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Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Tabela de conteúdos
- Responsabilidade Universal
- 1. Introdução
- 2. O nível de ação como início e fim do caminho
- 3. Aprendendo a ouvir os sons do mundo
- 4. Descobrindo os meios hábeis para exercer as ações
- 5. Referenciais budistas para uma cultura de paz
- 5.1 - Considerações iniciais
- 5.2 - Diferencial da ação budista: a compreensão da vacuidade
- 5.3 - Nascer e dar nascimento na mandala de cultura de paz
- 5.4 - Trabalhos acadêmicos originais
- 6. Principais argumentos da reflexão sobre a cultura de paz
- 7. O diferencial da abordagem da Mandala
Responsabilidade Universal
por Lama Padma Samten
1. Introdução
Esse tema da responsabilidade universal é um tema longo e vasto. Por isso, estou tentando estabelecer um roteiro único. Hoje vou falar para vocês como estamos andando dentro desse tema, como essa abordagem se conecta com os ensinamentos budistas tradicionais e o que podemos esperar desse tipo de conexão.
Ontem, quando explanávamos sobre a Primeira Nobre Verdade, vimos a questão das Quatro Montanhas, de duka e da experiência cíclica. Depois, encontrando a Segunda Nobre Verdade, vimos que todas essas situações são construídas, são artificiais. Sendo artificiais, vimos que a Terceira Nobre Verdade aponta para a possibilidade de transcendermos essas situações. Vimos que a liberação desse conjunto de dificuldades é possível: nós podemos ultrapassar as montanhas do nascimento, da sustentação da vida, da decrepitude e da morte.
E, finalmente, veio a noção de caminho, o Nobre Caminho de Oito Passos, onde começamos com a motivação correta e seguimos reduzindo o impacto do sofrimento sobre os seres. Em seguida, nós ampliamos nossa capacidade de ajudar os seres e desenvolvemos as habilidades de meditação. Dentro dessas habilidades, vamos até o ponto de compreender a natureza ilimitada.
Toda essa explicação está no nível que chamamos de visão. Depois, precisamos transformar cada um desses itens numa forma de meditação, pois iremos perceber que podemos entender isso, mas existe uma distância entre entender e conseguir efetivamente transformar essa compreensão em algo vivo na nossa experiência de mundo. Então, essa é a função da meditação. Quando a meditação estabiliza essa compreensão, tornando-a viva como uma prática a nível de corpo, energia, mente e paisagem (ou mandala), então passamos para uma terceira etapa, que é a etapa de ação.
Tendo compreendido e praticado os ensinamentos nesses três níveis, os conteúdos são os mesmos, mas agora, quando pensamos na Primeira Nobre Verdade (sofrimento), não pensamos mais de uma forma teórica. Passamos a ter uma experiência imediata, incessante. Nós não pensamos: “Oh, que pena isso, que pena aquilo!” e a partir daí elaboramos pensamentos até o ponto em que possamos entender isso de forma mais profunda. Não. Quando estamos no nível de ação, imediatamente ao surgimento das situações, já nos brota a compreensão correta, de uma forma natural. Não faremos mais nenhum esforço para ter uma compreensão lateral a que devemos nos vincular e analisar, e só então seguir. Aquilo nos brota como uma ação natural.
Então, cada uma das etapas do Nobre Caminho começa a surgir de uma forma completamente natural. E essa é a etapa de ação. Nós podemos surgir no mundo desse modo. Ainda que afirmemos isso, perceberemos que a consecução disso não é algo muito simples. Sobre esse ponto, eu lembro do meu próprio mestre, que, por uma natural humildade, ele dizia: “Eu sou como um vaga-lume. Essa luz se acende e se apaga, se acende e se apaga.” Então, se ele, que era um mestre com reconhecida sabedoria e prática, se achava um vaga-lume, o que diremos nós? Somos como velas de natal que só se acendem uma vez por ano! Mas ele afirmava: “Existem mestres que são como faróis, que têm a luz incessantemente acesa, orientando a todos os seres!”. Só ouvir isso já nos conforta e nos deixa felizes, porque prova que isso é possível e que existem tais mestres. Com corpo ou sem corpo, há esse farol incessantemente ligado e esse é o referencial para todos nós.
Com isso, examinamos, de modo rápido e resumidamente, o caminho em seus três níveis. Assim, tudo o que formos aprender no budismo está em algum ponto desse roteiro.
Nos vários CEBBs, tomamos esse roteiro e o apresentamos nos níveis de visão e de meditação. Existem deferentes horários, onde são oferecidas diferentes práticas. Aos poucos, vamos nos capacitando a entender isso melhor e a poder praticar diferentes partes desse roteiro. E assim vamos avançando.
2. O nível de ação como início e fim do caminho
É natural que em certo momento surja a questão da ação. Ou seja, vamos avançando e nos deparamos com o desafio natural da vida cotidiana. Assim, os níveis de visão, meditação e ação estão sempre embolados uns nos outros. Quando saímos da sala de meditação, nós gostaríamos de poder manter esses olhos e essa visão. Então, vamos precisar do nível de ação.
Esse nível de ação, no entanto, é curioso. Ele surge como se fosse o nível mais sofisticado e, simultaneamente, como se fosse o nível mais introdutório. Isso se deve ao fato de que, naturalmente, nós temos um processo cíclico: quando chegamos ao final, recomeçamos do início.
No Zen, isso é ilustrado com os quadros do touro. Esses quadros explicam que, inicialmente, a pessoa vivia no mundo de uma forma aleatória. Depois, ela vê a ponta do rabo do touro. Ou seja, ela descobre que existe algo profundo em algum lugar. Lentamente, a pessoa fica dominada por aquilo e começa a procurar o touro. Ela começa a procurar as pegadas do touro, as marcas do touro, até que ela chega perto do touro. Mas o touro foge. No entanto, tem um momento em que ela consegue laçar o touro, montá-lo e seguir com ele para todos os lugares. O touro é como se fosse a nossa mente. A pessoa descobre a mente, domina a mente, pacifica a mente. Depois, ela abandona esse objetivo e então repousa diante da lua, ou seja, contempla a natureza ilimitada, que está além da mente comum e das coisas comuns. Quando ela termina essa etapa de contemplar a natureza ilimitada, ela se levanta e entra no mercado da cidade. Essa é a última etapa. Quando ela entra na cidade e ri junto com os mercadores, com as pessoas do mundo, essa é a etapa final. A etapa final não é a pessoa se dissolver e viver no mundo da lua. Não é isso. Na etapa final a pessoa retorna ao mercado, ao mundo.
Então, essa é a etapa de ação. Mas, onde é que a pessoa vivia antes? No mercado. E onde é que ela chegou agora? Ela chegou no mercado! Assim, concluímos: a última etapa é o retorno à primeira! Mas a pessoa que retorna ao mercado após esse processo todo, não é mais uma pessoa comum, não vai mais agir de uma forma comum.
Início do caminho: estabelecimento de uma cultura de paz
Se olharmos essa etapa de ação de um modo introdutório, curiosamente vamos ver que ela é o estabelecimento de uma cultura de paz. Observem que Sua Santidade o Dalai Lama vai por todos os lugares falando de cultura de paz: “Sejam boas pessoas, não sejam pessoas más; façam o que é favorável e não façam o que é desfavorável.” Isso parece muito simples, mas ele anda por todos os lugares expressando isso. Essa é a etapa de ação no mundo, que significa interagir com as pessoas, falando aquilo que está ao alcance delas.
Compreender o ponto onde as pessoas estão é que vai propiciar o benefício. Se as pessoas têm fome, é comida que vai ser oferecida. Se as pessoas estão com frio, é abrigo que vamos lhes oferecer. Se as pessoas estiverem doentes, é algo para a doença delas. Mas, em nenhum momento se perde o contexto todo. Então, essa é a abordagem de cultura de paz.
O budismo, juntamente com todas as outras tradições, é chamado a responder aos desafios sociais no mundo. E essa é justamente a etapa de ação: o que fazer nesse âmbito? Dentro desse âmbito nós vamos encontrar também essa noção de visão, meditação e ação. Essa etapa que diz respeito à responsabilidade universal, corresponderia à etapa de “visão” dentro desse panorama. Existirão, também, as etapas de “meditação” e de “ação”.
