Conteúdo
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Tabela de conteúdos
- Comentários do Lama Padma Samten sobre o Texto de Gyatrul Rinpoche
- 1. Contextualização e apresentação do método de estudo do texto Iluminação da Sabedoria Primordial
- 2. Explicação geral do texto, relacionando com o Roteiro de 21 Itens
- 2.1 Seis bardos
- 2.2 Silêncio como prática da lucidez
- 2.3 Fundação ou Motivação
- 2.4 Quiescência ou Shamata
- 2.5 Sabedoria Primordial
- 3. Conteúdo do texto: comentário parte a parte
- ANEXO – Roteiro de Meditação – 21 Itens
Comentários do Lama Padma Samten sobre o Texto de Gyatrul Rinpoche
Comentários do Lama Padma Samten ao texto Iluminação da Sabedoria Primordial, em contexto com o Roteiro de 21 Itens do CEBB
Retiro no CEBB Darmata, conduzido pelo Lama Padma Samten, de 25 de fevereiro a 1º de março de 2011.
Transcrição de Guilherme Erhardt e revisão de Floridalva Cavalcanti, Jeanne Pilli e Luciana Valle.
Revisão final de Ieda Estergilda de Abreu.
1. Contextualização e apresentação do método de estudo do texto Iluminação da Sabedoria Primordial
Estaremos reunidos nesses dias para estudar e praticar segundo o texto chamado Iluminação da Sabedoria Primordial (Anexo 2), que irei descrever e comentar. Esse texto é muito importante porque originou nosso Programa/Roteiro de 21 itens (Anexo 1), que é a “coluna vertebral” de todas as atividades do CEBB e também dos retiros. As pessoas que estão em retiro por alguns dias, semanas, meses ou anos, estão seguindo essencialmente detalhes desse programa. Nosso programa de formação dos facilitadores também está estruturado a partir do Programa/Roteiro de 21 itens, que se origina desse texto.
Iluminação da Sabedoria Primordial, do grande mestre Gyatrul Rinpoche, é um comentário oral ao ensinamento raiz de seu mestre, Dudjom Rinpoche, que foi um dos mestres de S.S. Dalai Lama e de Chagdud Rinpoche, que é meu próprio mestre. Dudjom Rinpoche, por sua vez, está reproduzindo um ensinamento que é de Guru Rinpoche, considerado o Buda que originou o budismo tibetano. Quando fazemos a Prece das Sete Linhas, evocamos a experiência de Guru Rinpoche, estabelecemos a conexão com ele. Esse texto trata de como podemos atingir a realização a partir da meditação em silêncio. E traz as preliminares, os detalhes todos, os vários tipos de meditação que se pode fazer dentro do próprio silêncio.
Para mim é uma oportunidade muito feliz novamente poder dedicar esses dias do retiro um pouco mais longo para examinar o texto, estudá-lo linha a linha, ouvir as explicações e também fazer as práticas.
Ainda que o programa do retiro esteja baseado no texto, vou ultrapassá-lo, entrarei nos detalhes dos detalhes desse conjunto de ensinamentos, que já caracteriza o nosso Roteiro de 21 Itens. Vai ser essencialmente um ensinamento sobre o texto Iluminação da Sabedoria Primordial, com os detalhes que já estamos utilizando nas nossas práticas. À medida que vamos praticando, obstáculos vão surgindo e sendo resolvidos, e isso vai se tornando o detalhamento da própria prática.
Primeiramente, explicarei o método que usarei para estudar e praticar. Utilizarei um “método circular”, falo sobre tudo uma vez, depois falo de novo e de novo, com mais e mais detalhes. Vou explicar porque faço assim. Acabei de explicar como vai funcionar todo o retiro; então, temos uma ideia, precisamos dessa ideia geral.
Em primeiro lugar, explicarei o texto todo, cada bloco e o que eles contêm. Assim geramos uma ideia geral sobre o ensinamento. Quando estivermos estudando uma parte do ensinamento e começarmos a aprofundar, já teremos uma noção do conjunto. E não distorcemos. Quando não temos uma ideia do conjunto e estudamos uma parte, parece que aquela parte é tudo. Por isso, é importante ter uma noção do conjunto para podermos valorizar cada parte dentro do contexto do ensinamento. Eis a razão pela qual vou utilizar o método circular. E essa explicação já faz parte do método, pois estou contextualizando tudo. Depois, procurarei aprofundar cada conteúdo já contextualizado em um aspecto um pouco mais amplo.
Inicialmente, explicarei o conteúdo do texto, sem ler os detalhes, apenas para desenvolvermos a ideia geral. Depois, farei a leitura linha a linha, junto com vocês, momento em que explicarei com mais detalhes. No período da tarde, teremos o detalhamento da prática, como pegamos o que estudamos e transformamos numa prática. Na sequência, junto com o ensinamento e com a prática, vou explicando mais detalhes do conteúdo desse ensinamento.
2. Explicação geral do texto, relacionando com o Roteiro de 21 Itens
O título do texto Iluminação da Sabedoria Primordial significa: sabedoria primordial apresentada de forma clara. Vamos produzir “luzes, clareza” sobre o que se chama sabedoria primordial.
A expressão “sabedoria primordial” é algo muito profundo, especialmente quando falamos sobre a linhagem Nyngma. Acredito que muitos de vocês já ouviram falar da vacuidade. Nós já estamos conectados de algum modo aos ensinamentos do Prajnaparamita, e a expressão da vacuidade é muito cara e também muito clara para nós em certo sentido. A vacuidade traz, numa perspectiva inicial, a noção de que aquilo com que nos defrontamos carece de um sentido autônomo de existência. Não que as coisas não existam diante de nós, como por exemplo, esse sino. Mas o sino não existe por si mesmo. Essa noção de ausência de existência por si mesma é uma primeira noção da vacuidade. Significa, no exemplo do sino, que mesmo que saibamos que esses materiais estão aqui presentes (madeira, tecido, metal, etc.), se não tiver alguém que possa olhar todo esse conjunto de materiais que formam o sino e reconhecê-lo como tal e utilizá-lo, é como se ele não existisse.
Uma palavra que S.S. o Dalai Lama usa muito é imputação. É como se tivéssemos uma imputação desse conjunto de materiais como um sino. Na linguagem do CEBB dizemos que damos nascimento. Se olharmos para isso e não dermos nascimento como um sino, ele não vai existir como um sino. Esse é um ponto importante onde negamos a existência independente, autônoma, externa, das coisas. É uma primeira abordagem da vacuidade.
Uma segunda abordagem da vacuidade, que também utilizamos no CEBB, é a noção de que os objetos, para surgirem como tal, precisam do fenômeno de “coemergência”. Se eu não tiver a noção de um sino interno, não consigo fazer o nascimento de um sino externo. O sino interno e externo coemergem. Nesse texto de Gyatrul Rinpoche ele vai falar de coemergência, de como os objetos são um fenômeno simultâneo interno e externo. Isso é maravilhoso, e precisamos entender.
Na sequência, olhando esse aspecto, entendendo a coemergência, compreendo que existe uma região de liberdade que me permite fazer os objetos surgirem de um jeito ou de outro, ou de outro, ou ainda de outro jeito... Quando me permito fazer isso, começo a olhar para dentro e descubro que internamente tem uma região viva e livre, que permite dar nascimento às coisas. E vou chamar isso também de vacuidade. Por quê? Porque é uma região que não tem um conteúdo prévio. No próprio Sutra do Prajnaparamita vamos dizer: “na vacuidade não há forma, sensação, percepção, formação mental e consciência; não há olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente...”. Ou seja, não há nada disso nessa vacuidade, nesse espaço livre, de onde nós, através da coemergência, começamos a atribuir significados às coisas e nos ligamos a elas. Entendemos esse fato também como vacuidade.
Essa vacuidade não está se referindo aos objetos, ela se reflete nos objetos através do processo de coemergência. Mas a coemergência inclui o próprio sujeito. Isso se refere à vacuidade de sujeito e objetos inseparáveis, então, a minha liberdade interna é uma vacuidade. O fenômeno mais profundo de mim mesmo é o silêncio livre e vazio, vivo.
À medida que contemplamos isso, descobrimos que o silêncio vivo, vazio, pode produzir os significados. E não só pode produzir os significados, como é capaz de entender como os significados foram produzidos e se libertar do próprio significado produzido. Por exemplo, pegamos a madeira e batemos no metal... olhamos isso como sino. Mas quem é que olha? É o silêncio que está além do sino que olha o sino que criamos. Esse silêncio além do sino está livre do sino e ri para o sino!
A capacidade de construirmos as coisas, vermos as ligações e, ao mesmo tempo, estarmos livres delas dentro do silêncio da vacuidade, é o que vamos chamar de Sabedoria Primordial. Assim, Sabedoria Primordial é a mente do Buda. Ele exerce o que é chamado de Tathata: aquele que se move em meio às formas, que parecem externas, sem se iludir que sejam externas, reconhecendo o modo mágico pelo qual elas surgem, dispondo desse processo mágico, não se opondo às formas, sabendo exatamente do que se trata. Sem rejeitar e sem se aprisionar. O Buda se move no meio disso. Tathata é essa mente do Buda que se move no mundo. Ele não rejeita samsara, mas olha samsara – o mundo condicionado – como esse fenômeno complexo, maravilhoso, luminoso, onde todas as coisas se manifestam. Isso é a compreensão da vacuidade inseparável da forma, ou seja, forma e vacuidade conjuntas. Disso brota o Darma. As explicações do Buda brotam dessa forma de compreensão. Isso é chamado de Sabedoria Primordial.
No budismo tibetano, especialmente no budismo Niyngma, valorizamos o tema da Sabedoria Primordial. Se quiserem guardar isso de uma forma muito, muito simples, o façam como uma pergunta, que seria assim: “De onde brota a natural habilidade do Buda de ver as coisas com clareza?” Ou “Como é que ele, ao abrir a boca, fala do Darma de forma leve, natural, sem consultar nenhum texto, sem citar nenhum autor? Simplesmente olha e fala, e o que ele fala tem profundidade e é libertador. De onde brota a sabedoria libertadora do Darma do Buda?” Esta seria a pergunta. E a resposta é: brota da sabedoria primordial. E podemos perguntar: mas o que é a sabedoria primordial? Que segredo é esse? A sabedoria primordial já não é o Darma, mas é o gerador do Darma. Como é possível isso?
É exatamente o que esse texto se propõe: iluminar, dar clareza, e um treinamento que nos permita acessar de forma estável, a Sabedoria Primordial. Isso é maravilhoso!
2.1 Seis bardos
Esse ensinamento está dentro da estrutura dos ensinamentos de Guru Rinpoche sobre os seis bardos, que são: o bardo da vida, do sonho, da meditação, da morte, do pós-morte e o bardo do renascer.
O fato de estarmos aqui sentados, com olhos abertos, coração pulsando, respirando, reagindo sensorialmente ao ambiente, isso é a vida. Nossa mente reage sensorialmente aos estímulos ao redor. Quando estamos vivos, os estímulos que acontecem ao redor carregam a nossa mente. Isso é a vida. Operamos sensorialmente: olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente cognitiva. Isso é estar vivo. Esse é o bardo da vida.
Quando dormimos à noite, nossa mente não é influenciada por olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Mas ela funciona! Por quê? Porque transcende a vida dos olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. É evidente que à noite, quando estamos dormindo e sonhamos, temos uma sensação de corpo, uma sensação de medo, de vitórias, derrotas, ameaças, etc. , mas nada daquilo está realmente conectado a olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. No sonho não estamos operando desse modo, é outro estado, diferente da vida comum, chamado de bardo do sonho. Temos o bardo da vida, onde a mente opera daquele modo. O bardo da vida não é explicado pelo corpo; é explicado pelo uso do corpo como estímulo para a operação da mente.
Quando dormimos à noite e sonhamos, utilizamos imaginações e visões, sem base sensorial, como estímulo da operação da própria mente. Geramos um mundo ilusório do sonho – o bardo do sonho –, como aqui e agora estamos gerando um mundo ilusório do bardo da vida. Por que ilusório? Porque, por exemplo, chamamos isso aqui de sino, damos nomes às coisas, mas elas não são isso. A vida (e sua atribuição de significado) é como um sonho, só que um sonho respaldado pelos sentidos físicos. Quando dormimos, estamos num sonho sem os sentidos físicos, mas a vida pulsa também.
Durante a meditação, retiramos os sentidos físicos e colocamos a mente, de uma forma organizada, num objeto ou numa prática disciplinada. Do mesmo modo como nos bardos anteriores, na meditação estou usando a mente segundo uma direção particular. Isso é chamado bardo da meditação, a mesma condição livre da mente agora sendo utilizada segundo um foco da meditação.
Há um quarto bardo, o bardo do morrer. Quando estamos no bardo da vida e o nosso corpo começa a sofrer, a lutar para poder se manter e isso passa a dominar a nossa mente, isso é o bardo da morte, estamos nos dirigindo à morte. Os fenômenos de sustentação da vida, como respiração, ingestão de líquidos, digestão, batimentos cardíacos, fluxo sanguíneo, etc., eles se tornam imprevisíveis. Temos vários sinais de alarme, e isso domina a nossa experiência. Nesse momento, nossa experiência não é mais dominada por experiências comuns de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas passamos a estar numa situação de emergência. Qualquer pessoa que já teve seu dedo batido por um martelo pode entender bem o que significaria o bardo da morte, porque simplesmente paramos de fazer qualquer outra coisa e ficamos olhando para o dedo roxo machucado, e aquilo paralisa todo o resto da experiência da vida. Se isso acontecer com uma criança, mais visível ainda. Se ela tiver um arranhão, de onde escorrem três gotas de sangue...ela fica completamente dominada pela “experiência horrenda de ver as tripas aflorarem do braço”. Isso é o carma que temos para a experiência do bardo da morte.
Depois que o corpo cessou de operar e não manda mais nenhuma mensagem para a mente, porque a morte sobreveio, parando a atividade do cérebro, coração, respiração, a energia vital desapareceu de dentro do corpo, o lung se transferiu, o corpo virou cinzas, as células morreram e desapareceu a vitalidade do corpo... quando isso acontece, a mente não para. Agora ela segue livre, semelhante a um sonho. Ou seja, não temos mais o apoio de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas a mente segue sonhando, seguindo o seu próprio processo. Isso é chamado do bardo alucinado do Darmata. Significa que a condição livre – Darmata – produz livremente a alucinação. É como um bardo psicótico. A pessoa tem imagens semelhantes a um sonho e vive aquele sonho, só que não consegue se agarrar a coisa alguma. Porque as várias experiências são ilusórias e se desfazem como num sonho. Seria como estarmos em um lugar e, sem precisar pegar um avião, instantaneamente nos vemos em outro. Esse é o processo do bardo do pós-morte, o bardo alucinado do Darmata.
A partir daí, começamos a estabilizar certos fatores na nossa mente. Esses fatores vão produzir uma estabilização da mente e isso já encaminha o bardo do renascimento. Quando a mente começa a se estabilizar, ela vai pegar como âncora a operação de um embrião fertilizado, ou seja, um óvulo fertilizado que se manifesta como um embrião, e associamos carmicamente a nossa sorte à sustentação daquilo. Focados nisso – e se tivermos a sorte de ser um embrião humano – renascemos como humanos.
2.2 Silêncio como prática da lucidez
Aqui neste texto Iluminação da Sabedoria Primordial, Guru Rinpoche deu ensinamentos sobre o bardo da meditação. Esse bardo da meditação, portanto, é um dos seis bardos. E esse será o nosso tema. Ou seja, como podemos utilizar o bardo da meditação para sair da condição ilusória e ir até o ponto da lucidez da sabedoria primordial.
Guru Rinpoche deu esse ensinamento, e depois vários mestres vão estudar esses ensinamentos, dentre eles Dudjon Rinpoche, que com sua lucidez, é considerado uma emanação do próprio Guru Padmasambava, uma expressão direta de Guru Rinpoche. Um aluno dele, Gyatrul Rinpoche, que ainda é vivo e hoje tem mais de 80 anos, fez a tradução das palavras do mestre para que as pessoas pudessem entender melhor, que é exatamente esse texto que vamos estudar. E Alan Wallace, aluno de Gyatrul Rinpoche, fez a tradução para o inglês do original em tibetano.
Eu ganhei esse texto no ano de 1995, em 24 de janeiro, dia do meu aniversário, quando estava fazendo um retiro com Chagdud Rinpoche, na Califórnia. Eu ganhei o livro, do qual esse texto é uma parte. Quando encontrei esse texto, reconheci que ele era realmente importante. A minha base de experiência vinha do Zen. E no Zen, essencialmente, nós sentamos para ver a natureza primordial. Por isso, quando encontrei o ensinamento desse texto, para mim foi uma coisa muito marcante. De modo geral, os ensinamentos Vajrayana do budismo tibetano são associados a iniciações, recitações de mantras, sadanas, mudras, oferendas, mandalas simbólicas, instrumentos musicais variados... e não o silêncio! Por isso, quando encontrei esses ensinamentos eu fiquei muito feliz, porque eles falavam diretamente a minha experiência dentro do Zen.
Nas instruções desse texto, nós sentamos em silêncio, sem mudra, sem mantra, sem sadana, sem iniciação, sem oferenda e sem mandala simbólica. Sentamos na simplicidade do silêncio, pois dentro da simplicidade do silêncio podemos ver a natureza primordial e acessar o ponto último. Então, esse é um caminho simples, um caminho direto.
Nessa época, eu não conhecia o Professor Alan Wallace, ainda que alguns anos antes, antes da vinda de S.S. o Dalai Lama em 1992, nós tivéssemos trocado informações. Através de Jose Ignacio Cabezon, um dos tradutores de S.S., pude receber o livro recém-lançado do Prof. Alan Wallace, cujo título era Choosing Reality, que trata da questão da física e da vacuidade, tema esse que eu havia discutido longamente com o Cabezon, quando ele esteve no Brasil. Por esse fato, cheguei a trocar informações com o Prof. Alan Wallace, pois Cabezon e eu havíamos decidido publicar o livro em língua portuguesa, o que não ocorreu.
Anos depois refizemos contato com o Prof. Alan Wallace, que esteve nos vários locais do Brasil onde o CEBB tem atuado: Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, e mais recentemente, dando ensinamentos no CEBB de Viamão, RS. Dessa última viagem, conseguimos fazer um sonho conjunto, onde o CEBB passou a ser um parceiro do Projeto Shamata, capitaneado por Alan Wallace. Esse projeto também inicia com a meditação em silêncio e vai até a sabedoria primordial. Portanto, é um projeto de treinamento complexo. E agora, parceiros dentro dos nossos projetos, estamos aguardando condições materiais para poder construir uma pequena área para receber os alunos do Prof. Alan Wallace aqui no CEBB Darmata, para retiros de um ano, dois, três anos, dez anos, ou o tempo que for.
O Prof. Alan Wallace aspira, e eu também fiz o voto, de que consigamos receber aqui alunos que vão também ser examinados e acompanhados por cientistas de vários lugares para monitorarem os processos de transformação que ocorrem dentro de um programa de meditação e de estudos neurológico e psicológico. Espero que ainda neste ano de 2011 já tenhamos condições de receber algum estudante. E isso vai implicar também gestões junto às autoridades e normas internacionais para a criação de visto para yogues, o que facilitaria muito a vida dessas pessoas, pois não precisariam sair do país periodicamente para validar os vistos. É que hoje, nenhum país aceita acolher alguém, por tempo longo ou indeterminado, para fazer retiro.
E eu explico tudo isso aqui para mostrar o contexto disso e a conexão desse ensinamento do texto que vamos estudar, com programas amplos, como o Projeto Shamata.
Então, qual é o conteúdo desse texto? Nesse ensinamento da Iluminação da Sabedoria
Primordial nós sentamos e praticamos shamata, meditação em silêncio. Shamata não é zazen e não é outros tipos de meditação em silêncio, como a meditação da presença, onde já temos o prajnaparamita. É alguma coisa particular. É apenas shamata.
Shamata é aquilo mais parecido com o que costumamos imaginar que seja meditação. Com uma mente confusa nós sentamos e acalmamos a mente. Aí, tem várias técnicas para acalmar e estabelecer o foco da mente. Isso é shamata.
Às vezes, para entendermos melhor uma coisa, é importante fazermos a distinção dela dentre outras coisas. Por isso, afirmo que shamata não é zazen. A diferença é assim: shamata é uma prática onde posicionamos a nossa mente; zazen é uma prática onde atingimos a iluminação. Existe uma diferença muito grande entre se ter a realização completa em posicionar a mente ou se ter a realização completa de atingir a iluminação. Então, essa é a diferença entre shamata e zazen.
Se formos olhar dentro disso, a nossa prática dentro do CEBB é muito mais próxima de zazen do que de shamata. Olhando dentro do Programa de 21 Itens, shamata é o início. Nós temos as outras práticas que vão levar à liberação. Nosso Programa de 21 Itens dialoga perfeitamente com a abordagem Zen, e esse texto Iluminação da Sabedoria Primordial, dialoga perfeitamente com a abordagem Zen, com os textos do mestre Dogen. Essa foi uma das razões de eu ter convidado o mestre Moryama Roshi para dar ensinamentos aqui no CEBB Darmata. Ele iria trazer a abordagem do Zen, e eu iria falar da sabedoria primordial. Esse encontro não aconteceu, por problemas de saúde do Roshi. Ele iria nos trazer as expressões da sabedoria do Zen (shinkantaza, fukanzazen, etc.) associadas a esse tema.
Desse modo, essencialmente sentamos em silêncio, e dentro desse silêncio a nossa visão da realidade vai se ampliando, se tornando mais complexa, mais profunda, até o ponto que acessamos a sabedoria primordial.
2.3 Fundação ou Motivação
Na abordagem tibetana não conseguimos “sentar” imediatamente, essa é uma diferença em relação ao Zen. No Zen as pessoas “sentam” sem preliminares, sem nada que seja preparatório. Para os tibetanos, os ensinamentos preparatórios são necessários, e se a pessoa não os teve, no mínimo, deveria ter a realização correspondente aos ensinamentos que não ouviu. Isso também está dentro do Zen, que não tem ensinamentos preparatórios, quando a pessoa chega para fazer as práticas, ela já está no ponto.
Os ensinamentos preparatórios do Zen se dão na porta de entrada do mosteiro. A pessoa chega com a cabeça raspada, com uma cara meio adernada por ter feito uma longa viagem. A longa viagem a pé já foi a preparação para a entrada no mosteiro. A pessoa chega, bate na porta, e ninguém vai dizer “entre”. Perguntarão, com uma cara não muito boa: “O que você veio fazer aqui?” Resposta provável do noviço: “Eu quero me tornar um buda.” E retrucarão: “Aqui já tem muitos budas.” E esse é um ensinamento preparatório. Se a pessoa desistir, a fase preparatória vai demandar mais tempo. A pessoa volta, levará um tempo para ver se realmente é aquilo que ela quer, e depois volta a sentar na porta do mosteiro. Vai ficar um tempo ali, ou seja, os monges vão ‘cozinhá-lo a fogo lento’! De repente, alguém leva comida para ela. Naturalmente, tem um batalhão de mosquitos e outros seres perigosos ali rondando. Ela senta e fica esperando. Enquanto está ali, sua mente está sendo purificada, ela testa se realmente quer aquilo. Esse é ensinamento preliminar.
Quando as pessoas entram no mosteiro, mesmo grandes mestres que vão atingir a liberação, reconhecidos pelo próprio mestre do mosteiro, elas vão para atividades subalternas. Como aconteceu com Hui Neng, que, após entrar no mosteiro, foi colocado para trabalhar como serviçal da cozinha. Ele não vai para a sala de meditação, com uma roupa limpa, e pensa: “agora sou um monge!”. Não, ele não vai fazer meditação, só vai ajudar na cozinha. Por um longo tempo ele segue nesse processo de preparação. A mente vai se organizando, até que ele começa a fazer as práticas. Moryama Roshi várias vezes ilustrou isso com a própria experiência. Moryama Roshi é muito afetuoso, por vezes engraçado também. É muito bonito vê-lo contando a sua experiência.
O noviço é colocado na cozinha, não como chefe-cozinheiro, mas como simples ajudante, com um monge japonês bem furioso observando ele em tudo. E ele cortando o dedo, fazendo as coisas mais lentas do que o ritmo esperado, etc. Quando é trocado de função, pensa “agora vou ser reconhecido!” e não é nada disso, ele continua sendo duramente treinado em outras atividades duras.
Tudo é um processo de purificação, só fica ali quem estiver pronto para ficar. No caso dos tibetanos, acho que é mais suave o processo, e no CEBB é muito mais suave ainda... já nem é casa de mãe, é casa de sogro e sogra, muito acolhedor. Mas essencialmente, precisamos fazer essa mudança na nossa mente. Para os tibetanos, a etapa de aproximação é chamada ngondro, que é o processo de purificação de forma ritualizada.
Agora em julho, quando S. S. Sakya Trizin vier ao Brasil, o filho dele vai dar iniciação de ngondro. Pode ser que dentro da grande sanga surjam pessoas que queiram fazer o ngondro, que é um processo preliminar, só que formal: cem mil prostrações, cem mil oferendas de mandalas, cem mil recitações de Vajrasatva, cem mil recitações do mantra do Guru e uma etapa de Powa. Essa é a prática do ngondro. De modo geral, isso leva um tempo para ser completado. A pessoa termina tomando como um foco durante um ano ou mais. Se quiser fazer mais rápido, melhor seria entrar em retiro, por exemplo, de seis ou oito meses, para concluir tudo. Mas ainda é uma etapa preliminar. E não é uma questão de velocidade que estará sendo treinada, é um amadurecimento da visão.
No texto, a etapa preliminar correspondente ao ngondro, vai ser chamada de Fundação. Apesar do texto não introduzir propriamente a prática do ngondro, vai descrever o primeiro dos seus aspectos, que é a explanação dos Quatro Pensamentos que Transformam a Mente. Tive oportunidade de conversar com o Lama Rinchen, que pertence à linhagem que adota o ngondro como prática preliminar. Ele conversou também com S.S. Sakya Trinzin sobre o modo como estamos fazendo essa etapa aqui no CEBB. A visão do Lama Rinchen é de que nosso trabalho, nossa prática no cotidiano, e as práticas que fazemos, são todas também preparatórias.
No CEBB, procuro utilizar essa pacificação das relações, os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, o Nascimento no Lótus, etc., como a nossa prática preliminar. Utilizamos nossas próprias condições de vida e nossas práticas como um processo preliminar que vai nos permitir, mais adiante, aprofundar nas práticas de meditação. É disso que trata a fundação.
Nossos estudos dos livros Meditando a Vida, Jóia dos Desejos, A Roda da Vida e outros, está tudo dentro da Fundação. Passamos a entender nossa vida profundamente, enquanto ela pulsa, dentro da perspectiva do Darma. Entendemos o que é samsara, os obstáculos todos, e tudo isso vai ficando claro para nós. No CEBB, não estou criando um ambiente de prática artificial para chegar nessa compreensão, estamos olhando dentro da própria vida. Portanto, isso fica muito vivo.
Quando geramos a compreensão, surge o que vamos entender como motivação, que é o primeiro dos 21 Itens. Depois que estudamos os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente e as condições todas de transformação da nossa visão com respeito ao mundo comum, passamos a entender a partir do Darma, entendemos a nossa situação. É a motivação.
Dentro da motivação – o primeiro dos 21 Itens – através do texto Nascimento no Lótus, já introduzimos com muitos detalhes a motivação bodicita do caminho do Bodisatva. Estudamos essa etapa longamente. Atualmente, a maior parte dos horários de estudos regulares do CEBB trata dessa parte. Acolhemos as pessoas, vamos estudando essas várias coisas, e vamos produzindo essa transformação, até o ponto onde podemos dizer: “Bom, a minha vida está destinada, está devotada a aprofundar essas coisas, e eu não quero mais perder tempo.” Passamos a entender o que é esse aprofundar e sabemos como fazer. Isso é a realização da etapa, que é a fundação.
No texto de Dudjon Rinpoche, isso corresponde à fundação, que essencialmente é a motivação. A partir de dentro, nossa energia se move sem contradição com a visão de mundo. Não pensamos: “Vou fazer prática, mas depois volto para o meu mundo normal.” Não temos essa divisão, a prática e a vida se fundem. Por isso, precisamos fazer essa transição.
Enquanto não tivermos essa compreensão da vida e prática fundidas, vai ser um problema. Porque praticaremos um pouco, e um pouco, voltamos para a “vida normal”. Podemos até concluir: “Agora vou deixar a prática por um tempo, vou mergulhar na vida, pois estou precisando arrumar umas coisas.” Ou seja, estamos com o refúgio dentro do samsara. Estaremos achando que a organização externa da nossa vida é que vai nos dar algum nível de segurança. Isso indica que não entendemos bem ainda essa etapa preliminar. A nossa fundação ainda não está suficiente.
Sem essa realização, se formos entrar em um programa de meditação, treinamento ou em um retiro para focar a natureza primordial, podemos pensar: “Isso aqui está demorando; preciso voltar para fazer tais coisas.” Por que isso pode acontecer? Porque a vida não foi integrada dentro da visão de sabedoria, ainda é alguma coisa “ao lado, à parte”. Enquanto essa separação persistir, teremos problemas, não conseguiremos avançar direito, pois é como se tivéssemos uma competição entre o caminho espiritual e a vida. Na verdade, essa competição não existe, o caminho espiritual e a vida se ajudam. A lucidez é o processo pelo qual vamos poder viver melhor.
2.4 Quiescência ou Shamata
Quando a fundação se estabelece e brota a motivação, surge a prática de shamata, que corresponde aos itens 2 e 3 do Programa de 21 Itens. Começaremos com shamata impura (item 2) e depois vamos para shamata pura (item 3). A noção de shamata impura e shamata pura vem desse texto, onde Dudjon Rinpoche chama de Quiescência Impura e Quiescência Pura. Por isso a nomenclatura está sendo utilizada no programa do CEBB. E por que praticaremos Quiescência ou Shamata? Agora que entendemos tudo, ou seja, realizamos a fundação, vamos acalmar a mente e aprofundar o tema.
Em janeiro desse ano, o prof. Alan Wallace conduziu um retiro de shamata no CEBB Caminho do Meio. Tudo foi gravado e está disponível na internet, com as instruções e práticas, para qualquer um que quiser dedicar sete dias para fazer. Este retiro é para obter estabilidade na quiescência, com vários métodos e o significado do que é a quiescência. Entendemos onde acalmamos a mente e compreendemos a diferença em relação a outras abordagens da meditação. Esse foi o conteúdo que o prof. Alan Wallace deu no retiro de janeiro.
