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Tabela de conteúdos
- PSICOLOGIA BUDISTA
- INTRODUÇÃO
- EXPERIÊNCIA: IMPERMANÊNCIA, VACUIDADE E LIBERDADE
- MÉTODO DA PSICOLOGIA BUDISTA: RECONHECER A LIBERDADE
- 12º Elo – Janamarana - Envelhecimento e morte
- 11º Elo – Jati - Nascimento
- 10º Elo – Bhava - Existência
- 9º Elo – Upadana - Apego
- 8º Elo – Trsna - Desejo
- 7º Elo – vedana - Sensação
- 6º Elo – sparsa - Contato
- 5º Elo – ayatana - Esferas dos sentidos
- 4º Elo – namarupa - Nome e forma
- 3º Elo – vijnana - Consciência
- BREVE RECAPTULAÇÃO DOS DOZE ELOS NO SENTIDO INVERSO, até o 3º:
- 2º Elo – samskaras - Marcas mentais
- 1º Elo – avidya - Ignorância
- EXAME DOS DOZE ELOS NO SENTIDO INVERSO, DO 1º AO 12º ELO
- OUTRO GIRO PELOS DOZE ELOS
- CONCLUSÃO
- FOCANDO A NATUREZA ÚLTIMA ATRAVÉS DA GURU IOGA: PENSAR, CONTEMPLAR, REPOUSAR.
- REINSTALANDO A LIBERDADE: PERCEBENDO O “OU NÃO” DAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA.
- PROCESSO DE PURIFICAÇÃO (Quadro dos 240 itens)
- PROCESSO DE CONSTRUÇÃO (Quadro dos 200 itens)
- PERGUNTAS E RESPOSTAS
PSICOLOGIA BUDISTA
ENSINAMENTO SOBRE OS DOZE ELOS DA ORIGINAÇAO INTERDEPENDENTE
Curso proferido pelo Lama Padma Samten, em Agosto/2004, no Recife, sobre o ensinamento budista conhecido como os Doze Elos da Originação Interdependente.
INTRODUÇÃO
Esse é um tema especial e, às vezes, um pouco complicado. O tema psicologia budista pode ser tratado, pelo menos, em duas abordagens. Por exemplo, na abordagem de quem vai querer usar algum método ou na abordagem de quem vai querer liberar suas dificuldades. Vou seguir um roteiro que tenta contemplar as duas possibilidades.
As palavras-chaves para esse tema são os Doze Elos, porque a psicologia budista essencialmente está explicada através desse processo, que parte da natureza ilimitada e nos conduz a variedades de experiências do mundo. A compreensão disso, de como nós temos a natureza ilimitada e vimos a manifestar uma natureza limitada, produz o que nós chamamos de visão. Visão é a base de todo o treinamento, ou seja, temos que primeiro compreender. Entretanto, depois temos que ver o caminho inverso, ou seja, como que, a partir da nossa experiência comum, nós podemos retornar à lucidez da natureza ilimitada.
Esse processo de construção da experiência convencional é explicado através dos Doze Elos da Originação Interdependente. O próprio Buda gerou esse ensinamento, ou seja, esse não é um ensinamento que foi sintetizado depois, a partir de outros ensinamentos do Buda. O Buda falou sobre isso muitas vezes. Se diz que, no próprio dia de sua iluminação, ao final, quando a estrela Vesper levantou-se no horizonte, ele atingiu a liberação final e, nesse momento, ele se perguntou como é que os seres, tendo essa natureza ilimitada, puderam se atrapalhar, ficar confusos. Assim, ele se deu conta de que isso aconteceu em doze etapas.
Quando os budistas falam em doze etapas, de modo geral os astrólogos se alegram, dizendo: “Nós já sabíamos!” Mas esse número doze não tem qualquer correspondência com a astrologia. É completamente independente, como muitas outras coisas, tais como os doze meses do ano. Uma diferença importante é que os Doze Elos são cumulativos, ou seja, cada um deles vai servindo de base para o seguinte, enquanto na visão da astrologia, os signos são independentes.
Os Doze Elos são um processo progressivo. Há muitas implicações importantes nesta afirmativa. Primeiro, falarei um pouco sobre esses elos de uma maneira geral. Depois, detalharei as várias partes.
EXPERIÊNCIA: IMPERMANÊNCIA, VACUIDADE E LIBERDADE
Todas as experiências que nós podemos viver estão descritas dentro dos Doze Elos. Mas, por outro lado, eles nos conectam, como uma escada de doze degraus, com a experiência última, com a natureza última. Na natureza última brota esse processo. Vamos vendo, então, que o processo dos Doze Elos descreve experiências. São, pois, doze experiências. Mas experiências do quê? São experiências que brotam da natureza última.
Os grandes eruditos budistas, como Nagarjuna, dizem que os Doze Elos são a melhor explicação da vacuidade, porque, ao analisar todas as experiências, vemos todas elas como construídas e não como mundos, como matéria, como objetos, como seres, que é o que parece que são.
Quando observamos a experiência de mundo, de seres, de separatividade, de emoções, todas essas experiências parecem completamente sólidas. Mas, na medida que estudamos os Doze Elos, nós vamos percebendo que todas essas experiências são manifestações da natureza ilimitada. Portanto, aquela aparente solidez, enfim, não é senão uma experiência que possamos ter.
Portanto, enquanto experiência, ela guarda em si liberdade. E assim, a liberação é possível. Quando nós consideramos tudo como completamente sólido, nós não percebemos a possibilidade da liberação. Vendo tudo sólido, imaginamos que estamos efetivamente trancados. Quando estamos presos na visão convencional, onde tudo é sólido, essa visão tem um paradoxo, porque, sendo a solidez de tudo uma visão herética, um engano, é necessário que, dentro dessa visão herética, apareça uma válvula, um processo de saída do engano. Então, como nós não entendemos o aspecto livre da realidade, dizemos que toda a manifestação da realidade está submetida à impermanência.
A impermanência é uma palavra que entendemos, porque nós vemos isso. Então, ainda que as coisas sejam sólidas, reais, concretas, espantosamente todas elas são impermanentes. Esse é, então, um fator que introduzimos quando nós não entendemos a vacuidade[1]. Apesar de nós não a entendermos, ela se introduz porque ela está presente. A vacuidade vai surgir como impermanência. Podemos apontar em qualquer direção que veremos tudo sempre impermanente, sem solidez.
Podemos, então, perguntar: Se as coisas são sólidas, por que é que elas são impermanentes?
E nós incluímos na impermanência a própria visão dos cientistas, pois as teorias, as visões acadêmicas também são impermanentes; as religiões, os deuses e todos os demais aspectos vamos vendo também como impermanentes. Nós temos uma dificuldade de apontar alguma coisa que não seja impermanente.
Então, vamos percebendo que todas as manifestações estão presas a essa impermanência, que é simbolizada, na Roda da Vida[2], pelo ser terrível que a carrega. Todas as construções, todas as manifestações do mundo, estão representadas simbolicamente dentro desse círculo, dessa roda, desse disco. Esse disco está sob o domínio desse ser terrível, que representa a impermanência. Isso significa que, não importa o que a gente construa dentro desse disco, estaremos submetidos àquele ser, à impermanência. Mesmo as pessoas muito hábeis, mesmo os cientistas, mesmo um país muito poderoso, com um presidente muito poderoso, todos estão submetidos à impermanência. Não tem solução.
Portanto, nós vamos percebendo que não há, dentro do universo construído, aquilo que seja estável.
Para os cientistas, o início do Dharma pode começar nesse ponto, ou seja, a partir da pergunta “Por que as teorias e as visões acadêmicas são impermanentes?” Para as demais pessoas, a pergunta também pode ser “Por que os objetos, aquilo que parece sólido, as pessoas, são impermanentes?” A partir dessa ponta, começamos a puxar o fio.
MÉTODO DA PSICOLOGIA BUDISTA: RECONHECER A LIBERDADE
Temos, então, essa noção geral de vacuidade. A psicologia budista vai trabalhar dessa maneira. Ela não vai trabalhar encontrando padrões de pessoas, de doenças, padrões sejam quais forem. Ela vai trabalhar de modo que, ao encontrar um padrão, ela trata de mostrar como há uma liberdade por dentro. Essencialmente, todo o movimento vai ser esse. Ou seja, não importa o que encontremos, vamos tratar de reconhecer a liberdade atuando ali dentro. E de tanto encontrarmos essa experiência de liberdade, nós vamos perguntar como é que a aparência limitada é sustentada e parece sólida. Essa pergunta de como as coisas parecem sólidas vai nos remeter à noção da natureza última novamente. Então, começamos pela natureza ilusória, pela natureza aparente das coisas, e nós vamos conduzindo tudo ao reconhecimento da natureza última, incessantemente presente. Esse é, então, o roteiro que vamos fazer.
Assim, a psicologia budista - que é um termo ocidental, pois, no oriente não há essa noção de psicologia budista, nem de psicologia, provavelmente – se funde, naturalmente, com a filosofia e com a prática dos meditantes, que buscam, através de um processo de auto-liberação, praticar essa compreensão consigo mesmo e se liberar.
Nesse contexto, temos essas duas áreas, esses dois pontos de interesse, ou seja, como é que nós nos liberamos e como nós podemos ajudar os outros. Há possibilidade de usarmos algum método para isso? Podemos encontrar métodos que possamos utilizar, métodos de diagnóstico, de avaliação, de abordagem, métodos que nos facilitem? Existem métodos para nós mesmos? Quais tipos de procedimentos podemos seguir?
VISÃO MEDITAÇÃO AÇÃO
Num sentido muito geral, vamos ver que existe uma abordagem que se refere aos praticantes, que é a abordagem tradicional do Budismo. Essa abordagem está dividida em três partes. Começamos com a VISÃO, que é absolutamente necessária. Depois, desenvolvemos MEDITAÇÃO, que poderia ter outro nome, como por exemplo, “estabilização da visão” ou “experiência da visão”. E, depois, a terceira parte, que é a AÇÃO.
No início, estamos confusos. Então, desenvolvemos uma visão mais elevada. Essa visão mais elevada ainda é frágil. Portanto, temos que testá-la, examiná-la, comprová-la e transformá-la numa prática. Uma vez que transformamos essa visão em prática, temos o conteúdo para meditar. Então, nós meditamos com a lucidez correspondente à visão. Essa prática da meditação, ou da estabilização da visão, nos conduz a uma 3ª possibilidade, que é nós nos levantarmos de onde estamos e caminharmos no mundo com essa visão. Essa terceira etapa é a culminância. Quando somos capazes de andar no mundo dessa maneira, ganhamos alta. Está resolvido o problema.
Nós estamos desenvolvendo o aspecto que é chamado de VISÃO, ou seja, estamos tentando fazer com que a “ficha caia”, que é nos darmos conta do que está acontecendo, onde nós estamos e como tudo isso funciona. Quando nós entendemos isso, nós vamos até o ponto de LIBERDADE, vamos ver que nós temos liberdade em cada um desses Elos e também no seu conjunto.
Quando estivermos com liberdade, nós podemos pensar: “Agora, então, cessou a experiência de Samsara[3]. Podemos nos movimentar no meio de Samsara, mas estamos livres!” Então, nós saímos, mas cedo nos damos conta de que não conseguimos sempre agir com liberdade. Surgem várias coisas, como raiva e outras emoções perturbadoras que nos mobilizam, como se fossem coisas “bem reais”.
Então, surge um outro tipo de treinamento, onde nós utilizamos o sentido de liberdade e criamos uma clareza sobre todas as ações não virtuosas, examinando uma por uma, tratando de ver que temos liberdade frente a elas. Começamos a descondicionar o processo. Mas nós precisamos passar várias e várias vezes pelo surgimento daquilo até nós podermos ver, no momento do surgimento, a liberdade que está ali dentro. Veremos que nós não precisamos reagir dessa ou daquela maneira, porque nós estamos automatizados nas respostas. Mas agora nós temos um instrumento que, olhando cada um dos Elos, nos permite liberá-los.
Depois disso, passamos para a contemplação do Quadro dos 240 itens[4], que significa PURIFICAÇÃO, e depois, como conseqüência da purificação, passamos a contemplar o Quadro dos 200 itens[5], que é a AÇÃO POSITIVA NO MUNDO.
Neste ponto o treinamento se completa. Temos a VISÃO, depois a MEDITAÇÃO, onde nós estabilizamos a visão e purificamos as ações não virtuosas, o carma. Em seguida, utilizamos a meditação para construir aspectos positivos que vamos poder usar no mundo. E, por fim, temos a AÇÃO, que é a nossa ação no mundo.
Em cada um desses processos, vamos ter que desenvolver métodos. O nosso encontro hoje, naturalmente, vai se restringir à VISÃO. Vamos olhar como é que as coisas são. A partir da visão, podemos pegar isso e tentar praticar de novo e de novo. Assim, ficará para vocês esse tema, essa tarefa de casa. Vocês podem praticar tanto em meditação formal, sentados, quanto andando no mundo, que é uma excelente prática.
A essência do processo de visão está ligada à compreensão da vacuidade como substância. Isso dito assim resume muito a nossa compreensão, mas, essencialmente, essa é a questão. Se vocês quiserem uma referência de texto, tem um que se chama “Madjanta Vibanga”, que é a explicação do caminho do meio, a visão que ultrapassa os extremos.
A compreensão desses Doze Elos é a base para a nova estrutura. Quando nós vamos olhar isso, vamos começar do 1º em direção ao 12º Elo, e do 12º em direção ao 1º Elo. Sendo a psicologia budista o foco central, é melhor começar no 12º.
12º Elo – Janamarana - Envelhecimento e morte |
O 12º Elo trata, de um modo geral, de quando as pessoas sentem que estão precisando de ajuda. Ou seja, o 12º Elo trata de experiência de sofrimento, de decrepitude, de perda de capacidade, de dissolução das relações, e, por fim, de experiência de morte. De modo geral, quando encontramos essas dificuldades, nós nos sentimos incapazes de resolvê-las. Quando estamos no 12º Elo é porque nós confessamos a incapacidade de resolver o problema. Nós estamos mal, precisando de ajuda. Esse processo pode ser a dissolução em vários níveis. Mas, essencialmente, nós temos a sensação de que aquilo que estamos focando está se dissolvendo.
Mesmo num jogo de xadrez podemos chegar ao 12º Elo, que é quando não tem mais solução para o nosso rei. Não tem mais jeito. O rei vai cair – xeque mate! Enquanto temos a clareza de que o rei está derrotado, nós temos emoções, pois estamos ligados a esse rei. Na verdade, somos nós que estamos sendo derrotados. Nesse caso, temos uma noção de dissolução, de fim. Nos jogos olímpicos também vemos isso. Quando um jogador é derrotado, acabou a Olimpíada para ele. E a pessoa tem um pouco a sensação de morte.
Então, podemos ter essas mortes, que são mortes virtuais, pois não são mortes verdadeiras. São mortes no sentido de que essas coisas, essas situações, não têm mais como se recompor. E, naturalmente, na nossa vida temos muitas situações desse tipo, onde nos defrontamos com a dissolução. Nos textos, vocês encontrarão especialmente o 12º Elo ligado à nossa morte física. Então, o 12º Elo representa o tempo final, tempo esgotado. Todos nós vamos morrer. Esse não é um ponto muito simpático para começar a falar da psicologia budista, mas, pelo menos, ninguém é culpado mais do que o outro, estamos todos no mesmo barco.
Ainda assim, o ensinamento budista é um ensinamento de que esse 12º Elo não é verdadeiro. Ou seja, a própria morte não é verdadeira. Esse é um bom início, não é verdade? Na verdade, a morte é uma experiência. Por isso, vamos começar por esse ponto, reconhecendo que nós temos experiências.
Os tibetanos examinam isso com todo cuidado. Se vocês quiserem examinar os detalhes técnicos do processo de morte, tem um livro que se chama “Morte – estado intermediário e renascimento no Budismo Tibetano”, publicado pela Ed. Pensamento, cujo autor é Lati Rimpoche. Outro livro é do Sogyal Rimpoche, “O Livro Tibetano do Viver e do Morrer”. Outra referência é o “Livro Tibetano dos Mortos”, sobre os bardos da morte e pós-morte. Estou citando esses textos apenas como uma indicação periférica, mas não vou entrar nesse tema, nem vamos utilizar os métodos descritos nesses textos. Vamos aqui utilizar outros métodos. Estaremos utilizando um método que é mais profundo e mais rápido, que é o do reconhecimento da vacuidade da própria experiência da morte. Esse é o ponto.
Nos ensinamentos sobre os Doze Elos dizemos que o 12º Elo surge do 11º. Toda a dica está resolvida nessa conexão. Ou seja, como é que surge a morte? A morte surge como uma experiência. Como surge a experiência de morte? Ela surge porque temos a experiência da vida. Dito assim, parece que não é grande coisa. Mas vocês vão entender isso.
11º Elo – Jati - Nascimento(A atividade incessante de nossa vida) |
A experiência da vida se traduz como a experiência de um equilibrista. Pensamos que a vida é simplesmente a ação do equilibrista. Mas a vida está ligada à motivação do equilibrista em equilibrar.
Por exemplo, no cotidiano, nós nos vemos trabalhando. Temos que fazer muitas e muitas coisas. Viver é fazer muitas e muitas coisas. Nós não temos sequer tempo de perguntar quem foi que inventou a necessidade de termos que fazer muitas e muitas coisas, pois estamos sempre fazendo muitas e muitas coisas. Estamos sempre seguindo. Nós não temos bem a noção de como isso começou. E não só começou, como temos que fazer a nossa parte. Nós sentimos claramente que estamos engajados dentro disso.
Às vezes, algumas pessoas têm uma surpresa. Por exemplo, uma mãe que sai de casa para fazer um retiro budista, surpreende-se quando volta para casa e encontra tudo em ordem. Ela diz: “Como? Eu não sou insuperável, indispensável? Como eles ousam imaginar que podem se equilibrar sem mim?” Então, essa é uma surpresa. Às vezes, os filhos dizem: “Sim, sim, mamãe, vá para o retiro. Alivia a situação aqui em casa. Deixe que aqui nós tomamos conta!” Aí a mãe se surpreende com essa magnanimidade toda!!! Mas nós vamos nos dando conta de que nós não somos indispensáveis como pensávamos. Mas, mesmo assim, voltamos e nos sentimos indispensáveis de novo, e continuamos trabalhando, disparando ordens, colocando tudo em seus devidos lugares, sem o que, imagine, tudo desapareceria, claro!
Mas de tanto em tanto, podemos começar aos poucos a desconfiar de que nós não somos insubstituíveis. Mas não importa, nós nos tornamos insubstituíveis e continuamos fazendo, trabalhando e nos inserindo. Esse é o 11º Elo. Estamos incessantemente ativos.
Esse processo do 11º Elo começa naturalmente quando nós nascemos, quando começamos a respirar. A gente não se dá conta de que aquela primeira respiração vai ser seguida por outras dez, vinte por minuto, seja lá quanto for, pelo resto da nossa vida. No final, também, a última coisa que faremos também é respirar. Vamos nos concentrar nisso e, então, vai se estar extinguindo a nossa vida. Então, vamos estar presos a um processo incessante, cíclico, a um equilíbrio que nós temos que manter. Após o nascimento, vamos adicionando outras coisas, vamos aprendendo a fazer outras coisas e vamos expandindo a nossa atividade. Mas todas as atividades que nós vamos incorporando, operam por um tempo e, depois, vão se fechando, e, no final, fecha tudo e paramos de respirar.
A vida, inevitavelmente, está ligada a um processo de equilíbrio. Por exemplo, se agora tentarmos parar de respirar, vamos ficar aflitos e passaremos a querer respirar de novo. Vamos estar sempre tentando equilibrar alguma coisa que está se desequilibrando. Se nós só inspirarmos, ficaremos aflitos e vamos querer expirar. Se expiramos, ficamos aflitos e vamos querer inspirar novamente. Então, uma posição produz a necessidade da outra. E assim vamos nós.
O nosso movimento durante a vida vai ser sempre esse. Temos uma coisa, depois temos que compensar com outra, depois com outra mais, e vamos sempre buscando equilibrar aquilo. Não há um momento em que nós possamos parar efetivamente de fazer isso. Assim, é natural que o sofrimento vá surgir quando nós já não estamos mais podendo equilibrar.
Quando começamos a ter dificuldade de equilibrar aquilo, começa o 12º Elo, ou seja, começa o sofrimento, o sofrimento ligado a isso. Por exemplo, se estamos com insuficiência respiratória, nós não morremos ainda, mas estamos respirando mal, qual pessoa em crise de asma, que aflige a todos que estão ao redor, além dela própria. Ou seja, quando nós não conseguimos equilibrar direito, nós começamos a passar mal. Essa é a 12ª etapa.
A 12ª etapa está ligada à 11ª, porque na 11ª nós temos que equilibrar coisas o tempo todo e isso é a vida. Mas então vem a 12ª e nós não conseguimos mais equilibrar. E quando o desequilíbrio passa de um ponto, o sistema que produz o equilíbrio se desfaz, se fragmenta. E isso é a morte.