Em julho deste ano estaremos realizando o primeiro encontro de facilitadores de cultura de paz, lá em Viamão-RS, para nos ouvirmos uns aos outros. Já temos uma estrutura de ação, mas podemos nos enriquecer uns aos outros com os vários métodos que cada um já desenvolveu para cumprir diferentes pedaços dentro desse trajeto. Precisamos desenvolver meios hábeis para interagir com os diversos setores que estão englobados dentro dessa etapa de ação.
Essa etapa de meios hábeis pode ser dita assim: “Os mestres têm uma realização completa, porém os alunos colocam os pés sobre os ombros dos mestres e seguem adiante.” Poderíamos perguntar: “Se a iluminação é completa, como ela pode aumentar sempre?” Isso também é explicado no Zen, com a seguinte expressão: “A realização é completa, mas ela aumenta sempre.” Esse “aumentar sempre” refere-se ao aspecto dos meios hábeis. Na medida em que todos os Budas tiveram a iluminação completa desde tempos passados, ainda assim a iluminação vem aumentando sempre. Isso é possível porque a complicação também tem aumentado sempre. Na medida em que a complicação aumenta, é necessário aumentar não a profundidade, mas sim o número ou a forma de meios hábeis para resgatar os seres no nível de complicação em que eles se encontrarem.
3. Aprendendo a ouvir os sons do mundo
Dentro da visão budista, essa etapa de ação que estamos desenvolvendo equivale à manifestação da deidade de Tcherenzig, que é essencialmente a deidade básica de Sua Santidade o Dalai Lama. Então, se diz que sua Santidade é uma emanação de Tcherenzig. Quando vocês olharem as diferentes deidades no budismo, vocês vão entender o que isso significa. No entanto, isso não quer dizer que uma deidade seja diferente da outra, e sim que são diferentes as formas de ação. Podemos dizer que cada deidade tem uma forma um pouco diferente de ação.
Entretanto, podemos sempre dizer que cada uma das deidades é a principal. Eu tenho a tendência de pensar que uma deidade realmente principal é o Buda Primordial. Por que? Porque ele representa a qualidade de iluminação que cada um de nós tem. Se não tivermos essa qualidade, não teremos chance. Assim, a deidade principal é aquilo que é a nossa natureza, a natureza verdadeira de todos os Budas e de todas as coisas que podemos olhar ou imaginar. É o absoluto.
Mas, ainda que esse absoluto esteja presente, a imensa maioria das pessoas não são capazes de reconhecer. Elas apenas vêem a sua experiência comum de mundo. Ainda que essa deidade seja muito importante, justamente por ela ser tão sutil e tão extraordinária, ela é pouco entendida e pouco vista. Ou seja, ainda que seja vasta e incomensurável sua capacidade de gerar benefícios, é difícil para nós vermos essa deidade agindo e entrar em harmonia com ela. É como se os nossos olhos não a alcançassem.
Dessa deidade extraordinária, que é Kuntuzangpo ou Samanthabadra, dizemos que são emanados os Cinco Dianibudas, entre eles, o Buda Amithaba. Quando nós pensamos em Amithaba, nos alegramos e reconhecemos que ele é extraordinário porque nos ensina a equanimidade. Ele nos ensina a ficar em silêncio, e através dele, conectar a deidade última. Então, ele é a porta que nos permite acessar a natureza última.
E vamos ver o Buda Amithaba por todos os lados. Por exemplo, a família Lótus que Chagdud Rinponche trouxe para o Brasil, é a família do Buda Amithaba. Padma significa lótus. Como meu nome é Padma Samten, isso significa que eu pertenço à família Lótus, e que, no mundo, vou me manifestar de alguma forma conectado ao processo pelo qual Amitabha oferece seus ensinamentos, que é essencialmente a meditação em silêncio. Chagdud Rinponche, meu mestre, deu-me esse nome: Padma Samten. Samten é meditação. Meditação do Lótus. Então, essa é a minha função.
Agora, vejam vocês que mesmo Amithaba é muito sutil para a maior parte das pessoas. As pessoas sentam em silêncio, mas suas mentes ficam girando, fazendo planos e elas não aproveitam muito essa meditação. Assim, Amithaba emana Tcherenzig, conhecido também como Guru Rinpoche, o Buda da Compaixão.
Então, qual é a função do Buda da Compaixão? O Buda da Compaixão já é diferente. Ele não fica lá sentadinho esperando que os outros olhem para ele. Tcherenzig vai ao mundo, ouve os sons do mundo e interage com as aparências do mundo. Isso corresponde exatamente com essa etapa de ação da qual estamos falando.
Tcherenzig é o patrono de todas as deidades, de todos Budas, de todos os mestres, de todos os bodisatvas, de todos os seres que, de alguma maneira, andam no mundo, com a aparência que tiverem, para interagir com as pessoas e ajudá-las a superar seus sofrimentos. Por exemplo, Guru Rinponche é inseparável de Tcherenzig. É como se ele representasse também esse ideal extraordinário. Então, tudo isso é o aspecto sutil dessa ação extraordinária. Os Budas são diferentes, fazem coisas diferentes, mas na verdade todas essas ações estão unificadas na perspectiva do Buda Primordial. Mas existe essa ação extraordinária que é andar no mundo, de forma lúcida, para trazer benefícios aos seres.
Então, nesse sentido, quando as pessoas entendem “visão” e “meditam”, elas chegam ao ponto de desenvolver essa aspiração de trazer benefícios aos outros seres. Quando elas desenvolvem essa aspiração, vão encontrar meios hábeis, de acordo com os obstáculos que encontrarem. Esses meios hábeis são manifestações de Tcherenzig e podem se expandir continuamente. Quando dizemos que “a meditação se completou”, significa que nós vemos de forma perfeita o Buda Amithaba. No entanto, isso não nos limita a continuar expandindo os meios hábeis, em continuar encontrando outras formas de socorrer, ajudar e beneficiar as pessoas nas suas dificuldades. É por isso que dizemos: “ainda que a iluminação seja completa, ela aumenta sempre”. Então, o nível de ação pode aumentar incessantemente.
4. Descobrindo os meios hábeis para exercer as ações
Então, nesse sentido é que, nos tempos atuais, precisamos encontrar meios hábeis para que essas ações sejam exercidas. Vocês verão que os grupos budistas têm uma forma particular de ação. Essa forma particular é, por exemplo, ter um horário, uma sala, em que as pessoas vêm, ouvem os ensinamentos, fazem prática e vão mudando suas vidas. No entanto, não precisamos nos limitar a esse processo. Existe um grande número de pessoas, em diferentes lugares, com aflições variadas. Ao invés de esperarmos que as pessoas estejam dentro de um padrão e entrem pela porta da nossa sala, nós também podemos “ouvir os sons” e ir ao encontro das pessoas.
Esse é, então, o nosso desafio. Não podemos levar nossa sala, nosso altar, conosco, sempre. E vamos encontrar pessoas que não entrariam pela porta das nossas salas, porque elas não têm aptidões, não têm motivação. Mas elas têm sofrimento. Assim, ficarmos esperando dentro da sala não seria de grande ajuda para essas pessoas.
Dentro dessa perspectiva, passa a fazer sentido isso que chamamos de cultura de paz, ou seja, trabalharmos para estabelecer, de uma forma geral, uma cultura de acolhimento para todas as pessoas, independente delas se tornarem budistas ou fazerem práticas espirituais. As pessoas seriam acolhidas no seu próprio nível, na forma como elas levam suas vidas, pois elas também podem ser beneficiadas pelos referenciais budistas. Então, é isso o que se coloca dentro da perspectiva de uma cultura de paz.
Projetos de ação do CEBB
Nesse ano de 2005, no final de janeiro, fizemos um encontro nacional do CEBB em Viamão-RS, onde foi definido que teríamos a cultura de paz como prioridade. Por um lado, isso parece uma prioridade introdutória, mas por outro lado, eu prefiro ver isso justamente como essa etapa de ação se desenhando, pois, dentro do caminho Mahayana - onde a nossa prática é a compaixão no mundo - esse é o grande desafio.
A partir disso, surgiram com muita rapidez, já em fevereiro, várias demandas de diferentes lugares. Percebemos que havia uma perspectiva muito interessante para os praticantes da sanga. Há uma dificuldade entre os praticantes que é o fato deles quererem se dedicar em tempo integral, mas esbarram na necessidade de terem que trabalhar em alguma outra atividade para poder seguir com sua prática e serviço na sanga. Curiosamente, as possibilidades que começaram a surgir poderia resolver esse problema, porque as pessoas estão oferecendo pagar para que se trabalhe nessa perspectiva de cultura de paz.