Seguindo o texto, agora sentamos e vamos aquietar a mente. Tem uma pequena diferença entre os ensinamentos como estão produzidos no texto de Dudjon Rinpoche e o modo como Alan Wallace ofereceu. Alan Wallace ofereceu os ensinamentos como se tivéssemos que obter a realização final de shamata. No CEBB, na forma como tenho introduzido, não precisamos da realização final de shamata ou quiescência. O que vamos fazer é praticar esse aquietar da mente até um nível em que ganhamos mais domínio sobre a própria mente. Ela se torna um melhor instrumento do que é hoje, pois é muito caótica. Assim, sentamos em silêncio e ampliamos a capacidade de utilizar a mente como um instrumento útil. Na abordagem do prof. Alan Wallace, vamos até o final dessa aquietação, até atingir os sinais todos, que são quase psicóticos, porque vamos criar estados particulares de mente.
Na abordagem do CEBB, não temos o foco de criar estados particulares de mente, nosso objetivo é seguir para o item adiante. Se formos até o final de todos os sinais de shamata, estaremos ainda sem a compreensão da vacuidade. Para nós, é mais importante estabilizar um pouco a mente e andar em direção à vacuidade, que é o embrião da sabedoria. E com a compreensão da vacuidade, conseguiremos eliminar melhor nossos obstáculos, do que simplesmente permanecer em silêncio. Portanto, vamos utilizar esse método.
Na linguagem do caminho do ouvinte, isso seria shamata e vipassana. Vipassana seria o Prajnaparamita, a perfeição da sabedoria. Unimos sabedoria com a estabilização da mente. Na abordagem do prof. Alan Wallace, é como se tivéssemos que ir até o final da estabilização da mente, para então entrar em vipassana. No CEBB, ampliamos a estabilização, e sem atingir a realização final dessa estabilização – shamata – entramos em vipassana. No nosso caso, vipassana é o Prajnaparamita, que corresponde ao item 5 do Roteiro de 21 Itens.
Faremos então shamata impura e shamata pura, mas precisamos introduzir vipassana como um instrumento hábil de remoção dos nossos obstáculos, aquilo que perturba nossa mente. Assim, introduzimos a prática de Metabhavana como o item 4 do Programa de 21 Itens.
Por que praticar Metabhavana? Porque, quando formos praticar meditação em silêncio e a vacuidade, para podermos avançar, precisamos pacificar as relações em todas as direções. Se estamos praticando meditação em silêncio, mas estamos intrigados ou brigando com pessoas, isso vai perturbar a nossa prática e não conseguimos avançar. Assim, tendo já a motivação estabelecida (item 1), e começando a praticar shamata impura e pura (itens 2 e 3), precisamos refazer as relações (item 4). Quando refazemos as relações a nossa vida fica leve. Só aí conseguimos entrar na compreensão do Prajnaparamita (item 5), os ensinamentos sobre a vacuidade.
2.5 Sabedoria Primordial
Neste texto, o Prajaparamita corresponde à Sabedoria Primordial. Entramos na Sabedoria Primordial e vamos galgando as etapas em direção à presença (item 6 do Roteiro de 21 itens). A partir daí, desenvolvemos a visão de como a realidade se oferece e como ela opera. Depois, o próprio texto converge em visão, meditação – que estabiliza essa visão – e ação no mundo.
Dentro do Programa de 21 Itens, vamos estabilizar nossa prática não só com a presença (item 6), mas também com a compreensão dos vários lungs ou energias (itens 7 a 11). Vamos transitar da prática de meditação com a mente e ajustar e introduzir a meditação com a energia. Vamos entender que é a energia que desestabiliza tudo e não a mente – a mente enquanto algo cognitivo. Assim, adicionamos ou agregamos os elementos de energia com os elementos cognitivos, até o ponto em que os elementos de energia vão se tornar o foco central. Essa é a abordagem dos Cinco Lungs (lungs dos Cinco Elementos), que está dentro do Programa (itens 7 a 11). Cada um dos lungs é um item.
Com isso estabilizado, conseguimos estabilizar a nossa experiência cotidiana. E vem a etapa seguinte, que é a ação no mundo. Detalhamos essa etapa de ação, baseados nas Cinco Sabedorias e a Sabedoria de Vajrasatva, que são os itens 12 a 17 do Programa de 21 Itens.
No texto Iluminação da Sabedoria Primordial, as etapas de visão, meditação e ação correspondem à parte final. No CEBB detalhamos minuciosamente essas etapas dentro do Programa de 21 Itens.
Como podemos passar por tudo isso e não atingir a realização, ou seja, melhoramos, ampliamos a visão, avançamos, mas ainda não chegamos ao ponto final, concluiremos que isso é verdade (item 18), é o que temos que fazer. Mas precisamos de coragem (item 19) para poder viver isso o tempo todo, integrar completamente em nossa vida. Aí vamos precisar de paciência conosco mesmo (item 20) e perseverança (item 21). Assim se completa o Roteiro de 21 Itens.
Com paciência e perseverança, voltamos ao item 1 – Motivação. Melhoramos a motivação e refazemos os itens todos.
No texto de Gyatrul Rinpoche e Dudjon Rinpoche, temos a Introdução, que é a apresentação; temos a fundação, que é a compreensão de como nossa vida é inseparável do Darma. A seguir, temos a quiescência, que é a prática de shamata. Depois, temos sabedoria primordial, que é o Prajanaparamita e a presença. Na sequência, vamos desenvolver confiança na visão, praticamos a meditação como confiança na visão, e mantemos a visão e a lucidez em meio às atividades diárias da vida, que é a ação. Depois, vem fruição, que é o processo integrado de sabedoria e lucidez na nossa experiência.
Esse é o texto como um todo. Mais adiante, iremos estudar parte a parte cada uma dessas etapas. Aqui, dei o primeiro sobrevôo.
3. Conteúdo do texto: comentário parte a parte
Antes de começarmos o estudo desse texto, é muito importante entendermos que, para qualquer prática que fizermos – meditação, estudo ou outra – precisamos de uma motivação correta. Essa motivação correta é simbolizada pelo mantra de Chenrezig: OM MANI PEME HUNG, aquele que ouve os sons do mundo, vê as aparências do mundo e, a partir dessas aparências, desse som, brota a compaixão e o amor pelos seres. Se conseguirmos fazer a nossa prática com lung, com essa energia, dentro da mandala da compaixão, teremos muito mais força para praticar.
Se formos praticar meditação, estudo, seja o que for, dentro de uma perspectiva de disciplina, teremos a sensação da nossa energia estar sendo consumida. Quando praticamos dentro da perspectiva de compaixão pelos seres, somos sustentados, é tudo fácil. Então, o ponto inicial é o desenvolvimento do acesso a essa mandala.
Na Introdução e na Fundação do texto Iluminação da Sabedoria Primordial, o ponto central é a motivação correta.
Começarei agora a estudar o próprio texto. Ele está dividido em vários tópicos, dos quais alguns foram introduzidos por mim, para facilitar a compreensão em bloco do que estamos tratando.
3.1 Introdução
“O tema que estamos começando a discutir se refere a uma combinação de tópicos que é muito rara. Os tópicos são a união de mahamudra e mahasandhi quando aplicadas à prática conhecida como meditação shamata ou quiescência.”
Por que isso é muito raro? Porque mahasandi e mahamudra não necessariamente serão introduzidos a partir da meditação em silêncio, de shamata, podem ser introduzidos de outros modos. Mahamudra e mahasandi correspondem à sabedoria primordial, que não depende da meditação em silêncio. Podemos acessar essa sabedoria diretamente do Prajnaparamita. Quando estivermos avançados na prática, não precisaremos cruzar as pernas, endireitar a coluna e respirar, para termos sabedoria primordial, lucidez.
Muitos mestres e muitos ensinamentos introduzem diretamente a sabedoria primordial, sem a necessidade de sentarmos, atarmos as pernas, meditarmos com controle de respiração, controle de foco. Na abordagem do budismo tibetano, de modo geral, não praticamos o silêncio. É muito comum se utilizar os métodos do estágio de desenvolvimento e completitude, que pertencem à abordagem Vajrayana. Ou seja, visualizamos imagens, utilizamos mandalas, mudras, sadanas, cerimônias, drupchens e outras abordagens que, mais adiante, no meio de tudo, de forma mágica, apresentam a sabedoria primordial.
No contexto do CEBB, introduzimos tudo através da meditação silenciosa. Para nós, parece muito comum, muito natural, que esse resultado só ocorra através da meditação em silêncio. Meu treinamento inicial dentro do Zen foi assim. No Zen, não existe nenhuma outra abordagem a não ser a da meditação silenciosa. Eles não praticam através de mudras, sadanas, mantras, iniciações, etc. Não fazem nada disso, praticam apenas através do silêncio. Porque o silêncio é descomplicado, eu sento e foco, e dentro do silêncio tem tudo, não falta nenhum pedaço.
Também se diz que dentro do budismo tibetano começou a surgir uma ênfase tão grande nos métodos do Vajrayana, que alguns mestres, para justificar o uso de shamata ou da meditação em silêncio, dizem: “Bom, enfim, isso foi o que o próprio Buda fez.” No mínimo, no CEBB não precisamos justificar muito porque estamos fazendo isso.
A própria prática de silêncio começa a ficar numa posição defensiva dentro de um conjunto de práticas, ao ponto de termos que argumentar: “Bom, mas vamos pensar assim: se isso não funcionasse, por que o Buda teria usado como caminho?” Desse modo, estamos justificados porque o próprio Buda usou o silêncio como caminho. O Buda não usou sadanas, mantras, iniciações, cerimônias e oferendas, como caminho, ele usou o silêncio. Dentro do silêncio, vamos até o final, porque o Buda atingiu a iluminação completa através dele. Ele deu muitos ensinamentos posteriores, mas o método que utilizou foi essencialmente o silêncio. Assim, estamos liberados para utilizar o silêncio também! Estou contando isso apenas para contextualizar nossas práticas. No contexto do CEBB é evidente que é através do silêncio que vamos praticar.
No entanto, em breve vamos receber S.S. Sakya Trizin. Como ele é da tradição Vajrayana, vai usar os métodos mágicos: dar iniciação, sadanas, mantras, mudras, oferendas, oferendas simbólicas. Esse é o método usual do budismo tibetano. Acho maravilhoso, dentro da perspectiva de uma só sanga, que tenhamos as múltiplas influências, pois uma influência cura a outra. Acho isso perfeito!
Mas aqui estou justificando porque, no texto, ele diz que o tema que começamos a abordar concerne a uma combinação de tópicos muito rara. Porque vem dentro da perspectiva do budismo tibetano, se viesse dentro da perspectiva do Zen, não seria muito rara, aliás, seria a única. Também se viesse por dentro do caminho da tradição páli, não teria outra abordagem, apenas essa. Mas dentro do budismo tibetano existem muitas abordagens na qual a noção de sabedoria primordial é apresentada de uma forma livre.
Na abordagem tibetana, encontramos Dudjom Lingpa, um grande mestre do qual Dudjom Rinpoche e uma emanação também, que apresenta a sabedoria primordial independente de se praticar o silêncio ou não. Porque é evidente que a natureza primordial está diante de nós. Portanto, não preciso sentar em silêncio para que a natureza primordial apareça. Preciso apenas ser capaz de reconhecer aquilo que já está ali. É isso. Entendem?
Essa perspectiva de que precisamos reconhecer aquilo que já está aí, diante dos nossos olhos, sem nenhuma sutileza, é a noção mahamudra / mahasandi. Mahasandi é Dzogchen, o ensinamento da Grande Perfeição. Esse ensinamento é assim: olhamos e vemos a grande perfeição natural de todas as coisas aos nossos olhos nus. Não precisamos de nenhuma introdução, é apenas uma questão de ver. E por que não vemos? Porque estamos vendo outras coisas.
Dentro do aspecto do samsara, quando olhamos para as coisas, acontece algo escandaloso: “Eu olho para isso aqui e vejo um sino! Como pode ser isso? Portanto, não tem nenhuma chance, vou morrer em sofrimento. Porque eu estou vendo um sino! Que mente estreita é essa?” Dito assim pode parecer estranho, pois é claro que isso aqui é um sino. Mas isso aqui não é absolutamente um sino, é convencionalmente um sino. Mas não reconhecemos o sino dessa maneira. Trocamos tudo que é “convencionalmente existente” por “absolutamente existente”.
A noção de que as coisas são absolutamente isso ou aquilo, é chamado de ignorância. E vai ao ponto de não ser mais nem uma constatação cognitiva, simplesmente vemos e reagimos emocionalmente, energeticamente. Reagimos diante das coisas como se elas fossem externas. Isso é chamado de avidya, ignorância. Não só vemos assim, como não conseguimos ver de outra forma. E mais, não conseguimos ver que não estamos vendo, estamos com a mente blindada, presa.
Por isso, o sofrimento é inevitável, a morte é inevitável, mesmo sendo a morte uma ilusão. Nossa natureza não nasce e não morre, ela é livre dos seis bardos, livre da vida, da meditação, do sonhar, do dirigir-se para a morte, do pós-morte e do renascer. Ela é a natureza do espaço que permite se manifestar desses vários modos, mas não é nenhuma manifestação em particular. Esse é o ensinamento que está diante dos nossos olhos. Veja! Apenas veja!
O mudra dos ensinamentos da Grande Perfeição é esse: dedo apontado para frente, mostrando: “veja!”. Para qualquer lugar que você apontar, vai ver essa natureza, pois você vê uma coisa parcial; depois, vê a mente construindo as coisas parciais; a seguir, vê a liberdade da mente produzindo coisas parciais e a liberdade da mente reconhecendo as coisas parciais surgindo. Desse modo, a sabedoria primordial é vista em qualquer direção que você apontar. Logo, não precisamos sentar em silêncio para produzir isso. É nessa perspectiva que é dito no texto que esse é um tema raro: considerar a união da prática silenciosa com a lucidez.
É importante observar que Dudjon Rinpoche une a palavra shamata com quiescência. Isso significa que, ao longo do texto, cada vez que é usada a palavra quiescência se refere à shamata. Por isso brotou a expressão shamata impura e shamata pura, como usamos no roteiro de práticas do CEBB.
“Estas instruções essenciais foram condensadas em um manual escrito por S.S. Dudjom Rinpoche, um dos maiores eruditos budistas de todos os tempos. Devido à sua grande erudição, ele teve a habilidade única de condensar este ensinamento em instruções práticas, abrangentes e curtas, que são tão diretas quanto profundas. Parece apropriado oferecer este ensinamento a todos, neste momento, e, por favor, compreendam que se trata de algo muito precioso e raro.”
Como estamos nos aproximando de 2012, eu até sugeriria que vocês guardassem isso numa caixinha especial, pois, se tiverem que fugir rápido, levem esse texto junto, a partir dele serão capazes de recriar um templo. Peguem o texto e comecem a meditar, e vocês recriam os templos, recriam o budismo.
Quem vem por dentro do Zen não tem essas instruções. Formulei a motivação de poder trazer esses ensinamentos para os meus ex-alunos do Zen e também oferecê-los para o Moriyama Roshi. Eu tive essa felicidade, pois o Moriyama Roshi teve acesso ao texto e olha de uma outra perspectiva. Atualmente, as várias linhagens ouvem umas às outras. Isso é maravilhoso! Moriyama Roshi tem a mente completamente aberta. Ele não pensa que o Darma dele é o Zen; pensa que o Darma é o Darma. É simples! É isso!
“Apesar deste tema ser a essência do pináculo do caminho budista, é importante entender que precisa ser precedido por uma base.”
Ser a essência do pináculo quer dizer “ser o cerne do ponto último”. Por que ele precisa ser precedido por uma base? Se temos um caminho, um caminho começa numa base e vai até o ponto último. Se pensarmos que queremos acessar o pináculo e acessamos diretamente o pináculo, não teremos o caminho. O caminho começa no lugar onde estamos. Precisamos transformar nossa experiência cotidiana na base que nos permite seguir o caminho e atingir o pináculo.
Para os tibetanos existe uma forma de estabelecer a fundação. E é isso que ele vai tratar no texto. Precisamos pegar a nossa experiência comum, confusa, e transformá-la na base que vai nos permitir seguir o caminho.
Nos ensinamentos do CEBB fazemos isso longamente. Temos a noção do mala – do fio e das contas. As pessoas chegam ao CEBB vindo de vários lugares, de várias formas. Elas acessam contas diferentes. Por dentro de cada uma delas tem um fio escondido. As contas são muito variadas. Atualmente, não estamos nem mais falando de CEBB propriamente, estamos falando em sanga, pois as contas não estão mais apenas dentro dos CEBBs, estão dentro do Instituto Caminho do Meio, estão na multiplicidade dos CEBBs, no Ação Darmata, no NASCEM, na Casa da Sopa, e agora, muito em breve, vão estar no Serviço Único de Saúde de Viamão, envolvendo toda a estrutura de saúde do município. Todos com um “fiozinho” por dentro. Perigosíssimo!
O que dá unidade a isso? Não podemos dizer que agora o CEBB dirige o sistema de saúde, mas sim a sanga! A sanga é o grupo de praticantes com uma visão, que treina no CEBB ou em outros lugares e se une para produzir um certo tipo de resultado, que tem um fio por dentro e termina enganchando as pessoas.
Como vamos enganchar através da saúde? É muito simples, a saúde não é uma coisa que diga respeito apenas aos médicos e aos consultórios. Ela diz respeito à própria pessoa. Se a pessoa quiser cuidar de sua saúde, deve entender que é responsável por ela. Nessa abordagem de olhar como vamos nos comportar no cotidiano para manter nossa saúde, voltamos a localizar, a levar consciência para a nossa própria situação, vamos refletir: “Como é que eu lido com o meu corpo? O que tenho feito com ele?” Pode ser que venhamos a concluir de uma forma comum, e dizer: “Eu faço o que quero do meu corpo e o médico é que endireite como achar que pode.” Essa seria uma postura na qual não temos responsabilidade sobre a nossa própria saúde.
Existe um autor muito importante, Ivan Ilich, que nos anos 1970 escreveu um livro contundente, chamado Expropriação da Saúde. Ele mostra como, curiosamente, nos nossos dias existe uma paisagem que é introduzida pelos laboratórios, na qual as pessoas não são responsáveis pela sua própria saúde. Os médicos é que são responsáveis. A pessoa parece que não é capaz de mudar nada do que está fazendo para ajudar sua saúde. E com essa abordagem, os médicos vão transformar um problema de saúde que é agudo, num problema crônico. Darão um remédio que equilibra o desequilíbrio que a própria pessoa causa sobre si mesma o tempo todo. E o comportamento da pessoa, ou a sua própria consciência, não são considerados no processo de cura.
No entanto, atualmente, o Ministério da Saúde passou a entender isso. A partir de uma nova compreensão, estão produzindo dentro do SUS a visão de que a pessoa pode recuperar a sua consciência sobre o processo da saúde. Como isso acontece? A pessoa recupera sua consciência e descobre que não deveria comer isso, não deveria fazer aquilo. Só que, quando vai executar, não consegue direito, se defronta com seus obstáculos internos. E quando ela se defronta, descobre um mundo interno que comanda as coisas e que a atrapalha. Com esse reconhecimento, partimos para a meditação propriamente dita, dentro do sistema de saúde. Vamos ajudando as pessoas a se emanciparem dos obstáculos que produzem suas dores e seus problemas. Significa que a pessoa começa a olhar para dentro e a se transformar, gerando uma liberdade. E isso pode começar dentro do posto de saúde, pois foi passado um fio por dentro do atendimento usual. Poderíamos manter o atendimento usual no posto de saúde e não passar fio nenhum, do tipo: a pessoa chega, olhamos para a cara dela e apenas prescrevemos um remédio, que ela retira no posto e segue. Assim, vamos atendendo um a um. Mas podemos fazer diferente! É possível.
É um tempo maravilhoso esse quando a consciência torna-se ação, torna-se política pública. Eu não sei se tem alguma sanga em alguma parte do mundo que está fazendo isso, nós estamos fazendo. Constituímos uma instituição, que se chama Instituto Caminho do Meio, que está estabelecendo convênio formal com a prefeitura de Viamão, produzindo esse movimento. É alguma coisa desafiadora.
É importante notar que somos capazes de transformar qualquer coisa, qualquer situação, como problemas de saúde, na fundação para o caminho.
Logo, o primeiro ponto é a fundação, é o ponto mais difícil. É onde pegamos as nossas vidas e olhamos com um mínimo de lucidez, entendemos as realidades de uma forma um pouco mais profunda, e compreendemos a necessidade de praticar, de aprofundar na meditação, para ir adiante. Isso é a fundação.
3.2 Fundação
“Um dos pontos principais para a contemplação ao estabelecer a fundação é a consideração da nossa condição enquanto seres sensoriais existindo em uma roda de nascimento e morte.”
Para quem entra pelo SUS, isso ainda não é o início. O início será recebê-los, ouvi-los verdadeiramente e ajudá-los a raciocinar. Se vamos fazer isso, um dos pontos essenciais na saúde passa a ser a educação. Precisamos receber as pessoas e dizer: “Olha, você está com esse problema de saúde e tem esse remédio ou tratamento. Mas se você quiser melhorar, pode fazer outras coisas, temos um atendimento educacional que vai te ajudar a fazer isso. Se você quiser participar, é das 15h às 16h, segundas, quartas e sextas-feiras, aqui no posto. Tem uma pessoa responsável que vai te explicar como trabalhar isso. Se você quiser vir, está à sua disposição.”
O que estaremos fazendo? Convertemos uma abordagem de saúde em educação. Nessa abordagem de educação, transformamos a dificuldade ou doença numa fundação para a transformação da consciência e avançamos. E ainda diremos: “Mas se você quiser, pode também meditar.” Aí, a pessoa medita, toma um chá. Pronto: tem um CEBB no posto de saúde.
Reconhecer que estamos em ciclos de mortes e renascimentos vai ser uma etapa mais adiante. Para quem está chegando, é difícil ouvir sobre isso. Esse assunto será abordado de forma mais profunda depois, para aqueles que estejam aprofundando os ensinamentos budistas. Mas, inicialmente, podemos falar um pouco sobre a impermanência, mesmo focando temas de saúde. É inevitável que todos vão morrer. Nascemos, vivemos e morreremos. Durante esse período de vida, podemos viver melhor ou pior. Melhor é viver melhor. Como fazer isso? Com a compreensão, começamos a estudar e aprofundar essas questões. Passamos a entender o que precisamos fazer para “dar certo”. “Dar certo” com o corpo, com a mente e com o funcionamento no mundo.
Aqui é o início do estudo de que somos seres sencientes existindo em uma roda de renascimentos e mortes. Podemos introduzir a noção de renascimento e morte entendendo esses aspectos não como uma coisa exclusivamente física, mas num contexto igual a como manifestamos nossas identidades, inseridas em situações que depois são abandonadas e se torna uma outra coisa, em outro lugar. Estamos constantemente produzindo renascimentos e mortes. A cada dia, a cada mês, a cada hora, a cada pensamento, nos engajamos com energia, com visão, com paisagens estreitas, dentro de alguma coisa específica. Agora, por exemplo, estamos durante esses dias por aqui, é um tipo de nascimento. Tivemos um nascimento dentro do retiro. Isso significa que abandonamos o resto. A experiência do retiro vai cessar, mas a nossa natureza está além dos nascimentos e das mortes. Nossa natureza produz as mortes e renascimentos, mas não morre, nem nasce, está lá, e produz as mortes e renascimentos. É muito importante avançarmos nessa direção.
É crucial nos vermos renascendo numa roda de nascimentos e mortes, é muito profundo e nem um pouco fácil de fazer. Precisamos entender essa liberdade e as sucessivas mortes e renascimentos, os surgimentos. Exercemos isso o tempo todo. Por exemplo, a Eliane saiu de São Paulo e veio para Maceió. Morte e renascimento! E a morte tem cara de morte, porque os parentes olham com pesar, e dizem: “Você vai mesmo fazer isso? Você não enlouqueceu? Agora eu não vou mais ver você, você estará em Maceió.” E nesse momento, precisamos produzir um nascimento, do tipo: “Mas você pode me visitar lá! Agora você tem uma casa em Maceió. Não morri!” E isso segue.
Todos nós passamos por isso. Vocês, por exemplo, saíram de suas casas e vieram para o retiro aqui em Timbaúba. Seus amigos e familiares talvez vão para o carnaval e pensem que você enlouqueceu para pensar em fazer meditação nesse período. Eles diriam: “Uma vez por ano a gente pode se soltar no carnaval, pois ninguém é de ninguém, e você vai perder essa oportunidade? Acho que é um tipo de loucura as pessoas se meterem em Timbaúba numa hora dessas. Mas tudo bem!”
Esse é um nascimento. Todo nascimento tem uma morte.
Então, olhamos com olhos especiais. As pessoas que vão fazer coisas têm nascimentos, de um jeito ou de outro. Algo morre, para outra coisa surgir, mortes e renascimentos acontecem o tempo todo. Vamos supor que vem alguém aqui para o retiro, mas o namorado diz o seguinte: “Independente se você vem ou não, eu lhe convidei para vir a Olinda! Se você não vem, tudo bem. Mas eu vou!” Isso é morte na certa para a relação. Quando voltarem, como vai ser?
“Este estado de existência cíclica em que vocês estão enquanto seres humanos é apenas uma das seis classes de existência.”
As seis classes de existência, ou seis reinos, são: deuses, semideuses, humanos, animais, seres famintos e seres dos infernos. Precisaríamos entender isso.
No CEBB, estudamos também os ensinamentos tradicionais de Gampopa, os ensinamentos de Patrul Rinpoche, das várias linhagens, Lam-rim, Lam-dre, que tratam dessa base.
Nos ensinamentos de Gampopa vemos que os seis reinos correspondem a classes psicológicas. Os infernos não são a densidade do inferno, é a densidade da experiência de sofrimento. Com qualquer corpo podemos experimentar as várias dimensões de sofrimento, as várias dimensões dos seis reinos. Essa também é a abordagem de Milarepa, Gampopa e Trungpa Rinpoche. Todos eles são da mesma linhagem – Kagyu. Quando olhamos isso no CEBB, também interpretamos desse modo. Não interpretamos que existe um reino específico em algum lugar que é o reino dos deuses, ou um reino específico em algum lugar que é o reino dos semideuses, etc. Se nos referirmos desse modo em algum momento, não vamos interpretar como um lugar físico, mas como um lugar sutil. Porque os seres, em corpo físico e em qualquer lugar, têm a liberdade para se deslocar de um reino para outro dentro dessa região sutil. Podem até estar presos, mas têm a liberdade de se deslocar de um lugar para outro.
Quando olhamos que existem esses seis reinos, essas seis classes de seres, é importante entender que podemos oscilar, mesmo que num dia, entre o reino dos deuses, seres famintos, reino dos seres dos infernos, reino dos humanos, reino dos animais, e reino dos seres invejosos, asuras ou semideuses. Podemos oscilar carmicamente e passar por dentro disso num só dia. Esse é o sentido profundo da existência cíclica.
“Apesar de serem incapazes de perceber os reinos mais elevados dos deuses, vocês podem ver o reino dos animais como uma parte integrante do nosso próprio reino humano.”
Esse ensinamento é tradicional. Não conseguimos mesmo ver o reino dos deuses. Eu até sugeriria ver o reino dos deuses, seria como o reino dos deuses gregos e romanos. E mesmo assim, não conseguimos entender bem isso. Como é que Zeus ou Júpiter estão vivos? Como Vênus e Afrodite estão vivas e atuando? Como é que os vários deuses estão atuando? Temos dificuldades de ver.
Todos eles são deuses mundanos. Eles têm raivas, dificuldades, passam por circunstâncias variadas: ora estão bem, felizes, ora brigam uns com outros, são expulsos de algum lugar, etc. Essa é a história dos deuses gregos, por isso são chamados de deuses mundanos. Os semideuses ou titãs e os seres humanos estão juntos nisso também. Quando olhamos assim, podemos ter dificuldade de ver. As pessoas naquele tempo viam alguma coisa, mas eram convidadas a ver. Aquilo pertencia à cultura deles.
Para exemplificar, podemos ver que hoje vivemos quase que uma esquizofrenia. Por outro lado, vocês olham os outdoors, as revistas, as mulheres são apresentadas nuas. E no carnaval, nem se fala. Se tiver roupa da cintura para baixo já é uma grande coisa, pois da cintura para cima, com certeza não usam nada.
Ainda que vejamos isso o tempo todo nas TVs, outdoors, revistas, se vocês tiverem um filho ou uma filha dentro de casa que, de repente, manifesta uma sexualidade intensa, vão achar que tem um problema, isso é o que eu chamaria de esquizofrenia, olhamos um contexto social, mas não pensamos que alguém submetido a esse contexto social deveria, de repente, ficar deslumbrado e simplesmente se mover de uma forma livre. Não achamos isso, pensamos que o filho ou filha que começou a manifestar uma sexualidade intensa tem um problema.
Já na visão grega e romana do tempo dos deuses e semideuses, quando brota isso, eles olham de forma tão normal e tão encantadora como de quem vê uma flor florescendo ou como quem vê os campos floridos na primavera. E não seria isso mesmo? Mas temos um comportamento esquisito. Se as pessoas se manifestam como homens e mulheres com a sexualidade clara, vamos dizer que aí tem um problema. No entanto, ainda que queiramos ocultar esse aspecto, é justamente a sexualidade clara que nos mantêm vivos hoje, em sete bilhões de habitantes. Certamente, alguma coisa as pessoas descobriram. Só que as pessoas descobriram com luz apagada debaixo de um lençol, esse é um ponto esquizofrênico.
Na visão antiga, quando uma adolescente menstrua, eles tomam o sangue da menstruação como uma oferenda para os deuses da colheita e da fertilidade do solo e das plantas. Eles consideram que tudo isso é a mesma coisa.
Não estou dizendo para fazermos assim, no CEBB não vamos fazer isso, não estamos cultuando os deuses da forma. Estou apenas descrevendo o que significa ver os deuses da forma nas coisas, estou tomando isso como exemplo de como é difícil ver os deuses da forma, os deuses mundanos. Por isso, no texto, ele diz: “Apesar de serem incapazes de perceber os reinos mais elevados dos deuses...”
Reflitam: o reino dos deuses da forma dura quanto tempo? Observem o que rege os campos floridos, quanto tempo dura? O que rege a procriação dos seres, quanto tempo dura? Frente à duração da vida humana, isso é uma coisa imponderável. Todos nós estamos submetidos a esses deuses. Todos sofremos em algum momento porque aquilo vem ou não vem. Acho que não tem homem ou mulher que não tenha sofrido dificuldades de vários tipos. Depois, acende uma velinha para um deus e vê se aquilo resolve. As mulheres aspiram engravidar e não engravidam. Tudo isso diz respeito a esses deuses. Mas não falamos sobre isso. Falamos em outro contexto. Não vemos os deuses, não utilizamos essa linguagem.