Podemos considerar a morte ao nível de corpo, mas também, por exemplo, ao nível de emprego. Temos sempre que estar trabalhando, promovendo alguma coisa mais. Com isso, equilibramos a nossa função, sustentamos a nossa identidade de funcionários ou de profissionais liberais. Se passarmos uma semana não justificada sem ir ao trabalho, a situação se torna grave. Se não conseguirmos resolver esse desequilíbrio, nos aproximamos de uma morte rápida. Ou seja, a unidade de recursos humanos nos chamará e aquilo já será o fim.
Isso também se verifica nos relacionamentos. Em todas as relações de grupo (casamento, trabalho, escola, amizades, etc.) percebemos um certo movimento. Tem dias que tudo está bem; noutros, não está nada bem. Na família, a mãe sustenta equilibrando, harmonizando a energia, percebendo pela “cara” dos filhos ou do marido, se tudo está bem ou não. Se não está, ela pergunta: “O que foi, meu filho? O que você tem?” Ela tenta melhorar a situação soprando um pouco de energia ali, tentando resolver o problema. E isso é uma coisa que tem que ser feita todos os dias, ou várias vezes por dia, o tempo todo olhando para as pessoas e equilibrando. E assim se mantém a família.
Agora, vamos supor que as várias pessoas não olham umas para as outras e não se sustentam. Esse grupo rapidamente se separa, se não tiver alguém que faça essa tarefa, que cuide de todos, fazendo com que os demais se sintam cuidados, e assim, vão se mantendo juntos. Vemos, então, que as relações têm que ser cuidadas. Sabemos que um dia está melhor, noutro está pior, tem dias que está em coma, mas depois, milagrosamente, volta do coma e assim vai. Às vezes morre, e depois, ressuscita. E isso são as relações.
Esta sustentação incessante é o 11º Elo. Mas justo porque nós sustentamos, sabemos quando não conseguimos mais sustentar. Então, entramos no 12º Elo. Tudo se desorganiza, até o ponto onde a dissolução ocorre.
Mas vocês vão perceber que, mesmo em relação ao corpo, se nós tentamos sustentar o que é insustentável, nós entramos em agonia. Temos a sensação de grande desgaste. Isso prolonga a nossa passagem. Vocês verão pessoas que quando se aproximam da morte não lutam, e porque elas não lutam, a morte é mais fácil. O lutar representa o 11º Elo. Enquanto há luta, a pessoa está no 11º, entrando para o 12º Elo. Se ela se aferrar nessa luta, ela prolonga esse processo que, eventualmente, é inevitável mesmo. Quando estamos no 11º Elo, é certo que virá o 12º. É por isso que podemos afirmar que cada um de nós vai morrer. Estamos todos nós com o 12º Elo garantido.
Agora, nós podemos experimentar isso melhor. O Guru Rimpoche dá esse ensinamento dizendo que o 12º Elo é um BARDO. Essa palavra bardo é muito importante, pois significa “experiência construída”, “não-verdadeira”. Não é uma realidade, é uma “experiência de”. Lembrem sempre dessa palavra BARDO. É a mesma coisa de dizer: “Isso é vazio”, “isso também é impermanente”, “isso também é um bardo”.
Também, se vocês têm uma namorada maravilhosa, vocês lembrem: “Isso também é um bardo!” Se vocês encontraram o homem da sua vida, vocês olhem: “Isso também é um bardo”. Vocês podem botar entre parênteses a palavra “carma”. “Isso também é um carma”, pois o bardo brota por carma. Bardo é uma experiência que é produzida pelo carma. Mas aqui não discorreremos sobre o carma.
Por que é que a morte é um bardo? Porque ela é uma “experiência de morte”. Ela está na dependência da tentativa de sustentação. Quando estamos condicionados a sustentar, inevitavelmente, vamos encontrar a dissolução, o 12º Elo. Isso nos ajuda muito. Vamos supor que nós estejamos próximos à demissão ou a uma derrota. Vemos que isso também é um bardo, pois seguimos vivos, a natureza ilimitada segue intacta. Mas a experiência de morte é isso, ou seja, eu crio algo, e ao vir a dissolução disso – que, por ser artificial, temos que estar sempre tentando sustentar, equilibrar, uma vez que vai se dissolver em um certo momento – essa é a experiência de morte.
Acho que todos vocês já passaram pela experiência de abandono, pelo namorado ou namorada, por exemplo. A pessoa vive uma experiência de morte. Depois de um período muito longo de sofrimento, a pessoa, de repente, numa sexta-feira, o impossível acontece: encontra um outro ser maravilhoso!!! E aí ela entende porque o outro tinha que ter ido embora. Isso significa uma experiência cíclica, um bardo. Essa experiência cíclica pode ser nossa respiração, que é sempre cíclica. Todas as demais coisas que vamos movendo, representam experiências cíclicas. Os pensamentos, as nossas energias (fome, frio, etc.), as nossas conexões, as nossas identidades.
A questão toda é assim: “De onde é que essas experiências cíclicas brotam?” Todos os ensinamentos budistas convergem para esse ponto. Existe um CENTRO DE PRODUÇÃO da experiência cíclica, que é muito parecido com a central de produções da Globo, por exemplo. Vemos uma novela depois da outra, mas sabemos que existe alguma coisa por trás, que é a central de produção. As novelas têm início, meio e fim, e a central de produção está sempre lá.
Esse é o aspecto mais profundo da questão. No budismo se diz assim: ”Você não chore porque a novela vai terminar; a central de produção está intacta!”
Então, esse vai ser o caminho todo. Vamos ter que encontrar a central de produção. Essa central é o aspecto mais profundo de nós mesmos. Quando olhamos isso profundamente, perguntamos: “Mas e a morte?” E dizemos: “A central de produção está intacta, não se preocupe!” Passamos a compreender isso tudo. Ou seja, existe um processo luminoso, incessante, que vamos chamar de PRESENÇA. Essa presença está incessantemente ativa. Ela produz a experiência dos bardos.
Então, quando dizemos que a morte é um bardo, isso é um bom sinal, porque a morte é uma “experiência de”, e enquanto existe uma experiência, tem alguém participando, tendo, essa experiência, experimentando essa experiência. Tem um observador aí!.
Então, quando dizemos o bardo do morrer, o bardo do pós-morte, o bardo do renascer, o bardo do viver, implica ter alguém experimentando. Assim, descobrimos que tem uma central de produção incessantemente presente em cada uma dessas etapas, produzindo a aparência daquilo. Aquela aparência vem condicionada, mas tem essa central que a produz. Esse é o ponto.
Nós estamos no 11º Elo, sustentando alguma coisa. Mas, ainda que venha o 12º Elo, nós não somos nem o que morre, nem o que estava vivo; nós somos a central que produz as várias experiências. Vemos, especialmente nas experiências cíclicas menores, que surgimos como profissionais, como moradores numa casa, como inquilinos de algum lugar e em vários outros exemplos. Neles, terminamos nos caracterizando por eles e dizemos: “Eu sou isso.” Ainda assim, tudo o que dissermos “eu sou isso” é construído, é um bardo, é um processo criado. Quando aquilo cessa, vemos que permanecemos vivos, mesmo que nós pensemos que não estamos mais vivos. Dizemos: ”Agora que fui demitido, a vida acabou para mim!” ou “Me descasei – acabou a vida!”. Mas vamos descobrindo que não! Nós ressurgimos! Essas são, pois, as mortes menores. Mas elas são excelentes experiências que nos mostram a artificialidade da vida, pois quando cessa, outra vida é criada. Mas, antes do 11º Elo, tem o 10º Elo.
10º Elo – Bhava - Existência(Preparação para o surgimento da identidade) |
Quando estamos no 11º Elo e alguém nos diz: “Mas você não é isso!” Nós dizemos: “Mas como não sou?” Aí nos dizem: “Você não precisa fazer isso o tempo todo!” Então retrucamos: “Sim, eu preciso. Porque eu sou `tal coisa´. Quando dizemos “eu sou tal coisa” isso é o 10º Elo, onde nós pensamos que somos aquilo. Nós justificamos “eu sou médico”, “eu sou dentista”, “eu sou psicólogo”, etc. O 10º Elo é simbolizado por uma mulher grávida, ou seja, tem um embrião. Esse embrião virá à luz no 11º Elo, começará a agir no 11º Elo. No 12º Elo é a morte. Esse ser atinge a maturidade e morre. No 10º Elo ele tem nascimento que significa EXISTÊNCIA.
Vocês observem os nossos nascimentos. Nós tivemos vários nascimentos nesta vida. Hoje, na verdade, nós somos vários seres. Por exemplo, se estamos casados, somos o marido ou a esposa; se somos estudantes de pós-graduação, somos aqueles que tem certas obrigações e que nasceram em um dado momento; se somos profissionais, se trabalhamos em algum lugar, isso também teve um nascimento. Somos múltiplos, temos vários nascimentos. Mas, em todos esses processos, teve um momento em a gente nasceu, surgiu. Porque surgimos daquele jeito, aí vem o 11º Elo, pois temos que trabalhar, sustentar a identidade que surgiu. E, infelizmente, vem o 12º Elo, quando tudo termina.
Nós podemos observar em nós mesmos esses nascimentos. Nós surgimos dessa maneira. Deveríamos olhar com cuidado os nossos nascimentos e ver se são sólidos ou não. Vamos descobrir que esses nascimentos são convencionais. Poderia haver outras formas de nascimento. Mas, essencialmente, se esses nascimentos foram produzidos é porque a central de produção se manifesta neste processo. Nós contemplamos no 10º Elo esse processo luminoso que produz. Se a pessoa observar com cuidado, descobrirá que esse processo não foi gratuito. Ela descobrirá que se preparou, que estudou, que fez muitas ações, que foram sendo aperfeiçoadas, até se transformar no profissional que é hoje.
9º Elo – Upadana - Apego(fixação) |
Nesse momento, a pessoa está se referindo ao 9º Elo. A pessoa é produto, ela surgiu, mas, antes disso, ela construiu muitas diferentes experiências onde ela treinou aquilo que vai eclodir no 10º Elo.
O 9º Elo é simbolizado por uma pessoa colhendo frutos numa árvore. Ou seja, a pessoa colheu muitas vezes aquele fruto. Ela se tornou capaz de fazer alguma coisa, como um médico que, aos poucos foi treinado, primeiro dissecando cadáveres, até aprender a lidar com o ser vivo. Através de um processo lento, gradual e sistemático, ele vai gerando aptidão que permite que um dia ele possa dizer “eu sou médico, eu tenho um diploma”. Então, esse conjunto de experiências anteriores ao surgimento, corresponde ao 9º Elo. Ele é simbolizado para alguém colhendo frutos.
Esse 9º Elo também representa a origem do nosso surgimento. Fizemos muitas vezes alguma coisa, portanto, nós dizemos: “Eu sou alguém que sabe fazer isso.” O 9º Elo está na dependência do 8º.
8º Elo – Trsna - Desejo(decisão de agir/fazer) |
No 8º Elo surge a nossa decisão de fazer aquilo. Vamos supor alguém que está estudando para ser engenheiro, médico ou dentista. Essa pessoa em algum momento manifestou essa vontade. Ele faz certas coisas e toma uma decisão de fazer aquilo de novo e de novo. Tem um APEGO aqui. E porque ele faz muitas vezes, ele termina gerando a capacidade.
No entanto, vamos encontrar pessoas que entram num curso, mas não vão até o final. Elas não passaram pela prova do 8º Elo, ou seja, não tiveram essa persistência, isso que nós vamos chamar de APEGO. Então, todos aqueles que surgem como um profissional, em algum momento vão dizer que estudaram de manhã, de tarde e de noite, nos finais de semana, feriados, tendo deixado de fazer isso e aquilo, e tendo pago determinado preço. O que é que mantém a pessoa fazendo isso? É uma DECISÃO. Então, ela paga o preço, se concentra, se limita num certo sentido e faz as coisas acontecerem daquela maneira.
Isso é chamado, no budismo, de APEGO. Ou seja, o apego produz isso. Eu me fixo em algo e assim eu termino gerando muitas experiências que conduzem a uma noção de identidade. Essa identidade exerce a sua função, que é o 11º Elo. Mas um dia, ela não consegue mais equilibrar. Aí ela se dissolve, é a morte, o 12º Elo.
7º Elo – vedana - Sensação(de gostar, não gostar ou indiferença) |
O 8º Elo é explicado pelo 7º. O 7º Elo é chamado “vedana” e é simbolizado por uma pessoa enfiando uma flecha em seu próprio olho. Logo, vocês vêem que é uma coisa grave! A pessoa perde a visão. Mas como é que nós perdemos a visão? Como é que nós ficamos estreitos? Esse processo de apego é um estreitar. Para estreitar, nós precisamos primeiro perder a visão.
No processo dos 12 Elos, perder a visão está ligado à experiência de sensação de gostar, sensação de não gostar ou sensação de indiferença.
Quando nós gostamos, nós ficamos focados. Quando não gostamos, nós também temos um foco. E quando somos indiferentes, parece que não há um foco, mas a indiferença é um processo ativo, que a gente não percebe.
Por exemplo, meninos que passam por cima da roupa suja espalhada no chão do quarto sem perceber. Deixam o banheiro todo desarrumado e não vêem a bagunça. Isso é a indiferença. Muitas vezes temos que ser treinados para ver. Uma pessoa sai desarrumada ou crianças sentam na mesa depois do jogo de futebol, sequer lavam as mãos, e já vão comendo. Eles não estão vendo.
Nós somos passíveis dessas ações quando ficamos com a visão limitada. A visão limitada vem do apego focado. Esse apego focado vem da sensação de que eu gosto, não gosto ou sou indiferente. Isso é o 7º Elo.
De um modo geral, nós não conseguimos ver nada antes do 7º Elo. Podíamos pensar assim: a psicologia budista começa no 7º Elo! O aspecto mais parecido com psicologia começa no 7º Elo. Daqui para os Elos anteriores ao 7º, é mais filosofia, ou uma psicologia filosófica. Isso se dá porque a nossa sensação de identidade parece que surge justamente do gostar ou do não gostar.
A maior parte das pessoas têm a sua experiência de observação mais íntima, mais sutil, justamente neste aspecto do gosto e não gosto. A última coisa que eles conseguem ver dentro de si é se gostam ou não gostam. Às vezes temos a sensação de que somos mais nós mesmos quando fazemos o que gostamos e não fazemos o que não gostamos.
Eventualmente nós somos treinados para romper os obstáculos que nos impedem de expressar o que gostamos e o que não gostamos. Nós temos essas complicações dentro de nós, ou seja, nós gostamos ou não gostamos, mas, às vezes, nós ocultamos isso. Nós nos construímos com um outro apego que se derrama por cima disso. Nós construímos uma identidade que oculta porque ela muitas vezes já ocultou, ela descobriu que é melhor ocultar. Então ela oculta certas estruturas de gostar e não gostar. Isso é o processo civilizatório. Essencialmente, nós não vamos fazer tudo o que gostamos, nem evitar tudo o que não gostamos, nem tampouco ser indiferente a tudo o que desejaríamos ser indiferentes.
Nós vamos ser escolarizados, vamos ser instruídos em como ficar atentos a coisas que não veríamos, de como passar pelo que a gente não gosta e de como ficar bem quieto frente ao que a gente gosta. Vamos nos domesticando.
E aí aparecem os psicólogos para nos ajudar a revelar essas estruturas que estão por baixo, liberar essas couraças, esses sofrimentos, para que nós possamos nos expressar de uma forma mais livre, para que possamos cometer facilmente mais erros e suportar o cometimento desses erros, dessas fragilidades. Para que possamos nos expressar de uma forma mais nítida, mais clara, mesmo que não tenhamos certeza. Nós não precisamos estar certos sempre! Esse é um trabalho importante para nos recompormos, nos estruturarmos para operar no mundo de uma forma melhor.
No entanto, na psicologia budista vamos fazer uma outra coisa. Nós vamos dinamitar um por um desses processos. Ou seja, nós vamos reconhecer que essa estrutura de gostar, não gostar ou ser indiferente não é uma boa conselheira.
Por exemplo, se conseguimos, através de um processo de liberação, expressar claramente do que é que gostamos, do que não gostamos, ou do que somos indiferentes, conseguiremos transitar no mundo de uma forma clara, autêntica, visível, mas não resolve o nosso problema. Por que? Porque vamos continuar tendo contradições internas. Há coisas que gostamos. Perseguimos essas coisas e vemos que produz sofrimento em outras pessoas, o que termina nos atrapalhando também. Nós mesmos passamos, então, a perceber que aquilo não resolve.
Podemos também olhar profundamente dentro de nós e perceber que aquilo de que pensamos gostar, às vezes, sobre uma outra perspectiva, nos pareça não agradável. Vemos, então, que esse referencial do gosto e do não gosto não é sólido o suficiente. E é nesse exato momento que recuamos para o 6º Elo.
Mas antes de recuarmos, percebemos que esse gostar ou não gostar é produzido pela central de luminosidade. Até mesmo porque esse gostar ou não gostar também é impermanente. Às vezes nós gostamos de algo, que, após um tempo, passamos a não mais gostar. Então, como aquilo é impermanente, nós vemos que o gostar foi sustentado por um tempo por essa luminosidade e que, agora, passamos a sustentar o não gostar. Todos nós temos essas experiências em relação aos nossos carros, aos nossos objetos, em relação ao nosso trabalho e em relação às pessoas com quem convivemos.
Esse é um ponto quase hilariante no budismo porque, em função do gostar ou do não gostar, nós geramos o apego; em função do apego, nos estruturamos para obter aquilo; aí, nós obtemos; sustentamos, e, lá pelas tantas, nós não queremos mais, ficamos cansados. Não dá nem para pedir coerência, porque é assim o processo de tudo. Então nós estamos imersos nessa coisa.
Os psicólogos vão encontrar pessoas que têm tudo o que queriam, mas já não querem mais. O problema é esse. Então eles perguntam: “Mas, então, o que é que você quer?” Eles respondem: “Eu também não sei.” Essa é a tragédia da nossa vida. Tudo isso é impermanente porque foi produzido por essa luminosidade como se fosse real, concreto, vivo, permanente. Nós sentimos que temos que viver aquilo. Então vivemos e vamos dizer: “O carma se esgota.” Como uma vela que, ao terminar o combustível ela se apaga, o carma cessa. Ou seja, aquele impulso, aquela estrutura toda que nós não sabemos de onde veio, ela cessa. Isso é espantoso!
Logo, essa estrutura de gostar ou não gostar não vai servir. Se os pais educam os filhos tomando esse referencial como um referencial sólido, os filhos vão ter problemas! Mesmo que queiramos potencializar, oferecendo tudo o que o outro queira, ele vai se enroscar na vida. Não vai adiantar, pois esse não é um bom referencial. Mas esse é o referencial que nós usamos. Então, é natural que tenhamos muitos problemas.
Na verdade, todos nós tropeçamos nesse ponto. Mesmo os praticantes do dharma tropeçam nesse ponto. Por exemplo, a pessoa vai melhorando, vai ficando mais luminosa. Aí, lá pelas tantas, aquela luminosidade é vista por outros seres. Então, a pessoa resolve manobrar o mundo a partir disso. Ou, eventualmente, só a pessoa vê a sua “luminosidade”. Ou então a pessoa vai fazendo a prática e, ao perceber como funciona a mente, pensa em como usar isso para dominar, manobrar os outros. A pessoa vai descobrindo jeitos de viver Samsara, de voltar para o mundo condicionado com algumas outras habilidades.
No 11º Elo nós estamos lá, andando no mundo, com as habilidades que descobrimos. Mas, quem sabe a meditação não nos ofereça mais algumas? Então, vamos descobrindo outros métodos, outros processos de girar a realidade para o lado que queremos. No entanto, ainda assim estamos lá no 11º Elo.
Vocês vão ver pessoas que fazem prática e que efetivamente melhoram. Aí elas pedem: “Lama, agora o que eu preciso para completar a felicidade é de um namorado.” Então, eu aconselho: “Não é bem por aí. Você precisa ficar melhor para poder enfrentar isso. Porque ao invés disso lhe ajudar a estabilizar, isso vai exigir a sua estabilidade. Na verdade, o namorado vai ser um mestre que vai lhe testar quanto à sua lucidez. Você não vai encontrar nesse relacionamento a sua estabilidade.” Mas nós temos esse ideal, que é o ideal do Reino dos Deuses. Nós vamos melhorando e dizemos: “Sim, agora eu vou para o Reino dos Deuses, agora a felicidade do mundo está garantida.”
Nós temos recaídas sempre a partir do 7º Elo. Dizemos: “Eu estou bem agora. Mas o que é que eu quero mesmo? Ah! Quero tal coisa!” Aí retornamos ao 7º Elo, que é quando começamos a ter problemas de novo.