Sem que tivéssemos imaginado isso, nos defrontamos com um “mercado de trabalho”. Ou seja, está surgindo um mercado de trabalho para praticantes budistas. Temos muitos postos de trabalho, mas poucos trabalhadores qualificados. Eu não saberia dizer quantos poderiam ser engajados dentro disso, mas nesse momento, a minha perspectiva é de um número muito grande de pessoas, um número ilimitado. Existem verbas municipais, estaduais e federais disponíveis e temos as pessoas que sabem perfeitamente fazer os projetos e obter essas verbas. Existe, também, a possibilidade de realizarmos projetos em grandes empresas, como a Petrobrás.
Mas nós não vamos andar por causa de dinheiro. Não temos problemas financeiros, não estamos atrás de verbas. Esse referencial é apenas para entendermos que há uma “demanda” muito grande de transformação. Ou seja, o mecanismo é claro: a violência cresceu, a população pede mudanças, as pessoas capacitadas para produzir as mudanças trabalham, mas também não obtém muitos resultados. Então, há um cansaço, um esgotamento nisso.
Nesse momento, a Prefeitura de Porto Alegre, por intermédio do Secretário Municipal de Direitos Humanos e Segurança Urbana, pediu nossa ajuda. Eu estou passando por 9 regiões dentro de Porto Alegre. Ministro palestras para educadores, assistentes sociais, agentes comunitários e médicos. Eles organizam tudo e eu vou lá e dou as palestras. Eles perguntam: quando você pode vir de novo?
No entanto, somos convidados pelas escolas e centros comunitários para realizar trabalhos nessas comunidades, mas constatei que não temos pessoas suficientes, nem qualificação. Ou seja, nós pedimos, rezamos e fomos atendidos numa quantidade muito maior do que a nossa capacidade.
Agora, estamos juntando forças para, a partir de julho, estabelecer uma formação para a capacitação de pessoas, com uma linguagem específica dentro dos referenciais budistas. Estamos pensando em criar um roteiro e definir os processos de capacitação. Eu acredito que isso vá ser um eixo maravilhoso que combina justamente com as etapas anteriores que já vínhamos realizando, que são: visão e meditação.
E tudo se harmoniza, porque de um lado, essa nossa ação é a etapa de ação mesmo, pois já teremos percorrido as etapas anteriores. Por outro lado, para a maior parte das pessoas que vamos encontrar, essa etapa inicial, será a etapa 0, 00 ou 000 deles. Ou seja, nós vamos estabelecer uma base muito ampla onde naturalmente as pessoas entendem o passo seguinte e vão terminar sentadas em sala de meditação, fazendo seus processos de transformação. Nós realmente acreditamos que isso possa vir a acontecer.
5. Referenciais budistas para uma cultura de paz
5.1 - Considerações iniciais
Então, esse é o contexto da questão toda. Teci esse quadro geral para explicar o porquê dessa preocupação. E dentro de tudo isso existe um vínculo desse esforço de cultura de paz com os ensinamentos budistas. Como é que os ensinamentos budistas – aquilo que o Buda falou sobre as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo, ao nível de visão e meditação - se conectam à vida cotidiana da periferia urbana? Como é que isso se conecta às pessoas que tem poder e inserção social, mas que destroem o ambiente, poluem os mares, os rios e a atmosfera?
Todos esses problemas têm a ver com o sistema econômico operante e não apenas com a periferia urbana. A violência tem muitos diferentes níveis. Quando começamos a estudar isso, vamos ver que, por mais agressiva que seja a periferia urbana, não é dela que vem a ameaça de destruição da vida no planeta. Quando muito, tem algumas pessoas desesperadas com armas nas mãos, atirando umas nas outras e vendendo drogas. Mas sequer são para eles o mercado das drogas. Eles não estão ali se drogando para se auto-satisfazer. Essa é uma relação complexa com outras camadas da sociedade. Desse modo, essa visão de que a violência é a periferia urbana é uma visão limitada.
Desse modo, precisamos olhar esse problema de uma forma ampla, o que envolve a tecnologia, a educação, a atividade econômica, tudo isso em conjunto, e também o próprio sistema judiciário, que hoje está numa situação muito difícil, como todos os outros setores da sociedade. Cada setor chegou ao seu limite de fragilidade e de ineficiência. Então, nós temos que pensar nisso globalmente. E essa reflexão global está ligada à noção de responsabilidade universal, como Sua Santidade o Dalai Lama tem introduzido.
5.2 - Diferencial da ação budista: a compreensão da vacuidade
Quando trabalhamos com a responsabilidade universal, nós vamos entender que precisamos desenvolver métodos para chegar a diferentes ambientes, sem perder o referencial budista.Tem um nível de reflexão cuidadoso que é assim: como os esforços dos outros grupos – experiências que já existem – se diferenciam da perspectiva budista?
Tem uma série de pontos que eu gostaria de explicar com cuidado. Esse diferencial vem do referencial budista da realidade. Enquanto a totalidade dos grupos e da abordagem usual considera o mundo sólido na forma em que ele se apresenta, nós consideramos que o mundo é inseparável dos olhos. A noção de vacuidade é essencial.
Então, a partir disso aparecem as diferenças. Eu não vou explicitar aqui, mas isso vai naturalmente se exercer sobre todas as formas de ação. Vamos usar essa noção de vacuidade, que vai se manifestar como uma prática de liberdade. Assim, com muito cuidado, nós precisamos aproveitar as experiências já existentes, mas entender qual é o nosso eixo, quais são os diferenciais e o que estamos trazendo para somar dentro desse esforço maior. Ou seja, precisamos reconhecer qual é a nossa especialidade dentro disso.
5.3 - Nascer e dar nascimento na mandala de cultura de paz
Depois, temos outra área que precisamos exercer, de forma muito cuidadosa, que é justamente a questão da ação. Nós precisamos primeiro ter o nascimento de Bodisatva no mundo. O que isso significa? Qual é a nossa atitude, qual é o nosso jeito? O que é que isso exige de nós, internamente, para que possamos surgir numa flor de lótus e agir no mundo? Então, isso está estruturado com as meditações, as visualizações e as etapas.
Nós temos a responsabilidade universal, mas esse não é o único item dentro dessa mandala de cultura de paz. Precisamos, por exemplo, saber como é que nós surgimos. Temos outro desafio a desenvolver – uma outra área inteira - que eu diria que é o foco principal, que será abordada em julho, que é assim: como nós, enquanto praticantes budistas, podemos nascer e dar nascimento aos outros dentro da mandala de cultura de paz?
Aí vêm todas as habilidades. Como pegar uma pessoa que vem de certo jeito e poder ajudá-la a melhorar a sua vida. Essencialmente, esse é o ponto. O que é que significa “melhorar a vida” e quais são os meios hábeis? Isso está delimitado em etapas e elas estão arrumadas enquanto visão. Essa visão é muito importante, porque os métodos que utilizarmos vão ter esse eixo.
Mas os métodos podem ser variados. Por exemplo, pode entrar uma pessoa vestida de palhaço aqui dentro da sala, mas se ela não estiver dentro de um eixo, ela é simplesmente uma pessoa vestida de palhaço que entra e sai. No entanto, se ela estiver dentro desse eixo, faz toda a diferença. Então, esse eixo tem que estar claro, testado e arrumado.
E todas as pessoas têm que ter clareza sobre o que é que significa esse eixo. Qual é a etapa que a pessoa está fazendo quando ela entra vestida de palhaço? Nesse sentido, tanto faz se a pessoa vai ensinar a jogar futebol ou ensinar texto ou teatro ou vai apresentar um filme. Tudo isso serão meios hábeis para cumprir um pedaço de um trajeto que saberemos qual é. Estará claro para nós. Nós não vamos nos colocar, por exemplo, como animadores de festa, simplesmente passando uma hora, meia hora, uma tarde ou uma manhã produzindo um nível de felicidade que, ao final, as pessoas vão embora e vai ficar tudo igual. Os praticantes budistas não podem fazer isso. Nós não temos tempo a perder. Para nós é muito claro qual é o eixo, o que vamos fazer em cada etapa.
Acredito que em julho, na nossa conversa, isso ficará claro. Vamos ter um desafio, que é converter métodos comuns – eventos que ocorrem durante uma tarde, por exemplo – em algo que é um trajeto, que não termina, onde seguimos um roteiro.