Por isso Gyatrul Rinpoche, em seu comentário, diz:
“Vocês podem ver claramente como os animais passam por sofrimentos devido às suas várias limitações e ao tratamento que lhes é imposto pelos seres humanos.”
Conseguimos ver o reino animal. Olhamos para um animal e entendemos a mente dele. Dentro do reino humano, olhamos os animais, mas não olhamos dentro do reino deles, olhamos os animais dentro do reino humano. Isso é uma estreiteza. Olhamos assim também o reino mineral. Considero uma coisa escandalosa os economistas se referirem a recursos humanos, recursos minerais, recursos hídricos, recursos marinhos. Existe ainda o “ministério da pesca”. Como “ministério da pesca”? Não tem pesca, tem peixes. Vocês entendem? Ou seja, isso tudo é o olho humano sobre aquilo. O peixe não existe, existe a pesca. Existe o filé de peixe, mas o peixe mesmo não existe. Existe farinha de peixe, pele de peixe, cabeça de peixe, mas não existe peixe. É tudo recurso. Existe potencial hidráulico, mas não existe o rio. E assim segue.
O que isso significa? Vemos os outros reinos dentro do reino humano, com todos os problemas dele decorrentes. Esse é o samsara básico. Olhamos os animais como quatrocentos quilos de bife e churrasco. Olhamos os animais como ossos, pele, pelo, como rabo, chifre. Aliás, dá para fazer bons instrumentos de chifre, excelentes pentes. A pessoa olha e não vê o animal no contexto dele, olha e vê que tem um recurso do corpo do animal. Encosta o caminhão e coloca os bois e vacas tudo ali para cima e depois vai buscar no supermercado na forma de salsicha. Nós não vemos com esse olho. As pessoas que olham para o animal com o olho do animal, choram, mesmo que sejam pecuaristas.
Elas choram quando entregam os animais porque estão olhando com o olho do próprio animal. Um animal de dois anos é um bebê boi, só que está enorme. Ele é vendido – um bebê boi de dois anos – para ser carneado. Aí o pecuarista, com a consciência que ele tem, vê isso e chora. Mas não olhamos com esse olho, terminamos achando normal toda essa matança. Isso significa que olhamos os animais a partir do reino humano, ainda que possamos ver os corpos deles, vemos a partir do olho humano.
“Os seres humanos em conjunto têm que suportar os quatro grandes rios de nascimento, doença, envelhecimento e morte.”
No Zen esses “quatro rios” são chamados de “as quatro montanhas”: nascimento, doença, envelhecimento e morte. Mestre Dogen – o criador do Zen – costuma perguntar: “Quando você está meditando e as quatro montanhas caem sobre você, o que você faz? Como você escapa das quatro montanhas?” Quando estamos inconscientes, estamos em algum lugar e as quatro montanhas podem desabar sobre nós. Nascimento, envelhecimento, decrepitude e morte. Elas não só podem como inevitavelmente vão desabar sobre nós. Os tibetanos chamam de “os quatro rios”. Nascimento, doença, envelhecimento e morte. É inevitável, é certo!
O que fazemos quando isso acontece? Essa é a pergunta. O que fazemos quando as quatro montanhas desabam sobre nós? Isso é um koan. Esse koan prepara a base. Você está ali e as quatro montanhas irão desabar. Você vai fazer o quê, quando elas desabarem? Estamos sem recursos. Isso nos alerta. Quando estamos recebendo as pessoas no posto de saúde, a montanha da doença já desceu. Doença e decrepitude estão ali. A pessoa está tentando escapar da montanha da morte. Mas ela já está sentindo a montanha do nascimento, envelhecimento, decrepitude e doença, e... só faltou a morte. A pessoa vê aquilo, é um momento sensível. Ela pode acordar e decidir usar o resto da sua vida de uma forma que lhe permita atravessar isso.
No sistema usual, para as pessoas que se aproximam de envelhecimento, decrepitude e morte, oferecemos anestesias variadas e tranquilizantes, a pessoa morre anestesiada. É o que podemos oferecer.
“Talvez seja mesmo difícil acreditar em outros âmbitos de existência.”
Todos os xamãs veem os vários aspectos da existência. Não só veem como são capazes de mobilizar, de acionar. Isso está presente, não é alguma coisa... está lá. Nós temos esses planos da existência condicionada, com os deuses, semideuses, etc... e de modo geral é o plano associado ao xamanismo. E temos sambogakaia que são as deidades associadas às mandalas, e temos o Buda Primordial. São níveis de aspectos sutis. Um aspecto sutil associado à mandala é Chenrezig. Posso entender que existem os deuses que regem o nascimento das flores, multiplicação dos animais, a fertilidade da terra, posso entender isso, mas posso também entender que existe Chenrezig nos protegendo incessantemente, porque somos protegidos pelos nossos pais, e dentro de nós brota o lung de proteger nossos filhos. A gente nem sabe disso, mas aquilo está operando. Existem muitas dessas inteligências protetoras operando que eu nem vejo. É um nível de sambogakaia, várias mandalas que estão atuando. Posso não desenvolver essa compreensão. De modo geral no xamanismo, não vemos esses níveis sambogakaia. Mas não estão fechados. Os xamãs podem ver isso., quase sempre os xamãs trabalham na manipulação das condições do mundo, para eles é muito mais interessante os deuses e semideuses do que a visão de sambogakaia. Se os xamãs estão trabalhando com sambogakaia, já são xamãs budistas. De modo geral, todos os lamas são xamãs budistas porque acessam isso e são capazes de introduzir a operação das várias deidades dentro do contexto cotidiano e também produzir bênçãos para a pessoa. Por exemplo, para melhorar as circunstâncias de saúde, as várias coisas a partir da visão da mandala.
Aqui, no contexto da Iluminação da Sabedoria Primordial não estamos acionando sambogakaia. Sambogakaia é acionado especialmente no vajraiana, várias técnicas que, aí sim, têm os mudras, os mantras, sadanas, visualizações, oferendas, para acionar o mecanismo de sambogakaia. Aqui estamos obtendo liberação e lucidez. Quando acionamos a lucidez, estamos num plano acima de sambogakaia, onde a sabedoria primordial nos permite vê-la como um instrumento.
“Enquanto budistas, devemos confiar nas palavras do Iluminado, o próprio Senhor Buda, que, tendo por base seu próprio despertar, proferiu seu primeiro discurso sobre o tema das quatro nobres verdades baseado em sua própria experiência e sabedoria onisciente.”
O que significa sabedoria onisciente? Ela é capaz de penetrar a mente de todos os seres, ela entende os seres. O Buda dizia: “quando eu olho uma floresta, sei por que algumas árvores são retas e altas, por que outras são tortas, por que existe grama, por que existem líquens, existem trepadeiras, cada ser da floresta, eu entendo a mente deles”. Isso significa onisciência. Buda passeia com a mente, a mente dele não é local, não depende dos cinco sentidos, ele tem uma mente que é capaz de ver. Se nós nesse momento entendemos que os seres todos estão sustentados por compaixão, e que usamos compaixão para cuidar dos nossos filhos, não estou vendo isso com cinco sentidos, nem com a mente convencional. Tenho uma mente que me permite penetrar e manifestar essa compreensão, é a mente que se aproxima da onisciência. Não é uma mente focada em alguém e nas suas relações com o processo comum, ela está olhando de forma ampla. A mente que vê os cinco diani budas, as cinco sabedorias búdicas, é uma mente que se aproxima da onisciência da sabedoria primordial e não uma mente que está baseada nos cinco sentidos. Quando vocês estudam o Sutra do Diamante, ouvem: “Os bodisatvas precisam manifestar a sua mente além dos cinco sentidos”. Aqui, quando estamos conversando, usamos os ouvidos, mas não estamos presos a eles, olhando se os sons são desagradáveis ou agradáveis, estamos numa região sutil além dos cincos sentidos. Isso significa a sabedoria onisciente. O Buda não opera limitado aos cincos sentidos, ele está vendo outras coisas. Olhando com esse olho profundo, o Buda viu as quatro nobres verdades. Viu que os seres estão presos a duka, ao sofrimento, e o sofrimento inclui a felicidade usual. Felicidade usual é a porta do sofrimento.
Se vocês quiserem entender isso, é simples. Vocês acreditam, por exemplo, que o amor convencional baseado em desejo e apego, pode produzir sofrimento? Pode, não é? Se vocês descobriram o jeito de não produzir sofrimento, me falem! Estou precisando descobrir urgentemente como desejo e apego não produzem sofrimento. Quando virem casais presos por desejo e apego, rezem por eles, porque o sofrimento é inevitável. A única coisa que podemos fazer é transformar o amor baseado em desejo e apego em um amor que ultrapasse isso, um amor ligado às mandalas. Não quero preocupar vocês, mas vocês têm um prazo para fazer isso. Todo mundo tem um prazo, se a gente entra de um jeito, tem que transformar aquilo.
Chagdud Rinpoche uma vez me disse assim, muito curto: “Não adianta, é perda de tempo. Isso não dá certo. Simples. Amor baseado em desejo e apego, vocês não vão colher senão duka.” Isso é chamado sofrimento. Quando o amor baseado em desejo e apego está funcionando, já tem duka dentro porque o caminho se tornou estreito. O que a pessoa pode fazer sem machucar o outro virou um caminho muito estreito.
Primeira Nobre Verdade: existência do sofrimento. Sofrimento não é sofrimento. É duka. Naturalmente, “duka educa” (risos).
“Uma vez que a condição da existência cíclica é por natureza a do sofrimento, em qualquer dos seis reinos em que vocês nasçam, inevitavelmente experimentarão sofrimento em lugar de felicidade.”
Em qualquer um dos seis reinos que a pessoa renasça irá experimentar o sofrimento, a Primeira Nobre Verdade. Vamos estudar a Roda da Vida, que está lá (apontando o quadro), e todas as nuances. Estudamos com cuidado, temos todos os textos, e esses textos da Roda da Vida devem ser estudados nos vários horários dentro dos CEBBs. Isso faz parte do primeiro item, que é motivação. Dentro do grande item (que a gente não vai explicar para ninguém), estamos estabelecendo a fundação, transformando as experiências de vida da pessoa em uma compreensão da Roda da Vida que vai resultar na motivação de ultrapassá-la. isso é a fundação. Para tanto a pessoa precisa entender as Quatro Nobres Verdades, que existe o sofrimento inevitável onde ela já está. A pessoa tenderá a pensar: “Um momento, os seres humanos existem há tanto tempo, quantos reinos surgiram, quantos cientistas surgiram, é impossível que não tenha resolvido esse probleminha do sofrimento. Isso com certeza é uma incompreensão. Além do mais, temos cursos de filosofia, psicologia, psiquiatria, e etc... Com certeza está tudo resolvido”. Ahn ham , experimentem para ver.
Praticantes budistas que entram em um curso, depois de certa compreensão, como a Andreia, que voltou a Natal para continuar o curso de psicologia. Ela entrou no curso e chegou à conclusão que não vai seguir: “Não vou perder tempo, isso é muito superficial”.
Meu conselho para ela era assim: Entre na pedagogia, os pedagogos são muito interessantes, desenvolvem métodos de ajudar as pessoas a avançar. Isso é uma coisa muito interessante. Mas pretender estudar psicologia para ficar limitado a certo âmbito de observações externas, estatísticas sobre comportamentos, é melhor esquecer. O Darma é muito mais profundo. Quer estudar psicologia? Estude a Roda da Vida. Torna-se muito mais hábil. Se precisar de um diploma, está bem. Então faça psicologia e depois estude a Roda da Vida. Quando trabalhar, vai precisar usar a Roda da Vida e não o restante das coisas.
Aí, duka, sofrimento. O Buda diz uma coisa muito, muito, muito profunda. Ele diz que duka não é algo existente, ou pré-existente, é algo que construímos. Não é uma condição natural do mundo, do sentido sutil ou grosseiro que a gente queria dizer. É uma forma de olhar a nossa experiência e construí-la. Isso já é a compreensão da vacuidade, entendem? Duka brota por coemergência. Quando olho para o mundo de certo jeito, duka aparece. Mas não preciso disso, posso olhar de outra forma. Até posso olhar com duka, mergulhar e sorrir por dentro em meio ao sofrimento. Ninguém precisa fugir de duka.
Quando entendemos o que é duka, há o sofrimento, mas eu não sofro enquanto o sofrimento existe. Há o sofrimento, mas não há a dor do sofrimento. É a Segunda Nobre Verdade: o sofrimento é construído por causas, ele é artificial.
Aí vem a Terceira Nobre Verdade. Sendo o sofrimento artificial, podemos nos libertar dele, da ilusão de duka, de avidya, da estreiteza da visão, nós podemos. Olhem para os animais nos campos, indo para o abatedouro, e vejam se eles têm alguma chance. Eles não vão entender duka, nem avidya, nem a operação de duka, não dá para entender nada mesmo. Vocês imaginem que no meio disso, milagrosamente, um touro levantou a cabeça, sentou, cruzou as pernas e começou muuuuuu....Daí a pouco, todos sentaram em volta. Já imaginaram que coisa mais milagrosa?
Foi o que aconteceu. O Buda sentou milagrosamente e foi capaz de olhar para os seres humanos. Olha se é fácil o ser humano entender ou não, não é fácil. O Buda surgiu 26 séculos atrás e falou isso para os seres humanos. Esses são os Budas. A diferença entre Budas e Bodisatvas é essa. Os Budas chegam em tempos onde ninguém mais está entendendo nada. Eles são capazes de manifestar o auto-surgimento de toda a compreensão. Os Bodisatvas embelezam as terras de Budas, ouvem os Budas e ah!, é isso! Eu faço o meu voto e sigo. E vamos seguindo os ensinamentos que já foram abertos.
Mas o Buda viu duka, viu a artificialidade de duka, viu que o sofrimento pode ser eliminado, viu o caminho para atingir isso. Ele disse: no futuro vai surgir um centro budista que vai introduzir um caminho a partir dos 21 Itens. Isso é um terma sutil, que eu peguei no espaço. Ou seja, há um caminho para a liberação, mas estamos um pouco sonolentos. Ainda que a gente ouça sobre duka, a artificialidade de duka, a liberação, e sobre um caminho para alcançá-la, seguimos um pouco sonolentos. Está bem, fazer o quê?, Mas, nessa primeira parte onde estamos estabelecendo a fundação, significa o quê? Olhamos as quatro nobres verdades e tratamos de entender a nossa vida a partir delas. Quando entendemos a nossa vida a partir das quatro nobres verdades, brota uma motivação clara.
Se amadurecermos dentro disso, a energia muda, e vamos produzindo uma mudança no rumo de nossa vida. Isso é a fundação. Quando ela está estabelecida temos uma energia para ajudar as pessoas e nos liberarmos. A gente considera que o tempo é curto, então precisamos avançar. Não sei se alguém já se sentiu assim: o tempo é curto e precisamos avançar. Isso é a motivação, é a fundação.
Entendemos porque o tempo é curto, o que significa o sofrimento. Entendemos como avançar. Eu acho confortador, por exemplo, que no CEBB usamos as Quatro Nobres Verdades, a Roda da Vida, como base desse processo. Está aqui, Dudjom Rinpoche, Gyatrul Rinpoche estão nos oferecendo. É a nossa base teórica.
O que fazemos? Ampliamos, estudamos com cuidado. Essa transformação é também simbolizada pelo quadro de Guru Rinpoche, com a água, o lótus, que vou falar. E tem esse texto, que eu espero esse ano que a gente consiga publicar na forma de livro, que é o Nascendo no Lótus. Muito importante. Está mais ou menos revisado, mas precisa ser adaptado e arrumado, estendido, para cumprir a função de vermos em lung o nascimento, o nosso nascimento no lótus, para benefício dos seres, para liberação de nós mesmos. Precisamos disso.
Percebemos que a fundação é essencialmente a compreensão da nossa experiência cotidiana dentro da perspectiva do Darma. Quando a gente fala “dentro da perspectiva do Darma”, entra a perspectiva da Roda da Vida até o ponto que brota em nós a motivação de sairmos da Roda da Vida, atingirmos a liberação e ajudar outros seres a atingir também. A fundação da nossa prática é um processamento lúcido da região de confusão. Percebemos que as Quatro Nobres Verdades, na forma como o Buda apresenta, são o veículo para que possamos entender a experiência da Roda da Vida, e entendendo isso, possamos assumir um direcionamento diferente para nossa energia e movimento.
Do ponto de vista da linguagem que estamos desenvolvendo aqui, a fundação vai se caracterizar por uma paisagem ou uma terra pura, não é uma atitude de mente particular, não é um pensamento particular que eu vou localizar. Vou me dar conta de que estou numa região e que é assim.
Por exemplo: vivemos na nossa cidade, cada um tem sua cidade natal e tem um nome. Um dia a gente descobre que essa cidade está dentro de um país, esse país está dentro de um continente, esse continente está dentro de um planeta que se descola pelo espaço livre. Não temos nenhuma garantia do que vai acontecer com o nosso planeta. A gente descobre que ele surgiu há 4,5 bilhões de anos e depende do funcionamento do sol. O sol vai ter mais uns 4,5 bilhões de anos de operação regular, depois vai se transformar numa estrela vermelha, e nesse período os vários planetas do sistema solar vão ser reabsorvidos.
Então, não é assim uma “opinião”. Nos damos conta de que estamos dentro de uma situação ou que nascemos, vivemos e morremos, é inevitável. Nascemos na nossa cidadezinha, vivemos por um tempo e temos a sensação de que temos a vida, não temos a sensação de que estamos condenados à morte, inevitavelmente, de que iremos ter frustrações durante a vida, etc... Não temos essa noção, temos uma visão estreita. Quando estudamos a Roda da Vida, os seis reinos, as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho de Oito Passos, desenvolvemos uma noção de terra pura, de como vamos aproveitar essas experiências comuns aqui e agora, para acelerar nosso caminho. Daí brota uma motivação dentro de nós, que é aproveitarmos as múltiplas experiências. Mas eu poderia estar engajado em alguma coisa do tipo: sou corintiano, ou torço pelo Tingu, pelo Sport. Poderia dizer, não, agora mudei de ideia, vou fazer outra coisa. A gente se dá conta de que está numa região, num tipo de realidade que independe da nossa vontade. Dentro dessa realidade vamos tentar fazer o melhor. O Buda diz: “Essa realidade que parece completamente sólida depende dos nossos olhos”. Podemos ultrapassá-la e atingir a liberação que parece algo impenetrável.
A fundação se estabelece quando olhamos isso como algo que está ali. Não é alguma coisa que posso acessar ou não, que posso escolher. Não tem escolha, eu me vejo dentro dessa paisagem. Quando associo aos ensinamentos, à Roda da Vida, vou tomar a própria condição da Roda como fundação, como base junto aos ensinamentos para decidir como vou me movimentar no mundo. Quando surge a motivação a partir disso, temos a fundação para o caminho.
Essa fundação para o caminho tem uma ação de mente, mas essa ação de mente está baseada numa paisagem. Essa paisagem, não conseguimos sair dela, é definida pela própria descrição da Roda da Vida como o Buda faz, e pela descrição do Nobre Caminho de Oito Passos. A gente entende, é isso. Alguém tem outra ideia? Não tem outra ideia.
Podemos entender ou não entender isso, considerar que é verdadeiro ou esquecer. Mas cada vez que a gente olha, diz: bom, isso é verdadeiro, mas eu posso esquecer e viver como for. Mesmo esquecido, não quer dizer que não esteja operando, está operando. Estou bem lúcido de que aquilo vai operar, quer eu lembre ou não. Quando começamos a movimentar a vida tendo essa consciência, a consciência da possibilidade de liberação pelas Quatro Nobres Verdades, pelo Nobre Caminho de Oito Passos, quando entendemos, estamos transformando a Roda da Vida em terra pura, nossa condição aflitiva está virando uma condição favorável, porque vai nos impulsionar o movimento, estamos fazendo essa ação. E aí temos uma fundação.
A fundação vai se fragilizar, ou não vai estar estabelecida, quando ela for uma “ideia sobre”. Tenho uma ideia e penso que posso ter outras, e como tenho outras ideias, farei outras coisas. Em função dessas outras ideias posso ter outra paisagem, posso estar na paisagem dos deuses, semideuses, humanos, e etc... porque considero mais importante. Mesmo que eu pense sobre aquilo, “bom, enfim, estou fazendo essa coisa”. Me coloco naquela paisagem. Tenho uma fragilidade na fundação, mesmo tendo entendido, aquilo não virou o meu referencial, a minha base, não estou em terra pura, estou no samsara tendo um tipo de ideia sobre outras coisas. Mas ainda que me sinta no reino dos deuses, semideuses, com meus compromissos, minhas coisas todas, tendo que fazer aquilo, eu sinto: não, estou nesse mundo do samsara, estou fazendo tal coisa, sou isso. Ainda assim, a Roda da Vida opera e tudo segue operando, não tenho poder sobre aquilo. O próprio Buda dá o exemplo: as pessoas caminham como uma manada de animais, andam por prados floridos, em direção ao matadouro. Como pessoas conduzindo os bois em direção ao matadouro. Eles param, bebem água, descansam na sombra, dormem, no dia seguinte andam mais um pouco por prados, gramados, lugares floridos, o destino final é aquele. Os animais estão pensando “eu tenho prados floridos, estou comendo grama, está fresco, está bom, então, tudo bem”. Podemos nos abstrair desse trajeto e olhar para o prado florido. Está bem! Não quer dizer que o trajeto todo não siga andando.
Quando olhamos todo o trajeto, simbolizado pela Roda da Vida, entendemos que há a possibilidade de outro roteiro, que é a Quarta Nobre Verdade, o Nobre Caminho de Oito Passos. A gente levanta a cabeça no meio da manada e diz: vou por aqui. Porque ficou claro o que vamos fazer. Mas se estamos fazendo aquilo, ouvindo sobre, aquilo está no nível de mente, não moveu a energia, não mudou a paisagem, não provocou uma ação de corpo. Seguimos fazendo a mesma coisa, tendo uma janela da mente que tem uma informação. Isso não é uma fundação. A fundação é quando a paisagem se estabelece como terra pura, a Roda da Vida junto com o Darma, eu olho e entendo, entendo que aquilo está lá. Nesse caso, tenho pensamentos baseados nessa visão. Isso é a mente. A minha energia acompanha os pensamentos e acompanha a paisagem, ela está coerente, tem um impulso coerente com o pensamento e com a paisagem. No caso, é terra pura, a minha ação de corpo acompanha.
Quando temos corpo, energia ou lung, mente e paisagem acopladas à terra pura que brota da Roda da Vida e do Nobre Caminho de Oito Passos, estou em terra pura, tenho a fundação. Cada vez que paro para pensar, estou na mesma paisagem, na mesma terra pura, e meu impulso é em direção ao caminho. Aí eu vou agir, posso estar trancado, não estar podendo, mas a mente sabe direitinho o que precisa fazer e o impulso vem. Nesse momento não posso fazer nada, aguardo a oportunidade. Estou nesse trajeto, não estou fazendo outra coisa, não estou enganado. Tenho um fio por dentro, não importa o que estejamos fazendo, tem um fio por dentro que conduz esse processo. A fundação vai estar estabelecida.
“Os diferentes estados de renascimento e circunstâncias que os seres nas seis classes experimentam são totalmente dependentes das acumulações cármicas, a lei infalível de causa e efeito.”
Aqui ele está descrevendo a situação cármica dos seres. Não é o ensinamento último, o ensinamento último é que estamos livres do carma, nossa natureza está livre do carma. Aqui ele está dizendo que ela está presa ao carma, que essa é a experiência das pessoas. Está lembrando a sabedoria da causalidade, as pessoas estão presas aos processos causais, desenvolvem estruturas na própria mente e produzem determinados impulsos e ações. À medida que a gente tem visões internas ou regiões cármicas em que está vivendo, as coisas diante de nós ganham sentindo e aparecem impulsos correspondentes. É a infalível lei de causa e efeito. À medida que estamos operando com estruturas de carma, temos impulsos inevitáveis naquelas regiões. Porém, é importante dizer que a nossa natureza, quando vamos estudar o Prajnaparamita, vamos ver que nossos impulsos de ação nem são frente aos objetos, são impulsos de ação que produzem a própria aparência que os objetos e as circunstâncias têm. É mais profundo ainda, mais difícil, não é saber se a gente quer aquele objeto ou não, já é como vemos o objeto, como o construímos.
A relação entre namorados e namoradas, por exemplo. Quando a pessoa olha para o outro, pode pensar: tenho a liberdade de fazer isso, de fazer aquilo, andar pra cá ou pra lá. Mas a forma pela qual a pessoa olha o outro já é o carma estampado. O olhar. Não é o “vou pra cá ou vou pra lá”, quando olha o outro já vê uma estrutura de carma. Por que? Porque construímos os sinos, olho para isso e vejo um sino.
Tem um exemplo interessante da sanga de Pelotas. Uma das vezes em que foram nos visitar em Viamão, viram os banquinhos de meditação. Naquela época, estávamos usando esses banquinhos e muitas pessoas haviam colocado o texto de prática em cima deles. Os praticantes de Pelotas, quando chegaram lá, viram mesinhas, não viram o banquinho. Ninguém desconfiou que seria um banquinho de meditação. Uma vez fui visitar Pelotas e tinha muitos banquinhos, cada um com o texto em cima. Eles tinham feito muitas mesinhas de meditação. Igual, dobrava, tinha dobradiça com a inclinação, tudo igual. “Mas por que vocês fizeram tantos banquinhos de meditação?” perguntei. Responderam: “Como assim, banquinho de meditação? Nós fizemos mesas”.
Isso significa o carma do olhar. Os olhos constroem. Eles não fizeram banquinhos, fizeram mesas. Cada vez que olham para aquilo, veem uma mesa. É bonito de ver, um exemplo claro, a gente pensa que o carma é assim. O que eu faço com a mesa? O carma é ver uma mesa e mais o que eu faço com a mesa. De modo geral, pensamos que o carma se restringe ao que fazer com aquilo. O carma é a relação que eu tenho com namorado ou namorada, é o surgimento do namorado ou namorada com aquelas características que estou vendo. E assim em todas as direções. Relação com a nossa casa, com nosso trabalho, com as outras pessoas, etc., é a mesma coisa. Não é um problema de relação apenas, é problema de como nós vemos. Frequentemente, quando alteramos a forma de ver os problemas de relação, eles mudam completamente, é complexo.
As acumulações cármicas são essas regiões de referenciais que estão operando sem que a pessoa perceba. Há um conceito muito útil, que é o conceito de alayavijnana, é de grande importância. Aqui ele está utilizando a descrição de acumulações cármicas, como acumulações cármicas pessoais. Mas melhor do que a abordagem de acumulações cármicas é a noção de alayavijnana. As acumulações cármicas não são pessoais, não são de alguém, são do grande depósito coletivo. Porque alguém viu o banquinho como banquinho e outro viu como uma mesa, cutucou o outro e disse: vamos fazer mesinhas para nós. O outro viu mesa e foi arrastado carmicamente para uma região de condicionamentos. No fim, estão todos dentro da mesma região de condicionamentos. Se alguém diz que não é mesa, que é banco, ...ploft! passa para outra região. Não é um carma pessoal, é a região onde eles estão. É assim a nossa história. Eles não têm mais carma de olhar e ver mesa, agora têm uma liberdade, podem ver como mesa ou banquinho, estão em outra região. Se eu pensasse que eles fizeram acumulações cármicas em vidas passadas de verem bancos como mesas, como é que eles vão se livrar daquilo? Então é preciso fazer muitas práticas para neutralizar a mesa e tudo aparece de novo? Não é isso, eles têm a natureza livre, se deslocam e pronto.
Assim são as nossas estruturas cármicas, elas não são nossas, passeamos por dentro de alayavijnana. É muito provável que no futuro outras pessoas vão olhar para os banquinhos e ver mesas. E por aí vai.
Temos acumulações cármicas. Elas são essencialmente as regiões onde estamos manifestando estruturas cármicas. Podemos saltar para o reino dos deuses, semideuses, humanos, animais, seres carentes e infernos, se não tivermos cuidado. Está tudo lá, saltamos de uma região para outra. E assim diferentes estados de renascimento. Ao longo de um único dia podemos saltar de uma coisa para outra. Temos que ter muito cuidado para ver a região onde.
Essa região onde estamos, numa linguagem popular, seria assim: “Hoje acordei de ovo virado, com os cornos virados”. A pessoa sente que qualquer coisa não está bem. Essa coisa que não está bem é uma paisagem. “É melhor não trazer nenhum problema, porque hoje não estou bem, se vier isso, sou capaz de brigar, se for amanhã, eu não brigo, mas hoje...” Localizamos uma região que não está bem. Acredito que, muitas vezes na relação com alguém, vocês sentem que ‘aqueceu as costas’ assim. “É melhor eu não dizer nada, ficar mudo, porque agora ‘vai descer’”. A gente pode sentir isso, e o melhor mesmo é ficar mudo. Mas eventualmente não conseguimos ficar mudos, pensamos que a hora é agora, pode acontecer isso. Acho que todo mundo deve ter tido essa experiência.
Isso é a percepção da paisagem. Começamos a localizar a paisagem, os diferentes estados de nascimento... nascimento é assim. Eu me empodero de alguma coisa e vou fazer. Quando a gente se empodera, começa a fazer e se sente fazendo aquilo, é o estado de renascimento. Esse estado, como nos sentimos empoderados e vamos fazendo, são totalmente dependentes das acumulações cármicas, a lei infalível de causa e efeito. Essas acumulações cármicas, vamos considerar assim, são dependentes das acumulações cármicas coletivas da região onde estou.
“As ações do passado produzem como resultado a definição do futuro local de renascimento e as circunstâncias associadas a ele.”
O que eu faço no passado constroi a paisagem que vai definir o impulso da minha ação posterior. Nesse sentido, ela define o futuro local de renascimento e as circunstâncias associadas a ele.
“Falando de modo geral, a causa do renascimento nos dois reinos dos deuses é a acumulação de carma negativo motivado por orgulho, arrogância, inveja, ou agressão. Por causa disso, circunstâncias do renascimento são a guerra constante, competitividade e, no caso dos deuses de longa vida, uma vida cheia de felicidades e prazeres até que o carma seja exaurido.”
A pessoa se move daquele modo até que tudo começa a trancar. Ela não tem mais facilidades, tudo começa a afundar.
“Sete dias antes dos deuses passarem deste âmbito, eles percebem seu futuro local de renascimento, nos reinos inferiores.”