Isso também acontece com os praticantes. Porque melhoram nas suas práticas, se reintroduzem na vida, no seu sentido convencional, e abandonam a própria prática. Mas o Buda é paciente, ele aguarda. As coisas são assim mesmo. De vez em quando vejo os praticantes voltando, com a cara de “faz tanto tempo que não venho, não é mesmo!”. Então penso: “Alguma coisa aconteceu!” Mas nós temos essa possibilidade. Vamos fazendo práticas, ganhando méritos, nos tornando capazes de criar mais felicidade no mundo. Esse é um ponto delicado. Deveríamos persistir no processo e ‘não capitalizar, trocar as ações por dinheiro e gastar tudo’. Vamos precisar de todos os méritos para cruzar em direção à liberdade. Depois de conquistada a liberdade, aí sim, nós podemos entrar no mundo livres. Mas enquanto estamos sendo geridos pelo 7º Elo, nós voltamos ao processo convencional.
Se tudo continua indo bem, estaremos, no mínimo, perdendo tempo!
Vocês imaginem uma pessoa que nasceu protegida. A mãe, maravilhosa e carinhosa. A pessoa sorria para a mãe e a mãe sorria para ela. O pai não ficou invejoso ou ciumento. Ao contrário, tinha grande amor pelo filho. E os três se davam maravilhosamente, sem tensões. Foi crescendo bem, aprendeu tudo rápido, foi bom profissional, um bom marido, teve filhos e agora está morrendo. Nesse momento a pessoa se deu conta de “o que é que eu vim mesmo fazer aqui?” A pessoa passou a vida inteira como se estivesse no Reino dos Deuses. Fez coisas prazerosas, mas não focou o ponto central. Ela tinha muitos méritos, mas gastou tudo e não fez nada. Outra pessoa pode ter muitas dificuldades, mas olhou a vida o tempo todo com lucidez. Fez uma diferença naquela vida, avançou verdadeiramente.
Às vezes, os períodos bons da vida são períodos em que nós perdemos tempo. Vamos supor que alguém viveu períodos bons da vida até que teve um tropeço (uma doença, uma incapacidade física, morte de filho, perda de emprego, separação). Quando aconteceu o tropeço, ela parou e disse: “Essa minha dor é insuportável. Eu preciso de ajuda.” Ela teve a ajuda que precisava. Quando teve a ajuda, seus olhos se abriram. Ela entendeu a vida que ela tinha vivido até então. Aí a pessoa olha para a vida que viveu até então e diz: “Nossa, vivi essa vida inutilmente. Não entendia nada!” Esse período anterior foi como um sonho. Os bons períodos, às vezes, têm essa armadilha dentro.
Isso que estou dizendo não é um elogio aos períodos ruins, pois também os períodos ruins podem ser um período de sonho. O que estou elogiando é a LUCIDEZ. Ou seja, a lucidez produz essa capacidade de nós vermos a vida de forma útil. Quando nós olhamos os períodos ruins, podemos também constatar isso: “Vivi muitas coisas ruins, mas não me dei conta de nada. Agora eu me dou conta!”
Para nós, é melhor olhar a lucidez. Mas não é pré-requisito que alguém tenha que sofrer uma coisa grave. Então, a melhor forma é nós aproveitarmos todas as facilidades para avançar. Mas os períodos bons às vezes surgem como forma de perda de tempo. Nós ficamos simplesmente classificando “disso eu gosto, disso eu não gosto”, procurando viver apenas o que gostamos. Se ficamos reduzidos a isto, perdemos a lucidez.
O Trumpa Rimpoche, no livro “Além do Materialismo Espiritual” vai abordar muito esse ponto. O que seria o materialismo espiritual? Seria avançar no caminho espiritual e usar isso sobre o ponto de vista convencional do mundo. Surgem muitos enganos sempre que quisermos capitalizar esses avanços para a nossa identidade. Esse é um ponto delicado. A pessoa pode desenvolver orgulho: “Eu sou um erudito”, “eu sou uma pessoa esclarecida”, “eu isso, eu aquilo”. A pessoa vai ter problemas. E os exemplos são múltiplos.
Vamos encontrar pessoas que tem inteligência, brilho, capacidade de levar as coisas adiante, mas, no entanto, permanecem auto-centradas. Apesar das qualidades, pelo auto-centramento, já está passando por carmas. Ela pode não perceber, mas em sua própria linguagem ela começa a se queixar de coisas. Por exemplo, vocês encontrarão eruditos que vão dizer que tem cinco livros prontos, mas não têm editora. Provavelmente, devem ser pessoas orgulhosas, que não estão escrevendo para o benefício dos seres. Estão escrevendo como um ornamento da sua identidade.
A pessoa que desenvolve orgulho porque pensa que avançou, tem dificuldade de sentar e ouvir alguém falando. Portanto, ela tem dificuldade de avançar, pois vai se fechar naquilo que gerou. É muito perigoso. Mesmo que nós avancemos, temos que avançar com muito cuidado para não perder essa capacidade de ouvir ensinamentos, de criticar nossa própria realização, de nos submeter a uma condição onde os outros podem nos ensinar e que possamos receber as bênçãos dos Budas através do universo ao nosso redor. Deveríamos estar abertos a isso.
Mas quando nós geramos um auto-centramento, pode ser um auto-centramento na própria meditação. Sentamos em meditação e podemos transformar essa experiência de equilíbrio em nossa própria vida. Isso é uma forma de auto-centramento, uma forma de nascimento no Reino dos Deuses. A pessoa vai ter dificuldades. Às vezes olho para os indianos e penso que eles tiveram esse pequeno problema. É como se eles tivessem usado a meditação para gerar estados de satisfação e, com isso, eles se desinteressaram um pouco pelo mundo. Eles têm essa coisa maravilhosa de mostrar dignidade em meio à pobreza, à doença, mas, por outro lado, é como se faltasse uma faísca que fizesse eles se moverem com compaixão e fizesse aquilo sacudir.
Por exemplo, quando o equilíbrio interno não se manifesta como compaixão, ele é um equilíbrio auto-centrado. A compaixão é sinônimo de liberdade, liberdade do auto-centramento. Se estamos sentados, equilibrados, e vemos pessoas que não estão bem, naturalmente nos levantamos e vamos ajudar os outros. Isso é liberdade. Mas se continuamos sentados, numa experiência particular, fechamos os olhos aos outros.
Aí temos o 6º Elo.
6º Elo – sparsa - Contato |
No 6º Elo vamos ver que gostar ou não gostar está na dependência do contato. Ou seja, quando é que eu digo que gosto ou que não gosto? Eu olho para as flores e digo gosto. Tem o contato visual. Como é que justificamos o 7º Elo? É muito simples! Eu olho e digo “eu gosto”. É muito simples!
O 7º Elo está casado com o 6º. Esse é um processo que vai tocar especialmente o aspecto cognitivo. Como é que eu vejo? Esse é um ponto muito delicado. O 6º Elo é representado por um bebê no colo da mãe ou por um casal de namorados.
Se pensamos que o contato é sólido como referencial, inferimos que o contato é objetivo. Essa é a posição dos cientistas. Houve um momento, na filosofia, que se introduziu o experimento como a forma de julgar a realidade daquilo experimentado. Isso significa que o contato que fazemos possui uma objetividade que pode nos definir o que é verdadeiro do que não é. Quando dizemos “eu gosto” ou “eu não gosto”, é muito simples; isso não é considerado um processo interno. É porque eu “olho” que eu digo “eu gosto”. O contato parece ser o suficiente.
Esse é um ponto muito delicado e é mais fácil hoje de criticar do que na época do Buda. Hoje já estudamos a fisiologia do olho. Os cientistas sabem que o olho só capta certo tipo de radiação. Na época do Buda não se tinha essa noção de que a luz é uma gama variada de freqüências luminosas, das quais só vemos uma parte.
Isso significa que podemos detectar outras luzes através de aparelhos, podemos até mesmo ver outras luzes se usarmos outros aparelhos. Pegamos esse olho e o usamos como um processo de conexão, onde vemos luzes na tela de uma televisão ou vídeo, por exemplo, e a tela manifesta imagens que brotam de outro tipo de aparelho, de outro sensor, que não é mais o olho, olhando o universo a partir de, por exemplo, ondas de rádio. Conseguimos converter ondas de rádio em luz que nós vemos. Então, olhamos e vemos planetas, buracos negros, etc.
Assim, nós descobrimos que o olho pode começar a ver o que ele antes não veria naturalmente. Isso é um ponto importante porque nós percebemos que o nosso olho não vê tudo o que pode ser visto. Assim, passamos a desconfiar das nossas portas dos sentidos físicos. Nos damos conta de que elas são muito limitadas.
Com essa abordagem, nós olhamos os sentidos físicos e somos capazes de nos envergonharmos! Porque, com os sentidos físicos limitados que possuímos – visão, audição, olfato, tato e sabor – temos a pretensão de achar que podemos abarcar todo o universo!
Percebemos, então, que a nossa mente está triplamente definita. É como dizer “não percebemos a limitação com que nós estamos operando”. A maior parte dos objetos que nós conseguimos pensar são gerados como imagens das experiências sensoriais. É difícil para nós pensarmos em alguma coisa que não possamos ver, ouvir, etc. A nossa mente tornou-se limitada à limitação natural dos sentidos físicos.
Isso está ligado à filosofia, à cognição, à linguagem.
Aqui começa essa abordagem menos psicológica e mais filosófica desse ensinamento. Vamos perceber que os sentidos físicos não vêem tudo o que há para ver ou perceber. Mas, ainda assim, nós só vemos o que pode ser visto. O nosso mundo se resume ao que podemos ver/perceber. E dentro do que podemos ver/perceber, classificamos se “gostamos” ou “não gostamos”. E assim, estreitamos ainda mais a nossa área de interesse. A partir disso, tentamos nos sustentar como aqueles que são hábeis em só viver as experiências positivas. Tentamos o tempo todo manobrar as circunstâncias para viver dessa maneira, até o ponto em que não é mais possível. E, então, vem a morte.
Esse é o 6º Elo. Nos vemos, nesse momento, com os sentidos físicos, mas muito limitados dentro disso. Vemos que a mente é ampla, mas se torna limitada à capacidade de percepção dos sentidos físicos.
5º Elo – ayatana - Esferas dos sentidos |
O 6º Elo nos conecta para o 5º Elo. Enquanto o 6º Elo é a utilização dos sentidos físicos, o 5º Elo são o seu surgimento. Esse ponto tem uma grande conexão com a ciência, porque os cientistas geram muitos outros sentidos, agora “eletrônicos”. Criam instrumentos de medida, como os que medem a radiação, por exemplo.
Quando trabalhei no Departamento de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, desenvolvi junto com um aluno, um medidor de radiação solar. Nós geramos um medidor de radiação solar. Desse modo, são desenvolvidos diferentes aparelhos para medir, detectar, diferentes coisas.
Nós começamos a gerar outros órgãos físicos. Se estamos num laboratório de radiação, é muito importante que tudo esteja monitorado, porque nós não sentimos, não percebemos a radiação no nosso corpo. E justo por isso podemos morrer. Uma dose excessiva de radiação pode fazer nossas células entrarem em colapso. Precisamos, então, estar no ambiente no qual a radiação está constantemente sendo monitorada. Todos os cientistas que trabalham neste tipo de laboratório usam uma chapa fotográfica que levam no bolso. Diariamente é verificado o quanto cada cientista já se expôs à radiação. Existe um limite máximo de exposição diária ou por hora. No entanto, essa radiação tem um efeito cumulativo. São necessários detectores, pois, ao final de um ano, o nível medido não deve ultrapassar de um tanto.
Nós precisamos saber disso para podermos entrar em certos lugares, porque nós somos cegos em relação à radiação ionizante. Isto é uma cegueira. Podemos morrer, desenvolver doenças e não termos nenhuma idéia da sua causa, da sua origem. O câncer pode ser potencializado dessa maneira, se nos expusermos, sem saber, à radiação.
Muitas experiências desse tipo foram realizadas pelos americanos quando da investigação das bombas nucleares. Eles testavam os efeitos da radiação nos próprios soldados. A Segunda Guerra Mundial foi, também, um período em que os cientistas fizeram muitas experiências desse tipo. As vítimas de Hiroshima e Nagasaki foram monitoradas acerca dos efeitos da radiação que sofreram.
No 5º Elo nós acreditamos que os órgãos físicos dos sentidos são clareza, são lucidez e que eles revelam o mundo como aparece, como o mundo é.
Hoje é muito mais fácil para nós, do que na época do Buda, mostrar que os órgãos físicos não revelam o mundo como ele é, até porque nós geramos outros instrumentos, outros olhos, e somos capazes de ver o mundo muito diferente do que os cinco órgãos dos sentidos físicos percebem. Hoje nós nos enganamos comendo “bolachas sabor bacon”, “salgadinho sabor pizza”. As coisas já não são mais o que são, mas sim “sabor de alguma coisa”, como “margarina sabor manteiga”.
O ponto do Budismo não é distinguir os vários aspectos ilusórios. O ponto é perceber todos os aspectos como ilusórios e perceber aquilo que os sustenta.
Então podemos nos perguntar: Como é que podemos olhar esse mundo todo e achar que está bem assim? Vemos que existe essa luminosidade que produz todas as aparências do mundo e o mundo parece completamente satisfatório. Esse é o ponto crucial do Budismo e esse ponto crucial não significa “vocês estão todos enganados, desistam, apaguem a luz e venham para a iluminação”.
O ponto é nós percebermos que o engano é sustentado por uma natureza luminosa. Essa natureza luminosa é permanente, está além de vida e morte e ela é nossa natureza.
Nós podemos viver na consciência dessa natureza. Estamos apenas rompendo esses aspectos para nós não ficarmos obrigados a operar como se aquilo fosse sempre sólido. Porque, se operamos como se as coisas fossem sólidas, ficamos presos nos Doze Elos. No final, estamos aqui equilibrando alguma coisa, sem saber como e por que começou e, no fim, a coisa cai, se dissolve. E passamos por todo esse processo sem saber o que aconteceu.
Como existe sofrimento, como existe aflição, é necessário que nós joguemos lucidez sobre esse processo todo. Vamos, então, Elo por Elo, decompondo isso, analisando, examinando. Vamos sempre encontrar por trás disso um processo gratuito, um processo livre, de produção dessa experiência.
Então, os sentidos físicos também vão surgir assim. A seguir, nós vamos estudar com muito cuidado que os órgãos dos sentidos não vêem; que o objeto dos sentidos não tem o que parece que tem dentro deles; que a mente ligada aos sentidos também não é alguma coisa ligada aos sentidos. Esse é o ponto do Prajnaparamita, no qual vamos estudar os 18 dhatus, percebendo a vacuidade dos órgãos dos sentidos, dos objetos ligados aos sentidos e das mentes ligadas a esses sentidos.
A vacuidade pode ser percebida em primeiro lugar, como uma vacuidade que parece mal-humorada, ou seja, “isso não é, isso não é, isso não é”, “ilusão, ilusão, ilusão”. Mas depois vai surgir uma vacuidade bem-humorada, lúdica, que é assim: “Imagina! Isso parece que é!”, “Olha, isso é, isso é!”. Então, ao invés de dizermos “isso não é”, nós olhamos e nos surpreendemos com a beleza daquilo que parece que é. Mas nós não estamos mais presos, entende? Justo porque nós vemos como é que é a gênese daquilo, não precisamos nos opor àquilo. Nós olhamos e sabemos o que é que aquilo é. Então, essa é uma vacuidade lúdica, que nos permite também criar. Ela está mais próxima da liberação, porque a vacuidade do “não é, não é, não é” nos leva em direção a alguma coisa que nos deixa contidos dentro de uma idéia, tentando evitar “o que não é”. A vacuidade lúdica nos permite retornar. Aí, voltamos para aquilo e passeamos dentro, com liberdade.
Podemos agora dividir o Budismo em Chinês, Japonês e Tibetano. O Budismo Tibetano está baseado na vacuidade lúdica. O Budismo Chinês e Japonês, meio a meio, com tendência à vacuidade mal-humorada. É como se eles se dedicassem a dizer “não, não, não”, “ilusão, ilusão, ilusão”. Então, eles ficam sérios, empurrando a ilusão.
O 5º Elo tem uma conexão direta com a física quântica. Porque também na física quântica, sem a influência do Budismo, se chegou a essa noção.
Por exemplo, quando nós falamos dos 18 dhatus, da vacuidade dos órgãos dos sentidos, do objeto dos sentidos e da mente, Niels Bohr também fala isso. Ele não vai usar a palavra vacuidade, mas ele usa a expressão “ambigüidade” e “não-ambigüidade”. Ele diz que “a filosofia natural trata de forma ambígua a questão da medida das coisas, a questão de aferição da realidade. Para nós superarmos a ambigüidade, é necessário nós percebermos que a separação, a diferença, entre o objeto e o instrumento de medida é arbitrária. Nós arbitrariamente dizemos: “eu corto aqui; essa parte é o objeto e essa outra é o instrumento de medida”.
A razão disso é que nós temos o fenômeno que acontece. O fenômeno é composto pelo conjunto formado pelo objeto e o instrumento. Mas quando eu resolvo dizer que aquilo que eu vejo é o objeto, eu estou colocando as propriedades do fenômeno no objeto. Mas eu nunca tenho o objeto como algo que eu possa vê-lo separado, porque eu só posso vê-lo na interação com o instrumento. Então, quando o objeto interage com o instrumento, surge um evento. Esse evento é completamente inseparável. Se eu tirar o instrumento, não acontece o evento. Se eu trocar o instrumento, teremos outro evento.
Por exemplo, pensamos que estamos medindo uma partícula e que a propriedade é da partícula. No entanto, a propriedade é do experimento. Se faço um outro tipo de experimento com outro aparelho, tenho outro resultado. Então, vamos dizer que aquela partícula tem duas propriedades. Até aí, tudo bem, contanto que as propriedades não sejam contraditórias. Mas, quando encontramos propriedades contraditórias, ficamos surpresos.
Niels Bohr diz que só conseguimos superar essa ambigüidade, se, quando descrevermos a partícula, nós também o fizermos em relação ao instrumento de medida utilizado. Mas não somente isso, é indispensável descrever o experimento, as teorias e perguntas do cientista que compuseram esse processo. Ele tem, pois, como inseparáveis daquilo que vemos como partícula, o equipamento experimental, o experimento, as perguntas e os paradigmas (as teorias) que o cientista está utilizando. Então isso é Budismo, ou seja, Niels Bohr rompe a separatividade.
Nos círculos próximos a Niels Bohr, os cientistas seguem estudando, enquanto outros o criticam, dizendo: “Existe a ciência cerragem, que diz ‘aquilo não é’, que vai decompondo e, mal-humoradamente, dissolvendo. Nós preferimos a ciência que constrói.” Mas essa não era a posição de Niels Bohr. Ele se defendia dizendo: “Há uma ambigüidade e não é a posição da física quântica que está produzindo essa ambigüidade. A física quântica está resolvendo a ambigüidade, introduzindo uma visão mais sofisticada.” Esse é o ponto.
Essa é uma coisa que vocês deveriam guardar com muito cuidado na mente, porque vocês mesmos vão tropeçar com críticas. Ou seja, as pessoas vão dizer “isso aí é místico!”, “É uma viagem”. Então, vocês sempre lembrem que os paradoxos existem no mundo convencional. Essa visão vem para resolver o paradoxo da convencionalidade.
O paradoxo, na física, não veio dos físicos quânticos. Os físicos quânticos resolveram o paradoxo da física clássica vinte e cinco anos depois do eclodir do problema. A física quântica tem a possibilidade de resolver esse paradoxo, essa ambigüidade, e propor um sistema não ambíguo, onde se consegue prever o que vai acontecer, seguindo com a física teórica operando. É necessário nós entendermos isso, retomarmos esse processo de unidade. E a própria matemática fica diferente. Há um formalismo matemático que dá conta disso. Eu não vou entrar aqui nesta questão, mas é encantador o processo pelo qual surge um processo matemático que dá conta da inseparatividade. É espantoso que isso seja possível!
Então estamos no 5º Elo, olhando os instrumentos de medida. Vamos ver que os instrumentos de medida não têm a possibilidade de oferecer um processo não ambíguo, sério, estável.
No Budismo Zen se pergunta qual o som da palma da mão em diversos tipos de materiais. Por essa batida, caracterizamos diversos objetos, por exemplo: esse é o som da madeira (mão batendo na madeira); esse é o som da pedra (mão batendo na pedra); esse é o som da parede (mão batendo na parede); esse é o som da mão (mão batendo em outra mão). Mas quando nós dizemos “esse é o som dessa mão”, fica algo estranho, pois elas são iguais! Então nós nos damos conta que nas “batidas” anteriores, nos sons anteriores, tinha também uma mão! Se não tem mão, qual seria o som? Não tem som! Ou seja, o instrumento de medida produz o efeito junto, é inseparável do próprio efeito. Então, no Zen se pergunta: Qual é o som que vem só de uma mão? Essa é a pergunta. Ela trata dessa questão. Vejam que há muito tempo atrás as pessoas já tinham se dado conta disso.
