmos são membros da Sanga.
Por outro lado, o Buda, Darma e a Sanga, dão origem aos Lamas, e ao mesmo tempo os Lamas dão origem às Três Jóias, porque as pessoas não conhecem o Buda, os Lamas trazem o Buda; as pessoas não conhecem o Darma, os Lamas trazem o Darma e fazem o Darma se tornar vivo; não há Sanga e aí a Sanga surge. Esses quatro itens estão juntos: Buda, Darma, Sanga e Lama. Algumas tradições têm quatro refúgios e não seis. Por exemplo, a tradição Bonpo do Tibet, e todas as tradições do Dzogchen têm quatro refúgios: Buda, Darma, Sanga e Lama. Elas vão até Guru Yoga, mas não há Ydans.
O quinto refúgio é justamente o Ydam. Em nossos estudos, nós começamos com a noção do Buda Primordial, os cinco Dianibudas, depois Cherenzig, etc. E também entendemos o lung desses elementos de sabedoria, entendemos os Ydans. Dessa forma, podemos dizer “A minha manifestação é Prajnaparamita”, ou “A minha manifestação é Manjurshiri”, ou ainda, “A minha manifestação é Cherenzig”. E aqui nós entendemos a história de S. S. Dalai Lama, é como se ele, o menino que foi encontrado aos dois anos de idade, tivesse morrido. A continuidade emocional, psicológica que veio de outras vidas ou elementos que ele carregava da própria família, nada disso tem qualquer importância. Ele agora é Cherenzig. Por quê? Porque a energia que o movimenta agora está completamente purificada, de tal modo que a sua ação, em corpo e identidade, surge unicamente para proteger os outros seres. Mas isso não é fabricado, não quer dizer que ele tem um horário para fazer isso, isso é o que ele faz o tempo todo. Então ele se torna uma emanação de Cherenzig. Esse é o aspecto perfeito, ele é o Ydam. O Ydam é Cherenzig, essa energia viva de proteção dos seres.
Mas quando S. S. Dalai Lama morrer, o Ydam não morre, nem envelhece, nenhuma ruga surge. Ele segue se manifestando em outros seres, como hoje ele se manifesta em S. S. Dalai Lama, e em outros grandes lamas. Por quê? Porque é como a lua no céu, cujo reflexo pode se visto em muitos diferentes lados. O Ydam é como essa lua de compaixão refletida no lago da nossa mente, e da mesma forma na mente de outras pessoas. Se nós nos confundirmos com esse ser, nós podemos pensar “Quando eu morrer, esse Ydam se apaga”. Mas não se preocupem, os Ydams não se apagam. As inteligências de sabedoria nesse nível não cessam. Elas estão incessantemente presentes. É desse modo que vamos reconhecer a existência dos Ydams, como algo concreto, real, poderoso, mais real do que nós mesmos. Porque nós surgimos, temos uma data de nascimento, e dentro de cem anos ou um pouco mais, nós morreremos, podemos contar os dias. A energia que nos movimenta, ela sucumbe, apenas o seu aspecto puro é que segue, mas nós não somos Ydams.
As qualidades como amor, alegria, compaixão, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria são qualidades dos Ydams. Elas não são propriedades de alguém. A pessoa pode ser compassiva, mas a compaixão nunca vai ser uma propriedade sua. Essa é a diferença entre os Ydams e as pessoas. Os Ydams representam essas qualidades. E então nós tomamos refúgio nos Ydams, ou em um Ydam. Vamos supor que o nosso Ydam seja o Prajnaparamita, ou Manjurshiri, e assim nós tomamos refúgio nessa dimensão de sabedoria.
O sexto refúgio é Dakini. Dakini significa a lucidez pela qual nos deslocamos em meio ao mundo sem sermos afetados pela causalidade do mundo. A maior parte das pessoas fica presa ao nível de causalidade da sua própria identidade. Mas as Dakinis representam a habilidade de se deslocar em meio ao mundo sem nenhum tipo de prisão a expectativas ou convencionalidades, ou limitações, simplesmente ancoradas na confiança no Prajnaparamita. Elas se movem completamente livres, purificando tudo o que fazem pela lucidez do Prajnaparamita. E assim nós temos os seis refúgios.
Texto originado dos ensinamentos de Lama Padma Samten, proferidos em retiro no Cebb Curitiba,
em junho de 2006.
Transcrito e editado por Márcia Baja.
Que todos os seres possam reconhecer sua verdadeira natureza!