Eles percebem que as circunstâncias positivas exauriram. Os deuses, de modo geral, têm muitas facilidades, as pessoas se alegram em estar perto dos deuses, alegram-se em pertencer à corte deles. Mas há um momento em que há o envelhecimento dos deuses, eles não têm mais o magnetismo, ele deixa de acontecer. Na descrição que se faz nesse caso, diz-se que os deuses repentinamente percebem que estão se aproximando do final de suas vidas. Isso se dá nos sete dias anteriores. Só que nesses sete dias, cada dia corresponde a muitas vidas humanas, é um período longo, é como se fosse um período onde desce uma nuvem negativa e os deuses sabem que não irão conseguir reverter. Imaginem pessoas poderosas que fizeram ações negativas baseadas num certo nível de arrogância. A pessoa, de repente, não tem mais o poder sobre as circunstâncias, não é mais apoiada e o carma correspondente às ações negativas se apresenta. Ela ainda tem a mente associada àquele tempo em que tudo funcionava, mas não tem mais recursos daquele tempo. Isso se dá em sete dias e nesses dias ela se dá conta de que irá renascer num lugar muito difícil porque as condições favoráveis desapareceram, ela não vai mais conseguir facilidades. Vamos supor num contexto atual, o coronel Kadafi. Ele diz: “Eu tive poder, poderia ter feito coisas de certo tipo, e agora está se esgotando, vou lutar até o fim. Mas o que significa lutar até o fim? Vou para os infernos, vou produzir morte, vou matar, produzir todo tipo de coisa negativa e de lá só vou para um buraco negativo. Não tem nada de positivo que esteja na minha frente”. Isso corresponderia, de modo muito elevado, a semideuses, mas é provável que ele esteja nos infernos desde muito tempo. Mas é como se fosse típico de semideuses. Ele sente que tem poder, pessoas ao redor, exércitos. “O tempo passou, eu poderia ter feito coisas, mas agora não há mais planejamento, não há mais nada”.
O resultado do carma anterior produzido pelas ações vai produzir seus frutos. A pessoa olha e vê que toda a condição favorável vai desaparecer e só tem o inferno pela frente.
“Neste momento eles já não têm mais poder para reverter seu carma porque o seu tempo como deuses terminou e um novo mérito não foi acumulado.”
Vamos supor que ele tivesse feito ações positivas, feito alianças em algum lugar, ações que beneficiaram pessoas, que beneficiaram os seres. Nesse momento ele para no lugar em que estiver, e olha para onde poderia ir. É o que nós fazemos. A gente para e olha, diz que o carma positivo que poderia ter gerado não gerei, então não tenho lugar para ir. No caso do coronel Kadafi, é uma situação parecida. Aparentemente não tem nenhum país para ele, para qualquer país que for será preso, os méritos que ele acumulou, o dinheiro que mandou para o exterior, tudo está sendo bloqueado.
Essa é a situação dos semideuses quando chega a um final. O que pode acontecer? Só podem acontecer coisas dos reinos inferiores. Vamos supor que ele fez muita prática espiritual, agora o prendem, e está sereno, vestido de branco, elevado. “Se me torturarem, me julgarem, esse não é o problema. Estou rezando por todos os seres e isso não me atinge”. Ele não tem isso, não fez prática, não acumulou esse mérito em nível nenhum.
“Como seres humanos, vocês sofrem no momento do nascimento, quando estão doentes, quando envelhecem e, é claro, no momento da morte. Os animais sofrem agressões e maus tratos e das necessidades para sua sobrevivência. Os espíritos famintos sofrem intensa sede e fome, os seres dos infernos de intenso calor e frio.”
Quando ouvimos sobre os seis reinos dentro de uma leitura mais profunda e entendemos que podemos passar por isso e sair, automaticamente temos a intuição da vacuidade. Porque os seres não são isso ou aquilo, eles estão se deslocando e percebemos, entendemos como que por coemergência as coisas surgem. A gente entende como o carma fecha nossos olhos e nos permite ver algumas coisas e não outras, entendemos a vacuidade e a coemergência. Seis reinos é muito útil.
Dentro da perspectiva dos seis reinos se diz: um copo de água, para os seres dos infernos, pode ser larva fervente, é algo que pode matar seres. Pode-se pegar um ser, mergulhar na água e ele morrerá. Vocês têm o impulso de matar e usam a água para matar. Podem livrar um móvel dos cupins mergulhando ele dentro de uma piscina, jogando dentro de um lago. Faziam isso na colônia alemã onde vivi por um tempo. Tinha um móvel com cupim e eles jogavam na água. Uma semana depois, tiraram o móvel e deixaram-no secar. Não tem cupim que resista a uma semana dentro da água. Ainda que não haja esse espírito maligno, a pessoa está usando a água como instrumento de morte. Mesma a água.
Os seres famintos olham a água com grande apego, olham como a mosca olha os ferimentos. A mosca varejeira precisa de ferimentos, de pus, para colocar seus ovos. Ela encontra um animal ferido e é ali que vai pôr os ovos. Vocês experimentem espantar a mosca, ela sempre volta. E daí a pouco tem muitas moscas. O animal, se não for socorrido, será devorado. As moscas têm apego aos ferimentos com pus do mesmo modo que os seres famintos têm apego à água.
Os animais olham a água com outro olhar, um olhar tranquilo. Eles deslizam por ela, mergulham, nadam, eles a tomam. É algo que não tem o impulso dos infernos nem a aflição dos seres famintos.
Os seres humanos também. Eles usam a água de uma forma normal. Enchem um copo e bebem, nada excepcional, não estão pensando como os seres dos infernos, os seres famintos, nem como os animais, eles tomam a água.
Os semideuses podem usar a água como instrumento de vantagens no meio da luta, podem vender a água, trocá-la. Podem usar a água como forma de obter vantagens sobre uns e outros no meio de uma competição.
Os deuses têm na água a experiência de um néctar. Olham para a água como uma coisa divina, capaz de produzir a vida, olham de uma forma extraordinária.
Esse é um exemplo clássico do budismo tibetano. Pegamos a água como foco e vemos como cada ser se relaciona com ela. É um exemplo da própria vacuidade. Água é água, mas ela surge na coemergência com a nossa visão.
“Entre os seres dessas seis classes de renascimento, aqueles no âmbito humano experienciam a menor quantidade de sofrimento. Entretanto, os seres humanos, para realmente serem capazes de praticar o Darma, precisam nascer com liberdades e dotes.”
O que isso significa? Se a gente tem um corpo humano, isso é em nível de corpo. Para ter um corpo humano precioso, é preciso ter o corpo, a energia, a mente e a paisagem adequada para seguir o caminho. Se eu tiver apenas um corpo humano sem a paisagem adequada, a mente na posição e a energia, não sigo o caminho, não tenho uma existência humana preciosa. Para ter uma existência humana preciosa preciso de todos esses fatores. Em um sentindo condicionado, eles podem parecer liberdades e dotes. Estou numa situação onde posso fazer coisas, não tem ninguém que me domine, posso fazer as coisas favoráveis. Todos estamos aqui porque temos liberdades e dotes, temos facilidades que brotaram para nós, por isso estamos nesse lugar.
“Apenas po
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humano precioso. Você precisa ter os dotes e liberdades, tais como os seus sentidos intactos e o nascimento em um país onde você possa ouvir o Darma, onde possa realmente praticar, onde possa encontrar com professores espirituais compassivos, e assim por diante. É essencial que você tenha estas liberdades; de outra forma não surgirá a oportunidade para atingir a liberação da existência cíclica.”
Mesmo que os ensinamentos existam na nossa língua e etc. Aí não tem liberdades e dotes, não tem como. Sob o ponto de vista da vacuidade, da coemergência, as liberdades e dotes não são coisas externas, podemos produzir liberdades e dotes. Essa sensação de liberdades e dotes parece que se refere a coisas externas, mas é o resultado da nossa lucidez ao olhar as coisas. Algumas pessoas vão dizer: “eu não posso” e outras, “eu posso”. E as circunstâncias são as mesmas, porque dentro da pessoa, pela forma como ela olha, ela constrói a sensação de poder ou não poder.
“Com essas liberdades e dotes, vocês estão em uma posição de atingir a liberdade ou a felicidade permanente e derradeira neste mesmo corpo, nesta mesma vida. Por outro lado, se você usar de forma incorreta tal oportunidade, por meio deste mesmo corpo você pode acumular carma que produza o resultado do renascimento inferior.”
Então eu construo as realidades por coemergência e fico preso dentro delas , não sei como ultrapassar.
“Como é então que vocês devem seguir o caminho para a liberdade final? Deve ser feito de acordo com o exemplo que o Buda Sakiamuni deu a vocês. Reconhecendo sua preciosa oportunidade, este renascimento humano precioso tão difícil de obter, vocês então seguem o caminho como a primeira prioridade em suas vidas e atingem o resultado que desejam realizar.”
Isso significa gerarmos o fundamento para a prática. A gente tem a paisagem e por causa dela brota a compreensão da mente, brota a energia, e vai para ação de corpo que é seguir o caminho.
“Desta forma vocês se tornam como os grandes bodisatvas ou mestres realizados, sejam homens ou mulheres, a quem vocês admiram. De fato, eles não são diferentes de vocês. A oportunidade que vocês têm neste exato momento é a mesma que eles tiveram. A diferença é que eles praticaram o pleno potencial de sua oportunidade até atingirem a meta final.”
A linguagem aqui é toda assim “você isso, você aquilo”, porque essa é a linguagem do samsara. Estamos falando para pessoas que estão dentro do samsara, usamos a linguagem do samsara. Mas não é assim, não tem uns e outros, não é desse modo, não se trata do trajeto pessoal de alguém. Trata-se de como a natureza livre da mente constrói as realidades que não são externas, as pessoas estão construindo o tempo todo. Qual é a diferença? A diferença é que esses seres praticaram o pleno potencial de sua oportunidade até atingirem a meta final.
Podemos praticar isso? Está ou não está disponível? Está completamente disponível, mesmo quando a gente pensa que não está. Quando pensamos que não está disponível, o nosso olho está vendo, é uma paisagem limitada. Quando nos colocamos em terras puras, vemos que é uma coisa possível e que vamos fazer, significa o fundamento da nossa prática.
“Vocês não devem se ver como diferentes dos maiores mestres ou bodisatvas do passado.”
Ainda assim vocês não devem se ver como iguais aos bodisatvas do passado, como se fosse alguma coisa pessoal. Não devo me ver diferente, com certeza sou igual, já sou um bodisatva do passado. Isso gera problema também, porque estou gerando identidades, não sou diferente no sentido de que a natureza que temos é a mesma natureza desses seres que eles manifestaram e por isso são bodisatvas, podemos fazer a mesma coisa. Só que essa noção de que podemos fazer a mesma coisa, as palavras enganam facilmente. Porque fazemos as mesmas coisas, deixamos de ser nós, já não é nós, assim. Eu, filho de fulano que nasci em tal lugar, estou fazendo tal coisa, não é isso.
A gente morre, deixa de ser alguma coisa e passa a ser uma outra. Essa possibilidade não é um engrandecimento, nem uma medalha no peito, é a morte daquele aspecto anterior e o nosso surgimento de um outro jeito. Quando a gente morre daquele jeito e surge de outro, como pode dizer: eu era uma coisa e virei outra? O que se mantém da coisa anterior para coisa atual? Não são os condicionamentos nem as identidades, o que se mantém é a natureza primordial, a natureza livre da nossa mente. Temos corpo, energia, mente, paisagem e céu. Céu é o aspecto livre que nos permite saltar de uma paisagem para outra. Trocamos de paisagem porque estamos exercitando essa experiência do céu, a liberdade, porque somos capazes de, no silêncio, termos vida, o silêncio agora vai criar uma outra forma da nossa própria vida. Por isso o silêncio une as múltiplas experiências que podem não estar conectadas umas nas outras. Mas ele une, e a gente diz, eu fiz isso e agora faço outra coisa, eu matava e agora cuido das pessoas. Mas o que você fez para acontecer isso? Como que o ser que matava se relaciona com o ser que agora cuida? Não tem relação. A relação é que um deixou de existir e outro surge de outro jeito. O que une um e outro? O silêncio, nossa existência dentro desse âmbito ilimitado, que é a vacuidade.
Essa natureza livre é a mesma, portanto, podemos utilizar isso para ressurgir, voltar a aparecer de outro modo. Qual é o obstáculo que temos? As marcas cármicas, as sensações de que a gente veio de algum lugar e vai para outro lugar, as estruturas de energia que parecem que são a nossa base, as nossas escolhas, esses são os obstáculos.
“Não há de fato qualquer diferença. Eles foram seres humanos com um renascimento precioso exatamente como vocês.”
Quando a gente vê as múltiplas oportunidades fica feliz, mas o impulso para a prática vem quando entendemos que essas múltiplas oportunidades se esgotam. Vem a impermanência e diz que é precisa andar, aí já é a contemplação dos Quatro Pensamentos que Transformam a Mente. Ele está utilizando isso como meio de produzir junto com a Roda da Vida, que ele descreveu, e com as Quatro Nobres Verdades, que descreveu também, e agora associando os Quatros Pensamentos que Transformam a Mente, imagina transformar a nossa experiência cotidiana numa paisagem que é o fundamento da nossa prática. Cada vez que a gente está na prática e fraqueja, pensa: bom, fazer o que, eu não tenho duas opções, só tenho uma que é seguir. Refaço os votos e sigo. É muito importante o fundamento, a fundação da prática. Quando estamos no meio dos retiros, da nossa prática no cotidiano em vários lugares, quando a gente fraqueja, olha de novo, e bom, mas eu não tenho escolha, é isso mesmo, só tenho que seguir. Isso significa estabelecer uma paisagem, uma terra pura onde eu não tenho duas coisas. Tenho só uma coisa para fazer. Quando a gente tem a sensação de ter apenas uma coisa para fazer, significa que a fundação da prática se estabeleceu.
Estamos falando da fundação: transformando o samsara numa base que nos permite seguir no caminho, que faz surgir a motivação para isso, já é um exercício da própria vacuidade, uma grande sabedoria dos Budas, olhem isso como uma enorme habilidade, didático, assim. Tomar o próprio samsara, que é o que temos, e transformá-lo no que nos levaria em direção a dificuldades para andarmos numa direção favorável. Como a base para andarmos nessa direção. Isso é muito útil.
“Contemplar o sofrimento da existência cíclica e o renascimento humano precioso que é tão difícil de obter inspira a vocês para usufruírem esta rara e preciosa oportunidade, ainda que seja a contemplação da impermanência que verdadeiramente os motive para começar imediatamente a praticar.”
O que vai nos impulsionar verdadeiramente a praticar é a contemplação da impermanência. A impermanência não é uma coisa que a gente diz “bom, impermanência, nem quero pensar nisso”. A própria tentativa de não pensar na impermanência é impermanente. Porque a impermanência aparece, é inevitável, impressionante. A gente precisaria entender isso. Devíamos estar com Moryama Roshi aqui, a impermanência se manifestou e ele não veio, não sei se a gente pode dizer que ele virá outra vez, talvez sim, talvez não. Ele está com 70 e poucos anos, está com esse problema e tem que atravessar o planeta, o fuso horário, nesse momento lá são 5 da manhã, não é muito fácil, e pode ser que a impermanência talvez não o deixe vir. A impermanência existe.
Conheci Moryama Roshi há muito anos, temos essa proximidade, essa amizade. Foi no ano de 1993, na época eu tinha 45 anos, parece um tempo muito longo atrás. Moryama Roshi me perguntou: “Como está a sua energia? Tu já não está sentindo que tua energia já não está baixando assim um pouco?” Eu disse: não estou sentindo nada (risos). Agora, quando encontrar de novo o Moryama Roshi, provavelmente ele vai perguntar:“E aí, agora está sentindo a energia baixando um pouco?” Ele tinha 50 e poucos anos. Agora está com 70 e poucos. Isso é a impermanência. Se agora a energia ainda está boa, Moryama Roshi tem paciência e me pergunta: “E aí, ainda tem energia? Como é que está?” É isso... fazer o que? É bom que a gente entenda isso.
“Uma vez que vocês não podem garantir quão longa será sua vida, vocês não têm ideia de por quanto tempo este nascimento humano precioso será seu.”
Não quero aqui preocupar ninguém, mais do que deveria, nem estou olhando para alguém especificamente. Estou olhando para o telhado, aliás, impermanente! Os cupins estão atacando, não quero preocupar vocês... (risos)
Estamos nessa condição favorável agora, não propriamente por lucidez. A gente está aqui porque bateu por ali, bateu por aqui e, de repente, pegou o ônibus errado querendo ir para Olinda e chegou a Timbaúba. Tinha uma placa – retiro budista – ah, isso deve ser baile de carnaval!
“Devido ao fato de que seus nascimentos na existência cíclica resultam de acumulação cármica, vocês começam a compreender que realizando este potencial, devem utilizá-lo imediatamente.”
Tem esse potencial favorável, então vamos utilizar. Não quero preocupar ninguém, mas o tempo passa.
“Vocês também começam a compreender que é extremamente difícil sair de samsara sem alguém que os guie.”
Situação grave!
“Até este momento vocês não tiveram sucesso em atingir a liberação sem um guia.”
Não é verdade? É! Esse é o jeito que a gente vai tentando, vai tentando... De repente vem aqui, ele já conhece, sabe direitinho, como nos pegam.
“É muito importante que encontrem um professor espiritual que seja qualificado e tenha o desejo de ajudá-los a atingir a liberdade.
De acordo com o budismo, o melhor guia espiritual é o Buda como o professor, o Darma como o caminho, e a Sanga como os melhores companheiros espirituais para ajudá-los a percorrer o caminho. Todas as escolas de budismo tomam refúgio na Três Joias como as fontes externas de refúgio. À medida que vocês vão mais profundamente no caminho, o refúgio se torna mais interno. De acordo com as escolas Hinaiana e
Mahaiana, o refúgio é sempre tomado no Buda, Darma e Sanga. Quando você entra no Vajraiana, ou mantra secreto, ainda que o refúgio seja tomado no Buda, Darma e Sanga, de acordo com o nível de entendimento da prática, o refúgio é também tomado no Lama (professor espiritual), no Yidam (deidade de meditação) e na Dakini (princípio feminino de consciência iluminada).”
Fontes externas! Vocês olhem como elas são precisas. O Buda é um Buda interno, o Darma é um Darma interno. A sanga é uma sanga interna, é muito importante entender isso. Mesmo o refugio no lama, yidam e dakini, são refúgios internos. Tem refúgio interno e externo. A melhor forma de entender o refúgio no lama é através da coemergência. Por isso que se diz que não há possibilidade de atingir a iluminação sem um lama. Pode parecer uma maldição, assim, mas entendam isso de outro jeito. Se eu não tiver um lama interno, não consigo ver o lama externo. Quando a gente vê um lama externo é sinal de que surgiu um lama interno. Olhem desse jeito. Isso é coemergência. Quando está surgindo um lama interno, vocês passam a ver expressões de sabedoria de muitas formas, começam a ver o lama surgindo de muitas formas e vão se livrando da noção de um lama pessoal, vão entendendo o lama como uma dimensão de sabedoria. É a forma adequada. Do mesmo modo, yidam, que é uma deidade meditativa, não é um ser, é uma dimensão de sabedoria. Dakini também.
“À medida que a compreensão desse refúgio interno se aprofunda (de acordo com a prática de Maha Yoga), o refúgio é então tomado em nossos canais, energias vitais e fluídos essenciais (de acordo com o tantra mãe Anu Yoga).”
Vocês vão perceber assim. Por exemplo, quando tomam refúgio, brota o lung correspondente, já são os canais, os ventos, já usamos isso na nossa linguagem, a noção dos ventos, dos canais. E usamos a noção da mandala, que é mais sutil ainda, é o lugar sutil de onde os ventos brotam daquele modo, e o refúgio se estabelece de forma natural.
Aqui ele vai dizer “os fluidos essenciais” – na medicina tibetana isso é muito visível. Quando temos raiva, nosso sangue se torna poluído, quando temos compaixão e amor, nosso sangue tem outra característica porque as secreções glandulares são diferentes. De fato, temos os ventos, fluídos, que percorrem as nossas veias, não é verdade?
“À medida que este processo se aprofunda e se torna mais interno (de acordo com Ati Yoga ou o veículo da Grande Perfeição), o refúgio é tomado diretamente na essência da mente, que é vazia;”
Usamos esse refúgio também. A gente diz: corpo, energia, mente, paisagem, mandala, estamos um nível acima. Mandala o que é? Vacuidade, céu, tomamos refúgio na dimensão céu, ou seja, na natureza vazia. Só que a natureza vazia não é ‘vazia’, ela é luminosa. Tomamos refúgio nessa capacidade de dar nascimento às coisas. É visível. Então aqui incluímos Ati Yoga. Quando a gente está falando sobre mandala e paisagem, estamos incluindo vajraiana. Então incluímos a noção de céu, incluímos Ati Yoga.
A sabedoria primordial brota da essência da mente, que é a natureza livre da mente.
“em sua natureza que é radiantemente luminosa; e em sua qualidade, que é compassiva sem qualquer obstrução.”
É a capacidade de onisciência de entender os seres no mundo deles e desenvolver a ação a partir do impulso da compaixão e do amor. O surgimento do Bodisatva.
“Por que estes diferentes aspectos de tomar refúgio são necessários? Porque tratase de um desenvolvimento que se dá naturalmente.”
“À medida que a visão de nossa própria natureza como um buda se aprofunda, nossas qualidades mais internas surgem espontaneamente, como uma criança que cresce.”
No início, quando praticamos meditação olhamos muito o corpo. Depois, começamos a entender que para manter o corpo na prática precisamos da energia, e entendemos o papel da mente para posicionar energia e corpo. Quando entendemos corpo, energia e mente, terminamos descobrindo que tem a paisagem acima que define o que vai acontecer com a mente e com a energia e, portanto, com o corpo. Quando entendemos que tem corpo, energia, mente e paisagem, reconhecemos que tem um nível acima de liberdade, que me permite posicionar numa paisagem ou outra, numa terra pura, numa mandala ou mesmo numa mandala primordial, que é o céu. E percebo esses vários níveis. A melhor forma de meditação, seja qual for, é contemplar esses cinco níveis. Quando praticamos shamata, estamos contemplando três: corpo, fala e mente. Sendo que o foco é mente e corpo, a energia nós quase não descrevemos. E depois descobrimos que o lung está presente, comandado pela paisagem, e o céu está presente também. Temos vários graus de liberdade a mais. Se aprendermos a usar isso a nossa meditação avança muito.
“Quando você entra no caminho espiritual, no início seu foco é mais externo. Isto é natural porque enquanto iniciantes vocês devem se relacionar desta forma. Gradualmente, quando começam a aprofundar, o foco torna-se mais interno e menos ênfase é colocada nos objetos que existem fora de nós. Inicialmente, os objetos são nossos guias e então, lentamente, lentamente vocês começam a ver que, de fato, é nossa natureza verdadeira o nosso guia. No início você deseja emular seus guias, mas eventualmente você reconhece que, de fato, é sua própria natureza. Passo a passo seu foco move-se do externo ao interno à medida em que passa a entender que as Três Joias são os canais, energias e fluídos, e, similarmente, os canais, energias e fluídos são a manifestação da essência, natureza e qualidades da mente.”
Isso é natural. Começamos a olhar o aspecto interno por causa da coemergência. Vemos que o que aparece fora também aparece dentro. O foco começa a passar para dentro. Meditamos em coisas que tem à frente. Depois, começamos a meditar em coisas internas.
A pessoa vai percebendo o fluxo da energia. Ao perceber o fluxo da energia, vai também perceber as secreções e os fluídos, não vai pensar agora que o fluído glandular é o Buda, não vai ter essa ilusão. Mas percebe que, de acordo com a posição em que coloca a mente, a energia se move e os fluídos ocorrem. Tem isso como um referencial claro de como as coisas estão se dando, e uma clara posição de onde ela está quando a energia se movimenta. Na sequência, ela vê esse surgimento dos ventos, canais e fluídos, dependendo da forma como está construindo sua realidade. E vê, enfim, a manifestação da essência que é vazia. Posso construir a realidade de um tipo ou de outro. Tem as paisagens e a natureza que é luminosa, e me permite construir as coisas. E as qualidades da mente que essencialmente é a compaixão que iremos utilizar.
“Muitas vezes a religião budista é vista como um caminho de adoração de ídolos por causa do estilo forte da expressão externa das fontes de refúgio.”
Quando a pessoa tem muitas thankgas, muitas deidades sambogakaia, pensa: “são muitos ídolos”, mas não é assim. Tudo são expressões de sabedoria do próprio Buda. A gente usa uma aparência antropomórfica, mas não é necessário. Aqui estamos usando o silêncio como forma de avançar, ou seja, shamata, não estamos usando as deidades. Ele está fazendo uma introdução geral, que pertence ao contexto do budismo tibetano, mas está focando de fato shamata, vamos avançar por dentro de shamata.
Certa vez fui com Moryama Roshi visitar o Chagdud Gonpa. A sala do Gonpa em Três Coroas, a primeira sala, estava coberta de thankgas, uma ao lado da outra, de fora a fora. O Moryama Roshi disse: “Todos Budas, né?” Ele nunca tinha visto aquilo. Podem imaginar? A imagem do Zen não tem nenhum Buda, tem a parede.
É um pouco a nossa situação. Estamos aqui praticando meditação em silêncio e... por que tem tanto Buda aí? Cada um com uma cara meio estranha, alguns furiosos. Como furioso? se a gente está praticando serenidade compassiva? E aqueles seres vermelhos com armas? Isso é uma coisa estranha. Mas são expressões de sabedorias específicas.
“Tal devoção é necessária enquanto houver a consciência dual. Devido ao nosso hábito de dualidade e apego, é necessário cultuar ou venerar nossos objetos de refúgio como externos a nós mesmos.”
Por um tempo iremos fazer isso. Mas aqui, especialmente, se a gente seguir por dentro dos ensinamentos que está olhando, não vai chegar a fazer isso, vamos olhar os cinco diani budas, as cinco sabedorias e não vamos pensar que aquilo é alguma coisa externa, vamos olhar tudo como interno, e esse interno como expressão da liberdade e luminosidade e da compaixão.
“Particularmente, nas escolas budistas inferiores, é essencial. Por exemplo, enquanto um feto, durante nove meses no ventre, você está totalmente dependente de sua mãe e após nascer está ainda dependente de sua mãe. Quando cresce e começa a amadurecer, você torna-se dependente de seus professores e, eventualmente, de você mesmo. O que você está fazendo é desenvolver estas qualidades dentro de você mesmo. Você não pode esperar que sua mãe ou seu professor cuidem de tudo por você pelo resto de sua vida.
No caminho espiritual – o que se trilha internamente – apesar de parecer inicialmente que há um foco externo, eventualmente você reconhece que todas as qualidades devem surgir e ser desenvolvidas de dentro. Devido à bondade de seus pais e de seus professores, você é capaz de compreender seu próprio potencial. Quando isto se aplica ao objetivo de liberação ou iluminação, vocês devem reconhecer que a iluminação já é sua própria natureza. É a verdadeira essência de sua própria natureza, como o sol. Similarmente, a experiência da existência cíclica ocorre devido à sua própria percepção confusa e aflições mentais. A mente que atingirá a iluminação é a mesma mente que criou este estado de confusão. Todas as imagens dos budas, tankas de deidades de meditação, todas as mandalas, estátuas, e assim por diante, são usadas como suporte através do qual a verdadeira natureza da mente pode ser atingida.”
Não é que a gente vai encontrar alguma coisa, aquilo já está lá.
É importante que tenha um grande mestre dizendo isso. Quando as pessoas entram pelo vajraiana, têm a sensação de que estão encontrando alguma coisa, onde aquilo é muito sólido, muito denso e eu devo fazer muitas coisas, se eu não fizer, vou ter problemas, e aquilo é assim e não é assado, e é tudo muito, muito exato. Parece muito denso, real. É importante que tenha alguém que vai dizer isso.
“...são usados como suporte para que a verdadeira natureza da mente possa ser atingida.”
Quando atingimos a natureza da mente vemos tudo como um meio hábil e não uma coisa que tenha realidade, uma substancialidade em si mesma. Quando vocês ouvem os ensinamentos de mahamudra (vamos simplificar assim, mahamudra é um ensinamento sobre a natureza última para quem vem por dentro do vajraiana), existe um ensinamento desse tipo que é chamado Soberano Supremo. Esse ensinamento clássico é assustador para quem vem pelo vajraiana. Quando a pessoa entra pelo vajraiana, começa a colocar solidez em todas as deidades, a ter fidelidade a algumas, começa a gostar mais de uma e menos de outras. Desenvolve fidelidades pessoais e a desenvolver uma relação como se estivesse se relacionando com alguém. Tem um momento em que vem o ensinamento e dissolve as deidades todas, todos os itens do vajraiana. Abandonamos as iniciações, mudras, sadanas, mantras, oferendas, samayas. Tudo é visto como uma construção oriunda da natureza da mente, um meio hábil, e se dissolve. Nós focamos esse aspecto último.
Os ensinamentos de mahamudra têm um nível em que são um pouco assustadores para quem praticou no vajraiana e desenvolveu apego. Parece também com a pessoa que pratica meditação em silêncio e desenvolve apego. Alguém diz: “Meditação em silêncio vai conduzir você para os infernos”. Porque você está criando um estado particular de mente. E para onde você vai com um estado particular de mente? Não tem nada para construir, você tem é que reconhecer a condição natural da sua mente que já está lá. Você está fazendo o que com a meditação? Está pensando em construir a natureza primordial? Ela já está lá. Você está fazendo uma meditação fabricada, meditação fabricada é o caminho da loucura. Se afaste das meditações fabricadas como quem se afasta de um louco. Isso são os ensinamentos de Dudjom Rinpoche, ou seja, evite o que é fabricado. Esse ensinamento é assim. Primeiro a gente aprende tudo e fabrica tudo, para depois ouvir o ensinamento de como se afastar do que é fabricado. A gente fabrica, aproveita o efeito e depois dissolve e assim vamos adiante. Aqui ele diz isso, que é um pouco chocante muitas vezes.
Para mim, quando achei esses ensinamentos, achei realmente maravilhoso. Aquilo [imagens dos Budas, thangkas, etc.] não é uma prisão, não tenho que aprender aquilo tudo, tenho é que me livrar de tudo.
É como, por exemplo, você tem um médico que diz que você está doente, tome esse remédio, através desse remédio você vai se livrar do próprio remédio. Isso me alegra, não estou tomando um remédio para ficar preso a ele, tomo para me livrar dele. Esse é um bom remédio. Por outro lado, tenho esse outro remédio, se tomar, ele vai ter um remédio para o resto dos tempos. Esse aí não, prefiro esse em que eu tomo e me livro.