O 5º Elo trata dos nossos instrumentos de medida, do nosso corpo, da nossa sensorialidade.
Estamos, pois no 5º Elo. Como nós compreendemos o 5º Elo é mais fácil entender o 4º.
4º Elo – namarupa - Nome e forma(aspiração) |
3º Elo – vijnana - Consciência(energia) |
O 4º Elo e o 3º têm que ser explicados juntos. No 3º Elo, temos experiências de energia. Vocês se imaginem sonhando. A mente que está livre dos sentidos físicos é uma mente que se assemelha ao sonho. As etapas (ou Elos) antes dos sentidos físicos (5º Elo) são etapas de sonho.
Nessas etapas de sonho, temos a possibilidade de imaginar objetos. Alguns desses objetos podem produzir em nós como que fossem embriões das emoções. Elas não são ainda emoções no sentido de apego, mas são embriões de emoções. Esses embriões se manifestam com “mais ou brilho” ou “menos brilho”. A partir desse “mais brilho” ou “menos brilho” nós surgimos, nós nos sentimos existindo. É uma coisa muito parecida na nossa vida diária, quando está tudo muito tranqüilo em casa. Aquilo fica meio sem graça. Achamos que precisa acontecer alguma coisa que produza brilho.
Nos 4º e 3º Elos, é como se estivéssemos com um sonho meio morno, não tem nada. Mas, de repente, surgem coisas que produzem brilho. Quando essas coisas surgem, nós temos a sensação de existência, de que nós existimos. Isso produz uma dimensão sutil de APEGO, que não é apego a um objeto, porque ainda não temos objetos. É apego a sonhos, a visões. Então, porque nós temos esse apego a sonhos e visões, entre os nossos sonhos surge a aspiração de termos um meio de estabilizar esse sonho.
Por exemplo, todos nós temos aspectos internos – que, às vezes, nem nos damos conta - que nos fazem mais felizes ou menos felizes. Quando vamos numa galeria de arte, nós olhamos diferentes quadros. De repente, vemos um quadro e dizemos: “Oh!, Que bonito!” Brota um brilho e nós pensamos que é o quadro que tem esse brilho. Então, compramos o quadro, levamos para casa e o botamos na parede. Cada vez que olhamos para o quadro, brota o brilho. Mas isso também se desgasta!
Mas o ponto importante para nós não é esse. O ponto importante é que há um momento em que nós aspiramos algo que estabilize aquela energia. No 3º Elo, temos as experiências de energia. Nós, então, aspiramos que elas retornem, apareçam. Quando aspiramos isso, surge o 4º Elo.
O 4º Elo é essa aspiração de que nós venhamos a encontrar algo que estabilize a nossa energia. Essa aspiração vai produzir, na seqüência, o 5º Elo, que são os sentidos físicos. Os sentidos físicos se estabilizam devido a esse processo, porque através desse embrião de sentido físico que surge, nós conseguimos estabilizar uma certa experiência. Então, a conexão com o corpo vai surgir desse ponto.
Num certo momento, evolucionariamente, nós nos conectamos com um embrião ou com algo material que produz essa sensação de estabilidade do nosso mundo abstrato.Até o 3º Elo, nós só temos o mundo abstrato. O 4º Elo é a ponte entre o mundo abstrato e o mundo concreto.
A ponte vai se traduzir pelos sentidos físicos. Os sentidos físicos vão fazer contato com o mundo, sustentando as estruturas que nós temos. Essas estruturas que temos vão dar sentido ao contato físico e elas vão terminar se traduzindo como “gostar” ou “não gostar” (7º Elo). Então, quando surge o “gostar” e o “não gostar” nós esquecemos todo o resto, como se ali começasse a nossa vida. Não conseguimos mais ver os sentidos físicos, nem as estruturas abstratas.
Então, o 4º Elo surge quando nós aspiramos um meio de estabilizarmos as experiências abstratas. É dito que, quando nós morremos, nós perdemos o corpo, mas preservamos os três primeiros Elos, os quais permitem as experiências oníricas após a morte do corpo. Entretanto, no meio dessas experiências do pós-morte, nós terminamos aspirando estabilizar essas experiências de novo. Nossa mente vagueia e aspiramos estabilizar novamente as experiências que tivermos. De acordo com o carma, com o impulso que temos, vamos procurar um ou outro tipo de corpo. E assim nós vamos renascer.
O renascimento se completa quando os sentidos embrionários (4º Elo) eclodem num bebê que nasce (5º Elo) e esse bebê está no colo da mãe (6º Elo). Então, ele gosta ou não gosta (7º Elo) e gera o apego (8º Elo). (Por isso Freud dizia que todos os problemas começam com a mãe!)
Então, surge o apego, estimulado pela mãe, e, na seqüência, surge o ser que diz “sim, eu sou isso” porque funcionou muitas e muitas vezes (9º Elo). Então, aquele ser nasce no mundo e diz: “eu sei fazer isso” (10º Elo). Aí ele resolve seduzir as meninas procurando a mãe (isso é o Buda dizendo, claro!). No entanto, isso nunca é atingido, nunca se resolve, porque ele nunca encontra ninguém como a mãe. Problema garantido!
Todos os Elos operam o tempo todo. Eles são cumulativos. Um serve de base para o outro. Eles só se extinguem com a iluminação. Aí não é que eles se extinguem. É que fica tudo claro. O extinguir significa uma liberação frente à operação condicionada.
Nós não precisamos responder de forma automática. Há uma liberdade em cada um dos Elos. Numa nova vida esse embrião já está diferente. Nós vamos mudando, os embriões vão evoluindo. Esse processo se dá pela energia, a energia conduz isso, porque a nossa aspiração conduz a energia.
Na nossa vida vamos ver isso. Tem crianças que tem energia para jogar futebol, outras tem para estudar. A energia está conduzindo isso. Nós pensamos que é o corpo, mas não é, não é o embrião, é a energia.
Esse é um ponto importante, porque nele vão divergir aqueles, como os neurocientistas, que vão pensar que o ponto (ou a energia) está na forma, e os que vão pensar que o ponto (ou energia) está na liberdade.
Os budistas vão pensar que o ponto está naturalmente na liberdade, ainda que, como um automóvel não voa, a forma vai desempenhar um limite nisso. Mas o motorista, ele voa, mesmo que o automóvel não voe, porque a mente dele é livre. Agora, se ele estiver preso ao que chamamos MENTE TRIPLAMENTE DEFINIDA, então ele só faz o que os seus sentidos permitem. Esse é um ponto bem interessante, porque há Sutras em que o Buda elucida bem esta questão.
No diálogo com Ananda, no Surangana Sutra, o Buda questiona Ananda, mostrando que ele (Ananda) poderia ver através da parede. O Ananda diz que só consegue ver a parede. Mas o Buda replica: ”Ananda, como é que você não consegue?” O Buda está tentando tirar o aspecto triplamente definido e mostrar a liberdade à Ananda. Não é que a luz atravesse a parede, entra no olho e Ananda passe a ver adiante. Não é isso. Mas a nossa mente pode alcançar o espaço de fora. Quando estamos com a mente presa ao sentido visual, nossa mente não alcança o espaço de fora. A nossa mente é livre, mas se ela se mantiver presa ao órgão físico, ela não vai.
Então, supomos que estamos operando a mente a partir do olfato. Estamos aqui, começamos a sentir o cheiro de comida e dizemos: “Está na hora do almoço”. Nossos olhos não alcançam as paredes, mas o nosso olfato, o nosso nariz, os alcança! Ou, então, escutamos o barulho de talheres e pratos e aí sabemos do almoço. Nossa mente vai lá.
Então, se a mente estiver presa à porta dos olhos, pobre coitada! Isso significa MENTE TRIPLAMENTE DEFINIDA, ou seja, limitação. No entanto, pensem, podemos estar com os cinco sentidos operando, mas, se a nossa mente estiver presa a eles, nós não vamos adiante. Ficamos presos a eles. Vamos, então, percebendo que há essa liberdade muito ampla, mas essa liberdade pode entrar em colapso.
O 3º Elo, vijnana, é simbolizado por um macaco sobre uma árvore. Ele representa a consciência. Não é um macaco colhendo frutos, como no 9º Elo. É um macaco no seu ambiente, significando a identidade (sutil), uma consciência da identidade a partir da energia que se movimenta.
Depois temos o 2º Elo, que tem que ser entendido junto com o 1º.
BREVE RECAPTULAÇÃO DOS DOZE ELOS NO SENTIDO INVERSO, até o 3º:
§ O 12º Elo é o sofrimento, as dificuldades que enfrentamos;
§ O 11º Elo é o nosso equilíbrio, tentando sustentar as construções artificiais; é a nossa vida;
§ O 10º Elo acontece quando nós surgimos no mundo com as nossas auto-definições;
§ O 9º Elo são as nossas experiências prévias, antes de nós dizermos “eu sou isso” ou “eu sou aquilo”; pode ser visto também como nosso treinamento antes de nós surgimos;
§ O 8º Elo corresponde ao apego;
§ O 7º Elo é a experiência de gostar ou não gostar;
§ O 6º Elo é o nosso contato com o mundo, o qual é intermediado pelos sentidos físicos;
§ O 5º Elo representa o surgimento dos sentidos físicos;
§ O 4º Elo é a nossa aspiração para obter os sentidos físicos;
§ O 3º Elo é a energia ou consciência; é o primeiro momento onde surge a noção de consciência. O objeto da consciência é a energia – o observador olha para si mesmo e se vê “brilhando”.
2º Elo – samskaras - Marcas mentais |
1º Elo – avidya - Ignorância |
O 2º Elo surge conectado ao 1º. O 1º Elo é o surgimento do observador e do objeto, ou do sujeito e do mundo ao redor. Esse 1º Elo não parece muito óbvio assim, porque o surgimento do observador parece completamente natural para nós. Nós sempre temos um observador operando. No entanto, não é uma coisa muito óbvia. É algo construído.
No sentido budista, o 1º Elo é o momento da criação, onde a mente se divide entre o observador e o objeto, o que não é muito fácil de perceber.
O 2º Elo será entendido através do 1º. O 1º é quando surge o sujeito (observador) e o mundo (objeto). A partir dessa impressão de mundo surgem como que memórias desses mundos. Então, uma vez que nós fizemos surgir um tipo de imagem, é mais fácil para nós repetir isso, para que nós possamos fazer surgir de novo e de novo. Se diz que surge uma marca interna. Essa marca interna é chamada de SKARA. O conjunto dessas marcas é chamado de SAMSKARAS.
Primeiro, nós produzimos a habilidade de fazer surgir o objeto e o observador. Em seguida, nós temos muitos objetos, muitas formas de fazer surgir isso. Esse caminho já preparado é simbolizado pela chuva que abre sulcos na terra. E, uma vez que esses sulcos estejam abertos, é natural que a água da chuva corra por eles. Com o tempo, nós temos rios, vales, que surgiram escavados por esse fluxo de água. Esse conjunto de marcas é chamado Samskaras. No entanto, as marcas não são apenas marcas.
Cada vez que nós temos uma experiência desse tipo – uma experiência de um observador olhando os objetos – o objeto trás em si energias. Quando o objeto surge, ele se manifesta com um brilho. Esse brilho trás junto uma energia. Essa energia nós podemos observar, por exemplo, quando estamos meditando. Em meditação formal nós podemos perceber como a mente se dispersa. Percebemos que surge um pensamento ou uma imagem e essa imagem nos conduz a outra imagem ou pensamento, que conduz a outro que conduz a outro. Portanto, não é que a dispersão seja o surgimento do objeto; a dispersão é o surgimento do objeto pela energia que ele trás e que faz com que sejamos conduzidos para outro objeto.
Então, nesse aspecto de condução de um objeto a outro, percebemos que tem uma energia. Vemos que cada objeto tem uma energia. Num certo momento, porque há uma inseparatividade, nós nos damos conta de que o objeto é uma experiência de objeto, e que a energia é uma coisa que nós sentimos. Nesse momento, quando a gente diz “a energia que nós sentimos”, então surge a consciência do observador. O observador se vê. É como se ele recuasse e pudesse observar a si mesmo. Porque ele vê essa energia, ele pode dizer: “Eu vejo a energia em mim”.
Então surge o macaco, que representa o 3º Elo. Ou seja, não é que já não tivesse presente o observador, mas agora ele gera uma autoconsciência. Então, o 3º Elo é quando surge a consciência do observador. O observador já existe no 1º Elo.
Olhando o 2º Elo novamente, vemos que há esse conjunto de marcas (samskaras), que vai evoluir depois para um outro conceito. Temos agora samskaras e depois vijnanas. Mas temos uma correspondência entre samskaras e vijnanas. Samskaras são marcas mentais e vijnanas são marcas ligadas à energia, ou seja, tem um impulso. É como se nós víssemos aqui o próprio observador, pois ele surge com essa consciência.
Nesse momento vai surgir uma outra noção no Budismo que é alaia-vijnana. Alaia significa “depósito”, por exemplo, himalaia significa “depósito de neve”. Alaia-vijnana significa depósito de vijnanas. É como um conjunto de marcas, agora na forma de energia, ou possibilidades de consciência, possibilidades de posicionamentos de observador. Enquanto que samskaras são marcas pelas quais nós vemos o mundo (estruturas, paradigmas, teorias). Parece que está do lado de lá, parece que está no mundo, no objeto. Vijnana parece que está no observador. Mas, na verdade, esses dois conjuntos – samskaras e alaia-vijnanas – estão juntos.
Agora, quando queremos estabilizar a nós mesmos, ou seja, quando nós nos confundimos com essa consciência, com essa marca, e tentamos estabilizar, nós vemos que certos objetos estabilizam essa marca. Então, nós aspiramos o surgimento desses objetos, de forma palpável, estável. Desse modo, nós vamos tentar gerar os sentidos físicos, e os sentidos físicos vão permitir que nós, olhando o mundo, encontremos os objetos que estabilizam essa marca.
Vocês vão perceber que, meditando, olhando de frente para uma parede rugosa, de olhos abertos, com o tempo vocês passarão a associar os pontos e ver imagens. Vocês começarão a ver figuras humanas, coisas, onde não tem nada. Essa é a função de alaia-vijnana encontrando um modo de se expressar enquanto objetos externos.
Nós aspiramos objetos que estabilizem essas estruturas internas. É muito mais difícil nós produzirmos uma visualização se nós dissermos assim: “Eu quero ver o rosto de minha mãe.” É muito mais difícil estabilizar esta experiência do que olhar uma foto. Ou, lentamente, vamos lembrando do rosto dela, pedaço por pedaço, e vamos pintando até que a imagem passa a estar ali na nossa frente. Olhamos de novo e, imediatamente, retorna aquela experiência. É como nós fazermos notas. À medida que lembramos, vamos anotando. Depois, olhamos para o papel e está tudo lá. Fica muito mais fácil de lembrar.
Então, para estabilizar a mente, nós aspiramos objetos que possibilitem esse foco. Nesse sentido, vocês vão perceber que o mundo inteiro termina sendo a expressão da nossa mente. É como se nós pensássemos com o mundo. O mundo é inseparável da nossa mente, ele é uma extensão do nosso processo mental. Ele manifesta os vijnanas (3º Elo) e samskaras (2º Elo).
O 1º Elo é como se fosse a base do tronco da árvore da ilusão. Se eu cortar o 1º Elo, considerando que todos os demais dependem do lº, então tudo vai abaixo. Progressivamente, cada Elo é mais fundamental que os outros. E o mais fundamental de todos é o lº.
O lº Elo é chamado ignorância ou avidya e é simbolizado por um cego. Esse primeiro Elo parte de uma experiência que pode ser examinada especialmente com a arte. Os artistas podem nos ajudar a compreender os três primeiros Elos com mais facilidade.
Por exemplo, olhamos essa imagem (da Roda da Vida[6]) e vemos aquele ser terrível com os dentes, olhos e uma cara estranha e pouco confiável. Quando olhamos essa imagem, apesar de nós vermos olhos, não tem olhos; apesar de vermos nariz, não tem nariz; apesar de vermos seres, não tem seres ali. Esses seres surgem inseparáveis do próprio observador. Ali só existe papel e tinta. Nós não temos propriamente esses seres que nós vemos.
Nós podemos criar imagens, como por exemplo, uma esfera com listas vermelhas e brancas. Quando criamos mentalmente a esfera, seja ela do jeito que for, nós não nos damos conta, mas nós criamos junto o observador dela, pois essa esfera vai ser vista por um observador especial. Se eu disser para vocês “imaginem uma esfera”, na verdade eu estou convidando vocês a criarem um observador. Esse observador vem junto com a esfera. Ele está ali, embutido. Mas aí, vocês pensem: ”Qual é a substância desse observador?” ou “Qual é a substância desse objeto?” É a própria mente! Ou seja, a mente é o objeto e a mente é o observador. Vamos ter que concordar com isso! É como o Buda diz no Vankalatara Sutra: “A mente observa a mente.”
Avidya é isso: a mente observa a mente e pensa que está vendo apenas o objeto.
Daí surgem as conseqüências mais graves. Nós olhamos um objeto e construímos outros objetos a partir do primeiro objeto. Criamos vínculos entre o primeiro objeto e os objetos seguintes. Dessa maneira, começamos a construir o mundo, a linguagem, energia, tudo isso vai surgindo. Nós produzimos os objetos, mas passamos a nos esquecer disso. Nós nos esquecemos do observador, que parece neutro, olhando os objetos. Quando esses objetos são construídos, temos já o 2º Elo, que são as marcas (mentais), que facilitam cada vez mais a construção dos mesmos objetos.
No Vajrayana, especialmente, se trabalha esses níveis com a visualização das deidades. Visualizamos, por exemplo, uma deidade. Ela tem quatro braços: dois braços assim, segurando tais coisas, dois braços assados, segurando outras coisas; tem uma coroa com cinco caveiras; as pernas estão de um certo jeito. Ela está sobre um disco dourado, um disco branco, uma flor de lótus, água embaixo, horizonte ao redor. O corpo é todo branco. Desse corpo brotam luzes de arco-íris. A aparência é sorridente, mostrando um ar de profundidade. Vamos imaginando, e olhando todos esses aspectos, que nos leva a vermos nitidamente aquilo.
Quando nós estamos trabalhando com isso, nós estamos construindo a deidade, mas também estamos construindo aquele ser que vê a deidade. Quando nós vemos uma deidade, nós somos alguém na relação com essa deidade. Esse observador surge também. Então, com o tempo, no Vajrayana, nós vamos criando deidades, criando seres, e esses seres que vêem as deidades têm a tendência de se comportar de um certo jeito e não de outro, de acordo com a deidade que é vista.
Então, nós vamos trabalhando essa complexidade toda, mas de um modo não analítico. Nós experimentamos isso uma vez, duas, três e depois de cerca de 1 milhão e 200 mil práticas (pois o número é mais ou menos esse!) terminamos clarificando todo o processo de surgimento das realidades. Brota isso dentro de nós como uma compreensão, porque tantas vezes cruzamos por ali que terminamos compreendendo. No Mahayana, nós estudamos, usamos um processo discursivo, analítico.
Nesse ponto, nós percebemos o surgimento de vários elementos. A primeira coisa que percebemos é o objeto. A segunda coisa que nós vemos é o observador. Entretanto, tem um terceiro aspecto grave, que é a separatividade. Ou seja, é a mesma mente, mas agora nós vemos um objeto ali e outro aqui (nós, o observador). Parece que não há mais conexão, parece que o objeto é aquilo em si mesmo. Parece que nós não podemos transmutar/trocar o objeto. Nós abdicamos dessa capacidade. Vemos o objeto em si mesmo.
Então nós tentamos: “Será que conseguimos transformar aquela esfera, antes imaginada, em um cubo?” Vemos que conseguimos, sem o maior problema. Portanto, temos que testar essa inseparatividade, pois o que parece que há é uma separação entre o objeto e o observador.
Existe uma análise complexa que vem desse ponto. Não vou me deter nessa análise porque isso exigiria um bom tempo, mas aqueles que quiserem examinar isso podem estudar avidya através de textos mais detalhados.
Avidya se torna muito clara. Avidya é nossa incapacidade de ver tudo inseparado; nossa incapacidade de ver o observador; nossa incapacidade de ver a possibilidade de ação do observador.
Ficamos presos à noção de que o objeto tem um conteúdo fixo e nós nos prendemos à responsividade. Surge, pois, a responsividade, ou seja, nós percebemos que o objeto, em sua própria forma, nos induz a um outro objeto, nos levando adiante. No conteúdo do objeto já está impresso o que nós vamos chamar de responsividade, que é uma resposta automática. Ou seja, nós vemos certas coisas e estas nos conduz a outras.
A compreensão da responsividade é um ponto muito importante. A melhor forma de perceber isso é através da meditação mesmo. Ou seja, sentados, meditando, em silêncio, vocês verão que vai brotar, de tanto em tanto, idéias/imagens. E enquanto essas idéias/imagens brotam, elas nos conduzem a outras idéias/imagens. Esse processo nunca pára. Nós nunca paramos numa imagem. Quando uma imagem se instala, ela imediatamente nos coloca em outra imagem e esta outra nos remete à outra e assim vamos seguindo, sem parar.