Então, são quatro aspectos: a responsabilidade universal como ideologia geral, os diferenciais dos métodos budistas em relação aos outros, o nosso surgimento – como nós surgimos capacitados para fazer isso – e o que é que nós vamos fazer – como nós vamos efetivamente ajudar. Dentro desses quatro aspectos, hoje vamos olhar o aspecto geral, que é o que já estou falando, que converge para noção de responsabilidade universal como sua Santidade o Dalai Lama aborda.
5.4 - Trabalhos acadêmicos originais
Existe ainda uma quinta área que são trabalhos originais. Eu realmente acredito que vamos desenvolver, a partir dessas reflexões todas, muitas demandas para trabalhos acadêmicos nas mais variadas áreas. Vamos ter trabalhos acadêmicos na área do direito, arquitetura, engenharia, alimentação, medicina, psicologia. Porque quando começarmos a redesenhar o tecido humano e o tecido social, outras técnicas serão necessárias em todas as áreas. Ou seja, vamos ser geradores de idéias, talvez não diretamente, mas acredito que vamos estabelecer conexões com os ambientes acadêmicos onde as pessoas podem tomar essas idéias e seguir adiante.
Precisamos criar fatos novos na direção da reestruturação e da criação de uma cultura de paz. Mas de nada adianta criarmos grandes eventos se não tivermos firmeza por baixo. Nós mesmos temos que nos transformar, temos que ser capazes de ter uma linguagem comum, entendendo o que estamos fazendo. Isso vai desde a meditação em silêncio da manhã até o trabalho articulado nas diferentes direções, sem saltos, tudo isso interconectado. Está certo que é mais fácil conceber isso do que realizar. Mas, nós não realizamos se não tivermos a visão. E isso é tudo sem prazo.
6. Principais argumentos da reflexão sobre a cultura de paz
Dessa forma, olhamos o quadro geral onde localizamos isso que chamamos de responsabilidade universal. Daqui para a frente farei a exposição, ainda que de uma forma esquemática, dos argumentos principais que estão por trás dessas reflexões. Essas reflexões estão escritas num texto que vou depois oferecer para vocês, uma vez que aqui comentarei apenas sua estrutura de resumo.
Nós começamos examinando assim: a criação da experiência do mundo, essa que nós estamos vivendo fora dos referenciais de cultura de paz, produz resultados caóticos e ameaçadores. Esse é o argumento geral. Primeiramente, vamos duvidar. Ou seja, poderíamos perguntar (dentro da prática de pensar, contemplar e repousar): O que é que eu faria agora? Será que o problema do mundo é a falta de um referencial de cultura de paz?
A seguir, começamos a pensar, ou seja, começamos a encontrar exemplos. Quando olharem o texto, vocês vão encontrar vários exemplos para explicar isso. Mas o que é que eu estou explicando? Estou explicando que a criação do mundo fora dos referenciais de cultura de paz é uma loucura. Por quê? Porque então encontramos o argumento básico: todos nós buscamos a felicidade e queremos nos afastar do sofrimento. Esse é um argumento natural. Podemos aceitar intuitivamente isso, uma vez que todos nós, efetivamente, aspiramos obter a felicidade e nos livrar do sofrimento.
No budismo, no entanto, vamos dizer que não queremos simplesmente a felicidade ou a não-ocorrência do sofrimento. Diremos que buscamos a lucidez, a liberação, a transcendência do sofrimento. Sofrimento, dificuldade, alegria, felicidade, isso não é o ponto. Mas 100% dos seres aspiram à felicidade e querem se livrar do sofrimento.
Assim, Tcherenzig, o Buda da Compaixão, ouve isso de todos os seres: “Por favor, felicidade! Por favor, segurança frente ao sofrimento!” Então, Tcherenzig diz: “Ok, eu topo. Vamos começar por aí.” Por que ele diz isso? Porque não há nada no mundo que, refinando, não encontremos a natureza última. Então, vamos pegar a felicidade e a aspiração de segurança e vamos refiná-la. Quando refinamos, o que é que encontramos? Lucidez, espiritualidade. Por isso, qualquer coisa serve. Pegamos isso, e começamos por ali.
Por essa razão é que vamos falar de paz também. E esse é o ponto fundamental. No entanto, quando inicialmente se fala em cultura de paz, só conseguimos entender de uma forma muito grosseira. Por quê? Porque podemos pensar: “Bom, se todo mundo for bonzinho, eu vou viver bem. Se tudo estiver como eu quero do lado de fora, eu vou viver bem.” Essa é uma noção muito grosseira, mas se for preciso, podemos começar também nesse ponto.
No entanto, o que verdadeiramente vamos aprofundar nessa noção de cultura de paz é que as pessoas aspiram à felicidade, mas elas não alimentam as causas da felicidade. Então, esse é o início do nosso argumento. Se você aspira à felicidade, veja se aquilo que você está fazendo é causa de felicidade ou não. Então, nós vamos começar a raciocinar assim.
Mas, logo em seguida, vamos perceber que, porque aspiramos à felicidade, jogamos o lixo fora, por exemplo. Não queremos isso aqui, então, lixo! Queremos a facilidade geral. No entanto, mesmo aspirando à felicidade, sem nos darmos conta, começamos a agir de forma contraditória a isso que estamos esperando. Por que? Porque começamos a construir as causas do sofrimento. Temos que ter uma visão um pouco mais ampla, caso contrário, nossa busca pela felicidade só vai causar mais sofrimento. Se não tivermos esse cuidado, vamos obter resultados caóticos e ameaçadores porque não cuidamos das nossas ações. E, uma vez praticadas, não podemos controlar seus desdobramentos.
É como, por exemplo, deixar uma criança pequena dentro de casa, sozinha. Ela quer felicidade, quer se livrar do sofrimento, não temos a menor dúvida. Mas se não tivermos cuidado, ela vai explodir o botijão de gás, vai se cortar, acender fogo, derrubar a leiteira e pode até vir a morrer. Isso significa resultado caótico e ameaçador se não tiver lucidez. O que acontece com uma criança? Ela não sabe a conseqüência de suas ações, pois não testou ou refletiu sobre aquilo. Ela age de uma forma não-madura.
Assim, Tcherenzig, o Buda da compaixão, nessa abordagem, vai dizer: “Você age de uma forma não-madura, porque você quer obter um tipo de resultado, mas o que você faz não vai produzir esse resultado. Você está produzindo as causas do seu próprio sofrimento”. No texto a que me refiro vocês vão encontrar mais exemplos onde desenvolvo esse argumento usando muitas outras explicações.
Depois, entramos em outro ponto que já é uma maturidade em relação a esse primeiro ponto. Chegamos a uma conclusão, que é: no mundo, não existimos de maneira isolada. Existe a nossa natureza ilimitada e existe a nossa aparência de identidade no mundo. Entretanto, como estamos tratando sobre a responsabilidade universal, que é um ensinamento introdutório, nós não vamos falar sobre o aspecto absoluto dos ensinamentos, porque, nesse estágio, o que as pessoas querem é se livrar do sofrimento.
Então, vamos falar a um nível relativo, pois é nesse nível relativo que as pessoas conseguem compreender e em que a noção de cultura de paz faz sentido, pois estamos tratando da ação no mundo, e não sobre como as ações no mundo estão inseparáveis do mundo espiritual. Nós não vamos elucidar isso nesse momento, porque as pessoas não estarão com vontade de ouvir sobre isso. É como se, nesse momento, houvesse uma prioridade das pessoas mudarem seu comportamento, para somente depois poderem ter resultados melhores e, só então, entrarem no caminho espiritual, se acharem que é o caso. E é preciso que elas, na sua vida cotidiana, mudem o comportamento.
Vamos trabalhar com essa noção de rede, que também surge na ecologia. No entanto, na abordagem budista, vamos trabalhar com uma noção mais sofisticada do que na ecologia. Na ecologia se diz: todos os seres são interligados. Isso para nós não é suficiente, pois vamos dizer: todos os seres são inseparáveis. Essa já é uma visão de vacuidade, é uma visão profunda, mas que, nesta abordagem, tem uma aparência de simplicidade.
Desse modo, explicamos: “Você, como advogado, só tem sentido se tiver clientes”. Quem vai definir se alguém é advogado ou não, será alguém na sua frente e não a própria pessoa. Não podemos dizer simplesmente: “Bom, eu sou pai”, pois, se ainda não nasceu o filho, não existe o pai. Então, quem dá nascimento ao pai, é o filho. Isso significa co-emergência. Co-emergência é uma noção muito sofisticada no budismo, mas aqui ela aparece sem comentarmos muito. Nós surgimos inseparáveis uns dos outros. Surgimos juntos.