“Por exemplo, se você deseja cultivar um jardim de flores ou mesmo uma única flor, você precisa ter água, solo apropriado e fertilizante. Entretanto, não é a água e o fertilizante que produzem a flor; é a semente, a essência, que tem o potencial de tornar-
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potencial tanto de criar samsara, como fez, ou de estabelecer a liberação, a liberdade total de toda dor e sofrimento.”
Ainda assim, olhem com cuidado. Quando a gente diz que tem um potencial de criar samsara, parece que samsara ficou denso, uma coisa existente. Samsara não é uma coisa existente, é um software, uma experiência que eu tenho. Quando a gente diz “criar samsara”, diz: com essas paredes, com esse chão, com essas montanhas, rios, etc.. , como se as paredes, chãos, rios, e etc., tudo fosse alguma coisa pré-existente que eu não dou significado, não produzo a existência, com meus próprios olhos. Volto ao exemplo do sino. Se eu pensar que esse sino que está tocando existe por si mesmo, estou perdido, ele não existe por si mesmo, precisa de um olho que veja isso como sino. Do mesmo modo que a mesa é um banco ou uma mesa.
Quando eu digo: os rios, as montanhas, etc... estou olhando com olhos de recursos naturais, os rios que são recursos, a água e os peixes, que afinal nos alimentam. O gado que produz o couro, a carne que precisamos. Tudo olho viciado. Difícil olharmos e reconhecermos a natureza primordial em tudo, se manifestando ali. Ficamos olhando como um olho condicionado olha. Nesse sentido a gente diz: isso é o samsara. Samsara existe, mas acima do samsara existe um mundo puro, que não tem nada a ver com montanhas, rios e etc. A gente separa. É muito importante que a gente não use a noção de que samsara é alguma coisa que existe nas coisas, não é isso, existe na forma como eu olho.
Mas é justamente a natureza da minha mente, que é luminosa, que tem o poder de criar a ilusão de que é tudo externo e sólido do lado de fora. Essa mesma natureza faz brotar a sabedoria primordial, que é o que estamos buscando. Pego minha natureza e sento sobre ela, olho as construções e me livro das construções, e ando em direção à sabedoria primordial que estabelece a liberação por trás de toda a dor e sofrimento.
“Entretanto, essa natureza precisa de apoio. Da mesma forma que uma flor precisa de água e fertilizante, a mente necessita do apoio de um professor espiritual e prática no caminho para manter-se em contato e vivenciar sua natureza verdadeira.
Uma vez que a compreensão da liberação tenha sido estabelecida, existem dois métodos para aproximar-se dela. Vocês podem aproximar-se de acordo com o caminho Hinaiana, através do qual deseja atingir a liberdade apenas para você mesmo, ou de acordo com o caminho Mahaiana, no qual você deseja atingir a liberação para propiciar a liberação de todos os outros seres. Este último é, de fato, a melhor abordagem, porque inclui todos os seres vivos. Até este momento seu foco tem estado a desejar atingir apenas os seus próprios fins, sempre fazendo coisas com a motivação de autointeresse.”
Estamos focados, isso é o samsara, a gente tem impulsos e quer atingir esses impulsos, estabelece a sensação de samsara. Justamente porque temos impulsos e carências e aspiramos coisas, controlar, ao olhar a natureza, a gente vê recursos. Recursos hídricos, recursos minerais, recursos do solo. Estamos sempre focados com esses impulsos, eles produzem a sensação de um autointeresse.
“Devido a isso, vocês estão ainda em samsara, ainda sujeitos ao sofrimento, ainda cheios de descontentamentos.”
Estamos aspirando coisas de modo apegado, as frustrações são inevitáveis, o sofrimento é inevitável. Dentro do samsara o sofrimento não tem fim, dentro desse software, não tem jeito.
“Isto surge devido à preocupação apenas com vocês mesmos.”
O que seria esse “vocês mesmos”? A gente olha para dentro do samsara e o “vocês mesmo” é um impulso que brota. São as múltiplas coisas que estou equilibrando e quero que aconteça isso e não aquilo.
É interessante observar as crianças. A Carol, com esses 12 alunos em sala de aula, 12 anjinhos de 6 a 7 anos. A gente olha para eles e vê que o ciclo de mortes e renascimentos é rápido. Eles se interessam por uma coisa e aquilo brilha. Ele nasce no meio daquele processo, que não é o objeto, mas o mundo mental que começa a operar a partir do objeto. Quando ele surge operando aquele objeto, devemos observar o objeto anterior que ele já largou, e o que estava fazendo antes e largou, não tem mais o apego nem o sofrimento, porque agora passa a ter esse novo objeto. Ele vai passando de uma coisa para outra e vocês vão ver que ele nunca está apegado ao próprio objeto. Se estivesse apegado ao objeto, não largava. Está apegado ao controle, um processo interno de gerar expectativas e não ter a frustração em relação àquela expectativa, não importa qual tipo de expectativa.
Por exemplo, uma criança que está fazendo alguma coisa. Sem que a gente nem precise dizer “pare isso, faça aquilo”, experimentem fazer outra coisa. Vocês começam e ela para e se desloca em direção àquela outra coisa. Tem um nascimento ali. Não é porque o outro tem apego à coisa, ele tem apego ao apego, ao manter-se sustentando de forma apegada e controlando alguma coisa. Isso é a essência das crianças. Nós também somos, essa é a nossa história, é o ensinamento secreto sobre os brechós, a gente tem apego às coisas e depois se livra delas. Como é possível uma coisa tão profunda?
A gente tem aquilo porque comprou e porque quis, agora não quer mais, e aí? E o brechó dos namorados e namoradas? Como explicar? Acho isso fantástico! Ter muito apego e um tempo depois a pessoa não consegue nem ver. Não só a relação com o outro muda, mas a relação com as fotos antigas também. Isso diz respeito ao processo todo, o que estamos sustentando. De repente a gente não está mais sustentando, nem olha mais.
Observem com cuidado quando estão apegados a algo que estão fazendo. Vocês estão manipulando coisas para aquilo andar, somos facilmente pegos por pequenas coisas, um sino que seja. A gente bate e fala: que bonitinho!
No Zen, quando batem no sino é assim: a gente vai batendo mais curto, mais curto, mais curto e depois vai alongando, alongando. Querem experimentar? Pronto, é isso. Se um pega o outro já fica meio incomodado, eu também quero bater, agora estou brincando. Ninguém pega o meu sino. É isso, e todo mundo fica com vontade. Aí não! O sino é meu. Entenderam?
Só que a gente passa isso de uma coisa para outra, o tempo todo, é essência do ‘’eu’’. Mas a mente é livre para engajar nisso, em outra coisa, só que a gente engaja e fica preso. Mas não estamos presos ao sino.
As crianças têm muitos brinquedos, tiveram apego um dia por cada um deles e agora está tudo dentro de um saco. Tem lembranças do apego. Experimenta o outro pegar o carrinho que está faltando uma roda e começar a brincar. A criança diz: “é meu!” Agora elas querem pegar o carrinho e fazer ele andar. Somos iguaizinhos.
Não sei se já viram ou viveram uma situação assim. A pessoa não é mais a namorada ou o namorado, e, de repente, tem outro controlando o ex-namorado. Dá um surto. “Quem o controla sou eu”. Mas aí já não é mais. E o impulso retorna, e era um problema.
Ou quando os filhos vão para o mundo, e eles vão. De repente, o filho está controlado por uma namorada, e a mamãe diz: “Como que é isso? Você não limpava, não arrumava, não fazia nada por mim e agora, por ela está fazendo tudo. Como é isso?” Surge uma coisa de controle novamente.
Estou explicando isso, para escaparmos da noção de um ‘eu’, vamos entender fora dessa noção. Quando a gente tem interesse por uma coisa e está tentado controlar, diz: “Eu sou isso”. A essência de nós mesmos, no sentido do samsara, é esse refúgio no controle.
“Os budas e bodisatvas abandonaram o conceito de um eu e substituíram o autointeresse pelo interesse pelos outros; eles sempre focam o que podem fazer pelos outros. Sempre pensam, “o que posso eu fazer pelos outros? O que posso fazer para servi-los?”
Eles não estão mais operando com isso. Tenho refúgio lúdico numa coisa que quero ver girando para lá e para cá, quero controlar isso e aquilo. Eles não têm mais isso, substituíram o autointeresse pelo interesse verdadeiro pelos outros, ou seja, pela liberação dos outros. O que eu posso fazer para servi-los, num sentido profundo. Aqui, Gyatrul Rinpoche está explicando em nível de mente. Mas olhamos isso em nível de mandala também. A pessoa está numa mandala, numa terra pura, entende o sofrimento dos seres, olha para os outros e não é só a mente dela, olha e vê o outro em dificuldades, tem aspiração de ajudá-lo. Brota um impulso para ajudar aquele ser, só que brota dentro de uma visão de sabedoria, tendo isso como força motivadora. E brota o lung, não sabe de onde. Se a pessoa é treinada minimamente, ela vê isso como manifestação de Chenrezig, sabedoria da compaixão. É espantoso, está presente não só em mim, olha em quantos seres tem isso. É maravilhoso entender a mandala de Chenrezig, que está presente.
“Tendo isto por força motivadora, a liberação da ligação ao sofrimento é facilmente atingida. Este é um ponto muito importante a considerar.”
A pessoa não opera mais apegada, e o sofrimento cessa. Enquanto vocês estiverem fixados e atenderem os impulsos variados que brotam de jogar isso ou aquilo.
“Enquanto vocês discriminam e apegam-se a si mesmos, vocês mantém-se em samsara; mas se puderem reverter este foco e acalentar o trabalho para o benefício dos outros, este é o caminho pelo qual a liberação é atingida. Desenvolver o desejo de liberar ou iluminar todos os seres vivos é o estágio inicial do desenvolvimento de bodicita, o despertar da mente.”
Depois olharemos isso com cuidado. Vamos usar aquele quadro com a meditação em sete pontos para a geração do Bodisatva.
“Com tal desejo, você necessita desenvolver as qualidades incomensuráveis de imparcialidade, amor, compaixão, alegria e simpatia por todos os seres e suas ações. Uma vez que estes quatro incomensuráveis foram desenvolvidos, você está pronto para praticar bodicita, engajando-se nas seis perfeições.”
É isso o que fazemos aqui. Vocês vão olhar o quadro de 200 itens, as quatro qualidades incomensuráveis: compaixão, amor, alegria, equanimidade. E as seis perfeições: generosidade, moralidade, paciência, energia constante, concentração, sabedoria. É que nos vai dar nascimento como bodisatvas. A partir da motivação a gente vai desenvolver, através daquele quadro, o nascimento no lótus, vamos ver as qualidades que teremos que desenvolver. As qualidades são os meios hábeis, meios hábeis é o quadro de 200 itens. Não vamos praticar as quatro qualidades incomensuráveis apenas com a mente, praticar com o corpo, a energia e a paisagem, como um exercício da liberdade do céu. Isso é o que iremos fazer.
Quando ele diz que deveríamos praticar as quatro qualidades incomensuráveis, é maravilhoso! Mas é no nível de mente. Eu digo: vou praticar as quatro qualidades, mas elas não brotam. O que está faltando? Está faltando lung, energia. Por que o lung não aparece e a mente pensa nisso e às vezes não pensa mais? Ou flutua? Ou só pensa quando está tudo fácil, quando está difícil não pensa? Como é isso? Paisagem, mandala. Temos que nos colocar dentro da mandala e não sair dela. A mandala vem da maturidade da fundação. Quando entendo o samsara inteiro a partir das Quatro Nobres Verdades, do Nobre Caminho de Oito Passos, e entendo o refúgio, estou dentro dessa mandala. Quando sinto que estou dentro, querendo ou não querendo, quando olho para os outros seres brota essa compreensão e a energia correspondente.
E assim vamos desenvolver as seis perfeições, é o conjunto de ensinamentos que a gente precisa desenvolver. Mas esse conjunto de ensinamentos ainda é esquemático, teremos que aprofundar em cada um desses itens. Isso significa o Buda ficar completamente iluminado em cima da flor de lótus.
Gyatrul Rinpoche diz: “Esta foi uma breve abordagem do significado e importância das contemplações preliminares, bem como dos aspectos básicos de tomar refúgio e da geração de bodichita. Estas práticas são pré-requisitos essenciais para a prática de quiescência que é o tema principal de nossa abordagem.”
A prática essencial que vamos iniciar é a prática do silêncio. Para podermos ter êxito na prática de silêncio, precisamos estabelecer a fundação. A fundação, quando se estabelece, produz a motivação adequada, que ainda iremos aprofundar. Vou considerar que esse tema está introduzido, mas não resolvido. Darei as meditações que a gente faz para desenvolver essa motivação, como vamos resolver isso até a fundação se estabelecer.
Quando a fundação se estabelece a meditação é fácil. Sem a motivação adequada, a prática é mais difícil porque temos a sensação de que pegamos nossa energia e a aplicamos penosamente para obter resultados. Quando estamos na mandala, a energia aparece por si e nos movimentamos naturalmente, ela sustenta a nossa prática. Sentamos em meditação e estamos vendo aquilo. Ao ver, estamos sendo sustentados pela energia da mandala. Nossa meditação avança muito mais rápido do que a meditação baseada no controle da mente ou do corpo.
Mas aqui nós estamos estabelecendo a fundação. Não é uma coisa muito fácil. Vocês pensem assim “eu estou doente”. Precisaria mudar agora a minha alimentação. Vocês mudam a alimentação, mas ficam pensando “assim que puder, volto para a pizza, para a manteiga, para a picanha, para a churrascada... Eu me recupero. Vou comer alface, arroz integral, agrião, mas voltarei. Aguardem-me. Eu poderia viver bem desse modo, mas não tem graça nenhuma. Essa coisa de arroz integral e salada não tem graça nenhuma”. Nós dizemos: “eu posso ter uma vida elevada, mas não tem graça nenhuma. O que eu quero mesmo é o samsara by night”.
Então tem esse ponto. Quando nós estabelecemos a fundação isso não acontece mais. É como no meio do tratamento do drogado, ele descobre que o terapeuta é o aliado que ele tem. O terapeuta não é adversário. A mãe dele é a aliada que ele tem, não é adversário. O tratamento é o aliado dele, não é o adversário. A vida dele vai melhorar muito. Aí ele estabeleceu a fundação, assim o tratamento vai funcionar, com certeza. Porque ele está a favor do tratamento. Agora pega um drogado contra o tratamento, ele tem uma boa chance de subverter o tratamento.
Se a gente não estabelece uma fundação não iremos progredir. Eventualmente nós vamos seguir no caminho como uma coisa exótica e lateral. Eu tenho uma lembrança de uma vida passada, acho aquilo mais ou menos interessante, mas aquilo está enquadrado numa moldura que não contamina a minha vida. Eu dou um jeito restrito e não contaminar a minha vida.
Por exemplo, eu já vi isso acontecendo com algumas pessoas. Teve uma cidade aonde surgiu uma pessoa muito hábil, muito inteligente, disposta a ajudar na sanga, potencializar. Eles tinham uma espécie de universidade. O objetivo deles não era aprender, não era incorporar o Darma, não era nada disso. O objetivo deles era de algum modo incorporar os ensinamentos dentro da estrutura deles. Eles ficaram detentores dos ensinamentos dentro de uma estrutura didática deles. Eles não tinham interesse. O ensinamento estava dentro de uma moldura. Ele não contamina a vida das pessoas. Aquilo faz parte do meio de vida deles, mas por dentro do samsara e não o contrário. E quando eu estabeleci a sanga e coloquei a sanga como intermediária e ponto central eles se desligaram. Eles não estavam ajudando a sanga, ajudando uma formação nesse âmbito como estamos nos manifestando. Tinham um interesse bem limitado.
Eventualmente as pessoas que convidam para falar em alguma instituição, alguma empresa. Aquele interesse está completamente delimitado por uma moldura. A gente tem que ver se na nossa vida esse interesse está delimitado por uma moldura. Ou seja, nós temos a nossa vida e, por favor, não mexa nela. Eu quero um quadro que tem cores interessantes. Que eu olho de vez em quando. Isso significa que a fundação não foi estabelecida.
Vamos supor assim. Estamos fazendo uma viagem. Nós temos um motor no barco e temos um motor de reserva. Temos barcos de resgate dentro do navio. Quando estamos fazendo a viagem a gente acha, que inutilidade esse segundo motor. Que inutilidade esses barcos de resgate, esses flutuadores, sinalizadores. Que inutilidade esse monte de comida empacotada. Mas se vocês tiverem certeza de que o barco vai bater numa certa hora, vocês estará olhando tudo aquilo como algo que faz parte da própria vida. Enquanto a gente não acha que aquilo que faz parte da vida, aquilo só atrapalha. É como bolsa de mãe em viagem. Aquilo tem de tudo, de modo geral. Qualquer coisa, ela abre a bolsa e tira dali. Os filhos dizem, olha que inutilidade, a bolsa da minha mãe. Aham! Tudo bem, mas no meio da viagem quando a coisa aperta, quem é que tem band-aid, pinça, tesoura, botão? Quem é que tem o protetor solar, o chapéu? Agora abre aquela bolsa e é mágica, tem tudo. Esse é o ponto.
A gente precisaria estar harmonizados com a bolsa da mamãe. Não estar contra. Estamos ali olhando. Isso é o estabelecimento da base. As meditações, as complicações todas fazem parte desse processo. De modo geral os adolescentes tem uma vida muito simples. Não, eu não preciso de nada. Em volta, cada vez, tem alguém suprindo. Nós no samsara somos um pouco assim. A gente vai indo e estamos desequipados. O barco vai bater. É certo. Ou vocês nunca viram um barco batendo? Todo mundo vai se enroscar. É certo! A gente precisa estar minimamente equipado para flutuar em condições exigentes.
Chagdud Rinpoche dizia: é bom que a gente aprenda a nadar antes de cair na água. Isso significa nós tornamos a nossa atual circunstâncias, olharmos ela com olhos hábeis. Entender o que está acontecendo. Pra entender, a gente olha a roda da vida. Isso é o que está acontecendo. Pra entender de forma profunda isso nós olhamos as quatro nobres verdades. Ou seja, aquela situação é assim, mas ela não é solidamente assim. Ela construída sob condições. É permitida uma esperteza nossa. Essa situação difícil que se desenha ela pode ser desmontada. E tem um caminho de treinamento para isso. Com essa compreensão a gente pega cada pedaço que seria um quadro de dificuldades e transforma aquilo numa certa vantagem, desde que eu consiga ultrapassar aquilo. Quando eu junto essas duas perspectivas, das dificuldades com a possibilidade de eu ultrapassar as dificuldades, as próprias dificuldades se fundem o caminho de superação delas e produzem a nossa motivação de agir. Por isso a fundação.
O aspecto da fundação culmina quando nós estabelecemos a motivação. A motivação não é apenas para nos liberamos das dificuldades. É uma motivação altruísta, uma motivação de Bodichita. Que eu vou explicar. Enquanto eu falo aqui, falo da motivação do caminho do Ouvinte. Caminho Hinayana. Eu estou com problemas, eu devo me treina para eu escapar. Na motivação Mahayana é um pouco diferente. Eu sei que tenho problemas e agora eu olho em volta e vejo que todos têm problemas. Incluindo meus filhos, esposa, marido, sogra, todo mundo. Agora não me basta nadar ate a margem e olhar meus filhos sendo arrastados pela corrente. Eu preciso um jeito de ajuda-los também. De uma maneira que todo mundo saia disso. Isso é o que se chama de motivação altruísta.
Eu lembro a da situação que até já citei esse dias. Desse casal que estava passando por uma estrada e uma barragem rompeu e veio a água que arrastou o carro para dentro de um rio. Antes de o carro afundar, eles tinham dois filhos pequenos num banco de trás. E a menina disse: papai, não me deixa morrer. O papai disse que com certeza! Só que daqui a pouco estava o pai e mãe do lado de fora e o carro arrastado e as crianças morreram. Na visão do caminho do Ouvinte, a pessoa pensa, bom, eu estou apenas molhado, mas estou bem. Perdi o carro, mas isso não é um grande problema. Caminho do Ouvinte, a pessoa se salvou. Agora, quando olho os outros, os outros importam ou não importam? Importam! É bom a gente saber que os outros importam. Esse é o caminho Mahayana. Não basta nós sairmos das coisas, não basta nós não estarmos drogados, não basta a gente ter recuperado a saúde. As outras pessoas, elas estão afetadas, e elas vão ser arrastadas pela corrente. É uma questão de saber se vamos ter a habilidade de as pegarmos ou não. Seria uma ingenuidade pensarmos que eles não importam. Eles importam. Ou seja, a dimensão Mahayana está presente dentro de nós. Nós não nos ocupamos apenas com a nossa vida. Muitas poucas pessoas nadariam para a margem e ficariam despreocupadas com os outros que estão sendo arrastados. Isso é a motivação Mahayana.
Hoje nós vamos examinar esse ponto. Quando a motivação Mahayana se estabelece isso é a fundação. A gente viu a complicação toda, entendeu que há um caminho, entendeu que aquilo não é sólido, aquilo pode ser ultrapassado, há um caminho para isso. Mas nós precisamos acordar e integrar essa dificuldade como um mapa da situação que estamos vivendo.
Vocês imaginem aquelas crianças cinco minutos antes da água pegar e arrastar o carro. Eles estão brincando com o carro, não tem a menor idéia do que irá acontecer. E nós também. Estamos brincando, não temos a menor idéia do que vai acontecer. Se o pai tivesse consciência do que iria acontecer teria parado o carro, nem entrava naquilo. Mas vamos supor que no lugar que ele estivesse já não tinha mais tempo, mas ele tem cinco minutos. Aquele cinco minutos ele vai fazer alguma coisa. No mínimo tentar tirar as crianças de dentro do carro, tentar manobrar e retornar. Alguma coisa.
Quando nós olhamos esse quadro todo, a gente vê a situação real que estamos vivendo sob o ponto de vista ilusório. Uma coisa curiosa. A situação real sobre o ponto de vista ilusório. Como que pode ser uma situação real sob o ponto de vista ilusório? Mas é isso. A situação como nós experienciaríamos toda a circunstância. Como todos os seres, sem nenhuma chance.
Daí vem o Buda e ele tem meios extraordinários. Ele vai nos ensinar maios extraordinários. Ele tem o Darma, é um meio extraordinário. Como que a gente vai ser colhido e vai sair lá do outro lado. Mas se a gente não entender que essa é a situação e que essa explicação é útil para nós, não é uma coisa paralela que vai atrapalhar a nossa vida. Se a gente entender que o terapeuta é um aliado no processo todo, um aliado na nossa própria vida, e isso faz sentido para os nossos amigos, também estamos prontos para tomar essa situação toda como o caminho que nos impulsiona em direção às próprias práticas e transformações que vamos precisar. Como alguém que treina para nadar e pode cair na água. Nós iremos treinar para ultrapassar isso. Só que não é assim: pode ser que a gente caia na água. Nós já estamos na água. Por enquanto estamos flutuando. Mas ninguém tem garantia nenhuma de qualquer coisa. Acho que todo mundo já foi lascado alguma vez. Algum acidente, alguma coisa. É muito provável. Eu já tive. Fui lascado umas duas ou três vezes. Estou aqui como sobrevivente. Todo mundo como sobrevivente aqui.
Nós precisamos gerar a atitude mental. Atitude de corpo, energia, mente, paisagem, céu que nos permite mergulhar nisso, nadar e sair do outro lado. Isso significa estabelecer a fundação. Quando estamos trabalhando dentro de uma perspectiva formal do budismo tibetano, essa fundação culmina com uma prática que é chamada de ngondro. A gente vai ter essa perspectiva. Na visão da sanga do CEBB nós não praticamos o ngondro no sentido formal. Na perspectiva de uma única sanga – a sanga de vários diferentes professores – nessa grande sanga muitos praticam o ngondro, outros não praticam. Como nós não somos a sanga do CEBB, somos a grande sanga, nunca a sanga é de um grupo, a sanga é a grande sanga. Vocês também estarão expostos à possibilidade de fazer ngondro em outras conexões. Uma das conexões que vocês vão estar expostos é a partir da vinda de SS Sakya Trizin e o filho dele. O filho dele vai dar iniciações de ngondro. Quem quer seguir pelo caminho Sakya tem essa possibilidade. Aprender por dentro do caminho Sakya tem esse pressuposto. Vamos fazer a fundação e os outros ensinamentos vêm na sequência.
Aqui, na nossa perspectiva, se nós entendermos isso, estudarmos a roda da vida e integrarmos na nossa vida, fizermos as meditações correspondentes ao nascimento do Bodisatva, a Bodichita, que eu vou explicar, nós estabelecemos a fundação.
O estabelecimento desse Bodisatva que culmina no aspecto da fundação é assim: ele tem sete elementos simbólicos que podem ser descritos a partir daquela imagem de Guru Rinpoche. Padmasambhava significa ‘aquele que nasceu no lótus’. Padmakara. Pema Jungne em tibetano.
O décimo dos doze elos é Bhava. Bhava é nascimento. Nós nascemos com nossas identidades comuns. O que significa o nascimento de uma identidade comum? Imaginem assim. O nosso nascimento segundo uma identidade comum. Alguém prestou concurso e agora entrou no trabalho. Carteira assinada, primeiro dia de trabalho, ela teve um nascimento. No início, essa chegada, ela não é uma coisa muito fácil. É como também a chegada e uma criança na escola. A gente vê isso todos os anos agora lá no CEBB. Esse nascimento é uma coisa complexa. Vem a criança com a mãe e vê o professor que ela não conhece. O local que não conhece. Vai ter que se despedir da mãe e entrar na escola. Isso não é uma coisa muito fácil. No entanto, um mês depois, dois meses depois, seis meses depois, a criança chega lá e entra fácil. Significa que ela teve um nascimento. Deu-se um nascimento. Aquele aluno da escola nasceu. Não tinha nascido. A criança estava nascida, mas não o aluno. A gente olha o que é esse nascimento. Ele diz respeito ao nascimento do samsara. Significa que a pessoa olha para alguma coisa, no caso a escola, e ela imediatamente tem pensamentos relacionados a atividades que ela vai sustentar, coisas ligadas ao controle.
Por exemplo, a coisa mais fácil numa escola é assim, na entrada os pequeninhos, a gente tem um parquinho, porque eles estão entrando, a gente tem um parquinho. Escorregador eles entendem. Agora, quando eles estão no escorregador e a mamãe diz “tchau”, aí o escorregador pode apagar, pode ter um apagão, e eles teriam um renascimento na condição anterior no qual a mãe saindo é uma aflição. Agora a gente já descobriu isso. Tem nos temos uma areazinha ali e já estamos comprando um parquinho micro para os pequenos. A criança chega e a gente já engana eles. Eles olham e isso já facilita né. Depois é só os guardar puxarem as grades e colocarem os cadeados (risos).
O que nos dá nascimento? É um olhar e uma sequência de coisas que a gente um pouco de controle sobre elas. A gente começa a administrar o controle, mas aí vocês olham internamente o que acontece. A mente começa a operar a partir daquelas circunstâncias que estão ali. Vocês olham o pulmãozinho deles e eles olham o parquinho... Os cinco lungs aparecem. Nascimento corresponde aos cinco lungs operando. O olhar aparece e aparece o lung dentro, uma energia, que mantém eles conectados àquilo. Essa sensação de que apareceu uma energia, que está ligada ao prana, isso dá nascimento. Vocês olham o que nos mantém cotidianamente, é o olhar de coisas desse tipo. Vocês acordam, e hoje ‘tal coisa’. Nós vivemos a partir disso.
Às vezes, as pessoas quando têm uma relação afetiva, elas duram mais. Porque elas têm um interesse pelas coisas. Elas têm um trabalho, tem uma vinculação, elas vivem mais. Com certeza. As pessoas envelhecem quando elas perdem o interesse pela vida. Aí a energia não pulsa mais. A pessoa não trabalha, não namora, vê televisão, vai morrer. Passa mal. Se não morre fisicamente, morre mentalmente, vai afundando assim. O que nos mantém vivos é o lung.
Aqui nós vamos fazer uma mudança desse processo onde olhamos para alguma coisa, nos interessamos e geramos o lung. Que é o processo que nos distrai o tempo todo. Nós vamos fazer uma mudança disso para o caminho de Bodichita. O caminho de Bodichita é extraordinário. Não é um caminho comum. Não é alguma coisa do samsara. É outra coisa. Ele estabelece uma terra pura.
Então a gente precisaria olhar com cuidado, por isso eu dividi isso nesses itens todos, para que a gente tenha tempo de examinar como que essa passagem se dá. Ela tem que se dar item a item, até o final. Então aqui eu estou explicando a culminância da fundação.
É uma coisa curiosa. Antes de explicar isso nós vamos colocar isso nos blocos dos ensinamentos. Aí depois da fundação o que tem? Começa o treinamento do Bodisatva. Fundação não é nada ainda. A fundação apenas significa que a pessoa vai à escola de natação segundas, quartas e sextas. Por seis meses. É só isso. A pessoa nem foi na primeira aula. Vocês veem como é complicado. A gente pegar as circunstâncias da vida e misturar com areia e cimento e gerar um bloco, onde nós podemos nos apoiar para então começar o caminho.
Na abordagem do CEBB, fundação seria acolhimento. Acolher as pessoas. Acolher e conseguir significar a vida delas por dentro do Darma de tal modo que elas tenham um interesse em seguir adiante. É crucial.
Os mestres vão dizer: sem a fundação, não anda. Não anda mesmo. Tem pessoas que já nascem fundadas. Já nascem com a fundação estabelecida. Eu quando olho para trás, não precisei desenvolver fundação, era como se eu já tivesse vindo com a fundação pronta. Eu olho para trás e não tenho a menor dúvida. Não duvidei e em diferentes etapas da vida onde eu fui cobrado em abandonar a fundação, eu abandonei a cobrança e segui pela fundação e paguei todo preço, por pior que fosse. Paguei serenamente, sem nenhuma dor, sem nada. Simplesmente segui. Sem problema nenhum. Isso desde a minha juventude. Bem jovem. Cruzei tranquilo.
Era natural para mim sentar em zazen porque a fundação já estava pronta. Eu sento em zazen e eu sei o que estou fazendo. Mas para a maioria das pessoas é necessário o estabelecimento da fundação como uma arquitetura cuidadosa a ser estabelecida.
Se a escola Caminho do Meio estabelecer a fundação para as crianças, nós estamos ultra felizes. É uma boa meta. Porque assim as pessoas andam. A fundação para alguns pode ser muito fácil, tem pessoas que têm isso intuitivo, natural. Estão ali, sem problema nenhum. A fundação está estabelecida. Para outros, não tem jeito. Essa tal de fundação não tem como. Eles são capazes de pegar qualquer coisa e converter em outra coisa. Capazes de negociar com todos os fatores e trocar por vantagens dentro do samsara. Não vão adiante. Como um drogado que negocia apoio para poder seguir na sua prática.