Esse processo que, ao nos conscientizarmos de algo, nos leva para outro algo, é chamado de responsividade. Esse ponto, no sentido Budista, é o início do Samsara. O cimento das paredes de Samsara, que está ligado à responsividade. Nós vamos trabalhar o tempo todo para superar especialmente a responsividade. O carma e as marcas mentais operam dentro da responsividade. Portanto, os Samskaras operam dentro da responsividade.
Ou seja, quando tem um objeto, faz parte do processo automatizado o que vai acontecer na seqüência. Então, esse impulso que nós temos é pura luminosidade, não tem nada dentro dele. Mas porque há o impulso, ainda que nós possamos obedecer ou não, nós obedecemos. Se obedecemos, perdemos a lucidez. Esse ponto, onde há simplesmente a obediência ao impulso, traduz o vaguear indefinido, por um tempo além do tempo, por dentro da ilusão.
Isso é semelhante ao que acontece quando estamos meditando. Saltamos de uma coisa para outra, de outra coisa para uma nova coisa, e, de repente, se passaram 10 minutos. Então, de repente, “acordamos”! Mas, ao invés de 10 minutos, poderia ter sido 10 anos ou 10 vidas! Aí, num momento, estamos de novo lúcidos, por um instante, fora desse processo. Existem vários exemplos de como nós facilmente entramos nisso através da responsividade. Tem duas histórias tibetanas bem interessantes sobre esse tema. Uma delas é assim:
Um rei pede para um Iogue da ilusão dar ensinamentos sobre a ilusão. O Iogue vai até o palácio e é recebido pelo rei. Então, um atendente do rei traz chá, duas xícaras e um bule. O rei começa a servir a xícara do Iogue e pede para ele lhe dar esse ensinamento. O Iogue começa explicando que, naquele dia não seria possível para ele dar esse ensinamento. Nesse momento, soam trombetas anunciando a partida da corte para a caça, chamando a todos para a caçada.
Então o rei, diante da recusa do Iogue em dar os ensinamentos, decide ir para a caçada. O rei desce, toma o seu cavalo e sai com o grupo todo. Em um certo momento, o rei desgarra-se do grupo e entra numa região que ele não conhece. No meio disso, o cavalo se assusta, o rei cai e bate com a cabeça. Tendo batido com a cabeça, o rei fica desacordado por um tempo. Quando ele retorna, ele está desmemoriado. Não sabe onde está, não reconhece nada, esquece quem ele é.
Então ele começa a vaguear, a caminhar e vem a fome. Continua caminhando, até que encontra uma estrada. Nessa estrada ele vê que vem se aproximando uma carroça de ciganos. Ele faz um sinal, a carroça pára e ele diz: “Eu estou com fome. Se vocês me derem comida, eu trabalho para vocês.” No entanto, os ciganos o acolhem na carroça mesmo dizendo não precisarem dos seus serviços. E, então, eles seguem juntos. De repente, ele olha para o lado e vê uma cigana linda, bem ao seu lado. Eles andam mais um pouco, se entreolham, se enamoram. Ele a convida a deixarem o grupo, ela aceita, descem da carroça e decidem começar uma vida juntos. Eles montam uma estalagem e assim o tempo passa. Eles têm filhos e vivem felizes por muitos e muitos anos.
Nessa altura, o rei já está meio barrigudo, vendendo cachaça atrás do balcão do bar da estalagem. Mas o rei tinha um Primeiro Ministro, e esse Primeiro Ministro era muito inteligente e muito fiel. Ele nunca desistiu de procurar o rei. Assim, um dia o Primeiro Ministro entra pela porta da estalagem e o reconhece imediatamente. O rei não se lembra de coisa alguma.
Então, o Primeiro Ministro resolve ficar por lá e todo dia ele vai contando um pouco da história do rei para o rei desmemoriado. E o rei, aos poucos, vai entendendo o que está acontecendo. Lá pelas tantas o rei diz: “Sim! Eu lembro!” Nesse momento, ele olha à sua frente e o chá não havia sequer esfriado ainda. Ou seja, ele estava servindo o chá ao Iogue, quando ele acordou do sonho e percebeu que o chá nem havia esfriado ainda!
Ou seja, todo esse processo era um sonho que ele estava tendo. Então, nós percebemos como esse processo é um processo no qual nós também entramos. Uma coisa leva à outra, essa outra coisa leva à outra, e assim vamos nós. O Rimpoche concluía, dizendo: “O rei são vocês e o Primeiro Ministro sou eu.” Com isso ele queria dizer que todos nós temos essa natureza, mas esquecemos dela. Batemos com a cabeça, pegamos uma carroça de cigano, paramos numa estalagem e estamos servindo cachaça atrás do balcão, sem nos lembrarmos de quem somos.
Essa história foi contada para mostrar como é o poder da responsividade, que nos leva de um ponto para outro, até que nós, de repente, acordamos no meio disso. Mas esse é um processo que pode ser longo. Então, no sentido budista, nós estamos atualmente em meio do nosso sonho, depois de ter batido com a cabeça.
Se nós analisarmos com cuidado os ensinamentos, nós vamos percebendo que o ponto crucial é a responsividade. Ela nos leva de um lado para outro e nunca chega a analisar se aquilo é real. Porque não precisa ser real, pois ele nos conduz a outra coisa.
Tem uma teoria, na física, que se chama “bootstrap.” Ela significa que a realidade surge e se sustenta da mesma forma que nós nos elevamos pegando os cordões dos nossos sapatos, puxando-os para cima, com força, até elevarmo-nos do chão. Ou seja, a realidade é auto-sustentada, não tem nenhuma base. Assim, a realidade em que nos encontramos também é desse mesmo teor. Essa é uma expressão da física que foi copiada do budismo. A idéia de que nós nos sustentamos, nos elevamos, puxando os fios dos nossos sapatos, para significar que a realidade surge sem a necessidade de ter um chão por baixo. A experiência da realidade surge pela responsividade.
Então, vocês verão que todo o nosso objetivo de treinamento será interromper a responsividade. A liberdade vai ser conceituada como a capacidade nossa de superar a responsividade. A responsividade é o processo de prisão.
No sentido budista, nós precisaríamos ultrapassar esse 1º Elo, ou seja, superar a noção de separatividade. Para tanto, nós temos um treinamento para lidar com isso, o qual nos levará a ultrapassar essa noção de separatividade. E, uma vez que a experiência de separatividade não é real, a liberdade vai se manifestar de forma direta. Nós olhamos para o objeto e, em princípio, parece que o objeto é sólido, concreto nas suas propriedades.
Mas, como os objetos surgem inseparáveis de nós, eles tomam sentido a partir de nós. Assim, mudando a perspectiva do observador, mudamos a aparência do objeto e, conseqüentemente, mudamos as responsividades ligadas aos objetos.
O sentido da liberdade está ligado a esse processo. Isto também está conectado com a superação da causalidade. Vocês vão ver a causalidade surgindo como conseqüência da própria responsividade.
Ultrapassando a noção de responsividade, podemos realizar ações não-causais, produzir outras ações que não brotam da primeira aparência vista/percebida como objeto.
Esse é um ponto muito importante. O Niels Bohr compreendeu a não-causalidade. Essa não-causalidade vai surgir na física quântica como o “salto quântico”, onde não há uma estrutura intermediária entre o ponto de saída e o ponto de chegada. Não tem uma explicação, não tem um processo intermediário dentro disso.
Eu não vou abordar essa questão de forma extensiva, porque esse não é o nosso ponto. Mas essas são questões importantes na visão budista. Elas vão ser trabalhadas especialmente no texto chamado o Sutra do Coração, que é parte da literatura Prajnaparamita, literatura essa extensa, com cerca de 100 mil versos e que está toda traduzida para línguas ocidentais, pelo erudito budista Edward Conze.
No entanto, eu acredito que a melhor fonte para vocês examinarem essas questões é tomar o próprio Prajnaparamita, enquanto Sutra do Coração, e meditarem sobre o que está ali escrito. Vocês vão contemplando e tentando entender aquelas partes. Esse é o caminho mais rápido, mais direto. Assim, nós contemplamos a primeira abordagem dos Doze Elos.
EXAME DOS DOZE ELOS NO SENTIDO INVERSO, DO 1º AO 12º ELO
Vamos ver agora que, como nós não percebemos o processo de avidya, então surge o objeto e o observador como se fossem separados. Quando surgem os objetos separados, surge a resposta, o impulso de energia correspondente ao próprio objeto, que está dentro dele. Essas diferentes formas de discriminação terminam surgindo como marcas, que vamos chamar de samskaras, que são o 2º Elo.
Operando com o 1º e o 2º Elos, lá pelas tantas, podemos perceber que, quando certas marcas estão presentes, nos manifestamos de forma mais viva. Nesse momento, nos tornamos objeto de observação de nós mesmos. Esse objeto de observação se dá através dessa energia. Então, nós vemos essa energia surgindo. Quando localizamos essa energia dizemos: “Eu sou isso!”. Estamos com o 3º Elo operando.
Quando os três primeiros Elos estão operando, pode surgir a aspiração de nós estabilizarmos a energia que corresponde a nós mesmos. Aspiramos reduzir a flutuação, aspiramos a energia onde nós estamos presentes de forma mais viva. Com essa aspiração, nós terminamos desenvolvendo órgãos dos sentidos capazes de localizar fora, de forma mais estável, os objetos, de tal maneira que o conjunto de alaia-vijnanas (nossas impressões) termina vendo-o como um mundo externo. Então, aspiramos os órgãos dos sentidos para poder estabilizar essa experiência de energia.
Aí surgem os órgãos dos sentidos. Eles não precisam ser totalmente abrangentes, capazes de pegar todos os sons, todas as radiações. Eles devem apenas nos oferecer objetos que estabilizem nossa energia. Eles são, portanto, naturalmente limitados.
A partir desses órgãos dos sentidos surge a possibilidade de contato. Quando surge o contato, nós classificamos isso como bom, mau ou indiferente. Então, presos a essa noção de “bom, mau e indiferente” nós dizemos novamente: “eu sou alguma coisa, sou aquele que gosta disso ou aquele que não gosta daquilo”. Escolhemos, então, ficar com o que é bom e rejeitar o que é mau.
Essa escolha, essa decisão, corresponde ao apego. Nós aprendemos a olhar os objetos dessa forma e nos antecipamos, escolhendo uns e não outros. Esse apego introduz um tipo de inteligência que nos faz filtrar as experiências e conduzi-las numa determinada direção. Nós muitas vezes fazemos isso e aquilo funciona. Esse é o 9º Elo.
Justo porque aquilo funciona, então olhamos para nós novamente e dizemos: “Você é esse ser inteligente, que é capaz de filtrar isso tudo e agir desse modo!” Aí nós surgimos de novo, agora, de forma complexa. Antes, surgíamos como forma de energia, agora surgimos no mundo, na relação com os objetos (pessoas e coisas). Somos o 10º Elo – Bhava. Porque surgimos, nós já não temos as escolhas do que queremos e não queremos, pois já somos aquele que sabe filtrar.
Estamos agora no mundo, o tempo todo procurando o que queremos e nos afastando, evitando o que não queremos. Esse período onde fazemos isso é o período que chamamos de “nossa vida”. Em nossa vida cotidiana, estamos empurrando os objetos que não queremos e puxando os objetos que queremos. Os que nós queremos nos escapam e os que não queremos chegam. Aí, empurramos alguns e puxamos outros objetos de novo. O tempo todo nós estamos fazendo isso. Até o momento em que não é mais possível. Há um desgaste e nós terminamos por encontrar o que nós não queremos e perder aquilo que queremos. Mesmo o aspecto mais simples da sustentação de nosso corpo entra em colapso. Então, nesse momento, nós temos a sensação de decreptude, sofrimento, dissolução e morte.
No entanto, antes desse corpo, havia uma consciência e assim isso não cessa. Por isso, o Guru Rimpoche vai dizer que há SEIS BARDOS. Tem o bardo do morrer, mas há o bardo do pós-morte. Ou seja, a consciência segue viva nos três primeiros Elos. Só não temos o suporte físico, mas o processo abstrato continua a operar.
Depois da morte do corpo físico, seguimos tendo muitas experiências, o que faz brotar de novo a nossa aspiração de estabilizar as experiências de energia favoráveis e descartar as desfavoráveis. É como se, dentro desse universo, nós vamos nos localizando, memorizando e nos fixando em um grupo de experiências. Essas experiências vão conduzir a nossa aspiração para a vida seguinte. Então, de novo, olhamos e nos vinculamos novamente ao mundo material, através de um embrião.
Os tibetanos dizem que isso começa quando nós visualizamos a mãe e o pai juntos. Aí, se nós temos atração pela mãe e raiva do pai, nós nascemos como homens. Se temos atração pelo pai e raiva da mãe, nascemos como mulheres. A adolescência está toda explicada! (Risos) Se não tiver repulsa ou aversão pelo pai ou pela mãe, nascemos como bodisatvas! (Risos)
OUTRO GIRO PELOS DOZE ELOS
Então, nós fazemos a volta e olhamos de novo. Vamos ver, dentro do nosso ambiente, essas Doze Etapas como visões heréticas particulares. Por exemplo, ainda de trás para adiante, dentre as visões heréticas particulares, que conduzem a muito sofrimento, está o fato de que a dissolução é uma boa razão para explicar porque estamos sofrendo. Vemos as coisas se dissolvendo e dizemos: “Oh! Sofrimento da dissolução!” Nós temos o sofrimento porque vamos morrer, porque as pessoas queridas morrem. Se nós quisermos ajudar alguém na proximidade da morte, nós não deveríamos olhar de uma forma herética, mas sim de uma forma lúcida.
Por exemplo, Rui Neng, olhando a sua própria morte, nos diz: “Se algum dos meus alunos aceitar condolências, ele não é meu aluno; se alguém vestir luto, não é meu aluno.” Por que ele diz isso? Porque Rui Neng compreende a natureza que está além da vida e da morte. Ele deixa claro que a sua natureza está além de vida e morte e que ele não é outra coisa que não essa natureza. Ele não é o aspecto mortal. Por isso ele diz que, se alguém aceitar condolências não será seu aluno, porque não haverá um instante em que ele estará afastado do mundo. Por que? Porque a visão dele, seus ensinamentos, sua lucidez, está presente, ela não morre. E ele é isso, ele não é outra coisa. Ele vai viver nos seres e, neste sentido, ele está vivo até hoje. É como Guru Rimpoche segue vivo.
Depois, nós olhamos o 11º Elo. Até mesmo nós, como pais, estimulamos nossos filhos a se engajar num processo de inserção comum no mundo, onde eles são uma identidade, ocupados em fazer certas coisas. E nós vamos considerar que os filhos estão encaminhados na vida quando, enfim, têm filhos e prestações a pagar, etc. Aí os pais ficam tranqüilos: “Meu filho está encaminhado!” Ou seja, estão mais ou menos encaixotados!
Nós olhamos o mundo dessa maneira e existe uma realidade dentro disso. Quem quiser escapar disso, nós todos nos juntamos e apertamos aquele ser até que ele desista dessas ‘liberdades’. Então, ele tem que se encaixar, tem que fazer a coisa funcionar daquele jeito. Se, porventura, ainda assim, ele tiver sonhos, é melhor procurar um psicólogo para ver que sonhos enlouquecidos são esses, que perturbação é essa. Porque aquilo obviamente está equivocado!
Então, nós não pensamos que todos os seres que vieram antes de nós estavam equivocados e que todos os seres do futuro vão estar equivocados, sempre. E que o certo é uma coisa que nós nunca atingimos. Ou seja, nós não nos adaptamos nisso. Além do mais, fazer tudo perfeito não adianta. Somos atropelados, acontecem problemas, as coisas se dissolvem, e, lá pelas tantas, temos que recriar tudo. A pessoa diz: “Mas eu fiz tudo direito. O que é que eu fiz para merecer isso?”
Nós vamos ver que o 11º Elo tem uma ideologia por trás, tem toda uma justificativa. Essa justificativa não nos permite andar no mundo direito. Nós perdemos a liberdade inutilmente, porque nós não obtemos o resultado esperado. Então esse é o 11º Elo. Existe uma visão, uma ideologia herética. No meio dessa ideologia herética, nós vamos ver os SEIS REINOS. Essa única ideologia herética se divide em seis formas de manifestação.
Existem os seres que, no meio disso, são orgulhosos, vitoriosos, hábeis, sedutores (reino dos deuses). Outros seres são competitivos, invejosos, não-compassivos, mas eventualmente, são capazes de arregimentar grupos para competir, para lutar contra, como se isso fosse fonte de felicidade. No entanto, eles não encontram felicidade estável (reino dos semi-deuses). Depois, tem os seres humanos propriamente ditos, que vão se organizar para obter, aos poucos, a partir de sua força limitada, o que eles consideram bom. Mas, ao mesmo tempo que eles vão obtendo umas coisas, eles vão perdendo outras coisas e nunca chegam no ponto. Quando eles se aproximam do 12º Elo, devolvem tudo o que já conseguiram e vêem que perderam tempo (reino dos humanos).
Rui Neng diz: “Se você tiver muita habilidade, no final da sua vida você dirá ‘tudo o que eu vejo ao redor é meu’, mas é perda de tempo, porque quando você se aproximar da morte, você vai fechar os olhos, e quando você fechar os olhos, não adianta, você perdeu tudo.”
E, então, vem o quarto reino, que é o reino de uma certa obtusidade mental. Nós não queremos entender muito as coisas. Isso não importa, nós vamos andando e pronto (reino dos animais). Depois, existem os seres carentes, aqueles que, não tendo feito as coisas como a mamãe queria, estão com poucos méritos. E assim eles estão sempre demandando coisas que nem mais as mães, com a maior boa vontade, estão dispostas a fazer. O mérito se foi. Tendo o filho passado do limite, a mãe compassiva decide não fazer mais nada por esse ‘malandro’ para ver se, assim, ele acorda e faz alguma coisa da vida (reino dos fantasmas famintos).
Mas aí o malandro opta por se tornar um contraventor. É a pior opção. Ele começa a agir de forma agressiva, fora de qualquer propósito e o mundo inteiro se volta contra ele. Então ele diz: “Está vendo! O mundo é horrível!” Para quem olha o mundo como horrível, ele sabe muito bem como arrancar do mundo ou se vingar do mundo (reino dos infernos).
Então essa passa a ser a sua sabedoria (herética). Para quem é carente, ele pensa que sabe como obter aquilo de que precisa. Se é um malandro, desinteressado, ele sabe muito bem como evitar ser engajado em qualquer trabalho, sabe muito bem como escapar da conexão com o mundo. Se ele é um ser humano positivo, ele sabe muito bem como poupar um pouquinho, como evitar certos gastos, como acumular certas coisas e a vida vai se organizando. Se ele for competitivo, ele sabe muito bem como aumentar a concentração da mente, como reunir poder, como articular com outros para obter os resultados que ele deseja. E se ele é um ser sedutor, encantador, ele sabe perfeitamente como manipular a mente dos outros para obter vantagens dessa maneira.
Dessa forma, nós temos as seis sabedorias heréticas. Heréticas porque nenhuma delas vai oferecer felicidade estável e todas elas estão submetidas aos seres, ou seja, por mais que nós sejamos hábeis em qualquer uma delas, a impermanência sempre nos pega.
Vocês vão encontrar livros e livros que explicam como fazer cada uma dessas coisas, que vão ensinar como a gente convence, seduz, compete, tem resultados. Como a gente se desinteressa, como a gente lida enquanto um ser faminto e como a gente pode guerrear, matar. Está tudo explicado. É só entrar na internet que veremos explicações sobre todos esses reinos. Também nas locadoras de vídeos e nas livrarias.
A sabedoria herética de cada um desses ambientes parece perfeita, parece completa, parece conter toda a verdade que explica o mundo inteiro. Aqui nós temos o 9º Elo. Nós vamos encontrar muitos livros que vão nos ajudar a desenvolver habilidades em todos os reinos. Nós aprendemos a fazer qualquer coisa pela internet. Então, tem uma sabedoria herética clara sobre como obter resultados.
Com respeito ao apego - a felicidade na dependência das experiências sensoriais - vocês encontrarão uma variedade enorme de livros, revistas, filmes voltados a isso, que são os 6º, 7º e 8º Elos. No Budismo, isso significa “felicidade baseada nos sentidos”, simbolizada pela palavra KAMA. É próprio do Kamasutra. Então, vocês vão aprender qualquer coisa relacionada aos sentidos como fonte de felicidade. Vocês vão aprender todas as minúcias do contato, todas as minúcias das sensações, todas as minúcias de como reproduzir isso de novo, de novo e de novo. Seja isso com olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente. Está tudo completamente explicado.