Por exemplo, quando a pessoa casa, o marido dá nascimento à uma pessoa que pode dizer: “Eu sou uma esposa”. E ninguém é esposa se não tiver um marido. Agora, modernamente, tem outras opções, mas se não tiver um casal, do jeito que for o casal, um é que dá nascimento ao outro na relação. Começamos a perceber que quando nos relacionamos com a nossa família, damos nascimento aos outros num sentido sutil. Nós reservamos lugares para eles. Esses lugares são muito importantes. Surgem muitos conflitos quando nós oferecemos mentalmente um lugar para uma pessoa, e a outra pessoa não está aceitando aquele lugar, ela está demandando um outro lugar. Então, temos uma dificuldade de comunicação, uma desinteligência.
Esta questão dos nascimentos ou das relações é completamente fundamental. Vamos esquematizar isso da seguinte forma: Se nós desejamos a felicidade e nos afastar do sofrimento, é essencial que desenvolvamos uma relação positiva conosco mesmo. O que não é fácil! Freqüentemente sabemos o que deveríamos fazer para o nosso bem, mas não fazemos. E também sabemos o que não deveríamos fazer, mas continuamos fazendo. Então, geralmente, não nos tratamos muito bem.
Depois, na relação com as outras pessoas, é evidente que, se estabelecermos relações positivas, nossa vida melhora. Se estabelecermos relações negativas, por onde andarmos encontraremos pessoas que vão nos bloquear. Então, é essencial também que estabeleçamos relações positivas com os outros.
Mas não é só isso. Precisamos, do mesmo modo, estabelecer relações positivas com o poder público, com a sociedade organizada, com os grupos humanos. Por exemplo, com o poder público, no Brasil, isso é essencial, pois quando agimos mal em relação às leis, podemos ter problemas graves, mesmo que tenhamos muito poder. Depois que surgiu o Ministério Público, os Tribunais de Contas, e a atuação recente da imprensa, ninguém que ande errado consegue mais dormir tranqüilo.
E por fim, precisamos desenvolver relações positivas com o ambiente natural, com a biosfera, com os outros seres. Se não desenvolvermos relações no mínimo estéticas com o ambiente, adoecemos. Temos que desenvolver, no mínimo, uma relação de coração. Se não somos capazes de olhar, contemplar, achar bonito, se alegrar, com as plantas, com as florestas, com os cursos d´água, etc., já somos vivos pela metade. Mas precisamos de muito mais do que isso. Se aspiramos a felicidade, deveríamos entender que somos parte do ambiente. Se destruímos o ambiente, morremos junto também. Não há possibilidade de um fígado ou um cérebro viver sozinhos. Somos um organismo, estamos juntos.
Assim, surge todo esse raciocínio. Iniciamos com a noção de que, fora de uma cultura de paz, produzimos resultados caóticos, como uma criança solta dentro de casa. Agora, precisamos saber quais são os referenciais de uma cultura de paz. Então, descobrimos que o ponto crucial são as relações. Relações conosco, relações com os outros e relações com os grupos humanos constituídos, que pode ser, por exemplo, as autoridades, ou chefes locais de uma determinada região ou bairro. Vocês não pensem que esse poder não é importante. Toda autoridade constituída de alguma forma, seja legítima ou não, ela existe. Então, a nossa relação com os grupos é essencial. Precisamos entender isso.
Também nos relacionamos com os grupos quando nos utilizamos das placas de sinalização, das linhas de eletricidade, das linhas de telefone, enfim, quando nos utilizamos de todos esses equipamentos que servem a todos nós. Temos uma humanidade organizada. Isso faz toda a diferença. Assim, a forma como nós nos relacionamos com os orelhões, por exemplo, é crucial. Há pessoas que depredam e elas vão ter problemas. Do mesmo modo, há pessoas que depredam as florestas, os rios, e todos vamos ter problemas por causa disso.
A seguir, vem um terceiro argumento. Esse terceiro argumento é a constatação de que nós já estamos numa cultura de paz. Vejam que agora estou invertendo essa argumentação. Para isso, vou utilizar alguns outros argumentos para explicar que, se temos o mínimo de satisfação hoje, é porque nós já estamos em uma cultura de paz. Eu começo a examinar como essa cultura de paz já está operando.
Por exemplo, fomos acolhidos por nossas mães. Fomos cuidados, educados, alimentados. Passamos por um longo período - muitos anos - sem nenhuma autonomia. Teve alguém que olhou para nós e considerou que éramos mais importantes do que o seu tempo livre, do que o seu descanso, do que o seu estudo, do que as suas férias, e se dedicou a nós. Dedicou-se a fundos perdidos. Então, vamos analisar a noção de compaixão como um diferencial disso.
A compaixão é crucial porque ela representa uma capacidade nossa de ultrapassar o foco em nós mesmos e olharmos para o outro. Como a história dos três leões que protegeram uma menina de doze anos. Eles empataram seu tempo ficando doze horas cuidando de uma menina. Esse fato ocorreu assim: na Etiópia, havia sete homens batendo em uma menina de doze anos, querendo forçá-la a casar com um deles. Ela chorava muito. Aí três leões vieram da floresta e afugentaram os homens e protegeram a menina por doze horas. Quando chegaram pessoas de bem, os leões foram embora. Os leões podiam ter aproveitado, podiam ter almoçado. Mas eles esperaram por doze horas, ficaram ao redor dela. Não é espantoso isso?
Então, vamos olhando essa questão e vamos encontrando aqui e ali exemplos extraordinários. Nós já estamos dentro de uma cultura de paz. Nossos pais não nos cuidaram por doze horas, nos cuidaram por vinte, trinta anos. Um longo tempo! E eles não apresentam a conta. Eles nos alimentaram, pagaram internet, eletricidade, telefone, festas, cinema, tudo. E podiam apresentar a conta: “Olha, eu anotei tudo, o Tribunal de Contas já examinou, não há nada superfaturado, está tudo perfeito. Você não é obrigado a pagar imediatamente, mas você poderia pagar mensalmente uma pequena quantia. Não vou cobrar um juro extorsivo, mas no mínimo uma poupança. Se eu tivesse esse dinheiro agora, eu teria uma situação bem mais tranqüila. Então, é justo que você vá pagando: você ainda está jovem e a minha energia já está diminuindo.” Mas ninguém apresenta essa conta. Por quê? Porque a alegria dos pais é ver a alegria dos filhos.
Quando estabelecemos relações positivas, nos alegramos com essas relações e essa é a base de uma cultura de paz. A relação positiva não é penosa, é a nossa razão de viver. Se buscamos a felicidade e buscamos nos afastar do sofrimento, as relações positivas são o que buscamos. Então, nos damos conta disso e acontece um clique assim: “Uau! Não é o que eu acumulo para mim, mas é o que eu ofereço – isso é o que produz a felicidade, produz a alegria!” Nós nos damos conta de que afinal é isso o que os pais fazem e sempre fizeram. Está aí o segredo.
Essencialmente, o que vamos entender é isso: quando estabelecemos relações positivas, nos tornamos felizes. Para isso, tem uma série de argumentos: vou lembrar, por exemplo, não só dos pais, mas também dos santos. Eles se dedicam a ajudar os seres com uma energia muito grande. Neste caso, tem um aspecto muito importante que é o mérito, onde aprendemos que no mundo, mesmo o processo econômico, funciona assim. Por exemplo, se eu não tenho nada de bom efetivamente para oferecer para o outro, eu vou afundar economicamente. Mas se o meu trabalho é bom, se consigo beneficiar o outro através do meu trabalho, é provável que eu tenha um funcionamento econômico positivo.
Assim, começamos a examinar isso para trazer essa convicção de que, se as coisas ainda funcionam minimamente, é porque temos, no mínimo, 80% de cultura de paz operando. Nós temos uma base de cultura de paz. Seria maravilhoso se começássemos a valorizar o que temos e a estimular, estabilizar e solidificar o que já está presente. Então, o terceiro item seria esse: nós deveríamos acordar para a cultura de paz que já está operando. Não devemos ficar dominados pela sensação de que estamos no meio de uma batalha de forças negativas e de lutas. Não. Nós já estamos dentro de uma cultura de paz. Isso é a base da nossa sociedade, ou melhor, de qualquer sociedade.