O Nascimento do Bodisatva
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A Água
Esse ponto do nascimento do Bodisatva começa com uma contemplação desse quadro que tem sete pontos notáveis. O primeiro desses pontos é a água. Tem o lago, água, lodo, o talo do lótus, a florescência do lótus, o Buda, a radiância e o céu. Sete pontos.
A água significa: os seres sofrem, têm sofrimento, eu passo por sofrimento, os outros passam por sofrimento? E então chego à conclusão de que isso é assim. Vamos encontrar sofrimento em vários níveis. A gente poderia perguntar: eu já passei por sofrimentos, já solucionei, já verti lágrimas? Eu estou imune a isso? Não estou. Vamos olhar em volta o mundo. O mundo está imune às lágrimas? Não está. Vocês podem olhar os seres humanos e olhem os animais. Chega a dar pena ao olhar os animais. Eles veem que vão morrer, que serão mortos, e choram. Então aquilo é doloroso. A gente olha: a dor existe.
Quando a gente pensa em recursos naturais, não estamos pensando que, quando vem o trator, ele vai acabar com a vida de uma quantidade enorme de seres. A gente não vai ver isso. Mas isso está acontecendo. Quando a gente olha para os seres com esse olho, a gente vê que o sofrimento existe.
Se a gente pensar: bom, ele existe, mas podemos terminar com ele. A gente vai descobrir que não consegue terminar com o sofrimento. O próprio Buda, (se conta) quando era criança, viu dois pássaros bicando uma minhoca. Cada um puxando a minhoca para um lado. Ele se deu conta de que a situação era grave no mundo. Porque ele entendeu que havia um interesse legítimo da minhoca e o interesse legítimo de um pássaro, e o interesse legítimo do outro. Irreconciliáveis. O sofrimento não é possível de ser eliminado dessa forma.
Tem outra história do Buda, ele não era iluminado ainda. Numa vida anterior ele estava sentado, meditando numa encosta de montanha e então ele ouviu um rufar de asas pesado e pousou uma pomba. E a pomba disse: me proteja mestre, estou sendo perseguida. E o Buda cometeu a bobagem de dizer que iria proteger. Disse: pode deixar. Daqui a pouco vem um rufar de asas mais pesado ainda e um grande abutre pousou do lado e disse: mestre, me dê a pomba. Ela é o justo pagamento de um dia de perseguição. Se eu ganhar a pomba, tenho força para voltar ao ninho e proteger meus filhotes. Se eu não a tiver, eu morro e os filhotes também. Aí o Buda teve uma ideia. Eu tenho um pacote de proteína de soja (risos). O Buda olhou e a carne mais visível por ali era a própria dele. Eu vou dar um pedaço do meu braço, do tamanho da pomba, nem um grama a mais, faço a negociação assim e o abutre come, volta e está tudo resolvido. E vocês não me vêm com essa historia de novo que eu não aguento, né... Conta-se que aparece magicamente uma balança e uma faca. O Buda, corajoso, descarnou o braço e botou em cima do prato da balança, só que a pomba era mais pesada. Aí ele foi descarnando, descarnando, mas a pomba era sempre mais pesada. Lá pelas tantas ele pulou em cima do prato dessa balança, e assim os pratos se equilibraram. Era assim: uma vida por uma vida. Para salvar a pomba deveria dar a sua vida. Não era dar um pedaço do corpo. Mas aí o Buda estava um pouco comprometido, todo cortado. Situação difícil. Daí se conta que caiu uma chuva, de um néctar, que recompôs o corpo do Buda. O abutre e a pomba eram dois dos deuses indianos testando a boa vontade do Buda: Vishnu e Shiva. Até onde iria o voto de Bodichita de salvar os seres?
O Buda se deu conta de que a situação é complicada. Ou seja, dentro da lógica usual, não há propriamente uma solução. Quando nós nos alimentamos, esse problema retorna. A gente dedica o alimento, o nosso esforço para benefício dos seres, aos que inevitavelmente morreram. Sejam lá insetos, ou o que for, eles morreram. Não tem como equilibrar isso, a não ser que a gente faça o voto de que nosso esforço de vida cause mais beneficio e redução de dor, do que a dor inevitável que está embutida no alimento com que nos alimentamos. Porque não é simplesmente uma questão de sermos vegetarianos ou carnívoros. Os tibetanos fazem uma conta lá bem complicada. Eles dizem que os vegetarianos causam mais mortes que os carnívoros. Eles matam um boi e alimentam uma porção de pessoas. Agora, quando tu vai te alimentar de vegetais mata muitos seres para poder colher aqueles vegetais. Há divergências, mas esse raciocínio, no mínimo, nos ajuda a entender que tem impactos dos dois lados. Ou seja, não tem comida limpa sob o ponto de vista de morte. A única forma de limpar o alimento que a gente utiliza é dedicar nossa vida ao benefício dos seres, que aquilo seja frutífero, e que possa compensar de algum modo o sofrimento que a nossa própria existência causa aos seres. Isso é meio complicado. No caminho Mahayana o voto de Bodichita comum isso é complicado. Depois tem o voto extraordinário, aí é um pouco diferente.
Mas aqui estou olhando apenas a água. Existe o choro pela dor ou não? A gente descobre que existe. A dor está imersa na existência.
O Lodo
Existem as ações não virtuosas e os obstáculos e a negatividade que impulsiona as nossas ações e produz o sofrimento? A gente entende que sim. Isso é perfeitamente descrito pelos doze elos, seis reinos, os três animais e pela estrutura toda da roda da vida. A estrutura da roda da vida é um detalhamento do lodo. Nós temos um lago, com as lágrimas no lago, a água. Lágrimas dos seres. No fundo desse lago há o lodo que representa a negatividade, a ignorância, a fixação, o engano, que nos leva a produzir aquele tipo de dor.
Essa parte de associar dor ao engano é interessante. Por exemplo, vocês já devem ter percebido que coisas que fizeram vocês chorarem não mudaram, mas não fazem mais vocês chorar. A gente não chora por causa das coisas. O choro é um pouco diferente. Então, qual é a razão que nos leva a chorar?
Isso é a entrada da vacuidade. Você chorou ontem, mas hoje não mudou nada, então por que você parou de chorar? Uma semana depois, a pessoa não só não chora mais, como tem raiva de ter chorado. De ter chorado um dia por aquilo. O que mudou? Não mudou nada. Mas mudou dentro. Isso é coemergência. O choro está associado à coemergência. O que nós vemos está associado à coemergência. A energia que se move está associada à coemergência. A gente precisa entender isso. Mas aqui não é o ponto. Aqui basta a gente entender que as pessoas podem não ter essa compreensão e estarem frágeis frente ao sofrimento, e então elas choram. Essa fragilidade frente ao sofrimento inclui a ignorância: a não compreensão da vacuidade, da natureza que não nasce e não morre, e de todo o surgimento e a liberação da roda da vida – tudo isso é a ignorância. O fato de ter ignorância é o lodo que gera as próprias lágrimas.
Nós temos um lago e esse lago tem a água com as oito qualidades. Tem oito fatores da mente: tem a mente dos olhos, a mente dos ouvidos, etc. E tem alayavijnana e tem a consciência fundamental. Nós temos oito consciências, que são as consciências da roda da vida. Essas consciências deludidas operando dão sentido às coisas e as pessoas têm seus sofrimentos. Aí as lágrimas correm.
O Talo do Lótus
Os Bodisatvas, quando têm lucidez, podem ver brotar dentro deles um talo de lótus. Ou seja, quando eles veem as negatividades e o choro, eles se comovem e querem ajudar os seres. Eles podem, por exemplo, quando virem as negatividades, ficarem agressivos frente à negatividade que está aparecendo. Não é comum, automático e completamente natural quando a gente vir alguém se comportando mal a gente querer ajudar a pessoa. De modo geral, quando a gente vê alguém mal, quer distância. Brotam os infernos.
Se tiver alguém agressivo se aproximando de vocês, vocês não pensam que essa pessoa precisa ser socorrida. Vocês pensam: eu preciso me proteger e eventualmente atacar essa pessoa. No mínimo, isso me dá raiva e eu me perturbo. Mas não está brotando compaixão, por exemplo.
De acordo com o tipo de negatividade que nós encontramos, não achamos que deveríamos proteger aquelas pessoas. Se nós temos inimigos, lutamos contra eles, e se caso eles foram derrotados e agora eles choram, talvez estivéssemos até comemorando. Então não é tão simples a gente imaginar que vê alguém imerso na negatividade e vai brotar em nós um talo de lótus, que é a motivação de ajudá-los. Isso não é automático.
O Lótus
Acredito que todos vocês já tiveram esse tipo de experiência. Tem um amigo que está em dificuldade, mas vocês não têm meios hábeis de ajudá-lo. Isso é uma dificuldade. A gente aspira desenvolver a habilidade de ajudar aquela pessoa. A gente se sente incapaz. Estamos ali, temos a motivação de ajudar, mas não tem um meio hábil para prestar ajuda. Acho que vocês já devem ter visto pessoas deprimidas, psicóticas, aflições variadas, alguém acidentado e vocês não souberam prestar ajuda. A gente se sente mal. Aspiramos ter condições de ajudar. Quando temos condições de ajudar, isso significa que nós temos o lótus. O Buda senta sobre um lótus de mil pétalas. Mil pétalas significam mil habilidades diferentes de ajudar os seres. Só que mil não são mil, significa ilimitadas. Senta sobre aquele lótus vasto.
Guru Rinpoche está ali. É muita pétala que tem no lótus dele. Lótus gigantesco. Ou seja, aquela motivação, que é o talo, se abre em muitos meios hábeis. Nós podemos gerar esses meios hábeis todos e ainda assim nós estamos fazendo uma outra coisa. A gente não senta sobre os meios hábeis. A gente não passa a se manifestar através dos meios hábeis. Usamos os meios hábeis como uma caixinha que abrimos de vez em quando. Estamos fazendo uma outra coisa. Os Bodisatvas sentam sobre os meios hábeis. A vida deles é exercitar essa função de ajudar os seres que estão imersos na água, no lodo, eles veem brotar o talo, e aí aparecem os meios hábeis e eles se movem dentro disso.
A Radiância
Quando o Buda se senta de fato sobre isso [o lótus], surge uma coisa extraordinária que é o lung da mandala. Quando ele faz isso surge uma energia que sustenta ele. Do mesmo modo que as mães, cuidando dos filhos, podem perceber o surgimento dessa energia de felicidade, de sustentação, que permite que elas cuidem das crianças e façam tudo funcionar. Isso está ligado à sabedoria da igualdade. Quando ajudamos os outros seres somos sustentados pela mandala, automaticamente. Isso já é um sinal da mandala. A gente poderia ajudar os seres e só se desgastar. Mas ajudamos os seres e somos sustentados. Isso corresponde à radiância em volta do Buda.
O Céu
Porém, tudo isso, ou seja, o lago, com sua água e lodo, o talo do lótus, a florescência do lótus e a radiância, está dentro do céu. O céu significa a lucidez de que aquilo é uma condição particular de manifestação. O céu, imóvel e sereno, pode produzir muitas manifestações, entre elas, a manifestação dos Budas e Bodisatvas. Com isso, a gente se coloca na perspectiva da grande mandala de Kuntuzangpo, do Buda primordial.
Então, esse exercício a gente precisaria fazer. Se nós vamos gerar uma terra pura, significa que nós vamos ter que não apenas praticar metabhavana, ou seja, que o outro seja feliz, que supere o sofrimento etc., mas a gente precisaria ver com mais detalhe. A gente precisaria saber se quando nós olhamos para os outros seres, por exemplo em metabhavana, se a gente vê a dificuldade do outro (que é o lodo), vê o sofrimento do outro (que é a água), e dentro de nós brota um talo, nós temos os meios hábeis que aparecem como uma flor, nós sentamos sobre aquilo e irradiamos. E nesse momento a gente diz: que o outro seja feliz, supere o sofrimento, encontre as causas da felicidade e supere as causas do sofrimento . Nós temos meios hábeis de propiciar isso, de ver isso acontecer e agir desse modo.
Esse é um detalhamento dessa motivação de Bodichita. Motivação de metabhavana. Agora, como é que vamos fazer isso nas nossas vidas? Do mesmo modo que a gente vai praticar metabhavana, a gente vai fazer uma lista de pessoas, de seres, que são felizes, ou que são infelizes, que estão próximos a nós, etc. Vamos precisar olhar esses seres com esses olhos. A gente pode começar com os filhos.
Eles têm as negatividades correspondentes ao lodo como descritas na roda da vida? Se tiver aquela listagem já é bingo! Tem em todos. Essas negatividades produzem sofrimentos para eles ou não? Bingo! Aquilo que não está produzindo sofrimento agora vai produzir depois. O que brota em nós? Brota a sensação de que ele é a cara do pai e por isso é assim? Ou que não obedeceu a mamãe e por isso é assim? Seria um equívoco. A gente deveria entender que aquilo corresponde à roda da vida. Aí brota o talo em nós. A gente diz: eu me empodero como alguém que não vai desistir, eu vou fazer esforços dentro disso. Isso é o talo. Vou fazer esforços, mas eu não tenho habilidades. Então, eu aspiro desenvolver essa habilidade, que é a florescência, e para poder sentar sobre isso e no meio dessa irradiação trazer benefícios reais aos seres. Quando a gente estabelece essa motivação, a fundação se completa.
Aí nós precisaríamos estabelecer algum nível de prática que nos permita acessar de forma viva isso. A terra pura não vai surgir porque a gente entendeu isso. Surge por dentro dos olhos. As transformações efetivas não surgem pela compreensão. Surgem por dentro dos olhos. Por exemplo, vamos supor que vocês têm que comer saladas e não picanhas e quando vocês chegam ao buffet ao olhar para picanha os olhos brilham e para salada, não. Qual é o problema, a compreensão? Ou o próprio olhar? Os tibetanos descobriram isso. Nós temos mentes associadas aos olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Temos que operar dentro dessas mentes. Como que introduzimos isso dentro dessas mentes? A gente puxa aos olhos a pessoa que a gente tem dificuldades e examina as dificuldades da pessoa. E vê realmente: reino dos infernos, dos seres famintos, etc. enquanto a gente olha para a pessoa. Ela chora, tem sofrimento? Com certeza. Ao olhar para isso, brota em mim o impulso de ajudar ou não brota? O impulso tem que brotar. Se o impulso não brotar é só teoria.
Nós treinamos aquilo até o ponto em que o impulso brota. Quando a gente vê aquela pessoa, a primeira coisa que a gente tem não é mais uma aversão. Mas é agora uma aspiração de que o outro se liberte do sofrimento. Aquilo brota nos olhos. A gente precisa treinar com cada um. Portanto, tem uma prática que vai levar algum tempo, para alterar as nossas relações. E quando a gente alterar o conteúdo da relação, isso é uma grande alteração nas nossas vidas. Aí a fundação se estabeleceu. Bodichita se estabeleceu.
As práticas de meditação, as práticas de retiro, as práticas todas, necessitam dessa transformação preliminarmente, senão elas não produzem efeito. A gente flutua.
Tem um processo de meditação que a gente pode fazer. Pegamos alguém à nossa frente e olhamos isso. É necessário, para poder fazer esse processo de meditação, que a gente tenha estudado a roda da vida. Para entender o que é o lodo. De modo que a gente escute a palavra lodo e já saiba do que se trata. Nós olhamos para as pessoas e localizamos os obstáculos. E vemos se brota em nós esse impulso.
Na estrutura do CEBB fazemos práticas contínuas de metabhavana. A gente faz isso continuamente. Por quê? Porque não é rápido. É necessário se engajar por um longo tempo. Longo tempo significa alguns anos. Vamos ter que fazer essa prática constante durante esses anos. Nosso olhar começa a mudar. Não é uma coisa rápida. Com o tempo, com a mudança do olhar, a sensação do que é o mundo muda também. Nesse caso, nós começamos a entender o que é terra pura. Começamos a nos sentir dentro de terra pura, dentro de um lugar regido por aquilo e justo por isso nos permite avançar. Isso é o resultado da fundação.
Essa dinâmica passa por uma compreensão de que não basta a gente ter os olhos mudando, é necessário que os olhos dos que estão ao redor mudem também. Caso contrário, quando chegamos aos lugares o nosso olhar é limitado ou pressionado pelo olhar dos outros. É como se vocês estão chegando aos infernos, todos estão enxergando com raiva e agindo a partir da raiva. E vocês olham com compaixão aqueles seres e parece uma coisa completamente fora de propósito. Parece alucinado. Assim, nós precisamos da sanga. Nós não só temos que avançar individualmente e também avançar protegendo os outros, mas temos que avançar enquanto sanga. Porque a sanga produz um olhar coletivo que sustenta o olhar individual e aquilo anda.
3.3 Quiescência
Hoje iremos entrar na parte de quiescência. Dentro desse texto eu tenho uma chave, uma parte desse texto, que trata de quiescência. A primeira parte é introdução, a segunda parte é a base, ou seja, a fundação, que já examinamos. Agora estamos entrando na quiescência.
Estamos comparando também esse texto, porque já foi explicado que ele é a origem do Programa de 21 itens. O Programa de 21 itens é como se tivessemos dividido o texto em blocos que terminam comportando 21 itens de modo cíclico. Tomamos o texto como a base das nossas práticas no CEBB, nos retiros, nas varias atividades, mesmo aquelas em sala de meditação, dos vários CEBBs, GEBBs, eles podem não perceber que isso está conectado ao texto, mas está tudo conectado. Ou seja, a maior parte das atividades no CEBB e grupos de estudo estão no estabelecimento da fundação. Nossos retiros curtos, de fim de semana, meditações, estão ligados à quiescência, que vamos olhar. Outro bloco: nos acalmando e podendo usufruir da nossa mente como um instrumento benigno no caminho.
Tem outras práticas, os pujas, especialmente ligados a Prajnaparamita que é o desenvolvimento da compreensão sobre a natureza da realidade. Uma vez que a nossa mente se acalma, somos capazes de ter foco e mesmo que a gente não tenha uma calma completa, uma estabilidade completa da mente, o fato de que ela está mais estável permite ter flashes de compreensão do Prajnaparamita e da natureza da realidade e das coisas. Quando entendemos melhor a natureza da realidade das coisas, praticamos melhor a própria shamata. Elas andam juntas. A gente compreende melhor a Prajnaparamita, aprende melhor a compreensão da vacuidade, é mais fácil compreendermos o aspecto luminoso da realidade. E vamos avançando dentro do próprio objetivo do texto que vou descrever até compreendemos a natureza lúcida que é capaz de construir as coisas e desatar as complicações onde elas estão. Isso significa desenvolvermos métodos do lótus, a flor de lótus. Temos não só a intenção de trazer benefícios aos seres, mas desenvolvemos meios hábeis para tal. Estamos fazendo esse trajeto.
As múltiplas atividades da sanga dizem respeito a isso. A parte final é intuição. A intuição é a ação natural no mundo. Vamos treinar visão, meditação, ação e fruição. Ação Darmata, Instituto
Caminho do Meio e etc. estão trabalhando na área de ação no mundo, estamos treinando isso.
Quando vemos o aspecto de fruição, ela é alguma coisa que acontece por dentro da mandala, sem esforço. Não é algo que estou treinando para fazer, é algo que brota de modo natural, lúcido. Estamos buscando esses movimentos todos.
Assim, dentro do conjunto de ensinamentos descrito pelos 21 itens e que está executado dentro da sanga do CEBB, e através de diferentes instituições, locais, dentro desse programa complexo vamos tratar de meditação em silêncio, que é o objetivo do nosso retiro.
Quiescência. Por que está entre parênteses a palavra shamata? Porque quiescência é uma palavra complicada. O que ela significa? É manter-se quieto. Mas é bom que a gente tenha a palavra correspondente aos textos originais. A palavra quiescência, já nos primeiros parágrafos do texto, está igualada a shamata. Gyatrul Rinpoche começa o texto dizendo que essa é uma prática que compreende uma combinação de tópicos muito rara. É a união de mahamudra aplicada à prática conhecida como a meditação shamata ou quiescência. Para nós agora essa palavra ganha um sentido muito agudo por causa dos ensinamentos do prof. Alan Wallace. Ele está trazendo o projeto shamata e aquilo tem uma visão muito definida na forma como ele está colocando. É importante estabelecermos pontes. O que estamos tratando aqui como shamata é um pouco diferente do que o prof. Alan Wallace colocou no sentido do detalhamento da prática. Ele não falou de quiescência pura e impura como Gyatrul Rinpoche está falando, não está descrevendo uma forma como Gyatrul Rinpoche descreve, mas é muito parecido. É importante dizer isso porque vamos incorporar também os ensinamentos de Alan Wallace, o que é muito fácil. Quando vocês veem shamata pura e impura, a gente pega aquele bloco e substitui pelas práticas de shamata do prof. Alan Wallace. Vai dar o mesmo efeito, a mesma coisa. Se vocês quiserem, mantenham shamata pura e impura como uma ponte por fora, um caminho paralelo. As várias formas de shamata que o prof. Alan Wallace descreveu. Não vai fazer tal coisa e efeito que nós estamos buscando aqui. Se olharmos de uma forma mais detalhada, veremos que o efeito é um pouco diferente, mas cumpre o mesmo trajeto. Nas práticas do prof. Alan Wallace, ele aspira chegar a realização de shamata. Essa realização de shamata essencialmente é o repouso no estado fundamental. Que não é a natureza primordial. Estado fundamental ilusório, porém estável. A diferença entre o estado primordial e o estado fundamental, é que o estado fundamental pertence ao samsara, e a natureza primordial é o samsara elucidado. Quando agregamos o conhecimento do Prajnaparamita, o conhecimento da vacuidade sobre a natureza da realidade e das experiências que estamos vivendo, podemos experimentar a natureza primordial.
Quando não entendemos e praticamos meditação, podemos ir até um grau de estabilidade, mas é uma estabilidade dentro da experiência comum da realidade. Não temos uma compreensão da vacuidade e nem da natureza que a produz, nem da coemergência, não temos nenhuma descrição desse tipo. Só sentamos em silêncio. Essa descrição da sabedoria primordial viria depois. Aqui, a descrição de quiescência também se dá assim. Eu pratico shamata e não tenho a sabedoria primordial. A sabedoria primordial está descrita dentro do próprio texto como uma etapa posterior. Então, primeiro acalmo a mente, capaz de focar, e depois a sabedoria aparece. A mesma forma como o prof. Alan Wallace apresentou. Só que ele diz que quando a gente pratica shamata, mesmo sem atingir, sem entender a vacuidade, podemos atingir uma realização de shamata que é uma estabilidade perfeita. Ele vai dizer que temos um estado de lucidez e de felicidade extraordinário. Que é um pouco a descrição de Gyatrul Rinpoche.
Só que na meditação proposta aqui, a técnica é diferente do que a gente faz para obter isso.
Um pouco diferente do que o prof. Alan Wallace descreve, mas o trajeto é o mesmo. Dentro do Programa de 21 itens é o que estamos fazendo. Se houver alguma diferença de enfoque é porque estamos seguindo a abordagem desse texto, seguindo a abordagem aonde não precisamos atingir a realização, acalmamos a mente, esse é o ponto principal. É a abordagem do Programa de 21 itens. Quando acalmamos a mente, ela se torna um instrumento melhor, não é um instrumento perfeito mas é um instrumento melhor. Agregamos a sabedoria primordial, Prajnaparamita.
Aqui então, ele não introduz metabhavana, mas a gente completa a base, a fundação com metabhavana, vai curando as relações todas e completa a fundação.
Porque introduzimos shamata antes? Porque ela nos ajuda a ampliar o poder de metabhavana. Quando estamos com a mente mais calma, mais facilmente praticamos metabhavana. Se estamos com a mente caótica, temos dificuldades.
“Qual é o benefício de repousar pacificamente, permitindo que a mente permaneça estável, em um estado natural de imobilidade?”
Qual é o problema? É que na medida em que ela tem esses impulsos mentais nós temos renascimentos, no sentido ordinário. Estamos parados aqui, de repente, temos um impulso e começamos a viajar no que vai ter no almoço, o que vai ter na tarde, e não conseguimos aproveitar nada, porque a gente está com foco e aquilo salta. Esses seriam os impulsos mentais confusos, não temos foco na mente.
As pessoas não aprendem matemática, tabuada, não aprendem coisa alguma. É necessário que desenvolvamos essa habilidade, ela não é assim, de alguém. A pessoa diz que tem a mente confusa, não é isso, não vamos tomar a mente confusa como característica de alguém. A mente saltitante é um obstáculo, precisamos remover esse obstáculo. Para isso, shamata.
“Até que você seja capaz de desenvolver a quiescência, não será capaz de controlar ou suprimir os impulsos mentais confusos. Eles continuarão a surgir e controlar a mente. A única forma de lidar com eles e por um fim nisso é atingir a quiescência. Uma vez que seja atingida, todas as outras qualidades espirituais surgirão desta base, tais como conhecimento transcendental, clarividência, a habilidade de ver a mente dos outros, recordar o passado, e assim por diante. Estas são qualidades mundanas que surgem no caminho mas são desenvolvidas apenas após a mente ser capaz de repousar pacificamente.”
Observem isso. Uma vez que seja atingida, outras qualidades espirituais surgirão dessa base. Tais como clarividência, ver a mente dos outros, recordar do passado, são qualidades mundanas. Por que colocar assim? Porque se refere ao mundo comum. Não entendi vacuidade, não entendi coemergência, Prajnaparamita, ainda penso que ao redor é sólido. Mesmo assim desenvolvi conhecimento transcendental, clarividência, habilidade de ver a mente dos outros e recordar o passado e assim por diante.
... Qualidades tais como consciência aguçada e clarividência precisam ser desenvolvidas porque através delas é que alguém consegue compreender...
Isso seria ir adiante. Tenho que desenvolver essa habilidade porque através dela é que mais adiante vou poder olhar além dos olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente. E ver o aspecto sutil da realidade. A partir do aspecto sutil poderei desenvolver e vivenciar a natureza fundamental da mente. É uma etapa posterior. Vou apenas estabilizar para depois fazer isso. Com isso ela já está dizendo: ainda que a gente obtenha resultados, cuidado, não é o ponto ainda, vamos ter que fazer coisas depois.
Quando li esse texto a primeira vez fiquei muito impactado. Quem vem por dentro do Zen está fazendo essa prática, buscando atingir a estabilidade. É muito perturbador descobrir que atingir essa estabilidade é um estado mundano da mente, muito perturbador isso. É muito difícil atingir a estabilidade da mente. Tu treinas, sofre, doem as costas, doem os joelhos, deixa a família, deixa as pessoas, faz retiros. E quando tu chegas naquilo, bom, isso aqui é prática mundana. Difícil não é nada ainda.
Quando Chagdud Rinpoche deus os ensinamentos de shamata, ele foi mais detalhado. Ele disse que surgem 24 estados mentais que podem conduzir a renascimentos desfavoráveis. Eu já tinha estudado isso. E tem os ensinamentos da tradição páli que dá o nome de todos os estados. É jinana isso, jinana aquilo. Todos esses estados estão mapeados e correspondem a renascimentos em reinos dos deuses específicos. Por que reino dos deuses? Estabilizo a mente e voo em mundos parciais que parecem ser acessos a realidade e liberdades. E não são. Estados condicionados da mente. Se eu não tiver a mão de alguém que me retire disso, posso ficar preso por um tempo indeterminado dentro desses obstáculos.
Mesmo a meditação em silêncio é um perigo, preciso dizer isso. Na época do Zen quando falava sobre o assunto, eu só lembrava do Lankavatara Sutra, o texto básico do Zen. Diz-se que Bodidarma atravessou a Índia até à China levando o texto do Lankavatara Sutra debaixo do braço. Ele é representado como o Lankavatara Sutra, é um texto complicadíssimo, muito longo. Estudei aquilo como quem arranha com as unhas a pedra, é muito profundo, maravilhoso. Em uma das partes do Lankavatara Sutra que também é perturbador e corresponde a isso, o Buda diz: a pessoa estabiliza a mente, fica completamente serena por um tempo indefinido, aí diz que atingiu a iluminação. Quando levanta e põe os sapatos de novo e se movimenta no mundo, o mundo está igual. A pessoa vê o mundo com seus carmas de novo. Os carmas afloram e tudo aflora igual. A pessoa não conseguiu mudar, ela consegue assim, diante das coisas amortece e recolhe, mas quando ela olha de novo e se movimenta, volta tudo como era. Isso significa a consciência fundamental, ela não está na natureza primordial, de liberdade, está em um estado condicionado amortecido pela própria prática. O que é uma boa coisa, mas é insuficiente. “A única forma de ir adiante é atingir a quiescência...”
A quiescência é uma etapa nesse caminho.
“... uma vez que seja atingida toda as qualidades espirituais surgem dessa base. ”
Imaginem assim. Se a nossa mente oscila como a gente pode ter algum grau de profundidade de atravessar a ilusão da própria aparência? Sem chance. Não há possibilidade de cruzar em direção à liberação sem desenvolver a qualidade de estabilidade da mente. Porque a fragilidade da mente diante dos impulsos variados é o obstáculo. Não existe outra parede que não essa. Se eu estabilizar a mente começo a cruzar a barreira dos significados, mas se eu nem estabilizar a mente, nem me dou conta dessa barreira, simplesmente salto de um lado para o outro.
“A única forma de lidar com esses impulsos e por um fim é atingir a quiescência.”
A gente atingiu a quiescência e pensa que tudo está resolvido. Não! Então, eu atinjo a quiescência e atinjo as qualidades mundanas. Essas qualidades precisam ser desenvolvidas porque são um instrumento através do qual vamos ser mais capazes de adiante vivenciar a natureza fundamental da mente. A quiescência não é o estado fundamental da mente, é algo que vai surgir como instrumento para eu poder atingir esse estado. Mas para poder atingir a natureza fundamental da mente, preciso compreender sabedoria primordial que é um dos itens que ele vai tratar mais adiante.
“Como é dito no Bhodhicaryavatara, um dos mais importantes textos mahayana, “tendo desenvolvido entusiasmo desta forma, eu concentro a minha mente; pois aquele cuja mente é desatenta, está sujeito às aflições mentais”.
Quando vocês olham a existência cíclica, quanto mais profundos puderem compreender essa expressão, melhor. A forma mais profunda é entender que a experiência cíclica são renascimentos, eles são essencialmente surgimentos da mente que a gente tenta controlar e sustentar. O esforço de sustentar alguma coisa. Isso se dá com a sensação de alguém controlando algo, dá uma sensação de existência.