Só que, também, não há possibilidade de nós sustentarmos todas essas experiências. Então, nós ficamos presos dentro disso e a frustração cíclica é completamente garantida. Tudo isso está submetido a esse Ser (Maharaja – que segura a roda da vida[7]), o qual representa a impermanência. Mas nós temos essa sabedoria herética.
Aí, nós olhamos os outros Elos e vamos entendendo. Por exemplo, no 5º Elo nós somos o corpo físico. Vamos encontrar essa noção, essa identidade. Nós vamos nos sentir muitas vezes como sendo o corpo físico.
Depois, nós vamos olhar o 4º Elo, ou seja, parece completamente justo nós encontrarmos ou buscarmos os objetos que estabilizam a sensação de brilho. Isso é completamente justificado. Por exemplo, se nós vemos uma criança com o “olhar comprido” para alguma coisa, nós imediatamente temos vontade de pegar aquilo e dar para ela. Passeamos no shopping filtrando as experiências desse modo: “Onde tem brilho? Ah! Ali tem brilho!!!” Não precisamos nem querer comprar. Se aquilo brota brilhando dentro de mim é uma experiência que nós buscamos.
Nós achamos que podemos defender isso. Nós defendemos essa conexão com os objetos dessa forma e defendemos essa experiência como sendo nós mesmos. Nós também defendemos nossas estruturas de respostas, nossas marcas mentais. Nós as defendemos como a coisa mais íntima dentro de nós. Então, há muitas formas, muitas justificativas filosóficas, psicológicas, para nós defendermos o que brota dentro de nós, como sendo nós mesmos.
E há outras estruturas psicológicas e principalmente filosóficas, que vão defender claramente a noção de que o mundo é externo, de que ele surge independente de nós, de que podemos até mesmo investigar o mundo externo, procurarmos logicamente, de forma objetiva, trabalhar com ele, transforma-lo como um caminho de melhoria da vida. Isso é uma visão filosófica.
Os Doze Elos, na verdade, são Doze Visões Filosóficas que sustentam a base herética e nos mantém dentro do processo ilusório. Nenhuma dessas estruturas produz felicidade, nem qualquer coisa que seja permanente. Todas elas estão ligadas a processos frustrantes. Toda essa construção se dá a partir da responsividade, que vai dando estrutura de solidez para isso, a ponto de nós acharmos que tudo isso seja completamente sólido.
Se nós acharmos que tudo isso é completamente sólido, nós vamos precisar de antídotos. Dentre os antídotos, está o pensamento sobre a impermanência. Podemos ver que nesses vários níveis não há nada sólido, porque a impermanência pega tudo. Essa é a benção desse Ser (Maharaja – que segura a Roda da Vida). Ainda que esse ser, de fato, não exista, a ação dele, ou seja, a impermanência existe.
E assim nós observamos esse aspecto, que é o que nós nos defrontamos o tempo todo. A linguagem do mundo é uma linguagem herética. A comunicação entre as pessoas e a base do raciocínio são heréticas. Portanto, torna-se difícil nós argumentarmos dentro do mundo, raciocinarmos dentro do mundo, nos movimentarmos dentro de uma base herética e, ao mesmo tempo, guardarmos liberdade. Só aqui e ali, em eventos extraordinários, nós terminamos “furando” esse processo herético, mas terminamos caindo novamente nele, no processo convencional.
CONCLUSÃO
Com isso, nós concluímos essa passagem rápida pelos Doze Elos. Nós vimos não só o surgimento das várias experiências, como vimos também que há uma justificativa para cada uma dessas experiências. Elas surgem como um mundo específico, com a sua visão filosófica defendida.
Nós podemos estender essa análise, que surgiu como um processo de exame de nossa experiência particular (olhando para nós mesmos, nós vimos os Doze Elos) para a nossa relação com as outras pessoas.
Por exemplo, no 1º Elo, quando nós estamos tratando com uma outra pessoa, nós vamos ver que avidya vai se manifestar como a sensação de que o outro é totalmente independente de nós. Que o que nós vemos no outro é dele mesmo. Nós não percebemos que há uma inseparatividade nesse processo. Não percebendo essa inseparatividade, eventualmente nós colocamos nele as estruturas que temos. Então nós vamos ter dificuldades recorrentes porque colocamos as nossas estruturas sobre os outros sucessivamente. Aí nós olhamos o mundo povoado de seres, mas todos esses seres têm marcas. E nós não nos damos conta disso.
O 2º Elo, que são as nossas marcas mentais, terminam surgindo sobre os outros seres. Mas dizemos: “Isso são eles!” Então surge o 3º Elo, que é quando surgimos com a energia, mas essa energia está na dependência de certos seres que eu vejo. Quando surgem outros seres, brota outra energia. Aí nós preferimos olhar, contactar seres de um certo tipo.
Assim, ao invés de levarmos um quadro, levamos agora um ser para dentro de casa, esperando que aquela energia se mantenha. E vamos aferir se essa energia se mantém através dos nossos sentidos físicos (olhos, nariz, ouvido, tato, paladar e mente). Olhamos, mas parece que estamos olhando um ser externo a nós, da mesma forma que, quando eu bato a mão aqui neste assento de madeira, o som produzido parece que é só do assento. Não nos damos conta que interagimos no evento. Não nos damos conta de que essa inseparatividade vai se manifestar como um evento, mas vamos dizer que esse evento é o outro ser.
Em seguida, vamos dizer se gostamos ou não do som ou se gostamos ou não do ser. Esse é o contato, quando nós vemos se gostamos ou não gostamos. Gostando, nós geramos apego. Gerando apego, nós muitas e muitas vezes olhamos daquele jeito e cada vez nós experimentamos aquela sensação boa. Então, em todas essas experiências nós dizemos: “Eu sou o(a) namorado(a) dela(e)”. Surgimos, então, no 11º Elo, tentando equilibrar aquilo, fazendo aquilo acontecer de novo, de novo e de novo. Mas, no meio disso há um desgaste. Lá pelas tantas, a impermanência se manifesta. É o surgimento do 12º Elo. E chegamos a conclusão que esse ser não tem mais essa capacidade de nos deixar felizes. Achamos que nos enganamos, pois antes não era assim. Na relação com os seres, nós temos todo esse processo dos Doze Elos.
Nós podemos olhar essas etapas em relação a cada experiência nossa. Podemos olhar também com relação à experiência da comunidade, ou seja, com os seres sem rosto, os seres da coletividade. Vemos, então, em cada um desses casos, as nossas marcas sem nos darmos conta disso. Vamos aspirar coisas e lá pelas tantas nós também temos uma crise no meio disso.
E nós vamos olhar nossa conexão com o ambiente ao nosso redor. Vamos descobrir que nós temos doze opiniões heréticas na relação com o ambiente natural. Esse processo se perpetua em tudo o que nós fizermos, olharmos, tocarmos; os Doze Elos sempre estão dentro.
Essa noção de que o mundo natural ao nosso redor é separado de nós já está na ciência e está na base do fato de nós não nos importarmos com os seres ao nosso redor. De nós termos dificuldade de entender – ter que estudar longamente – para perceber a inseparatividade de toda a vida.
E nós vamos perpetuando isso, porque nós vamos ensinando, passando isso adiante. É muito difícil nós termos uma visão crítica frente a isso. Quando pensamos na melhoria do sistema educacional, pensamos somente em melhorar o ensino de todo o processo herético. Porque a nossa educação é o processo herético. E vocês vão perceber que nós não temos a solução para isso. Nós queremos melhorar o processo de educação, mas, mesmo aqueles que, como eu, passaram por dentro desse processo, que trabalham no meio acadêmico, percebemos que não temos as soluções, que não sabemos como fazer.
Estamos cheios de contradições, ou seja, a visão externa do mundo é cheia de contradições para nós mesmos. Nós não encontramos felicidades, nós estamos ruídos por todos esses processos e tentamos ultrapassar isso dizendo: “Se as pessoas fizerem de forma mais perfeita o que nós fizemos mais ou menos, quem sabe elas possam ir mais longe.” Nós não nos damos conta das várias contradições desse processo e também não temos mecanismos críticos para isso.
Até então nós trabalhamos o aspecto de visão. Nós diagnosticamos, entendemos isso. Agora, quando nós olhamos todos esses itens, nos perguntamos: Qual é o antídoto que vamos usar? Como é que podemos ultrapassar esse problema?
Vamos localizar em avidya o problema básico, onde o observador surge separado do objeto. Vamos tentar ultrapassar avidya. Para vocês terem uma idéia da importância disso até a expressão verbal é importante. Os tibetanos chamam avidya de MA-RIGPA. MA-RIGPA é a negação de RIGPA. Eles acreditam que só o fato de nós podermos ouvir a palavra RIGPA, nós deveríamos fazer muitas e muitas prostrações. É como se fosse uma palavra secreta, como se fosse uma coisa extraordinária ouvir essa palavra, pois ela representa a possibilidade de lucidez, lucidez que liberta.
É que em muitas e muitas e muitas vidas nós não temos a lembrança de que estamos presos. E em muitas e muitas e muitas vidas nós vamos nos dar conta de que estamos presos. Mas muito raramente vai brotar a palavra RIGPA, que significa a oportunidade de sair disso.
Então, segundo a visão budista, quando na nossa mente dissermos assim: “RIGPA”, é certo que numa vida futura nós atingiremos a liberação. Vejam como é que funciona isso. Vocês, tendo, ouvido RIGPA, mesmo sem ter entendido, ela passa a fazer parte do conjunto de impressões (samskaras) que vocês carregam. Então, num tempo tão longo quanto tiver de ser, vocês vão tropeçar de novo com essa palavra, porque vocês já a estarão levando dentro de sua bagagem mesmo sem compreende-la.
Num tempo tão longo quanto for, vocês vão terminar tropeçando nela de novo e de novo, fazendo surgir uma condição favorável onde vai vir uma compreensão disso. Essa compreensão vai, em seguida, desaparecer, mas a sua marca fica dentro do conjunto dos samskaras. Aí, num tempo tão longo quanto for (eu estou aqui falando de vidas!) vocês vão topar com essa compreensão de novo. Então essa compreensão vai crescer, mas novamente vai desaparecer. Aí, de novo, vocês vão topar com uma condição favorável e vão compreende-la completamente e, então, vir a pratica-la, e, vindo a praticá-la, vocês irão atingir a liberação.
Então RIGPA é a palavra que nos conduz, é o barco que nos conduz para o outro lado. Na compreensão disso é que nós recitamos mantras também. Nós recitamos uma vez, duas vezes e aquilo vai povoando. Se nessa vida não funcionar, na próxima poderemos nascer e olhar para a mamãe e dizer: “OM GATE GATE PARAGATE PARAMSANGATE BODHI SVAHA”. Esse processo acontece. MA-RIGPA é o nome da desgraça, da ignorância e RIGPA é o nome da lucidez.
FOCANDO A NATUREZA ÚLTIMA ATRAVÉS DA GURU IOGA: PENSAR, CONTEMPLAR, REPOUSAR.
Nós olhamos essa questão toda de forma rápida e é completamente natural que tenhamos muitas dúvidas. Essa compreensão é elaborada e nós precisaríamos avançar nisso passo a passo, devagar. Existem métodos para isso. Esses métodos começam com o PENSAR, CONTEMPLAR, REPOUSAR sobre cada um desses itens. Essa é uma parte que nos leva a questionar. E como o próprio Dalai Lama sugere, podemos começar com uma visão crítica. Pegamos item por item desses ensinamentos todos e vamos criticando. Vamos examinando para ver se aquilo tem lógica, tem razão, é inteligível, faz sentido.
Aí, na medida que percebemos que o que está sendo examinado faz sentido, passamos para o contemplar. Quando nós contemplamos, nós vamos examinar exemplos, vamos ver se conseguimos encontrar exemplos daquilo na nossa própria vida. Com esse passo, vamos nos capacitar a examinar isso, a encontrar esses exemplos. Depois, nós repousamos a mente.
Com esses três processos, se os fizermos de forma sistemática e de forma clara e aplicada, nós estaremos praticando a GURU IOGA. GURU IOGA é semelhante à palavra RIGPA, é extremamente importante. Só muito raramente vamos ouvir a palavra GURU IOGA. A primeira impressão que temos é de colocar o Guru num altar e tratar de cuidar dele o tempo todo. Mas esse não é processo de GURU IOGA. GURU IOGA é o processo de focar a natureza última. O GURU não é o Guru. Se o GURU não é o Guru, ele não é sua aparência, ele é a natureza última.
O próprio Buda dizia: “Se vocês me olharem e virem um Buda na aparência da minha figura e fizerem prostrações, vocês são uns hereges, porque um Buda não pode ser reconhecido assim.” Não há na imagem um Buda. Então, o primeiro obstáculo da GURU IOGA é achar que o Guru é o fenômeno daquilo. Na verdade, o GURU é a natureza ilimitada. A GURU IOGA é o nosso foco na natureza ilimitada.
Mas, por que é que nós pensando, contemplando e repousando estamos fazendo a GURU IOGA? Nós devemos entender que o próprio Buda se manifesta enquanto Dharma. Ou seja, Dharma é o seu ensinamento. Se nós tomamos a luz do Buda, no caso, o Dharma (a luz que ele emite), olhamos o ensinamento criticamente, vemos se é correto, e só então o aceitamos, é como se, dentro de nós, tivéssemos comparado aquela luz do ensinamento do Buda com a luz que brota da nossa própria compreensão. Nós começamos a ajustar a nossa compreensão com a compreensão da forma do Buda. Então, surge uma luzinha – tipo um vagalume, comparado com a luz do sol, que é o Dharma. Quando nós contemplamos, nós olhamos em volta e vamos encontrar exemplos segundo aquela forma de compreensão. É como se nós estivéssemos fazendo surgir a própria luz do Dharma, ou seja, a compreensão das coisas aos olhos daquela compreensão, que é a compreensão do Buda.
Estamos treinando fazer esse processo. É como empurrar um automóvel que não está querendo pegar; vamos empurrando, fazendo ele andar artificialmente, porque a força não é do próprio veículo. Tomamos a força do texto e vamos “empurrando”, até que, de repente, aquilo começa a funcionar! Quando começa a funcionar, dizemos: “A natureza do GURU interno surgiu.”
O GURU externo – no caso, o Buda – fez surgir dentro de nós aquilo que estava coberto por pó, por muitas complicações, que é o GURU interno. Então, o GURU interno e o Buda são o mesmo. Aí nós podemos entender o significado do que S.S. o Dalai Lama diz: “Nós temos a mesma natureza de Buda”. Ou, quando o Buda, ao atingir a iluminação, diz: “Como é que os seres que a mesma natureza que eu, estão nessa complicação?”.
Então**, todos os seres têm a mesma natureza**. Não é necessário encontrarmos fora a natureza ilimitada. Quando nós começamos a estudar os textos dessa maneira, passamos a não perceber mais quem falou, se foi o Buda ou o Dalai Lama ou mesmo outro mestre, pois aquilo se torna uma única compreensão. Na verdade, não é o Buda nem o Dalai Lama que falam, mas a clareza das coisas como são! Não podemos dizer: “O Buda inventou uma coisa e agora nós vamos copiar!” O Buda falou a coisa como qualquer ser pode ver. Aí, na medida em que nós testamos e examinamos isso, aos poucos vão desaparecendo os obstáculos da nossa mente. E, aos poucos, nós vamos, dessa maneira, copiando a própria mente do Buda.
Então, PENSAR–CONTEMPLAR-REPOUSAR é a primeira prática que nós fazemos. É uma prática tida como preliminar, mas de grande profundidade. Por outro lado, vocês vão encontrar, eventualmente, alguma coisa que vocês acharão que não estará correto. Vocês vão tropeçar em alguma coisa, imaginando até que tem um problema de tradução. Alguma coisa que vocês vão achar que não pode ser daquele jeito.
Ao lerem um texto pela primeira vez, vocês perceberão que determinada parte não condiz com o resto. Isso significa que, dentro de vocês está surgindo a própria mente que gerou aquilo. Mas não é que essa mente seja algo construído. Essa mente é a mente lúcida olhando a realidade. A mente lúcida não tem pressupostos; ela é a mente que chamamos de “vazia”. Se ela tiver pressupostos, ou conhecimentos, ou predisposições, ela não é mente lúcida, ela é uma mente operando sob condições. Então, essa mente é uma mente misteriosa, livre.
O caminho de prática pode se dar dessa maneira, examinando todos os ensinamentos. Isso vai produzindo o que nós vamos chamar de visão. Uma vez que a visão é estabelecida, nos passamos a praticar a meditação.
Existe meditação com esforço e meditação sem esforço. Ainda que, às vezes, nos pareça muito penoso ficarmos em silêncio, essa é uma meditação sem esforço. A meditação com esforço é uma meditação que é usada para ultrapassar determinado obstáculo enfrentado na nossa vida. Um exemplo dessa meditação é a meditação dos canais, onde vamos praticar “tumo”, que é a meditação do calor interno. A pessoa senta na rua, coberta de neve e gelo, sem usar praticamente qualquer roupa. A cada 100 praticantes, 99 morrem, mas pelo menos um vai aprender a gerar o calor interno para se aquecer (ou não! - risos).
Depois, partimos para a ação no mundo. Ainda assim é necessário entendermos que alguns mestres, nos ensinamentos mais elevados, dizem que a meditação não é necessária, porque se nós efetivamente compreendemos, acabou, ou seja, uma vez verdadeiramente compreendido, passamos a usar aquilo. A meditação é uma forma de tornar a compreensão mais sólida, mais prática. Se atingirmos a compreensão total, a meditação passa a ser desnecessária.
Então, a meditação não é uma religião que nos imponha termos de pratica-la. A meditação é uma etapa do processo. Agora, mesmo que andemos nesse caminho, mesmo que passemos por todas essas etapas, nós vamos observar que ficam resíduos. Esses resíduos vão nos fazer tropeçar e, eventualmente, ainda que apliquemos o método de novo e de novo, é como se nós tivéssemos que trocar, pois parecem não estar sendo mais eficientes. Chega um ponto em que não conseguimos ultrapassar determinado obstáculo.
REINSTALANDO A LIBERDADE: PERCEBENDO O “OU NÃO” DAS CIRCUNSTÂNCIAS DA VIDA.
Essa etapa do treinamento, que é muito importante, vai nos levar à compreensão da LIBERDADE. Por exemplo, com relação aos Doze Elos, nós deveríamos pensar-contemplar-repousar, examinando como cada Elo manifesta a liberdade. Como por exemplo: “A morte é assim, inevitável (12º Elo).” Mas nós temos que chegar até o ponto de dizer “ou não” e isso venha a fazer sentido. Porque, enquanto nós permanecermos na visão do 12º Elo (de que a morte é inevitável) nós ainda não percebemos a liberdade. Como todos os Doze Elos são artificiais, são construídos, são sustentados por uma luminosidade, por uma construção, então, ao chegarmos a uma noção de “morte” nós também podemos dizer “ou não”!
Assim, nós olhamos o nosso atarefado cotidiano, todas as regras e horários que temos que obedecer (11º Elo), até podermos chegar ao ponto de dizer “ou não”. Isso significa nós começarmos a perceber a possibilidade de liberação.
A seguir, nós chegamos à nossa identidade (10º Elo): “Eu sou isso, isso e isso. O cartão está aqui; o anúncio de jornal está aqui.” Podemos dizer “eu sou isso” ou não! Então olhamos todas as experiências que tivemos anteriormente. Essas experiências indicam que a realidade é de um certo jeito (9º Elo). Aí, se refletirmos um pouco, podemos dizer “ou não”!
E vamos aplicando o “ou não” para todos os elos subseqüentes. Dizemos (8º Elo): ”eu sou o ser que tem tais definições, tais apegos”. Aí, paramos um tempinho, e dizemos “ou não”. Dizemos (7º Elo): “eu gosto disso, isso sou eu; eu prefiro tal coisa em relação àquela; tais coisas eu amo, tais coisas eu rejeito”. Aí, damos um tempinho, e dizemos “ou não”.
Então vamos vendo que em cada um dos Doze Elos nós podemos dizer “ou não”. Vamos percebendo que há uma liberdade interna em cada um desses aspectos. Essa liberdade interna é o que resulta ao final de toda essa prática. Se vocês puderem pular direto para essa liberdade, vocês evitam essa análise toda. Se vocês puderem dizer “ou não” para cada um desses Elos, de forma clara, séria, vocês não precisarão fazer essa análise toda, porque essa análise serve apenas para chegarmos ao ponto de dizermos “ou não”. Quando nós não podemos dizer “ou não”, estamos com o script garantido, nós estamos completamente limitados, estamos numa espécie de prisão.
Esse ponto da liberdade é crucial. É de grande importância filosófica, porque tem uma visão filosófica herética em cada um desses Elos. Só em nós podermos dizer “ou não”, o chão chega a tremer! Nós vamos dizer: “Não, mas eu tenho o meu emprego. Eu fiz concurso, foi difícil, estudei, e agora que estou aqui, como é que eu vou sair disso?” Aí a pessoa diz: “Não, não dá.” No entanto, na semana seguinte a pessoa é demitida. Então ela muda e diz: “Sim, claro! Agora dá!”