Complementando essa análise, podemos lembrar, por exemplo, que os vírus não estabelecem uma cultura de paz. Eles produzem uma desorganização que termina por fazê-los desaparecer também uma vez que eles matam o hospedeiro. Então, podemos pensar assim: “Os grupos armados em periferia urbana vão construir alguma coisa ou não?” Eventualmente, eles podem se manifestar como um exército de libertação, criando fronteiras. Mas eles vão ter que construir uma cultura de paz dentro dessas fronteiras, porque eles vão ter que funcionar. Eles precisarão de comida, saúde, escola, etc. Como eles vão fazer isso? Vão ter que estabelecer ligações.
Apesar de serem completamente explosivos e dinamitadores, os rebeldes e revolucionários de diversos países foram obrigados a estimular uma cultura de paz, senão o país não se sustentaria. Em várias nações aconteceu isso. Os guerrilheiros, que matavam e explodiam, depois assumiam o governo. Quando isso acontecia, a atitude deles mudava.
Se vocês examinarem o estabelecimento do Estado de Israel, o que se vê é a luta contra o poder constituído, que era o dos ingleses. E era uma luta desse tipo, uma luta clandestina contra os ingleses. Muitos desses chefes de guerrilha depois se tornaram dirigentes do Estado de Israel. E hoje eles combatem a guerrilha palestina – e acusam: vocês são monstros, vocês explodem – mas eles faziam isso no passado também. Aí, quando a guerrilha palestina assumiu o poder no seu Estado, eles não quiseram mais saber de bomba. Eles querem cultura de paz. Então, essas transições vão ocorrendo e é natural que elas aconteçam. Se não ocorrer essa mudança, eles serão apenas predadores que vão destruir, arrasar tudo e vão embora, porque não conseguem se manter.
Conclui-se, então, que um grupo, uma sociedade, só consegue se manter porque há uma cultura de paz. Mesmo na periferia urbana, por exemplo, no Coque, às vezes os filhos dos chefes do tráfico estão na escola. Ou seja, os pais e as mães aspiram que eles desenvolvam aptidões dentro de uma cultura de paz.
Então, nessa etapa, nós precisaríamos acordar para isso e entender qual é o aspecto sutil. O aspecto sutil é essa habilidade pessoal de entendermos que a relação positiva é a fonte da felicidade e da alegria. O que importa não é o quanto acumulamos, mas o quanto estabelecemos de relações positivas. Um exemplo disso é a nossa relação com as crianças, nossos filhos: nos alegramos em ajudá-los; olhamos para essa alegria e vemos que é uma energia que brota. E vemos que isso ocorre também em relação a outras pessoas, não a todas, mas a algumas outras. Mas, podemos expandir, não há limites. Basta incluir o outro e isso acontece.
Assim, contemplamos quais são os elementos desta cultura. Neste momento ainda não vamos detalhar os ensinamentos budistas sobre essa cultura de paz (que seria a estrutura exposta no Quadro dos 200 itens). Mas, agora, uma vez que acordamos, nos perguntamos: “O que é uma ação correta no mundo? O que é uma ação dentro de uma cultura de paz?”
A resposta que nos brota é que todos nós temos a compaixão no mundo, como os bodisatvas. O bodisatva nasce quando ele entende que trazer benefício aos outros é o verdadeiro significado do viver. Essa compreensão sustenta a energia dele e produz os méritos para que tudo ao redor o ajude. Produz satisfação, felicidade. E é desse modo que ele se move no mundo. O bodisatva descobre também que essa compreensão, essa energia, não é apenas dele. Não foi ele quem a descobriu. Ela já existia, pois, nas gerações anteriores, outros a usaram. E nesse momento não é somente ele quem a manifesta. Muitos usam. E mesmo descobrindo isso, ele não vai dizer: “Eu sou o máximo!”. Ele vai se dar conta de que há uma coletividade de seres que agiram e agem desse modo. Ele ganha humildade e não orgulho.
O bodisatva se dá conta de que muitos outros seres manifestam essa compaixão, não apenas os seres humanos. Vamos encontrar compaixão existindo entre os animais. Todo dia vemos exemplos novos disso, como aqueles três leões que protegeram a menina, os cachorros que defenderam crianças de outros cachorros, os golfinhos que protegeram os surfistas de tubarões... Então, temos a análise do surgimento dos bodisatvas.
Em seguida, vem a noção da ação pessoal lúcida no mundo, a qual vai incluir essa visão que eu estava descrevendo. Temos o detalhamento prático da ação no mundo: o que fazer e o que evitar. Tomando o Quadro dos 240 itens, nós examinamos como as ações produzem carma, e seus efeitos devastadores. Os 240 itens se referem a ações que são causas de sofrimento, as quais deveríamos evitar. Deveríamos evitar, não porque alguém nos disse, mas porque pensamos, contemplamos e nos damos conta de que todas elas produzem efeitos devastadores. Então fica claro: nós não vamos praticar essas ações porque alguém nos diz para não fazermos. Entendemos efetivamente que temos carmas que, por descuido nosso, nos conduzem a essas ações. Entendemos que, se praticarmos essas ações, elas fatalmente produzirão sofrimento. Assim, analisamos com cuidado tudo isso.
Essa é uma etapa do treinamento budista, onde examinamos isso com muito detalhe. Entendemos como surge o carma nessa vida e na vida seguinte. E também como é que ele já surge antes da própria ação, porque antes de praticarmos a ação, já estamos validando que ela seja praticada. Ou seja, o carma já está atuando. Temos vários níveis de ação e de resultado e estudamos isso com cuidado. Assim, vamos ter esse detalhamento prático da ação no mundo: o que fazer e o que evitar. E por que é que introduzimos esse detalhamento prático da ação no mundo? Porque estamos ajudando as pessoas a nascerem. Nós deveríamos explicar para elas o que fazer e o que evitar, e o porquê. Então, elas deveriam pensar, contemplar e repousar para saber isso, para trazer isso da sua própria experiência.
Assim, a partir disso, nós começamos a aprofundar um por um desses itens. Nesse momento surge a estrutura dos ensinamentos budistas que vai descortinar as Quatro Nobres Verdades, os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente e o Nobre Caminho de Oito Passos. Nós entraríamos nessa estrutura. E ao final, vamos ver o aspecto sutil da cultura de paz que é chamado “a mandala da cultura de paz”. Essa mandala da cultura de paz é quando esse ensinamento que estamos produzindo para ajudar as pessoas a nascerem se funde com o próprio ensinamento que usamos para nascermos. É um ensinamento mais sutil.
Então, esse é o final desse processo, onde se estabelece esse ambiente onde nós vemos esses vários itens.
7. O diferencial da abordagem da Mandala
Um ponto importante que tenho utilizado - e que acredito ser uma abordagem interessante, pelo menos para raciocinarmos nessas questões todas – é a abordagem da mandala. Pelo seguinte: vocês já devem ter observado que, para algumas pessoas, se comportar de uma forma ética pode parecer natural. Já para outras, o comportamento ético pode parecer muito difícil, muito pesado. Então, começamos a examinar qual é a razão disso. Aprofundando, vamos ver uma coisa surpreendente. Veremos que para alguns, em certos momentos, é fácil manifestar um comportamento ético, e em outros momentos, não. Para outros, que têm dificuldade de serem éticos, eles também têm os seus momentos em que se manifestam de uma forma ética, elevada. Vemos que isso também é possível.
Assim, começamos a abandonar a noção de que há pessoas que são éticas e pessoas que não são. E começamos a entender que dentro de nós, às vezes surge uma tendência de um tipo e, às vezes, de outro tipo. Quando, por exemplo, temos uma tendência negativa, o comportamento ético fica completamente teórico e difícil de ser aceito. Isso não quer dizer que, uma vez que nos comportemos de uma forma não-ética, nós não vamos ter problemas depois. Certamente teremos problemas. Mas, ainda assim, nos parece que deveríamos nos comportar de uma forma não ética. Parece-nos que seria mais inteligente.
Noção de paisagem
Desse modo, vamos estudando e observando isso no comportamento em geral. Na perspectiva budista, isso pode ser explicado pela visão de mandala ou visão de paisagem. Quando estamos em uma paisagem – que é quando concebemos a nossa experiência de mundo de um certo jeito - o comportamento ético é natural. Quando descrevemos nossa experiência de mundo de um outro jeito, o comportamento ético é improvável. Então, é isso que eu vou chamar de mandala.