Não estamos mais controlando, sustentando coisas, focando e sustentando algo, que é o que usualmente fazemos o tempo todo. Estamos fazendo outra coisa. Porque quiescência é a experiência de contentamento mental, contentamento nos acalma. Não estamos mais fazendo esforços. Em que o êxtase é muito mais sublime que as atrações ordinárias. É uma experiência muito importante.
Vocês vão se perceber praticando shamata desse modo ordinário, comum. A quiescência queima o samsara. Quando estamos sentados e praticando assim, a experiência que temos dentro da quiescência é muito melhor do que a experiência do samsara agitado. O samsara agitado nos atrai menos, não tem tanto poder de atração porque a experiência concentrada, a energia estável, é muito mais agradável do que a experiência confusa do cotidiano. A pessoa tem a memória de quando estava serena, imóvel, lúcida, viva, e entra nessa coisa.
A pessoa pensa: muito melhor essa condição. É natural surgir nelas a vontade de abandonar a atividade comum e viver num lugar mais calmo onde possam praticar ou viver em retiro, viver em meditação. Brota esse impulso.
“A mente automaticamente afasta-se do apego e atração à existência cíclica, porque a quiescência é a experiência de contentamento mental e êxtase que é muito mais sublime do que as atrações ordinárias que surgem da percepção confusa. Quando a mente está em paz, pode ser dirigida para concentrar-se por períodos indefinidos de tempo.”
A pessoa sente e tem a sensação de que pode ficar o tempo que quiser. Quando intui que vida e morte são aspectos ilusórios, pode até pensar que senta e não levanta mais. É comum os praticantes, numa certa etapa, terem esse tipo de experiência psicótica, eles podem sentar ali e pronto, não levantam mais e adeus vida cruel, adeus, mamãe.
“A quiescência destrói a delusão porque as aflições mentais não surgem quando alguém estiver vivenciando a equanimidade da concentração unifocada.”
A delusão necessita que eu olhe para alguma coisa e produza um significado e o significado produza a energia que me arrasta. Perde essa magia, porque ela vem do movimento, e se eu paro, não tem o movimento, a delusão perde o poder.
... Porque as aflições mentais não surgem quando estamos experimentando a equanimidade da concentração unifocada...
Porque não está saltitando, nem quer saltitar. A prisão ao mundo necessita que eu olhe para alguma coisa e o olhar vai me dar uma ação mental que eu tomo como objeto, e quando olho como objeto, me dá outra ação mental e produzo uma outra coisa e ela se torna um objeto. E eu saio saltando de uma coisa para outra. A concentração unifocada é a interrupção, esse processo encadeado, ciclos de mortes e renascimentos, é interrompido.
“As pessoas que atingiram a quiescência naturalmente experimentam compaixão na medida em que se dão conta das condições a que as outras pessoas estão submetidas.”
Surge a compaixão limitada, que é uma compaixão do caminho do ouvinte. Tudo isso aqui por enquanto é caminho do ouvinte. A pessoa está usando disciplina e estruturando a mente. Isso poderia ser uma disciplina Theravada. Tem uma compaixão limitada que surge no silêncio, ela olha os outros e vê que estão perdidos. Ela tem essa compaixão, mas não tem meios. É como se tivesse o talo do lótus, mas não tem a flor. E se ela se levantar entra na confusão em que o outro está, ainda não tem a capacidade de levantar e ajudar. No caminho Theravada vocês veem isso. Nós, como temos esse contato, Bhante Rahula, por exemplo, que esteve no Caminho do Meio, a gente vai ouvir deles que todo o tempo fora de meditação é tempo perdido, precisamos nos manter em meditação. Esse é o ponto. Mesmo dentro do Zen tem umas interpretações assim. Do tipo, o que o Buda faz para atingir a iluminação? O que é o zazen? Zazen é a prática da iluminação. O que Buda faz quando atinge a iluminação? Ele prática zazen. Simples, para atingir a iluminação eu prático zazen, pratico uma vida toda ritualizada e aquilo é a minha prática. A gente perguntou para o Bhante Rahula: e a compaixão, onde fica? A compaixão é assim: se eu acalmo a minha mente, pratico e dedico a minha prática aos seres, estou praticando compaixão. O mais profundo que eu posso fazer é dedicar o meu silêncio, a minha lucidez aos seres.
A postura Mahayana inclui a geração de meios hábeis para podermos ajudar os seres. Mas a compaixão está presente em todos esses casos.
“A compaixão pura surge quando se começa a perceber claramente a natureza da vacuidade em todos os aspectos da realidade. “
Isso já é outra coisa. A compaixão pura é chamada de o aspecto absoluto da compaixão, é quando percebemos a natureza da realidade, a natureza das coisas. Ou seja, ter a visão profunda da realidade é chamado de compaixão absoluta. Isso está descrito no Lankavatara Sutra. O mestre Dogen, do Zen, privilegia isso. Não vai dizer para fazer escolas, fazer hospitais, ajudar as pessoas aqui ou ali, desse ou daquele modo, ele vai dizer para praticar a compreensão da natureza primordial. Esse é o aspecto fundamental da compaixão.
“Estas são apenas algumas das qualidades ensinadas pelo Buda que resultam diretamente da vivência da quiescência.”
Começamos com a introdução e depois a fundação. A fundação é a base da quiescência. A quiescência é a preparação e base da prática principal. Vejam como é complicado. A gente vem por estágios, preciso trabalhar longamente para obter a fundação. Depois trabalho longamente para obter a base e a preparação da prática principal que nem descrevi ainda, estamos no terceiro dia e ainda nem chegamos na prática principal. A gente não sabe o que ela é. Mas se eu não tiver a preparação e a base da prática inicial não entro na prática principal, posso ouvir sobre, mas não pratico. Se não tiver quiescência não vou entrar na prática principal, não tem como.
“A quiescência é a preparação e base da prática principal que é o cultivo da sabedoria primordial da intuição.“
Essas palavras são assim porque foram todas traduzidas de textos em tibetano para o inglês:
sabedoria primordial da intuição. Eu preferi encontrar as palavras em sânscrito. Em tibetano, pelo menos entre parênteses. Sabedoria primordial. Isso é rigpa.
“Estas duas formas de meditação são complementares. O sucesso que uma tem em desenvolver a intuição está na dependência do sucesso que se tenha em desenvolver a quiescência.“
Estas duas formas de meditação são a quiescência e o cultivo da sabedoria primordial. Pratico quiescência para gerar a sabedoria de rigpa.
O sucesso que uma tem em desenvolver a intuição (a lucidez da sabedoria rigpa) está na dependência do sucesso prévio que se tem em desenvolver o foco, a capacidade de foco que vem da quiescência. Se eu consigo acalmar a mente, consigo claramente olhar as coisas e então tenho o desenvolvimento da lucidez.
“Se vocês forem capazes de desenvolver a quiescência somente até certo grau, então sua experiência de intuição será limitada.“
Sua experiência de lucidez será limitada. Por exemplo, a gente desenvolve a quiescência até certo ponto. Todas as áreas onde a gente chega e a quiescência não opera, não temos como desenvolver lucidez ali. Porque os sentidos comuns aparecem e somos arrastados por eles. É só isso, não tem nada milagroso por baixo. Mas quando olho para alguma coisa e a coisa me arrasta, onde ficou a lucidez? Se ela não me arrasta, eu tenho lucidez, se me arrasta, não tenho lucidez. Qual é o instrumento essencial para gerar lucidez? Em primeiro lugar, que a coisa não me arraste, porque aí eu posso olhar para ela. Se eu olhar três vezes para a coisa, descubro o que ela é. Mas se olhar a primeira vez e ela já me arrastar para outra coisa, nunca vou descobrir o que é.
Um exemplo: a pessoa olhou para uma menina. Se ela tiver o olho de quiescência, pode ter lucidez sobre aquilo, se não, talvez precise de um longo tempo para ultrapassar aquele processo. Depois que aquilo por alguma razão se resolveu, ainda tem todo um mar de sofrimentos e lágrimas entre sobe e desce até brotar algum nível de distanciamento. A pessoa volta a ver aquela mesma pessoa e passa a ver outra coisa porque agora não está mais presa naqueleo processo automático.
“O sucesso que uma tem em desenvolver a intuição está em dependência do sucesso que se tenha em desenvolver a quiescência. Se vocês forem capazes de desenvolver a quiescência somente até certo grau, então sua experiência de intuição será limitada. Entretanto, se vocês tiverem um sucesso completo em desenvolver a quiescência, então também serão capazes de desenvolver de forma perfeita a intuição. Isso ocorrendo, é o mesmo que dizer que a iluminação completa será atingida.”
Ou seja, diante das coisas eu vejo o seu aspecto mais profundo, vejo essência, natureza, qualidades, vejo o aspecto da vacuidade, luminosidade e compaixão. Isso aqui é uma descrição rápida.
Em seguida, temos os métodos de prática como um subitem do item quiescência. Um pouco adiante vocês encontrarão quiescência impura, mais na frente, a quiescência pura, e um pouco adiante, vão encontrar sabedoria primordial. É quando iremos introduzir a natureza da vacuidade, Prajnaparamita. Ainda não vimos Prajnaparamita, estamos só nos preparando. É importante situar isso dentro dessa estrutura de blocos. Quando a gente estiver vendo sabedoria primordial haverá uma descrição geral que vai chegar à noção de confiança na visão, que está subdividida em dois itens: estabelecer a natureza dos objetos e a natureza da mente. Depois disso ainda tem o item C que diz respeito à confiança na visão. Quando a gente desenvolve a natureza do objeto e natureza do observador e confiança na visão, surge uma outra etapa. Concluímos a etapa de visão e vamos para a etapa da meditação. Posteriormente, vamos para a terceira etapa que é a de ação. Ao final, fruição. Quando junta visão, meditação e ação dentro da mandala sem esforço, há uma fruição.
Isso é o ensinamento de Garab Dorje. De Garab Dorje para Guru Rinpoche, de Guru Rinpoche para Dudjom Rinpoche e de Dudjom Rinpoche para Gyatrul Rinpoche e de Gyatrul Rinpoche para esse texto. Essencialmente isso.
Estamos aprendendo o quê? A sabedoria (rigpa) se dá por estabilização da visão, da meditação e da ação, tudo isso gerando uma natural fruição. Essa etapa de compreensão da vacuidade até o ponto de desenvolver confiança na visão e depois estabilizar a mente com a compreensão (meditação), e agir no cotidiano e ter tudo isso operando de modo natural, vem posteriormente a eu estabilizar a mente, praticar quiescência. Quando eu praticar quiescência não tenho visão, meditação, ação, nem fruição. São etapas posteriores. É importante entender isso em blocos, como estamos vendo.
Dentro da etapa de quiescência, vamos ver as instruções de meditação para atingirmos a quiescência, onde temos a subdivisão que se chama métodos de prática. O texto não estava com esses títulos todos, no texto original em inglês não tem. Olhei essas estruturas de tópicos, coloquei os nomes e diagramei desse modo para ficar mais fácil entender o que estamos fazendo. Não alterei o conteúdo, só coloquei os títulos. Fiz esse trabalho para deixar o texto mais nítido. Mas o texto é o mesmo, só abri as chaves.
“Métodos de prática - Agora, para atingir a quiescência, inicialmente você deveria tentar praticar em um lugar que seja isolado, quieto e confortável. É importante sentir-se confortável e contente no lugar que você escolher para meditar. Após conseguir uma almofada confortável, assuma uma postura bem reta.”
Nessa parte das almofadas o Zen é especialista: tem o zabuton, o zafo, tem almofada disso, almofada daquilo. Chagdud Rinpoche também tinha umas almofadas interessantes que eu nunca tinha visto. Uma almofada bem pequena, circular, com um furo dentro. Almofadas bem pequenas, para o ponto de contato dos ossos com o chão. Como quebrei meu pé, tenho um osso meio pontudo, assim, então preciso de uma almofada dessas também, que eu não uso, mas sinto que seria útil. Às vezes coloco um rolinho por baixo para esse osso do pé não ficar me espetando. Chagdud Rinpoche também tinha um ou outro osso assim. Ele usava umas almofadinhas por um tempo longo, só que tem um furo, e no furo fica o osso. No Zen está cheio dessas almofadas. A melhor almofada, curiosamente, não é a almofada do Zen. Essa aqui é a melhor almofada, a que está à venda na lojinha (risos). Na verdade, vocês não precisam dessa almofada, podem pegar uma toalha de banho e fazer um rolinho e está resolvido. Essa aqui é com casca de arroz, mas existem de vários tipos. O ponto principal é sentarmos e apoiar os ossos da coluna, apoiar o cóccix. Com casca de arroz é bom. Tem gente que usa outros enchimentos, também são bons. Eu gosto da casca de arroz porque no momento que a gente senta aquilo para, não fica deslizando.
“A postura de sete pontos do Buda Vairocana é ideal. Assegure-se de que a espinha esteja ereta. Se está sentando em uma posição de pernas cruzadas, então a melhor posição é a de lótus completa.“
Instruções de postura: pernas em lótus, coluna reta, as mãos no mudra da equanimidade, os olhos a 45 graus (ou no prolongamento do nariz), a língua tocando o palato superior... aí tem pequenos detalhes de linhagem. No Zen, boca fechada com um sorriso imperceptível (risos). É interessante esse aspecto. Boca fechada e um sorriso porque alivia a tensão, um sorriso que ninguém veja. Chagdud Rinpoche dizia lábios entreabertos. Ah, como foi difícil para mim! Eu acostumado há muito tempo treinar com os lábios fechados. Olhos para baixo. Chagdud Rinpoche dizia: olhos para frente. Os olhos ardiam. São pequenas diferenças. Na postura de Vairocana, vocês olham a 45 graus, boca fechada, os dentes não precisam estar serrados, a língua no palato superior. Aí a gente pensa em tudo isso e não consegue meditar, começa a ficar nervoso, suar, e ainda tem que sorrir... (risos). Acostuma-se. Vai indo, vai indo e termina relaxando. As dores naturalmente vêm, e o melhor conselho para a dor é: não lute contra o corpo, não force, avance com paciência, pedindo a colaboração do corpo. Se der sinal de dor em algum lugar, entendam que não devem ultrapassar aquilo, recuam. Esse recuar pode ser assim: vocês recuam e observam a mente, vejam se não estão forçando mentalmente alguma coisa. Aí pacifiquem o corpo. Digam para ele que não precisa ficar tenso e gerar dor. Se ele seguir com dor, calculem: essa dor vai durar uma semana, portanto, durante uma semana eu não vou forçar. Isso tem um tempo, aí se arruma, o corpo se arruma.
Ontem teve uma certa hora em que eu estava com dor nas costas. Não aqui, mas quando fui deitar à noite percebi que tinha alguma coisa, pensei que isso iria ser um problema, se eu forçar qualquer coisa aí, vou ficar com dor. Fiz o que estou explicando para vocês. Parei, respirei, fiz toda a energia andar por dentro do corpo, especialmente por esses lugares. Não estou com dor nenhuma, nada, estou inteiro.
Quando comecei a viajar mais intensamente, me machuquei várias vezes na coluna, estava sempre com dor em algum lugar, porque tinha que carregar mala. Agora pego as malas e não acontece nada. Porque eu pego atento, não forço, cuido. E está fluindo. Do mesmo modo, a gente pode pedir para o corpo colaborar. Já vi praticantes muito bem motivados que estragaram o corpo no meio da meditação, eu mesmo já fiz isso, estragar de passar um ano arrastando uma perna e pensar que não vou me recuperar. Porque não só tem dor, como o joelho incha. A gente pode dizer: “bom, a minha prática é assim, dói e tudo bem”. Mas quando dói e o joelho começa a inchar, o que você faz? Você insiste. Quando insiste, ele incha mais. Eu tive uma época que tão logo sentava assim, escutava o joelho inchando. Pensei: “só faltava essa; o meu trabalho é sentar em lótus, e não posso sentar.”
É muito importante cuidar, pedir a colaboração do corpo, acalmá-lo. Mas não desistam, é paciência e persistência. Vocês recuam um pouquinho, mas seguem persistindo. De Moryama Roshi e Tokuda San ouvi isso: a dor no corpo vem da prática irregular. Pura verdade. Pratiquem todo dia um tanto. O corpo se acostuma perfeitamente com quem corre 5 quilômetros, 10 quilômetros todo dia, não tem problema. Agora pega uma pessoa que não corre e bota para correr. A pessoa corre 10 quilômetros, chega no terceiro e pluft, cai no chão. Pressão sobe, batimento cardíaco vai a 210 e o olho arregala. Morre!
A pessoa tem que fazer aos poucos, qualquer coisa. O corpo vai ganhando aptidão, paciência, perseverança, constância! O progresso lento para andar rápido. Esse é meu conselho. É curto. Sentem, mas se mantenham. Peguem a fundação, ou seja, entendam que se não praticarem, o samsarão básico segue operando e as confusões vão seguir se manifestando. E a gente não vai conseguir progresso algum. Que a gente entenda isso. Gere bodichita, gere interesse em ajudar os seres, aspiração de encontrar os meios, e passem a enfrentar a essência do samsara. A essência do samsara é a mobilidade. Então enfrentem a mobilidade com silêncio, não pensem que tem que aparecer alguma coisa ali dentro. Simplesmente se mantenham em silêncio. Porque samsara é simplesmente o movimento. Quando se mantém em silêncio, vejam a energia estabilizada.
Na nossa prática de meditação a gente vai observar corpo, energia, mente, paisagem e céu. Não vou aqui descrever porque agora o nosso tempo está curto e estou seguindo o texto. Mas entendam que dentro do Programa de 21 Itens estamos agregando as outras instruções todas, condensadas nisso. A gente observa o corpo, observa a energia. É crucial porque vamos descobrir que o que nos desvia a mente não é a mente, é a energia. Vocês estabilizam a energia, portanto, estabilizam a mente. Se a gente estabilizar a energia e a mente, a paisagem é correta. A paisagem diz respeito à própria fundação. Ou seja, o que é o samsara, o que é que está acontecendo em volta, e como a meditação faz sentido dentro do mundo como eu experimento. Aquilo está claro. Se a paisagem está correta, vocês não vão pensar que estão no lugar errado, na hora errada, irão pensar que estão no lugar certo e fazendo a prática certa, no tempo certo. Vocês não estão pensando: “bah, eu devia estar em outro lugar”. Vocês não vão pensar que deveriam estar raciocinando alguma coisa. Não, não deveria estar raciocinando nada, deveria estar praticando isso agora, nesse lugar. Isso é a fundação correta, que se traduz na paisagem. E a mente corre para lá. A energia se estabiliza, tem a felicidade natural dessa energia estabilizada, ela brota e nos sustenta. Essa felicidade natural, junto da energia estabilizada, blinda a mente de ser arrastada. E o corpo acompanha feliz.
Mesmo que a gente não tenha compreensão da vacuidade, corpo, energia, mente e paisagem, paisagem, mente, energia e corpo. Intervalos de 15 minutos. Se for muito, 10 minutos. Se for muito, 5 minutos. Mas vocês são praticantes experientes. No mínimo, 45 minutos em cada sessão. A cada 15 minutos vocês podem trocar de posição. Existem muitas diferentes posições. A pressão sobre os músculos, tendões, articulações, ela muda. Usem uma almofada antes do pé, no tornozelo. Se acham que isso não está bem, podem colocar duas almofadas entre os pés. A cada 15 minutos, se não estão bem, não têm habilidade, troquem de posição, troquem bastante. Se estão fazendo um retiro mais longo e, ainda assim, o corpo está sofrendo, podem ficar 15 minutos em pé também. Se estão fazendo retiros solitários, podem usar qualquer uma das 108 posições da yoga, qualquer uma. Na verdade, todos deveriam praticar todas as 108 posições ao longo do tempo, não vou dizer retiro de meditação, mas retiros específicos. Ou regularmente. Porque cada uma das posições aciona uma região do cérebro, uma configuração. Nós mantemos a aptidão mínima da mente. Não tem posição de corpo que não acione uma condição de mente ou energia especifica. Todas as 108 posições, na verdade não são 108, mas são 108 miríades de posições que a gente pode reduzir a 108, essas 108 posições da hatha yoga têm uma conexão direta com isso, elas podem ser usadas. Mas é retiro de outra categoria. Aqui estamos fazendo essas posições.
“Se for incapaz de sentar em lótus completo, então sente em uma posição de pernas cruzadas e eleve seu assento um pouco de tal forma que sua coluna fique ereta. Outra possibilidade é sentar em uma cadeira com a coluna ereta. Mantendo sua coluna reta, incline um pouco a sua cabeça e faça com que sua mirada se dê por cima da ponta de seu nariz. Faça com que a ponta de sua língua toque levemente o céu da boca, de forma natural de tal forma que a boca nem fique fechada nem muito aberta. Os braços e mãos devem cair pelo lado do corpo. Se estiver sentando com as pernas cruzadas, as mãos podem ser colocadas à direita sobre a esquerda em seu colo. Se estiver sobre uma cadeira, deixe-as pender naturalmente.
A posição do corpo ao sentar é muito importante, do mesmo modo a posição da fala. Faça com que a fala seja o silêncio – sem falar, nem fazer ruídos, apenas a respiração natural.“
Vejam que fala é energia. Aqui ele usa a fala no sentido convencional, o silêncio.
“Nada há a fazer que permanecer calmo e natural.
A posição da mente é evitar buscar eventos do passado, antecipar eventos futuros, e controlar ou compelir o momento presente. Apenas permita-se repousar em um estado natural e descomprimido. O que quer que surja deixa-se aparecer sem quaisquer alterações ou ajustes.”
Não confundam esse ponto do estado natural com a mente. Isso não é o estado primordial. Esse estado natural é o que o prof. Alan Wallace vai chamar de alaya, é a base deludida da realidade, não é a base lúcida da realidade. Quando a gente diz isso é um pouco complicado porque nos ensinamentos mais profundos a base deludida da realidade é inseparável da base primordial da realidade. Mas aqui, como não entendo isso, tenho a separação entre a base deludida da realidade e a base primordial da realidade, porque não conheço a identidade. A linguagem fica assim. Mas é importante entender que esse estado natural não é ainda a condição primordial. É o estado natural deludido, é uma das oito consciências do samsara.
“Permitir que sua mente repouse sobre o estado natural” é mais fácil dito do que feito. A razão principal para isso é porque, desde incontáveis vidas passadas até agora vocês desenvolveram instintos habituais, impressões mentais que tornam suas mentes caóticas e cheias de incontáveis variedades de proliferações conceituais.”
Não estamos numa base, estamos saltitando, estamos no meio de um movimento.
“Para atingir a paz, vocês precisam empregar técnicas. Isto não significa que vocês devam tentar controlar pensamentos por relembrar, antecipar ou alterar a experiência.”
Ele vai descrever o processo para fazer isso. Esses processos diferenciam um pouco do que o prof. Alan Wallace apresentou, e também são diferentes dos processos que nós usamos, mas esse não é o ponto mais importante, é uma descrição do foco, prefiro colocar diretamente o foco na visão e na energia. Acho que avançamos várias etapas, damos saltos por cima dessas coisas todas se fizermos isso. Descrevo desse modo, ainda como preparatório para a sabedoria primordial que vem depois. São outras instruções. Aqui é simplesmente o método de acalmar a mente. Vou dar rapidamente a instrução que eu uso. Acredito que muitos conheçam.
Aqui não vamos seguir esse processo. Usamos o processo da respiração interna. Quando vocês respiram, ou mesmo no intervalo da respiração, percebem que há um fluxo de energia que sobe uniformemente e atravessa nosso corpo. Ele vem de baixo, sobe e atravessa, percorre o nosso corpo, observamos esse fluxo, isso é a respiração com o corpo todo, ela não é modulada, é contínua, é a essência da energia primordial. Energia primordial não precisa nem de respiração, nem de modulação, se dá constantemente, independente se estamos respirando de modo grosseiro ou não. Quando percebemos essa energia, nosso olho naturalmente se aguça. E naturalmente os olhos não piscam.
Observem diferentes partes do corpo, eventualmente alguma oscila no sentido de latejar, alguma dor surge. Vocês deixam essa energia focando. Se olharem diferentes partes do corpo, não estão distraídos, estão no foco. Simplesmente observem essa sensação tátil da energia cruzando por dentro do corpo. Quando vocês aguçam isso, podem nem escutar os pássaros voando e gritando aqui ao redor, podem não ouvir nada, nem picada de muriçoca, nada. Isso é chamado de shamata impura, porque vocês não estão vendo nada mais. Vão ver no próprio texto dele quando vai descrever shamata impura, ao final da prática, a gente não lembra de nada que aconteceu ao redor, nosso foco ficou totalmente imerso no objeto da nossa prática diferentes objetos podem surgir, ele vai dar várias opções. Aqui eu propus esse da energia que se move.
Quando estiverem praticando shamata pura, que ele vai descrever logo adiante, introduzam os sentidos físicos. É a mesma coisa. Vocês se mantém completamente imóveis, e a energia fluindo. Só que agora olham 360 graus. Inicialmente 180, depois 360. Vocês olhem à frente e tentem se manter conscientes e percebam que existe um foco do olho físico e tem o foco da atenção. Sem mexer o olho físico a minha atenção pode circular, posso deslocar esse foco sem mexer os olhos. Mantenham esse foco de atenção aberto, ele vê tudo de um lado ao outro, não se desloca focado, se mantém aberto. E não se movam, percebam o espaço ao redor, atrás, não vão ver com olho físico, mas olham com o olho da atenção. Mantenham os ouvido abertos a tudo que está ao redor. Quando surgir um objeto, ou seja, alguém se mexe, podem ver, mas não seguem pensando sobre aquilo, seguem com a energia estável e abertos ao que acontece. Quando terminar a pratica de meditação, vocês são capazes de lembrar, fulano levantou, o outro fez isso...são capazes de lembrar, mas não embarcaram naquilo. Estamos treinando algo que é muito raro, que é poder ver alguma coisa e não ser arrastado por ela, isso é que vai marcar a diferença para podermos entrar na sabedoria. Se eu estou fechado, não tenho sabedoria sobre as coisas. Quando olho, me perco. Então preciso aprender a olhar para as coisas e não me perder. A shamata pura é essencial. Sem shamata pura não consigo entrar na etapa de sabedoria primordial. Depois vocês terão esse olho de shamata pura para o inimigo que ataca vocês, ele ataca e vocês não são arrastados por ele, esse é o treinamento de um corpo translúcido. O outro faz o que quiser na minha frente e eu estou equilibrado, não estou respondendo ao objeto, aprendi a olhá-lo sem precisar responder e sem perdê-lo.
E em vez de colocar a raiva que poderia surgir, coloco a compaixão. Eu o transformo, é um processo de magia. Mas se a gente não treinar etapa por etapa, não tem como. Shamata pura é essencial. Em shamata pura nós fazemos contato, mas não nos perdemos no contato, não damos sequência. Se eu descrever isso, tudo bem, mas se vocês não praticarem, não adianta nada! Porque não é uma questão de descrição, é uma questão de desenvolver a habilidade. Todo mundo sabe que basquete é quicar a bola e arremessar na cesta. Ok, façam. Mas nunca dá certo. Não sei por quê, a gente não consegue pôr a bola na cesta. Mas a gente treina de novo, treina de novo, treina de novo, daqui a pouco a gente acerta.
Por isso retiro, por isso prática. Shamata impura é muito importante porque estou incapaz de olhar para alguma coisa sem ser arrastado por ela. Então, treino durante muito tempo para estabilizar. E estabilizo, sinto-me poderoso, poderoso enquanto não olho para coisa alguma. Depois tenho que praticar shamata pura, aí abro, fico poderoso enquanto olho para as coisas. É muito mais poderoso. Quando estiver na etapa de fruição, sem esforço vocês se levantam e olham para um e para outro, não brota mais o samsara, brota a compreensão da vacuidade, da coemergência, bodichita, está brotando outra coisa. Mas se não tiver shamata pura não vai funcionar porque a gente olha para os objetos e é arrastado por eles.
Por isso que a gente pratica a base, que é a fundação, com a motivação, shamata impura e pura, metabhavana. Metabhavana já é uma coisa sofisticada. Porque vou olhar para aquela pessoa que está me perturbando e vou dizer que ela seja feliz, que supere o sofrimento. Para poder olhar para ela, se eu não tiver um pouco de shamata pura, olho e já me perturbo. Por isso que metabhavana vem depois. Agora sou capaz de olhar para ela porque não me perturbo tanto e posso trocar o conteúdo. Então, que ele seja feliz e etc. Milagrosamente ele muda na nossa cara, vira outra coisa. Quando a gente faz metabhavana já está usando a vacuidade, o poder que vem de shamata. Depois disso a nossa vida acalma um pouco, a respiração se acalma e assim podemos entrar no que é chamado de sabedoria primordial. É uma construção, etapa por etapa.
Eu pulei por uma questão de tempo aquele trecho de shamata pura e impura, espero que depois, como vocês têm o texto, olhem isso. Vou passar para a parte final da descrição de shamata pura, que trata dos benefícios e o tempo que leva para gerar as qualidades, etc. É uma parte importante, que está um pouco na entrada na sabedoria primordial que é o que vamos fazer hoje. Cada prática que a gente faz tem que entender por quê ela é feita e também quais os obstáculos. Aqui trata dos obstáculos da prática, o efeito negativo que pode surgir e como o evitamos.
“Quanto tempo leva para chegar-se à pura quiescência? Este tipo de experiência vem como resultado de um tremendo esforço na prática.”
Vamos pensar assim, tremendo esforço seria a continuidade. Não é que a pessoa tenha que ficar fazendo força, sustentar alguma coisa. A pessoa tem que praticar. Ela vai mantendo uma regularidade. Paciência, perseverança, persistência, motivação, a pessoa vai praticando regularmente.
“Não é um resultado que venha facilmente ou rapidamente.
Outros benefícios desta realização incluem relaxamento físico e mental; e, uma vez que não há distração, a prática pode ser sustentada indefinidamente. Agora, quando você pratica, tanto o corpo como a mente se cansam; e, à medida em que você fica desconfortável, você liga algo mais para mudar a experiência de desconforto.”
Essencialmente é assim: vocês estão praticando, tem um desconforto, cansaço e etc. Quando tem cansaço, a gente amplia o foco e aumenta a intensidade, e a dor passa. A dor necessita que a gente tenha um foco nela. Cansaço necessita que a gente tenha um foco nele. Vocês então retornam o foco para a meditação, intensificam, e aquilo perde o efeito, a meditação se amplia. Curiosamente o próprio cansaço, a dificuldade, eles passam a auxiliar a intensificação da prática, não o contrário. Por exemplo, se está tudo bem, eu sento, e tudo bem. Quando começa a doer, o olho abre. Eu tenho que manter a intensidade de tal forma que a dor é ultrapassada.