Se a pessoa tiver dificuldade de dizer “ou não” significa que a pessoa pensa que aquilo é tão sólido que a impermanência não pega, não é verdade? Então nós nos damos conta de que, se nós não dissermos “ou não”, a impermanência – Maharaja – vai se encarregar de nos dizer.
Vemos, então, que as nossas identidades e todos os demais fatores são passíveis de outras experiências. Assim, olhando dessa maneira, vemos que essa noção de “ou não”, que é uma noção de liberdade frente aos vários condicionamentos, é a essência da noção de VACUIDADE. Vocês podem pular por cima de toda a análise da vacuidade, se vocês chegarem à noção do “ou não”. Porque o “ou não” é a noção de liberdade. Por que, então, nós vamos estudar penosamente a vacuidade em vários níveis? Estudar penosamente a ilusão? Estudar as difíceis obras de Nagarjuna?
Nós pulamos por cima disso porque o único objetivo dessa análise toda é ter a garantia de que o que está diante de nós é inseparável de nós. Portanto, não é fixo. Não há natureza inerente. Portanto, é liberdade. Há efetivamente essa possibilidade.
Então, desse modo, quando nós percebemos que as várias experiências podem ser traduzidas de outro modo, ou seja, há um “ou não”, sempre, em cada coisa, nós temos esse mecanismo rápido de vacuidade. Então se, por exemplo, alguém nos agride, nós temos um impulso de reagir, mas podemos dizer “ou não”. Nesse momento, a liberdade se reinstala. Nós propiciamos um espaço, um lugar para jogar a lucidez de novo. A própria afirmação “ou não” (com a real visão dessa possibilidade) já é a base da lucidez.
A base da lucidez é nos darmos conta de que nós não somos obrigados a obedecer ao impulso, ao script, como ele está escrito. A responsividade é comandada pelo script. O script são os samskaras, as marcas, que também são impermanentes. As marcas estão sempre em evolução. Num certo momento nós temos atração, daqui a pouco nós temos aversão frente à mesma situação, à mesma pessoa, comida, música, sons, objetos, lugares. Num certo momento podemos ter atração, mas depois cansamos daquilo.
Por exemplo, depois de escutarmos 108 vezes a mesma música aquilo já fica meio estranho!!! É como acontece com a comida. Se nos perguntam se gostamos de bolacha, dizemos ótimo! Aí são-nos oferecidas três, as comemos e dizemos “gostoso!”. Se nos são oferecidas trinta e comemos, vamos já perder um pouco da graça. Mas se tivermos de comer trezentas, passaremos a não agüentar ver mais aquela bolacha na nossa frente! Desse modo, nós mudamos. O carma é o script, com marcas mentais (samskaras) e emoções. Nós começamos a ver a liberdade desse modo. Nós vamos poder ver também, paradoxalmente, o próprio surgimento dos Doze Elos como uma expressão da liberdade - liberdade de criar a prisão.
Para escaparmos da situação filosófica, que pode tornar-se progressivamente mais complexa quando chegarmos a diferentes escolas, itens e subitens, vocês olhem a vacuidade como liberdade. Vejam essa culminância, que é a liberdade. Até mesmo porque o corpo do Buda é o Dharmakaia, que significa “corpo de liberdade”. Então, quando nós olhamos os aspectos de liberdade, nós já estamos chegando nos aspectos finais. Estamos fazendo um atalho nesse processo.
Buda significa “o liberto”. O liberto desse processo todo. Mas, paradoxalmente, ser liberto não significa estar fora, nem estar insensível, nem não ver, nem não ter esse corpo. Liberto significa, pelo contrário, poder também surgir, se manifestar, e, até mesmo não conseguir colocar culpa nisso. Isso, enfim, é uma beleza. Tem um aspecto de beleza no mundo. O surgimento do mundo expressa a beleza da natureza última de um outro modo. Essa natureza de liberdade básica permite o surgimento da separatividade.
Nós podemos imaginar que dessa natureza última surgem outras coisas também, outros processos de criação de mundos. O nosso processo de criação de mundo é aquele que surge de avidya, ou seja, a nossa mente se divide em duas. Nesse momento, nós não conseguimos conceber outras formas de surgimento de mundos que não a forma de avidya. Mas por que não? Pode ser que surjam outros tipos de avidya que dão origem a outros tipos de mundos. Desse modo, nós não temos nem como ver/reconhecer isso, porque nós operamos dentro desse processo de avidya.
Então, a palavra central é LIBERDADE. Aí, vamos supor que sobraram resíduos. Nós, ainda que tenhamos estudado, “trememos” em certos lugares, não conseguimos enfrentar certas situações. Temos pesadelos de um certo tipo. Então, nós podemos fazer um processo de PURIFICAÇÃO, pois, uma vez que esses resíduos seguem, passam a ser um problema de psicologia budista. Ou seja, precisaríamos entender esses problemas residuais e tentar supera-los. Nós precisaríamos entender, por exemplo, que, sob o ponto de vista convencional, o nosso surgimento no mundo se dá através de processos de relação. Essa é uma coisa básica dentro da compreensão budista.
PROCESSO DE PURIFICAÇÃO (Quadro dos 240 itens)
Vamos, então, fazer um foco específico nos problemas residuais para tentar supera-los. Nesse caso, nós precisaríamos compreender como é que essa identidade surge e se estrutura. Agora, ao invés de pensar que essa identidade não existe e que ela é liberdade, nós vamos ver como é que ela se estrutura na sua aparente solidez. Vamos ver, por exemplo, que todas as identidades são um processo de relação, ou seja, a mente é livre e cada um de nós é um processo de escolha automatizado. Mas escolhas do quê em processos de relação? Devemos, pois, examinar como é que isso está acontecendo dentro do mundo, no processo ilusório, que é onde os problemas acontecem.
Então, nós vamos perceber que a nossa identidade surge como o javali, com as respostas previamente fixadas. Só que essas respostas não dizem respeito ao observador. Elas dizem respeito à relação entre o objeto e o observador, relação entre o mundo e aquilo que é visto como sujeito. Então, o sujeito se define na relação com o mundo. É desse modo que nós vamos olhar os nossos problemas.
Por exemplo, vamos fazer um mapeamento das nossas dificuldades. Nós fazemos uma lista das pessoas que não gostamos de encontrar ou com as quais temos obstáculos; dos lugares que temos dificuldade de chegar; das situações que gostaríamos de evitar. Listamos isso com cuidado. Eventualmente, podemos listar também seres sedutores, porque, aparentemente, os nossos problemas só acontecem quando nós olhamos o que não gostamos. Mas dentro da compreensão budista, nós podemos nos ver atraídos por coisas aparentemente positivas, mas que, na realidade, representam um obstáculo para nós, que nos dominam. Podemos listar vícios, tais como, cigarros, chocolate, bem como coisas e situações que nos atraem, que nós sabemos que são problemáticas. Então, computamos/listamos essas coisas também.
A seguir, começamos a examinar esses processos dentro da perspectiva dos SEIS REINOS, ou seja, nós tentamos dividir isso por categorias, tais como: se uma coisa nos é atraente, isso se dá porque produz felicidade; porque nos potencializa na luta; porque está dentro dos nossos planos; porque podemos relaxar e deixar de ficar preocupados com alguma coisa. Ou nos é atraente porque nós temos grande carência e é muito difícil obter aquilo; ou porque, através daquilo, superamos medos ou criamos medo nos outros; porque nós conseguimos atingir/violentar os outros; ou porque conseguimos escapar no meio de lutas. Então, nós vamos ver, a partir dos Seis Reinos, por que as coisas nos são atraentes. Aí nós, imediatamente, localizamos o obstáculo.
Por exemplo, vamos supor que aquilo é atraente porque eu tenho uma arma com a qual eu me defendo ou ataco o outro. Vejo, então, que essa é uma fixação no Reino dos Infernos. Mas como eu já analisei o Reino dos Infernos enquanto liberdade, enquanto a minha possibilidade de dizer “ou não”, eu consigo converter uma situação que era recorrente em mim e a entendo sob o ponto de vista da possibilidade de liberação do Reino dos Infernos. Assim, eu posso dizer mais facilmente “ou não” para aquilo. É desse modo que podemos ver se podemos dizer de fato “ou não”, analisando a paisagem, mente, energia e corpo envolvidas nas situações.
Se eu disser apenas “ou não” com o corpo, eu não daria o tiro. Mas dentro de mim pode existir a energia da agressão de dar o tiro, apesar de eu saber que não vá atirar. Agora, pode ser que a energia não esteja presente, mas esteja presente o raciocínio (mente, pensamentos), ou seja, eu saberia direitinho como atingir e obter aquilo, apesar de eu saber que não atiraria. Pode ser, ainda, que, apesar de o raciocínio não estar presente, haja uma aspiração (paisagem) para que o tiro atingisse determinado alvo.
Por exemplo, nós não matamos a barata, mas sentimos que seria muito bom que alguém a matasse e a jogasse pela janela. Ou seja, a paisagem está intacta ainda, a aspiração do Reino dos Infernos continua lá. Como somos budistas, nós não vamos matar a barata. Não temos sequer a energia para fazer isso e não vamos nem admitir pensar em realizar essa ação, mas.... se alguém matar, nos alegramos (por isso é sempre bom ter um não-budista em casa!!! – risos). Isso significaria que, em nível de paisagem, nós ainda temos aquela atitude. Nós precisaríamos, então, desenraizar os quatros aspectos – corpo, energia, mente e paisagem.
Porque nós já temos claro esse processo da liberdade, nós podemos pegar um por um os nossos problemas ou dificuldades, os classificamos, vamos até o ponto que nos prende e vemos se conseguimos dizer “ou não”. E aí começa a funcionar. Se esse processo for artificial, nós vamos dizer “ou não” só com o corpo. A energia, mente e paisagem continuam presas ao problema.
O ponto é que, para nós, a situação continuará armada se não conseguirmos ver a liberdade nos quatro níveis (corpo, energia, mente e paisagem). Vocês podem utilizar o Quadro dos 240 Itens para fazer uma varredura, podendo ser utilizado como diagnóstico ou como método de decomposição dos problemas que estejam surgindo. Quando vocês começarem a olhar isso, no início vai parecer que não se tem conexão. Mas logo em seguida, começamos a perceber que temos. Começamos a ver que estamos presos em praticamente algum nível de todos os quadrinhos. Esse, é então, o processo de PURIFICAÇÃO.
PROCESSO DE CONSTRUÇÃO (Quadro dos 200 itens)
Agora, melhor ainda do que esse, é o processo de CONSTRUÇÃO. Por quê? Porque o que acontece é que nós temos liberdades. Se temos liberdade, podemos construir. Ao invés de construirmos seres de Samsara, nós podemos construir seres a partir das qualidades ilimitadas. Então, nós vamos construir a partir das qualidades de acolhimento, de generosidade (ou sustentação), de oferecimento de referenciais (ou estruturas), de oposição à negatividade e de oferecimento da natureza ilimitada (da liberação). Vamos, então, oferecendo benefício aos seres. Vamos surgindo com essa liberdade de fazer isso em vários níveis. E testamos para ver se paisagem, mente, energia e corpo estão operando com esse referencial.
São, pois, três fases. Primeiro, o processo de análise da liberdade. Depois, nós purificamos as dificuldades, as nossas prisões. Por fim, nós construímos positivamente.
No treinamento, o começo já se deu muito antes do exame do processo de liberdade. Ele começa com a noção de responsabilidade universal ou de um bom coração. Essa noção é que é o verdadeiro início, que sustenta a motivação durante todo o processo e que, ao final, faz com que retornemos para ela, na construção positiva da ação, que é a manifestação da responsabilidade universal no mundo. O Bodisatva não sai do mundo, ele retorna ao mundo dentro da perspectiva de ajudar os seres. Então, começamos com essa percepção da responsabilidade universal, como diz S. S. o Dalai Lama. Vocês vejam que a maior parte das pessoas está focada estritamente nas suas coisas, nos seus interesses.
Existem quatro ações positivas da mente, mas a maioria das pessoas só operam com a primeira (chamada de “resolver”). A primeira forma de ação da mente é algo assim: “Se está frio, eu me cubro; se está calor, eu tiro a roupa” ou “se tenho fome, eu como; se estou cansado, eu durmo”. Essa ação também é uma forma lúcida, não existe, a princípio, algum problema nisso. No entanto, nós vamos ver que essa não é a única maneira de nós agirmos, porque em algumas circunstâncias, por exemplo, de frio, nós podemos não ter a roupa para vestir; quando estiver quente, nós vamos estar impedidos de tirar a roupa; quando tivermos fome, poderemos não ter comida para sacia-la.
Então, naturalmente, vem uma segunda forma de ação da mente que é a disciplina ou controle. Nós conseguimos agüentar, em alguma medida, a situação aflitiva. Em alguma medida, todos nós somos capazes de fazer isso. Vejam que isso é adquirido, nós não nascemos com essa capacidade, mas, com o tempo, nós vamos aprendendo.
Depois, tem a terceira forma de ação da mente, que são os meios hábeis. Se está frio ou quente, aprendemos um jeito de lidar com a situação que se apresenta. Aprendemos a aproveitar a situação de uma forma muito útil.
Por fim, vem a quarta forma de ação da mente, que é liberar. É o processo mais sofisticado. Quando nós vivermos qualquer experiência que seja, nós podemos reconhecer a natureza última na experiência. Nós não precisamos nos fixar na forma da experiência, nem nega-la. Nós percebemos a natureza última dentro da própria experiência.
Nas três primeiras formas estamos movidos pelo medo. Nós não aceitamos a experiência. Nós a maquiamos, a evitamos ou a modificamos, buscando ultrapassa-la. Mas nós não conseguimos vive-la tal como ela se apresenta. No entanto, na quarta forma de ação da mente nós a vivemos tal como ela se apresenta. A primeira forma é, aparentemente, a mais fácil e todos nós a buscamos. Mas, no sentido budista, quando nós realizamos a primeira forma (resolver), nós o fazemos com lucidez e não por condicionamento.
Então, dizer “ou não” não seria uma exclusão, mas uma alternativa lúcida. Quando estamos condicionados, presos ao Samsara, à responsividade, ao script definido, nós não temos alternativas. Aqui nós estamos recuperando a liberdade.
Na primeira forma, podemos manipular algumas coisas, ou seja, procuramos “dar um jeito” para resolver a situação (nos cobrimos, tiramos a roupa, comemos, etc.). De um modo geral, essa primeira forma trás a ideologia de Samsara. A ideologia de Samsara também inclui a segunda forma, que é quando nos tornamos civilizados. Quando nós estamos muito civilizados ou refinados, nós passamos para a terceira forma de ação da mente. Ou seja, nós começamos a manipular tudo, sem nem parecer que estamos manipulando.
Mas, essencialmente, em qualquer uma das três formas, nós estamos tentando evitar certas coisas e colher outras. Ao final, nós não conseguimos, porque há coisas na nossa experiência que não temos como lidar através da manipulação. Nós vamos ter que passar por dentro delas.
Então, a quarta forma de ação da mente (liberar) é absolutamente necessária. Ela é a forma que o Buda vai ensinar. Especialmente o Budismo tibetano, através dos ensinamentos do Guru Rimpoche, está centralizado nesta quarta forma.
Algumas outras correntes do Budismo vão usar a disciplina. Outras, os meios hábeis, e vão treinar isso. Para algumas, parece que tudo se resume a cortar o cabelo, colocar o manto e viver uma vida regrada. Outras vão ensinar, dentro dessa vida regrada, truques (meios hábeis) para viver melhor a vida regrada, sem grandes problemas. Mas há outras formas, especialmente o Budismo Mahayana, onde se procura viver os ensinamentos no cotidiano, não através da disciplina, mas com liberdade, com lucidez, onde a quarta forma vai ser muito usada. Ela vai poder nos dar uma segurança que nenhuma outra forma poderia nos dar.
Na verdade, quando usamos a quarta forma, nós usamos as três outras também. Quem usa a primeira, só usa a primeira. Quem usa a segunda, usa também a primeira. Quem usa a terceira, usa a primeira e a segunda também. Ou seja, quando você vai atravessar a rua e percebe que vem um carro, não deve pensar: “Bom, vou atravessar de qualquer jeito, pois, se o carro me pegar, eu morro, mas eu libero isso”. Não é esse o ponto.
O próprio Buda dizia: “Vocês evitem cobras venenosas, elefantes furiosos, animais agressivos. Ainda que nós entendamos a vacuidade de tudo, nós devemos evitar os perigos.” Isso significa usar os métodos mais simples. Mas, ainda assim, num certo momento, nós enfrentaremos uma situação limite, como a morte. Aí, neste momento, nós usamos essa outra visão, nós guardamos isso como uma lucidez, disponível incessantemente, incessantemente presente, sem, no entanto, nos fixarmos nisso como uma necessidade. Nós usamos os vários métodos (as primeira, segunda, terceira e quarta formas de ação da mente).
No entanto, a maior parte das pessoas tem a visão estreita, operam no mundo somente com a primeira forma de ação da mente, que é “resolver” ou “jogar o jogo do Samsara”. Elas vão levando a sua vida tentando se cobrir quando têm frio, comer quando têm fome, etc. E melhorar na vida, para essas pessoas, significa apenas ter mais controle sobre isso. E assim vão vivendo.
Então, nesse sentido é que consideramos as palavras do Dalai Lama sobre a responsabilidade universal, ou seja, é tentando tocar/chegar nessas pessoas. Vocês observem que, mesmo que nós tentemos nos cobrir com uma manta, ou tirar a roupa, ou comer quanto temos fome, a manta, a roupa ou a comida não fomos nós quem, sozinhos, as produzimos. Nós não somos autônomos. Estamos dentro de um processo mais amplo.
Assim, esse é o primeiro ponto (da responsabilidade universal) que nós vamos trabalhar. Acho que esse é um ponto que poderia ser trabalhado como um ponto geral de educação. Esse é o tema da inseparatividade de toda a vida. Nós somos inseparáveis. Às vezes nossos adolescentes não se dão conta de que estão numa comunidade, com o pai, mãe e irmãos dentro; que eles não são independentes, nem o pai, nem a mãe também são independentes, não podem tudo. Nós inter-somos, como diz Thich Nhat Hanh.
Esse ponto vai nos ampliando e nos levando dentro dessa perspectiva de responsabilidade universal, para compreender a vida como um todo, a natureza e todos os seres vivos integrados dentro de um sistema onde cada um precisa dos demais. Aqui estão incluídos os sistemas que não são vivos, o planeta, enquanto uma entidade não viva, um substrato. Vamos olhando o aspecto da inseparatividade que há entre nosso planeta e os outros astros, sol, lua, etc.
Os cientistas, nos dias de hoje, têm visto coisas extraordinárias. Nós recebemos uma quantidade de matéria interestelar. Recebemos fragmentos de outros planetas e moléculas complexas que vêm de outros lugares. Então, uma das visões correntes é de que a vida pode ter chegado desse modo ao Planeta Terra. Há uma comunicação inter-material entre os diversos corpos celestes. Essa é uma descoberta bem recente e nós nem nos dávamos conta disso, pois pensávamos que a única coisa que atravessava o espaço era luz ou calor. Mas agora estamos percebendo que não. Recentemente, os cientistas encontraram uma rocha (tipo meteorito) na qual constataram estruturas semelhantes às que foram encontradas em Marte.
Então, nós estamos apenas ampliando nossa visão. Nós vemos como nossa vida se torna completamente diferente – estávamos fechados e, de repente, abrimos os olhos e passamos a enxergar essa complexidade toda. Esta complexidade está dentro da Roda da Vida, está dentro dessa noção, ilusória ainda, mas é onde surge a noção da nossa identidade, as nossas emoções, nossa operação toda. Desse modo, nós começamos a entender isso.
O ensinamento Budista não vai começar lá adiante, examinando a Roda da Vida. Ele começa primeiro nos inserindo como seres com visão mais ampla. Isso tem uma grande conseqüência, pois cria uma cultura, uma consciência de base, onde os próprios ensinamentos depois podem vir como um processo mais refinado. Mas nós precisamos dessa cultura de base.
A nossa cultura de base hoje parece uma devastação, ou seja, nós somos convidados a nos fechar, a nos tornamos autônomos e não entender as ligações de todos os fenômenos. Nós vamos entender apenas que a única coisa necessária é ter dinheiro no bolso, com o qual compramos tudo o que precisamos e pronto. Nós não entendemos os processos de interligação. É como se fôssemos convidados a nos fecharmos.
A consciência ecológica vai se tornando natural e clara a medida em que vamos percebendo, compreendendo a inseparatividade. Nisso, tem uma outra conexão muito importante, que está ligada à compreensão do carma, que é assim: “Se eu entendo isso, eu entendo como o carma está operando, como que as conseqüências cármicas surgem de acordo com o meu comportamento. Se eu não entendo isso, isso não quer dizer que as conseqüências cármicas não vêm”.