De um modo geral, esse aspecto de mandala não é contemplado pelas outras abordagens. O que é utilizado é o aspecto de esforço – ou seja, nós deveríamos fazer um esforço para criar as ações positivas e um esforço para evitar as ações negativas. Mas esforço significa que já estamos na mandala equivocada, porque nosso impulso é fazer a ação negativa e não a positiva. Por isso é que precisamos de esforço para fazer a ação positiva e esforço para não fazer a ação negativa. Na verdade, esse ensinamento se dirige a pessoas que estão em uma mandala equivocada. Como refletimos acima, a mandala natural é a mandala da cultura de paz.
Desse modo, entendemos que não precisamos inventar nada. É preciso apenas que as pessoas retornem para a mandala que sustenta o planeta, que sustenta tudo, e é a única mandala viável. Não só é a única viável, como também é a única que produz a felicidade. As mandalas não-éticas produzem complicações e como elas são todas surgidas por um auto-centramento - onde se trabalha para si em detrimento dos outros - nunca vamos ter felicidade. Porque a felicidade só vai ocorrer por compaixão, por amor, por afeto, que são as qualidades de relação e não de isolamento.
Vamos percebendo que o ponto essencial é recuperarmos a noção de mandala e desenvolvermos o meio hábil de – justo porque queremos que tudo ande bem – nos colocarmos na mandala onde o comportamento é “naturalmente positivo, sem esforço”. Esse é o diferencial. É por isso que vamos falar sobre esse nascimento, essa qualidade de existirmos na mandala.
Agora, quando levamos essa abordagem um pouco adiante, vamos ficar um pouco desolados porque vamos entender que, dentro do nosso mundo, não foi previsto lugares positivos para um grande número de pessoas. Ou seja, as pessoas não foram introduzidas nessa visão mais elevada e não há lugar aonde a pessoa possa se manifestar e existir ali dentro. Ela não vê essa possibilidade e ninguém ao redor dela vê também.
Quando estava viajando agora no trecho São Paulo/Rio de Janeiro – ao meu lado sentou um estudante de medicina. Eu perguntei para ele: “Por que é que tu fizeste medicina?” E ele respondeu: “Meu pai é medico, tenho tios médicos, cunhados médicos”. Então, o que é que acontece? Porque há pais médicos, cunhados médicos, irmãos médicos, quando ele olha o mundo, ele olha com o olho que naturalmente compartilha a visão dos outros. Então, ele é introduzido na mandala da visão dos outros, que é a mandala ao redor dele. Dentro dessa visão ele aprende a se ver também ocupando um lugar ali dentro. Assim, é muito mais fácil para alguém que já tem médicos na família, surgir como um médico também. Alguém olha para ele com esse olho. E ele aprende a olhar a realidade também com esse olho.
Eu me lembro - meus pais eram advogados e tantas vezes eu os ouvi aconselhando os clientes, que às vezes eu mesmo dava consulta. Para mim seria muito fácil se eu quisesse seguir como advogado. Mas eu tinha uma irmã engenheira. E aí foi também fácil estudar física, porque eu muitas vezes conversei sobre física e matemática com ela. Eu tinha essa especial conexão com ela e isso foi fácil para mim. Então, alguém antes olhou e abriu essa possibilidade. Alguém viu, me mostrou e eu me vi lá dentro.
Agora, vocês olhem para a periferia urbana – quem é que sabe abrir o caminho para alguém, se eles sequer abrem um caminho para eles mesmos? Então, eles estão ali e eles abrem o caminho que eles conhecem. Mas, quais são os caminhos que eles conhecem? Como é que eles dão nascimento social a uma criança que nasce ali dentro? Vão ser os pais e a comunidade que vão dar esse nascimento. São raras outras possibilidades de nascimento. Os lugares que estão previstos ali é o de um “voador” para levar drogas ou de um “soldado do tráfico”. Esses lugares são remunerados, eles sabem quanto vale e sabem como administrar isso. Eles estão vendo o tempo todo. No entanto, é muito mais improvável eles verem alguém se formando, estudando até o fim, entrando na faculdade, pagando suas contas, conseguindo profissionalmente se estabelecer. Isso não é fácil. Não é fácil com os nossos filhos! Nós vemos que se estabelecem mandalas onde não há lugares elevados para essas pessoas.
E vamos encontrar esse paradoxo, como, por exemplo, dentro das FEBEMs, onde os meninos podem estar bem, felizes, tocando instrumentos, como eu visitei em alguns lugares. No entanto, quando eles saem e voltam para o ambiente de onde vieram , qual é o espaço de possibilidades de ação que eles vêem? Ou que as famílias vêem? Ou que os amigos vêem? Eles vêem o mesmo espaço anterior. E eles vão ocupar aquelas antigas funções, vão reincidir e retornar à FEBEM.
Sem culpa ou culpados
Essa visão de mandala é importante porque também tiramos o aspecto de culpabilidade pessoal. Mas também não precisamos aceitar que o outro esteja agindo correto, que é a única opção dele. Nós entendemos que não é a única opção, mas também entendemos que ele não é um monstro. Olhamos para dentro de nós e vemos: “Se eu estivesse numa mandala desse tipo, dentro dessas possibilidades, eu terminaria fazendo alguma coisa negativa. Já se eu estivesse dentro de uma outra mandala, positiva, que se abriu para mim, eu faria coisas positivas como eu aspiro”. Mas essas pessoas não têm esses lugares.
Desse modo, essa visão de mandala nos permite uma linguagem onde entendemos isso. Nós abandonamos a noção de que há seres que vamos considerar “culpados”, que vamos classificar exatamente suas ações, condená-los e deixá-los presos, como se essa atitude fosse alguma coisa que pudesse resolver o problema. Dessa forma, podemos entender melhor a noção de justiça restaurativa, por exemplo, onde o que se faz é abrir um espaço para essa pessoa recompor as relações de forma adequada e agir de uma forma apropriada dali em diante. Então, a tarefa principal do juiz deveria ser essa.
Quando uma pessoa comete uma infração, o ponto central da justiça comum é saber se ela fez ou não fez a ação e caracterizar de tal forma que ela possa ser punida, se ficar provado que ela a praticou. Na proposta da justiça restaurativa, o ponto central é pacificar a relação entre a pessoa que se sentiu prejudicada e o outro que está sendo acusado. Então, se for possível pacificar isso de alguma maneira, eles criam um tecido social positivo entre eles. Essa justiça restaurativa tem como foco aquele que foi prejudicado, a vítima. Ou seja, como recompor aquele dano que foi feito sobre ele?
Acolhimento – dar nascimento elevado dentro de um grupo
Então, a base de nossa ação vai ser utilizar esse processo de nascimento elevado dentro de uma sanga, dentro de um grupo, de modo que a pessoa tenha um espaço positivo. Nós vamos considerar que o número de pessoas que, tendo espaço positivo, não os vão ocupar, é muito menor que o número de pessoas que não tem essa opção. Se pudermos fazer isso, seria um grande passo.
Naturalmente, vamos encontrar pessoas que não estão no “nível zero”; elas estão no nível “quatro zeros”. Por exemplo, encontraremos pessoas com as quais não poderemos conversar como eu estou conversando com vocês, porque elas não têm interesse ou têm aversão. Ou elas consideram que estão nessa sala apenas para ver como elas vão abrir a porta e sair correndo. Ou estão só pelo lanche ou só porque daqui a duas horas elas vão passar para o jogo de futebol. Elas não vão raciocinar coisa alguma. Se você olhar para elas, os olhos delas reviram de um lado para outro o tempo todo. Elas estão no nível “dois zeros”. Elas não estão no início ainda porque, para iniciar, a pessoa tem que aspirar a felicidade e aspirar se livrar do sofrimento (que eu chamo de “ponto zero”). E se você falar de felicidade e sofrimento, a pessoa não tem registro, aquilo não faz sentido para ela. A pessoa tem uma intranqüilidade interna. É como a maior parte das pessoas na aula de matemática: o professor está lá falando e a pessoa está em qualquer outro lugar, menos ali. Ou como eu na aula de legislação! É difícil focar aquilo.
Vocês vão encontrar ainda pessoas que estão numa situação mais difícil, porque elas podem estar afetadas na saúde, na sua segurança ou afetadas porque estão com fome ou doentes. Vocês vão encontrar pessoas que não têm inserção. Não só não tem inserção positiva, como não tem inserção alguma. Não tem lugar. Ou seja, não tem acolhimento, não tem nascimento. Se você perguntar: “Quem é você?” a pessoa não vai ter o que dizer. No máximo, ela dirá: “Olha, meu nome é tal”. Talvez não tenha nem carteira de identidade. Mesmo que tenha documentos, se você perguntar: “Sim, mas o que você faz? O que você sabe fazer? Do que você gosta?” A pessoa tem dificuldade de falar. Essas pessoas estão no nível “quatro zeros”.