Essa noção é de extraordinária importância porque, quando nós estamos fazendo uma disputa filosófica, parece que é um outro. Mas aqui não é assim. Por exemplo, nós podemos ter uma disputa filosófica nesse ponto, mas independente de quem vencer, o resultado das nossas ações segue igual. É como se tivesse alguma coisa andando independente das nossas idéias. E, às vezes, pensamos que, por termos algum tipo de poder (político, econômico, etc.), nós podemos fazer assim ou assado e pronto! A pessoa pode até fazer, mas a conseqüência correspondente surge.
Nós, então, substituímos a noção de filosofia propriamente pela noção de “ver a realidade como é”. Então, o Dalai Lama vai usar essa noção e vai dizer: “O nosso problema é que nós não vemos a realidade como é”. Nós deveríamos ter muito cuidado, pois se tivermos uma noção filosófica preponderante, dominante, implantada, se ela não for uma visão lúcida, nós vamos ter graves problemas.
PERGUNTAS E RESPOSTAS
1ª PERGUNTA: Em última instância, o sofrimento não seria um aspecto ilusório da nossa percepção?
RESPOSTA: Essa conclusão é correta, mas eu só não gosto da palavra “ilusório”. Porque o ilusório significa que a gente consegue descartar, porque aquilo “não é”. Mas, por exemplo, guerra, fome e sofrimento são experiências completas, mas ainda assim, elas são experiências que brotam dessa luminosidade. São experiências construídas. Elas não são sólidas, do mesmo modo que a morte também não é sólida. Então, nós vamos olhar assim. Guerra, fome e sofrimento são processos que nos mobilizam, que nos deixam aflitos. E justo porque isso não é sólido como parece, nós podemos nos liberar. Mas esse é o ponto de partida para o ensinamento budista, porque esses acontecimentos – guerra, fome e sofrimento – vão nos ajudar a acordar.
Por outro lado, não há como entrar no mundo ilusório sem gerar sofrimento, porque para entrar no mundo ilusório, nós precisamos de apego, precisamos de todos os Doze Elos funcionando, senão não conseguimos entrar no mundo ilusório. Então, quando estou filtrando tudo através dos sentidos físicos, quando estou com apego, eu me estruturo como aquele que sustenta o que eu acho bom, mas aquilo é frágil. Inevitavelmente eu vou ter sofrimento. Ilusão e sofrimento vem juntos, do mesmo modo que liberação e compaixão vem juntas também.
2ª PERGUNTA: Os bodisatvas, seres que se manifestam neste mundo com compaixão, para se manifestarem no mundo ilusório também estão envolvidos com os Doze Elos? Ou é possível funcionar num outro tipo de psicologia?
RESPOSTA: Os bodisatvas não vão operar pelos Doze Elos. O fato de operarmos no mundo não significa que nós estejamos presos aos Doze Elos. Os Doze Elos são etéreos. Eles não são concretos. Então, os seres de sabedoria, os Budas, podem se manifestar sem precisar disso.
A palavra “ilusório” (ou “ilusão”) vai nos atrapalhar, porque ela nos impede de acessar uma forma de explicar isso. Essa forma de explicar é assim: “Nós estamos com uma experiência perfeita do jeito que ela está acontecendo, porque toda essa experiência manifesta essa natureza ilimitada que está por baixo.” Só que os Budas vêem isso de uma forma completa. Não é que eles vêem uma outra coisa. Esse é um ponto muito importante. Quando nós olhamos para aquilo que aparece, aquilo que aparece mostra completamente a natureza da realidade tal como ela é. Com isso, eu não vou dizer que as pessoas, em suas experiências, estão percebendo a realidade como ela é. As pessoas realmente não estão tendo essa experiência. Mas os Budas, quando olham, eles vêem a experiência completa da realidade na aparência mesma que as coisas possam ter, através da lucidez.
Então, quando nós usamos a palavra ilusão é como se, quando nós vemos uma cor, nós dizemos: “Estamos iludidos.” Porque a própria manifestação da cor, das pessoas, da separatividade, ela expressa já a natureza última nisso. A questão toda é saber se, quando nós nos movimentamos dentro disso, temos liberdade ou não. Os Budas têm liberdade, eles vêem a realidade tal como ela é, de forma completa. Nós vemos só uma parte disso.
Os Doze Elos não são separados. A presença de um, carmicamente, produz o outro, que produz o seguinte e assim por diante. Agora, isso pode ser assim ou não. Mas quase todas as pessoas que dizem “eu gosto disso” e “eu não gosto daquilo” tem o Elo subseqüente, que é o apego. Mas, na verdade, cada estrutura dessas (cada Elo) é independente. É o carma que produz o fato de que um Elo produz o outro Elo. No entanto, cada um deles é independente, manifesta completamente a natureza ilimitada.
Por exemplo, podemos olhar um filme no cinema e nos ligarmos no aspecto dinâmico. Esse aspecto dinâmico revela o carma que conecta uma imagem com outra. No entanto, podemos decompor o filme em uma série de fotos. Podemos passá-lo como um projetor de slides, foto a foto. Não vemos a seqüência entre elas. Experimentem ir ao cinema e ver um filme aterrorizante, que é um filme que produz mais impacto. Então vocês, enquanto estiverem olhando para o filme, decomponham a cena em “fotos”. Vocês verão que, olhando cada uma das fotos, elas não tem nada de assustador. Mas a seqüência cármica delas vai produzir medo. É a seqüência cármica que vai produzir essa sensação de medo e as emoções todas. Foto por foto não tem. Então, do mesmo modo, quando nós olhamos os Doze Elos, Elo por Elo, cada um se sustenta independente, não produz o engano.
3ª PERGUNTA: O Senhor afirmou que do 1º ao 6º Elo, a psicologia budista se funde com a filosofia propriamente dita. Em que sentido elas se fundem?
RESPOSTA: Elas se fundem porque, quando nós vamos ultrapassando a noção de identidade, a noção de comportamento e passamos a examinar o aspecto cognitivo, ou seja, quando o aspecto de comportamento vai se convertendo na compreensão de como é que a realidade surge e o processo de cognição opera, então nós vamos passando para o aspecto da natureza da realidade das coisas, da inseparatividade do sujeito e do objeto, que são temas da filosofia.
4ª PERGUNTA: Como a mente, que é livre além dos sentidos físicos, pode permanecer no “aqui e agora”, sem fugir para outros mundos além, como para a cozinha, enquanto estamos trabalhando no computador?
RESPOSTA: Essa noção de “aqui e agora” é fácil de nos enganar. Porque ”aqui e agora” pode ser usado perfeitamente para dizermos “Samsara é isso que está aí”. Mas, na verdade, a experiência, a noção de “aqui e agora” significa essa lucidez, esse fato de que aqui e agora a natureza ilimitada está presente. Nós não precisamos voltar ao passado nem ir para o futuro, nem trocar de lugar, porque não há nenhuma experiência que não tenha dentro a natureza ilimitada. Mas se nós olharmos o “aqui e agora” como um ponto no espaço e no tempo ou uma posição geográfica, e olhar o que estejamos fazendo, convencionando-o como o aqui e o agora, isso não é verdadeiro. Por outro lado, qualquer coisa que nós estejamos fazendo, em qualquer lugar, a qualquer tempo, nós temos o ilimitado. Não preciso trocar aquela experiência para reconhecer a natureza ilimitada. A aparência daquela experiência, por si mesma, manifesta a natureza ilimitada. Isso significa o “aqui e agora”. Isso é “tathata”, em sanscrito, e “suchness”, em inglês. A coisa é como é. Essa é uma compreensão muito importante.
Os tibetanos chamam isso de “kadai”, que significa perfeição, a perfeição natural das coisas. Isso elimina a postura equivocada que nós veríamos no budismo, a qual seria assim: “ Eu deveria estar em um outro lugar, num outro tempo, fazendo uma outra coisa. Isso seria espiritual. Mas, neste tempo, neste lugar, fazendo o que eu faço, não há aqui espiritualidade. Se eu quiser encontrar a natureza absoluta, tenho que estar num outro lugar, num outro tempo, com outra idéia na cabeça”.
Tathata significa “aquilo que eu fizer, do jeito que for, convencionalmente torto ou convencionalmente certo, não há nenhuma forma de eu purificar aquilo, a não ser reconhecendo a própria natureza absoluta por dentro do próprio engano”. Se nós quisermos purificar o filme que estamos vendo, nós não tentamos mudar o final do filme. Nós nos damos conta da natureza do filme, de que tem uma lâmpada produzindo coisas e assim ficamos livres. Não é o conteúdo que está sendo feito, modificado. Às vezes, nós confundimos o “aqui e agora” com o conteúdo do que está sendo vivido. O verdadeiro “aqui e agora” não muda de um instante para outro, nem de uma região geográfica para outra.
Se estou lavando pratos, estou lavando pratos! Mas o “aqui e agora” não é o prato que eu estou lavando, mas também não é diferente disso. Mas não é o prato (o conteúdo). Vocês vão ver pessoas concentradas no conteúdo do “aqui e agora”. Elas dizem: “Estou no aqui e agora, não me atrapalhem!” Vocês verão pessoas concentradas, mas se olharem com cuidado, a concentração é o nosso problema, pois a concentração é uma mente triplamente definida que se defende. Está presa no conteúdo. As pessoas que não têm compaixão estão concentradas. A pessoa que tem muita raiva, eventualmente também está concentrada. Então, a concentração tira a visão abrangente. Quando nós vamos meditar, um dos exercícios é olhar em todas as direções ao mesmo tempo. Desse modo nós nos percebemos livres, começando a desenvolver a plena atenção, que tem lucidez junto.
Mas a lucidez não é um processo analítico. É a liberdade que pode brotar do processo analítico, mas ela não é um processo analítico. No Budismo se diz que o processo analítico é como um “asno manco”, porque ele funciona um pouquinho, mas depois empanca, derrapa, se desestabiliza. O processo analítico não resolve, mas ajuda a purificar.
5ª PERGUNTA: Quando estamos trabalhando com a responsividade, o não-reagir ou o não-responder aos sentimentos negativos, como por exemplo, a raiva, como evitar a armadilha disso vir a ser empurrado para o corpo?
RESPOSTA: Isso se refere àquelas quatro categorias de ação. Se eu não manifestar, explicitar a raiva com o corpo, mas ela ainda estiver na energia, na mente e na paisagem, nós vamos ter problemas, vamos passar mal. Ainda assim, devemos avaliar com cuidado isso, porque se nós formos expressar a raiva, é como quando temos veneno num pote. Se eu espalhar isso no ar, não teremos mais como recolher. Reprimir não é agradável. O problema está contido, mas não resolvido. No entanto, se eu simplesmente manifestar a raiva, é como quebrar o pote de veneno, não vou ter mais como recolher. Depois que eu jogar o pote no chão e quiser recolher, vamos dizer “Por que eu joguei?”
O que vai acontecer é que nós temos quatro ações de mente. A primeira é a expressão da raiva. A segunda, é a contenção, como resultado da disciplina, mas aquilo fica atravessado. Tanto no Mahayana como no Vajrayana ou no Hinayana, podemos usar meios hábeis, que é a terceira ação da mente. Um deles é a meditação de Tonglen (Vajrayana), que é quando inspiro a negatividade do outro e expiro minhas qualidades para ele. Ou também a meditação Metabavana (Hinayana), que é olhar todos os seres com compaixão. Isso neutraliza o foco da raiva. Não precisamos achar que o outro ser está correto, pois ele é um ser como nós. No Mahayana, nós podemos trocar a paisagem, ou seja, eu reconheço a noção de liberdade, aí trocamos a paisagem.
Agora, se não tiver jeito, podemos usar a quarta forma de ação da mente, que é reconhecer que a nossa raiva é perfeita e o que o outro está fazendo é perfeito. É reconhecer que a natureza última produz todas essas manifestações. Quando isso é produzido, o próprio gérmen da vitalidade básica, que produz aquela raiva, é transformado, ainda que não seja este o objetivo, pois o objetivo é a lucidez. Mas quando a lucidez se instala, o gérmen da vitalidade daquilo (da raiva) desaparece.
O Dalai Lama diz que, quando nós ampliamos a visão, esse processo de negatividade se reduz.
6ª PERGUNTA: Por que a fonte faz essa brincadeira toda conosco, nossos problemas, sofrimentos, ignorância?
RESPOSTA: Essa é uma pergunta interessante, mas, na verdade, ela é uma pergunta injusta. Nós não vamos poder responder isso a não ser desqualificando a própria pergunta.
Essa noção de “por que” está ligado à causalidade, ou seja, tem uma causa anterior e um condicionamento que produz aquilo. Essa noção de causalidade está presa na noção da própria Roda da Vida, como se a causalidade fosse um fato. Então, nós não vamos responder nenhum “por que”. O que nós vamos perceber é que há uma expressão de liberdade para que esse universo surja. Então, quando nós percebemos que todas essas manifestações dos Doze Elos e todas essas nuances surgem por liberdade, e que a liberdade continua, nós entenderemos essa liberdade última e até mesmo não vamos considerar que o mundo de Samsara seja necessariamente negativo. Porque, na verdade, as pessoas podem ter a sensação de morte, mas não há mortes. Tudo isso é uma outra coisa.
Por exemplo, nós podíamos perguntar porque inventaram o cinema. As pessoas vão lá, choram, se alegram, mas não tem nada de realidade ali dentro. Mas, mesmo assim, nós vamos ao cinema. Então, o Samsara todo não é muito diferente disso, porque não há propriamente uma realidade sólida. Ainda que a gente morra, ninguém de fato morre. Ainda que tenha tiros, isso não existe no sentido último. E nós ultrapassamos essas dificuldades todas.
É como se nós estivéssemos perdoados. Nós já estamos salvos, mas apenas não sabemos disso. Em outras palavras, isso é menos sério do que parece. Se nós nos tomamos seriamente, como alguém que tenta fazer tudo perfeito e que está enganado pela realidade, então dizemos: “Como é que estão me enganando? Por que? Quem é que inventou isso? Isso é um hacker espiritual!” Mas nós não somos sérios, não precisamos nos tomar como alguém que tem que fazer tudo certinho. Nós passamos a nos ver como seres libertos. Nós estamos livres desse processo. Mesmo quando a gente pensa que está gritando, desesperado, nós estamos livres.
Então, percebam que esse processo todo de reflexão, como nós estamos fazendo, é até útil. Nós estamos dentro de um processo que é ilusório, nós estamos usando categorias construídas, nós estamos passeando por dentro disso, que é o processo Mahayana. Assim, vocês vão ver alguma referência a que os filósofos é que fazem isso. É que os Mahayanas se autodenominam de filósofos. Eu acredito que se nós formos refinando o pensamento científico, não encontraremos uma contradição que nos impeça de encontrar as verdades espirituais todas.
No Mahayana nós não temos efetivamente um obstáculo. Nós vamos encontrar um obstáculo porque o pensamento lógico só vai até um ponto. Ele não vai ulltrapassar um ponto. Mas ele consegue localizar o ponto, consegue apontar o lugar onde ele não pode passar. Ele pode até dar dicas de como nós o ultrapassamos, o que nós vemos do lado de lá, mas sem passar do ponto. Ele conduz ao pensamento mágico naturalmente. Ele leva você até a porta do templo e diz: “agora você fique sentado e não se mova”. Aí a porta se abre e a pessoa entra, ultrapassa. Nós vemos que tudo isso é possível.
Então, esse é um processo muito útil, apesar de não ser o único. No Budismo, existem vários métodos. Esse não é o único, mas é um dos métodos. Uma coisa que acontece, pelo fato de nós estarmos aqui refletindo, é que a mente de vocês vai seguir refletindo. Então, menos importante é o que vocês entenderam do que o fato de que esse processo começa a funcionar dentro. Aí vocês mesmos vão gerando as compreensões.
7ª PERGUNTA: Esse ciclo de nascimento e morte ele cessa em algum momento ou ele é permanente, eterno?
RESPOSTA: Esse ciclo está associado à ignorância. Quando a ignorância cessar, ele cessa. Mas isso não significa que quando cessar a ignorância, cessará a operacionalidade da vida, porque a ignorância é um processo que, dito de outro modo, seria assim: “Eu posso me manter vivo sem a ignorância. Aí eu vou pensar que a experiência cíclica cessou, mesmo que eu esteja dentro de um corpo. Porque não é o fato de eu estar dentro de um corpo que define a experiência cíclica. É o apego a esse corpo, é o apego às identidades artificiais, é o apego às coisas impermanentes que me fazem estar dentro da experiência cíclica. Quando eu compreendo e me refugio na natureza ilimitada, eu posso viver a experiência aparentemente impermanente sem oscilar na impermanência. Então, nesse sentido, eu vejo que a experiência cíclica nunca foi verdadeira, que ela nunca existiu mesmo. Ela parecia uma experiência cíclica. Esse é o ponto.
8ª PERGUNTA: De que forma ações simples, como dar esmola num sinal poderia servir como ajuda?
RESPOSTA: Um grande mestre respondeu essa mesma pergunta, dizendo: “Se você der alguma coisa para alguém aspirando ajuda-lo, você ajuda. Se você não der, aspirando ajuda-lo, você ajuda. Se você der com raiva, você pratica raiva. Se você não der com raiva, você também pratica a raiva. Mas se você evitar de dar por compaixão, você está praticando compaixão”. A realidade é assim.
9ª PERGUNTA: Os seres que se libertam percorrem esses Elos de forma diferente ou eles estão fora dos Doze Elos? Eles estariam no ponto ZERO?
RESPOSTA: Eles estão fora dos Doze Elos. Eles podem manifestar a aparência dos Doze Elos, mas eles estão fora disso. É como se estivessem no ZERO. Mas, a verdade é que esse ponto ZERO está em todos os Elos. Em cada um dos Doze Elos tem uma perfeição natural. Ele não consegue derrubar a perfeição natural. O engano manifesta a perfeição natural. Todos os aspectos são construídos por essa natureza ilimitada, luminosa. Então, quando nós percebemos isso, nós não temos nem como pensar que, maquiando, as coisas vão melhorar ou piorar.
10ª PERGUNTA: O que significa PADMA SAMTEN?
RESPOSTA: PADMA é lótus. Todos os praticantes da linhagem Ningma são da família PADMA. SAMTEN significa meditação, que é o quinto paramita, o qual corresponde a dhyana ou tchan ou zen, dependendo da língua.
11ª PERGUNTA: O espiritismo também acredita em reencarnação. Só que eles acreditam que os seres que estão no bardo podem se manifestar nessa vida através de pessoas que têm mediunidade. Como é que o Budismo vê isso?
RESPOSTA: O Budismo vai aceitar os fenômenos de mediunidade. Vai aceitar que existem outros Reinos, que existem seres em outros lugares que podem se comunicar, nos atrapalhando ou nos ajudando. Só não se dá muita ênfase a isso porque o Budismo busca a liberação. Se pensa mais ou menos assim: “Se com os vivos já é complicado nós lidarmos, imagine com os ‘mortos’.....”
Há muitos seres que aspiram manipular as condições da vida através dos mortos e isso é o uso de meios hábeis. Mas isso não é muito importante, porque a questão não é como manipular, nós não estamos buscando a manipulação, mas sim a liberação, que é uma outra coisa! Há outros que buscam esses seres de outros planos como fonte de refúgio, como uma espécie de consulta (Vou lá ou não vou? Faço isso ou não?). Isso é considerado também inútil, porque o Buda diz: ”Vocês não tomem por refúgio seres que estão em planos limitados. Só a natureza liberta é boa conselheira, porque os demais seres estão olhando as coisas sob uma ótica particular. Eles estão também presos em Samsara.”
Mas, ainda assim, o Dalai Lama usa um oráculo, o oráculo de Neshung, que por sua vez é um ser que, apesar de não estar completamente liberto, tem sabedoria. Ele foi um monge que fez votos de proteger os seres. Neshung, então, é consultado. Mas o Dalai Lama diz: “Eu pergunto para ele, como vocês perguntariam se está fazendo frio em Porto Alegre, mas as decisões são minhas.” Mesmo nesse caso, vocês vão ver que existe o templo de Neshung, como existia o oráculo de Delfos. Ele sempre se manifesta através dos médiuns, que são treinados para isso.
Assim, mesmo com todos esses cuidados, o Dalai Lama diz: “Eu olho para ele como eu olho para um Ministro. O Ministro dá a sua opinião, mas sou eu quem vai decidir o que fazer.”
אאַ אאַ אאַ אאַ אאַ אאַ
Transcrição realizada por Flori Padma Yeshe
(Floridalva Cavalcanti),
concluída em outubro de 2004.
[1] Vacuidade: ausência de solidez, de existência inerente.
[2] Roda da Vida – ver figura na primeira página.
[3] Samsara é o mundo condicionado, simbolizado pela Roda da vida.
[4] Ver figura na página 55.
[5] Ver figura na página 58.
[6] Ver figura na primeira página.
[7] Ver figura na primeira página.