Como essa pessoa vai se conectar? Se a pessoa tiver que falar sobre si mesma num grupo, ela tem medo, porque ela vai se sentir inferiorizada. Ela já estará suando frio mesmo antes de falar. Mas se não somos acolhidos dentro de um grupo, nós existimos como? Só existimos em processos de relação. No entanto, tem pessoas que sentam num grupo e suam frio. Elas não conseguem se manifestar. Elas só têm existências individuais, elas não estabelecem relações positivas. Só manifestam pensamentos caóticos e negativos. E existe uma vasta quantidade de gente nessa condição.
Nós precisaríamos, de alguma maneira, poder chegar nessas pessoas todas. Vamos lentamente precisar fazer a pessoa nascer num grupo, mesmo que esse grupo seja muito simples. Pode ser um grupo de qualquer coisa, mas um grupo. Porque nós só existimos em grupo. Quando sentamos em roda, pode parecer espantoso, mas aquela cadeira que ocupamos estava vazia para que nós pudéssemos sentar. Do ponto de vista físico, isso já é um acolhimento. Tem todo um círculo de dezenove pessoas e a vigésima senta.
Ainda assim, a pessoa poderá ser acolhida ou não. E ela precisaria ser acolhida. Mas, como é que vamos produzir a sensação de acolhimento? Quando a pessoa pertence a um grupo onde todas as pessoas se entendem, onde há uma linguagem e objetivo comuns, ela passou a existir. Ela vai retornar para aquele lugar sempre. Então, isso é uma coisa importante. É preciso trabalhar isso. Existem formas de se trabalhar esse processo de dar nascimento, fazer tudo isso andar lentamente. Poderíamos pensar que sentar em roda, em um círculo não teria nada a ver com o budismo. Mas isso tem tudo a ver com os ensinamentos budistas. Está dentro de uma linha que vai nos levar bem mais adiante, etapa por etapa. Mas precisamos de uma “etapa zero”.
Etapa zero é quando aquela pessoa chega e de alguma maneira vai fazer parte daquele grupo. Tem algumas pessoas que não conseguem se apresentar. Eu presenciei essa técnica maravilhosa que o Guinho usou lá no sul, onde a pessoa, quando vai se descrever, ela não descreve a si mesma. A regra é essa: não falar de si. Fale de um personagem que não é você. Porque a pessoa, quando vai falar de si, fica séria demais. Assim, a pessoa fala de alguém que ela não é. Essa é a regra. Ela diz: eu sou um artista de Hollywood. Eu sou um surfista de Santa Catarina. Ela não está falando de si, porque essa é a regra. No entanto, espantosamente, quando nós não falamos de nós, ainda assim estamos falando de nós. Mas isso a gente não explica, fica em segredo.
Eu lembro que a Fabiane, num desses trabalhos de periferia lá em Porto Alegre, sentada num desses círculos, se apresentou assim: “Eu sou uma formiga”. Então, aquilo foi um sucesso. Os meninos todos ficaram felizes com aquilo. Os outros começaram: eu sou tal coisa. Aquilo fez correr a energia. Mas, naquele momento, quando um menino estava se apresentando dentro de um teatro do absurdo, ele de fato está se apresentando. Ele foi aceito. Quando ele se levantou, todo mundo cessou de falar. A pessoa surgiu no grupo, ela teve um nascimento.
Criação da teia social
Então, tem uma etapa que vai desde esse ponto até o ponto que se funde também com o trabalho de construção da teia humana, que foi conduzido pelo Valença. Eu achei maravilhoso. Está certo que esse não era o objetivo principal do método do Valença, mas que pode ser utilizado facilmente nesse sentido. Funciona assim: depois que todo mundo se apresentar como formigas, baratas, ratos, ou seja, lá o que for, tem um momento em que nós vamos trabalhar em duplas. Por exemplo, o Luís e a Flori. Um vai contar para o outro experiências positivas e marcantes da sua vida. A Flori conta para o Luís e o Luís conta para a Flori. Podemos pensar: “Isso é só uma informação”. Mas não! Porque naquele momento nasce um amigo muito íntimo.
Por exemplo, se tiverem trabalhando com crianças excluídas, é possível que talvez nunca alguém tenha parado na frente deles e ouvido o que eles têm a contar sobre suas experiências extraordinárias. E isso acontece muito dentro de uma região de periferia. Um fala e o outro depois conta para ele as suas experiências. Quando eles passarem na rua no dia seguinte ou no mês seguinte, eles têm um segredo entre eles. E esse segredo é positivo, não é um segredo negativo. Então, um dá nascimento ao que o outro têm de melhor. E vice-versa. Desse modo, nós começamos a criar essa teia. Esse é um ponto um pouco adiante.
Depois, esses dois se separam e cada uma vai se encontrar com outros três que são diferentes. Aí os quatros conversam entre si. Ou seja, aumenta o número de parceiros. A pessoa descobre que ela pode contar não apenas para um, mas pode contar para os outros. Depois, esses quatros contam para uma assembléia grande. Então, a assembléia inteira vira a família. Nós não estamos numa etapa zero ainda, mas estamos numa etapa de nascimento positivo. Estamos criando uma teia positiva.
Construção de um sonho compartilhado
A seguir, um pouco mais adiante, vamos nos reunir também dois-a-dois e vamos ver como aquilo que é a minha experiência mais elevada poderia ser sustentada hoje no lugar onde eu vivo. Como eu poderia fazer para manter essa experiência positiva ou repeti-la muitas vezes? Assim, um conta para o outro. E começamos a sonhar. Até então, nós ainda não acreditávamos que era possível sonhar. Aí, somos convidados a sonhar. Ninguém está explicando isso, mas é isso que nós estamos fazendo. Vamos sonhar a partir de uma coisa positiva. Um conta para o outro, depois em grupo de quatro e por fim, os sonhos da assembléia.
Nessa assembléia, nós precisamos chegar a um ponto onde tenhamos um sonho em comum. Quando temos um sonho em comum, isso não é apenas um sonho. Tem uma energia junto. Todo mundo tem a energia daquele sonho comum. E como foi trabalhado direito e representa as pessoas, dizemos: “Vamos fazer isso? Podemos ou não podemos fazer isso?” Aí vemos que podemos realizar o sonho. Quando dizemos “nós podemos fazer isso”, nós temos agora um propósito comum que define a nossa vida. Ou seja, nascemos na comunidade, temos uma comunidade e temos um propósito de ação. Temos um nome. Nós encontramos os outros e dizemos: “E aí, você fez aquilo? Eu estou fazendo isso.”
Então, começamos a existir socialmente. Nesse ponto, isso é considerado o “ponto zero”. Você não começou ainda. Por que é que é o ponto zero? Porque nesse momento nós precisamos definir se aquele sonho em conjunto tem valor realmente ou não. Ou seja, antes de nos colocarmos em marcha, vamos examinar se isso está dentro dos valores que vão produzir felicidade e ultrapassar o sofrimento, etc. Ou se vão ser sonhos que vão produzir complicações e problemas. Nós já vimos muitas coisas serem feitas que trouxeram problemas.
Nesse estágio, começa o ponto zero, que é o ponto da “responsabilidade universal”. Nós precisamos que aquilo seja bom para nós, bom nas relações, bom com os grupos humanos e com a natureza. E segue uma etapa muito importante que é a conexão com o poder público. Porque se o poder público estiver por trás e aquilo estiver organizado, vamos dizer para as pessoas: isso é mérito. Quando conseguimos nos organizar e filtrar isso a esse nível, vocês podem ter total certeza de que vocês vão ser apoiados. Aí nós trabalhamos: poder público e comunidade. Fazemos o que for preciso fazer. Nesse momento, as pessoas estão no “nível um”. Elas entraram no processo de transformação das suas vidas, elas construíram realidades, criaram teias entre elas e já estão raciocinando em termos de valores. Resta apenas a “purificação” desses valores. Purificar esse processo todo. Isso, em geral, é o mecanismo onde nós vamos trabalhar a noção de responsabilidade universal.
Texto extraído da palestra proferida pelo Lama Padma Samten, no CEBB-PE, em Recife, no mês de junho de 2005.
(Transcrito por João Vale, revisado e editado por Floridalva Cavalcanti, em fevereiro de 2006)