“Ao chegar ao nível de pura quiescência, o corpo e a mente estão sempre em estado de conforto. Entretanto, se a mente se apega à experiência de sentir bem estar físico e mental, então, tal mente de apego começará a produzir as causas de renascimento no reino do desejo, trazendo-o de volta novamente à existência cíclica. É necessário que nunca haja apego à qualquer experiência.”
Na linguagem que estávamos usando, a pessoa aprendeu agora a sustentar uma outra coisa, a controlar outra coisa. Ela controla o estado de bem estar, aprendeu a controlá-lo internamente. Isso se tornou como se fosse o foco central da lucidez. Não é lucidez, é um controle cármico do estado de bem estar, introduz uma aptidão, uma tendência, se torna automatizado por essa aspiração da pessoa de estabilizar o bem estar. Ela torna automatizado um conjunto de habilidades. Esse conjunto de habilidades funcionando automaticamente nos leva a renascer no reino do desejo, que nos faz retornar à experiência cíclica. Se vocês olharem com cuidado, não é que a mente esteja livre, ela agora está sustentando uma coisa sutil que é o estado de bem estar que vem por dentro da mente focada. Quando a gente pensa que chegou lá, não chegou, não é.
Lembro que uma das vezes em que fiz retiro no Zen, tinha uma conexão cármica de ultrapassar obstáculos. Eu fiz em lótus. Quando doía, lá pelas tantas começa a doer, e as sessões são mais longas, de 40 minutos, imóvel. Só que se tu ficas 40 minutos imóvel, não é qualquer um que consegue fazer isso e não desenvolver alguma dor em algum lugar. Aí começa a fazer sessões sucessivas, dez sessões sucessivas, ainda que tenha kin hin, as sessões são muito próximas, e aquela dor que surge numa sessão aos 30 minutos, na outra sessão aos 25, aos 20, 15, 10, aos 5, ou antes de sentar já está doendo. Dias sucessivos, e o que tu vai fazer? Simplesmente tem que ampliar o foco da meditação e deixar doer. No meu retiro demorei muito tempo para recuperar meu joelho. Fiz a prática, mas levei esse tempo longo para me recuperar. Não acho interessante. É melhor essa pratica como nós estamos fazendo. Essa noção de que eu tenho que me manter rígido, isso também é desejo e apego. Estou buscando é uma lucidez, é outra coisa. Não estou buscando cumprir algo formalmente exato. Então fazemos a prática e evitamos esses obstáculos assim. Para não gerar dano no corpo.
“Geralmente você deveria manter na mente que, quando sua prática de meditação começar a aprofundar-se, há três experiências que ocorrerão. A primeira é bem estar, a segunda é clareza, e a terceira é a experiência de ausência de pensamentos.“
Isso eu acho muito decepcionante, mas muito importante que a gente ouça. Significa o quê? Olha para aquilo e pensa que precisa sustentar. Quando desenvolveu bem estar, clareza e ausência de pensamentos, você pensa: bom, isso é iluminação. Mas não, é uma prática construída. Esse é um ponto muito importante.
A iluminação corresponde a encontrarmos algo que já estava presente e eu não via. Não é conseguir chegar a alguma coisa que eu não tinha e agora tenho e daqui a pouco perco e tenho que fazer força para ter de novo. Se vocês tiverem a sensação de que não têm alguma coisa e a obtêm e sustentam , isso é desejo e apego, já estou com os três animais. Ou seja, virei aquele que sustenta, o javali, tem algo que eu tenho que ficar fazendo para sustentar, que é o galo, e eventualmente vou me irritar com alguém ou comigo mesmo quando aquilo falhar, que é a cobra.
Observem cuidadosamente se vocês tiverem tentando estabilizar alguma coisa por mais elevado que possa parecer, mas algo que se vocês não estabilizarem perdem. Vocês estão fazendo uma prática artificial. Porque na prática da iluminação, da liberação, encontramos alguma coisa que estava lá e mesmo quando inconsciente, aquilo segue. A diferença é saber se estou consciente ou não, se estou usando os recursos ou não. Porque os recursos não são algo construído, é algo que está lá.
“Quando tiver estas experiências, se você ligar-se à elas pensando que, de algum modo atingiu o resultado derradeiro, então estará novamente produzindo causas para renascimento em samsara. Não confunda estas experiências com o resultado final de iluminação. Se apegar-se ao bem estar, estará estabelecendo as causas para o renascimento no reino do desejo. Se apegar-se à luminosidade ou claridade, isto estabelece as causas para o renascimento no reino da forma. Apego à ausência de pensamentos estabelece as causas para o renascimento no reino dos deuses sem forma. Estes são os três reinos (desejo, forma e não-forma) da existência cíclica dentro do qual as seis classes de seres se debatem. Através da meditação você pode de fato produzir as causas para o renascimento nestes três âmbitos de existência caso não seja cuidadoso.”
Vamos supor, a pessoa consegue estabilizar a ausência de pensamentos, não é que ela tenha atingido darmakaia. Darmakaia está incessantemente presente. A pessoa atingiu um estado de foco da mente que é a ausência de pensamentos, mas está tensa produzindo a ausência de pensamentos, está equilibrando alguma coisa. Ela aprendeu isso. Quando aprende, reúne as condições cármicas que são geradas por essa habilidade, condições cármicas de se manter equilibradamente como um ‘eu’ que sustenta a ausência de pensamentos. E vai renascer no reino dos deuses sem forma, o reino dos deuses de vida muito longa. Eles vão meditar longamente nisso até o dia em que acordam e a mente opera com outra forma e eles retornam a renascimentos em outras condições até ouvir ensinamentos e ultrapassar a condição de samsara.
Temos a habilidade de sonhar e ir realizando. Reino da forma, estamos com essa habilidade. A gente quer construir tal coisa. Vamos sonhar em grupo e surge, vemos que o que surge é plástico, a realidade é luminosa, nós construímos. Se tivermos apego, não é simplesmente um exercício natural da mente, onde estamos reconhecendo darmakaia atrás, o céu, como a natureza básica nossa. Ficamos presos na habilidade de produzir coisas. É como um mágico ficando preso à magia, ele não tem o refugio na natureza livre, tem refugio na sua habilidade de ficar produzindo coisas, enrolando as pessoas, produzindo complicações. É apego ao reino da forma.
Entre os reinos dos deuses existe esse reino muito sutil, ele se equilibra na ausência de pensamentos, não está no darmakaia, na natureza primordial, não entendeu a vacuidade, não entendeu nada, apenas aprendeu a parar. Uma super shamata. Mas é um estado condicionado. Na realização de shamata tem essa três experiências, como Gyatrul Rinpoche narra. A primeira é bem estar, a segunda, clareza, e a terceira é ausência de pensamentos. Cada uma conduz a um tipo de renascimento. Vocês podem ler mais sobre isso no livro de Trungpa Rinpoche, Além do Materialismo Espiritual. Outro livro do Trungpa Rinpoche, Transcendendo a Loucura, em inglês “Transcending Madness”, não sei se está traduzido, me disseram que está. É um livro um pouco assustador, trata da meditação. É um pouco aflitivo porque começa descrevendo a meditação e vai dizendo que o êxito da prática é o principal obstáculo. Só que a gente vai vendo como é difícil atingir o êxito da prática. E quando atingir, tem problema. Trungpa Rinpoche está colocando assim, transcendendo a loucura. O que é a loucura? Loucura é alguma coisa que vai se infiltrando por dentro da meditação. Por isso a noção de liberação dessas estruturas de apego sutil que surge por dentro, que ele vai chamar de materialismo espiritual.
Tomamos os três animais e eles se infiltram por dentro da meditação, da prática espiritual e terminamos fazendo a prática deles. É necessária a etapa seguinte, que é a sabedoria primordial. Não estamos buscando o resultado em estabilidade no bem estar, nem na clareza, nem na ausência de pensamentos. Reduzimos o giro da mente, nos acalmamos, para podermos pular para dentro da sabedoria primordial. Quando estivermos dentro da sabedoria primordial e do
Prajnaparamita, quando tivermos estabilizado a visão, avançamos em direção à presença. A diferença entre presença e o reino dos deuses da não forma é o fato de que quando o praticante de shamata não tem a compreensão da natureza da realidade ao redor, a paisagem dele é o próprio samsara. Quando ele medita, amortece o samsara, interrompe-o. Quando aciona seu funcionamento, o samsara inteiro retorna. Ele nunca está em outro lugar que não o ambiente do samsara.
Quando passamos para dentro da mandala do Prajnaparamita, já temos a compreensão da vacuidade ao redor, em vez de vermos o silêncio artificial, vemos o silêncio incessantemente presente em meio às formas e seja o que for, que é darmakaia. Quando vemos as formas, as manifestações com olho condicionado fazem parecer que esse é um mundo sólido com o qual a gente está fazendo contato. A partir da percepção da sabedoria primordial, vendo o mundo aparentemente sólido, eu sei que ele brota por coemergência e por trás dessa operação da coemergência tem uma natureza livre incessantemente operando. É sobre essa natureza incessantemente operando que não obstaculiza a forma e nem é obstaculizada por ela, é nessa natureza livre que repousamos. Assim, quando silenciamos, silenciamos dentro dessa natureza livre e não dentro da ausência de pensamentos.
“Esta é uma explicação concisa de como praticar para atingir a quiescência que inclui instruções sobre o que evitar enquanto praticando. Se for capaz de praticar com sucesso, irá atingir a quiescência por períodos prolongados de tempo e meditar com claridade, preparando-se então para a segunda fase, a prática principal de cultivar a sabedoria primordial da intuição.”
Aí entramos na sabedoria primordial, que é o nosso tema. Vejam novamente a estrutura de blocos do texto. Estamos buscando visão, prática com a visão, capacidade de manter a visão lúcida em meio a vida e fazer a visão, meditação e a ação no mundo fruírem de modo fácil. De modo natural, dentro da mandala a fruição é natural, estamos buscando isso. A gente não consegue se não fizer, por exemplo, a introdução da natureza da realidade, sabedoria primordial. Não entendendo a sabedoria primordial, você nunca vai chegar nisso. Não tenho como entender se eu não estabilizar um pouco a mente e não tenho como estabilizar a mente se não olhar minha realidade comum, do mundo, e entender o que está acontecendo. A Roda da Vida nas várias coisas. E não surgir com bodichita que é o espirito mágico de eu mesmo atingir a liberação e ajudar os outros a atingirem também. Se eu não tiver isso, nunca vou ficar parado meditando, achando que vou para algum lugar. Se eu parar para meditar pensando que vou para algum lugar, também tenho obstáculos., precisarei ir até aquele patamar, tem um patamar. Aí salto para outra coisa.
Vejam que cada um desses progressos tem um teto. É como se eu tivesse numa sala e vou aprender a levitar, estou levitando e encosto em cima, é o limite. Por exemplo, os blocos de ensinamentos sobre o estabelecimento da base, da fundação, ele tem um teto. Atinjo a realização da fundação e parece que aquilo é tudo, mas não é. Quando chego ali, é apenas o chão do andar de cima. Atravesso aquele chão e vejo que tem mais. Faço esforços, subo e encosto lá em cima. Bom, agora é isso. É nada, tenho que furar aquele teto e aí estou no chão do andar de cima. Só que quando entramos numa dessas práticas, nunca vemos mais do que o teto sob o qual estamos, a gente vai lá apenas para se frustrar, descobre que precisa atravessar aquilo. Não só levitar como ser capaz de atravessar a laje e estamos em outra região, dimensão toda que a gente descobre que tem vários desses blocos.
Tem a base, a fundação, me leva até a motivação, e quando penso que estou na motivação, já me sinto fruindo, olho para os outros seres e já estou diferente. Você está com uma energia maravilhosa. Próximo à iluminação. Eles não sabem que a gente está iluminado, mas sabemos que estamos. É só uma questão de reconhecimento.
Algumas pessoas têm a sensação de que são tulkus, seres que em outras vidas atingiram a realização. E olham assim, com um olhar diferente das outras pessoas. Elas têm uma sensação de serem tulkus. A pessoa está num estágio inicial, mas já começa a se achar. Começam a fazer meditação, aquilo vai indo, indo, e quando estabiliza aquela meditação, elas dizem: “está, cheguei!” Não é. A pessoa entra na sabedoria primordial, e oh! ela está na base de uma coisa e olha para cima e é alto e pratica assim. Quando pratica, é com a sensação de que tem que estabilizar alguma coisa. Não é isso. Depois tem, bom, estou só dando cenas. A pessoa vê aquilo e vai seguindo.
O que eu estava explicando é isso: éramos um horizonte e o horizonte não alcança, é como se fosse um mundo inteiro e temos que ir até o fim daquele mundo e depois geramos outro mundo. Quando a gente compreende, isso nos permite entender a expressão “profundidade do poço da experiência cíclica”. A coisa é funda. A gente está no fundo da experiência cíclica. Peguem alguém nos infernos, a pessoa não tem a menor boa vontade, ainda vai ter que furar várias coisas, vai precisar de varias câmaras dessas, até que chegue num ponto em que está disposta a entender a Roda da Vida. Quando ela vai fazer isso? Nunca! O poço da experiência cíclica é muito profundo, os seres estão afundados nele. Tirá-los de lá é difícil. A gente entende como o Buda construiu esse processo. Quem está no fundo da experiência cíclica, quando olha para cima não vê a luz que vem de cima, vê a luz do topo da sua câmara e pensa que aquilo é a saída. Do mesmo modo que um drogado pensa que a saída é o suprimento ilimitado de drogas.
Olhem os múltiplos seres, cada um tem uma ideia sobre o que seria a saída, todos têm um conjunto de reivindicações que parecem ser a saída. Se der 108 desejos que eles possam pedir, nenhum deles ultrapassa a câmara onde estão. A coisa é complicada. Vamos ate o fim da câmara, a gente atravessa a laje e altera completamente a forma como olhamos e vemos outra realidade.
Em cada um desses setores temos uma prática especifica. Não quero desanimar. Na verdade estamos no meio disso e já entendemos, estamos praticando as múltiplas coisas. Quando olhamos assim, o Programa de 21 itens é mais ou menos isso, 21 câmaras, temos que atravessar todas.
3.4 Sabedoria Primordial
“Os ensinamentos e práticas para desenvolver a sabedoria primordial da intuição tem duas abordagens. A primeira abordagem é o treinamento escolástico, para assegurar-se da natureza de vacuidade da mente.”
Treinamento escolástico, o que é? A pessoa vai estudar academicamente. Um esquema normal de treinamento dos monges. O que eles vão fazer? Vão construir um mosteiro, como o mosteiro Sakya, vão trazer khenpos, estudiosos, vão pegar os textos tradicionais do Buda, de Guru Rinpoche, de Atisha, dos grandes mestres. Vão pegar os grandes comentaristas, a multiplicidade de visões, as tensões entre eles, como que um corrigiu o outro, como que houve o debate entre as várias escolas que foram surgindo. Aqui a linhagem Sakya não estuda o Zen. Tem o zen também, o budismo chinês com suas próprias visões. Todo mundo estuda isso. É a abordagem do treinamento escolástico. As pessoas estão numa universidade monástica, vão estudar o aspecto acadêmico.
“Aqui, a vacuidade é visada através da investigação analítica, eventualmente provando que ela é desprovida de uma existência inerente verdadeira. Esta visão da vacuidade está baseada na compreensão intelectual. A segunda abordagem é chegar à natureza da vacuidade através da profundidade de sua própria prática. Esta visão da vacuidade está baseada na realização interna.”
Temos usado as duas, só que não estamos pegando os textos e os analisando, seria muito longo. Pegamos evidências e estudamos. Com essas evidências, mais facilmente praticamos. Praticamos em silêncio, e vamos juntando observação das coisas no cotidiano e estudo, com a experiência que a gente vai ganhando da meditação e mesmo da observação. Aqui nós integramos também a ação. A gente chega num lugar e está tudo trancado. A gente sonha de um outro modo. Porque reconhecemos que aquilo que parece trancado, está coemergentemente trancado, não está trancado, parece estar. A gente destranca através do processo da coemergência, damos outros nascimentos. Essa ação de dar nascimento é um exercício direto da vacuidade, usamos isso de modo ativo, vamos dando nascimento às coisas. Isso é uma união do processo da prática com o treinamento escolástico.
“Se alguém é capaz de abarcar a vacuidade pela segunda abordagem, então a primeira é desnecessária.”
Se ela consegue experimentar de forma direta através de sua prática, por que precisa ficar pensando sobre vacuidade? A primeira, eventualmente, pode se transformar num obstáculo.
“Se você deseja trilhar a primeira abordagem através do treinamento escolástico e então aplicá-lo praticamente à meditação, este é o meio superior e a forma pela qual muitos grandes praticantes enfocaram seu caminho.”
Primeiro a gente estuda e depois vai praticar na meditação. É o que acontece. Os jovens entram no treinamento monástico e vão treinando, treinando, treinando, tem um momento que param. Eles debatem e depois vão entrar em meditação, em retiros. O debate torna vivo o que eles estudaram e o retiro torna mais vivo ainda, se torna real o que eles estudaram.
“Entretanto, nos tempos atuais, vocês deveriam considerar que podem não vir a ter muitos anos para praticar, uma vez que o momento da morte é incerto. Além disso, com estilos de vida tão intensos, são poucas as oportunidades para meditar. Pode ser melhor engajar-se diretamente na prática, para atingir os objetivos mais prontamente.”
Isso seria uma abordagem do Zen. Eles não estudam, sentam para praticar, várias linhagens têm isso. Nas linhagens do Vajrayana também não se estuda e não se fala sobre vacuidade. Eles dão as iniciações, os mantras, etc., e a pessoa sai praticando. Porque é considerado que estamos em tempo de degenerescência, então qualquer coisa pode acontecer com a gente a qualquer momento, é melhor que avancemos rápido.
Aqui a gente tenta observar imediatamente as liberdades associadas às coisas. E aproveitar todo cotidiano como prática. A gente não usa o processo de simplesmente se abster do cotidiano porque o cotidiano seria um problema. A gente tenta transformar o cotidiano em campo de prática. A prática mais profunda. Vacuidade, coemergência, luminosidade, capacidade de dar nascimento às coisas, sustentar a visão, fazemos isso.
“Nos dias atuais parece que quase cada um está mais interessado em técnicas tipo pressionar botões, ...”
Isso é Gyatrul Rinpoche falando, porque ele está com uma linguagem contemporânea. Ele está vivo nesse tempo. Pode dizer isso.
“...que trabalham de forma rápida, trazendo resultados instantâneos. Naturalmente todos desejam resultados mais rápidos. Se você pensar que pode encontrar uma experiência tipo apertar botões no caminho espiritual, isso significa que você deve praticar e meditar, não apenas ouvir os ensinamentos, não apenas pensar sobre eles depois, mas sentar e realmente praticar. Frequentemente as pessoas apenas ouvem o Darma, pensam ocasionalmente no que ouviram, e não praticam. Como podem ocorrer resultados se não há prática?”
Os Quatros Estágios da Sabedoria Primordial 1. Confiança na visão a) Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos b) Localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno c) Estabelecer a visão da natureza da realidade 2. Experimentar a meditação 3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias 4. Fruição |
Isso já é o ensinamento de Garab Dorje: visão, meditação, ação e fruição. Estamos na sabedoria primordial e agora estamos introduzindo a noção de visão. Essa noção de visão diz respeito à vacuidade, como as coisas surgem diante de nós. Isso é rigpa.
“É através da experiência de intuição[1] que a natureza primordial da mente é atingida. Há quatro estágios para este desenvolvimento. O primeiro é atingir a confiança na visão; o segundo, experimentar a meditação.”
A gente pensa: “mas já estou meditando há muito tempo, já fiz shamata, como ainda vou precisar de alguma coisa que se chama meditação? O que é essa meditação?” Precisaríamos entender que essa meditação não é shamata, é outra coisa, ela surge assim: a meditação é a sustentação da visão. Eu desenvolvo visão, e shamata não tinha visão. Procuro apenas estabilizar a mente, não tem visão, não tem rigpa, nem compreensão da coemergência. Nessa prática agora, primeiro é atingir confiança na visão. Segundo, experimentar a meditação. Meditação estabilizando essa visão. O terceiro é manter a continuidade nas atividades diárias que seria a ação no mundo. O quarto é chegar ao resultado final. Qual é o resultado final? É fruição, é uma natural manifestação daquela lucidez sem esforço. Aquilo só flui.
Vamos supor: a pessoa durante um tempo, quando é muito jovem, a mãe explica que um dia ela vai casar, ter filhos, vai ter sua casa. Como no passado, onde as pessoas aprendiam a bordar, aprendiam várias coisas, se preparando para casar. Faziam o enxoval todo. Isso o que é? É mamãe agora falando: você vai ser isso, ai ser mãe, mas ela não está achando aquilo bom, quer brincar com outras coisas. Mas lá pelas tantas, de tanto olhar para cá e para lá, atingiu confiança na visão. É isso! Todo mundo casa, vêm os filhos, a gente lava roupa e tem que fazer as coisas todas andarem. Fazer o quê? É isso!
Uma vez que entendeu, a mente da pessoa estabiliza, ela começa a estabilizar daquele modo. Depois se levanta, e em qualquer lugar que ela vá aquilo está presente. Aparece alguém e a pessoa: é ele! Não era, né? E dai: é ele! Não era. Ele deve estar em algum lugar. Qualquer lugar que ela olhe, está com esse olho, sustentando a visão nas condições diárias.
Depois, vamos supor, aparece o ser. Eles casam. Lá está ela está cuidando dos filhos, cozinhando, lavando roupa, feliz. Fruiu! Isso é a fruição (risos). A coisa está girando. No meio da fruição ela já está dando a transmissão para a filha pequena. Por favor, agora leve água para lá. Traga esse balde para cá. Ajude a mamãe a cortar isso. Mas adiante você vai precisar também... Isso é a transmissão do samsara. Passam pelas mesmas etapas: visão, meditação, sustentação da visão nas condições usuais e fruição. Fruição no samsara é o quê? A paisagem. A pessoa mergulhou naquela paisagem e ela é aquilo. Aí surgem todos os obstáculos. Filhos vão embora, não telefonam, não mandam recados, sumiram. O marido já morreu (vamos deixar assim, uma coisa mais digna... risos). Ela está viúva. Mas continua naquela fruição.
Lá pelas tantas, ela vai num psicólogo, está um pouco deprimida e o psicólogo diz: não, você tem mais é que sair, ir para um bailão, fazer isso, fazer aquilo. Aí ela recebe outra visão. Não, isso não vou fazer. E aquilo fica assim. Daí a pouco ela está em outra paisagem, dentro dessa paisagem tem outra fruição.
Só que aqui é assim: as fruições das paisagens do samsara são todas frágeis, existem por um tempo e afundam. Enquanto que a natureza primordial está lá. Mas a etapa final é fruição, ou seja, nos movimentamos de modo natural e livre no meio das coisas.
“A meditação precisa ser praticada; não pode ser apenas um tema intelectual. De outra forma seria como um remendo que é colocado sobre um buraco para cobri-lo.
Algum tempo depois cairá fora.”
Às vezes os alunos se aproximam e dizem: ah, eu tive a realização disso. Agora eu estou vendo, estou vendo aquilo. Ah, que maravilha, que bom, fico feliz! Não vou dizer que não é. Mas na maior parte das vezes, as pessoas colocaram um remendo. Se eu disser que aquilo é remendo e não é a realização, não é a melhor forma, então espero. Daqui a pouco o remendo começa a cair e será a hora de ajudar a pessoa a produzir uma real transformação que esteja além do remendo. Não é hora de dizer: você botou um remendo, viu? Estava tudo equivocado, eu sabia, só não disse para você. É hora de ajudar o outro. Então, quando o outro põe um remendo, isso é uma boa coisa. Porque agora ele já está comprometido com o remendo, vai ter que segurá-lo. Muitas pessoas às vezes passam mal nesse processo. Não sabem se abandonam o remendo ou voltam ao samsara, ou colam o remendo de novo, ou botam remendo em cima do remendo, como fazer. Mas de qualquer maneira os lamas são aliados para botar remendo e para transformar o remendo em alguma coisa real. Maharaja é especialista em remendos. Aquela unhazinha que ele tem... Os lamas fazem de conta que não tem nada, aí Maharaja vai lá com aquela unhazinha... aquilo é completamente certo. Nós trabalhamos em conjunto. Simples, é muito simples.
Se a pessoa não praticar, seria como um remendo porque ela pensou e colou alguma coisa. Algum tempo depois o remendo cai.
“A compreensão intelectual é impermanente e sujeita a mudança. A realização atingida através da meditação é permanente. O terceiro é manter a continuidade do comportamento nas atividades diárias da vida, e o quarto é chegar ao resultado final.”
Agora, iremos detalhar isso.
3.4.1 Confiança na visão
Os Quatros Estágios da Sabedoria Primordial 1. Confiança na visão a) Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos b) Localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno c) Estabelecer a visão da natureza da realidade 2. Experimentar a meditação 3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias 4. Fruição |
“Primeiro, atingir a confiança na visão, este estágio tem três partes:”
“a) Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos.”
Forma é vazio, vazio é forma, forma nada mais é do que vazio, e vazio nada mais é do que forma.
“b) Localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno.”
Na vacuidade não há, forma, sensação, percepção, formação mental e consciência. (Na vacuidade, ou seja, no aspecto interno). Não há olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente. Não há sofrimento, as causas do sofrimento, liberação do sofrimento, caminho para extinção do sofrimento. Não há ignorância, nem os elos subsequentes até velhice e morte e extinção da velhice e morte. Todos esses processos são coemergentes, internos e externos. Não há isso.
“c) Estabelecer a visão da natureza da realidade.
Estabelecer a natureza dos objetos que são vistos como sendo externos, envolve a consciência de como a mente vê objetos externos como realmente existentes. Isto referese a todas as aparências que são percebidas como separadas do observador. Todas estas aparências são vistas pela mente subjetiva como verdadeiramente existentes. Devido a isto, muitos eruditos reduzirão as aparências à partículas atômicas e após ao nada, assim vindo a crêr que tal natureza carece de uma existência verdadeira. De acordo com este sistema, os fenômenos objetivos surgem da mente e existem na mente de quem os discrimina. Apesar de você pensar que as aparências objetivas realmente existam, o mundo animado e inanimado não existiria se não fosse a mente. Não reconhecendo a natureza da mente e deixando-a na experiência de percepção confusa, você realmente sente que as aparências objetivas são verdadeiras exatamente como são percebidas. Torna-se, então, muito difícil aceitar que as aparências objetivas não têm existência verdadeira, inerente, e são criadas pela mente.
O primeiro problema é que sua mente está na experiência de percepção confusa. O segundo é a verdade da impermanência, na qual nada há que a mente perceba, incluindo a sim mesma, que seja permanente e que possa ser tida como verdadeira e real. Uma vez que tudo está sujeito a mudança, isto implica que não há uma existência inerente verdadeira, uma vez que a natureza dos fenômenos é impermanente. O sonho que você teve na última noite não é mais verdadeiro hoje. No momento em que você sonhava, parecia muito verdadeiro, muito real. Onde está agora? O que aconteceu?
Para dar uma outra analogia, um mágico competente na manipulação das aparências é capaz de criar uma ilusão ótica por meio do uso de substâncias e mantras, tudo isso é feito mesmo que durante o tempo todo ele saiba que as aparências que cria não são reais. Aqueles que vêem a aparência mágica, pensam que é real. Talvez um elefante, um tigre ou um pássaro surjam do chapéu e, sendo percebidos, são vistos como reais; entretanto, o mágico sabe que são mera ilusão.
Similarmente, todas as aparências objetivas nada mais são que rótulos mentais. Você pode dizer, “isto é uma mesa”, aquilo é uma casa”. Cada um desses objetos tem seu nome porque parece a você como sendo tal objeto. Portanto, você tem um rótulo para ele. Em verdade, sua natureza é ilusória e ele realmente não existe mais do que a aparência ilusória que um mágico cria. Portanto, você tem que ter a confiança na consciência de sabedoria primordial da natureza ilusória de todas as aparências. Através disso você é capaz de estabelecer a natureza dos objetos que são vistos como sendo externos.”
Coemergência é como que as coisas surgem. Como que as coisas aparecem. Mas, se as coisas fora não existem e as coisas dentro não existem, como que tudo isso aparece? Vamos nos respeitar. A coisa aparece, não aparece? Como que é isso? E não só aparecem como aparecem de um jeito e daqui a pouco aparecem de outro jeito. Vamos tentar entender essa coisa.
Os cientistas pegam as partículas atômicas e aquilo não tem nada dentro e pluft! De acordo com os químicos, você pega uma barra de ouro e vê que aquilo é composto de átomos de ouro e tem um espação entre eles. E as partículas que compõem, se a gente falar de partículas, já não tem mais nem partículas, mas vamos supor que tenha um núcleo, com os elétrons em volta e um enorme espaço entre os núcleos e os elétrons. Ou seja, se a gente simplesmente comprimir aquilo, a barra de ouro some. Aquilo que a gente vê dourado como uma barra de ouro é na sua quase totalidade espaço vazio. Mas eu, quando olho, vejo uma barra de ouro. Se eu mordo, eu mordo uma barra de ouro. Se eu ponho calor naquilo, aquilo derrete. Parece que tem alguma coisa real. No entanto, tem uma coisa mágica que é essa barra de ouro. Assim os praticantes vão olhando desse modo.
Eu não gosto desse argumento, eu prefiro outros associados a coemergência direto. Aqui eu estou tentando olhar uma barra de ouro como objeto externo. Ficar olhando para ela até descobrir que não existe externamente a mim. A coemergência é muito mais rápida. Esse é um tipo de vacuidade, um dos argumentos usados para a vacuidade, mas eu não gosto dele. Porque é uma vacuidade onde não tem a compreensão da inseparabilidade entre objeto e observador. Ele segue com o observador separado olhando para aquilo. Esse é um argumento associado a escolas inferiores. Nem vou nomear (risos). Mas é assim: aqueles que não entendem bem a vacuidade tratam desse modo. O próprio Gyatrul Rinpoche está falando, é um sistema. Ele não se filia a isso, com certeza.
Os fenômenos subjetivos surgem da mente. Esse é o ponto. Já que aquilo não é, como que aparecem? A barra de ouro é um fenômeno subjetivo. Aquilo que parece objetivo é subjetivo. Aquilo está dependente da mente.
Como que é esse argumento? Esse argumento seria assim: a gente olha uma barra de ouro e ela é vista com sendo o rosto de Maharaja. Eu olho ali e estou vendo ele. Unhas, dentes e etc., mas vamos nos respeitar. Ou seja, o que tem ali mesmo é pano e tinta. Com esse argumento eu pego uma barra de ouro e digo, vamos nos respeitar, o que tem aqui são partículas mínimas colocadas por aqui e por ali, que eu vejo como barra de ouro. Do mesmo modo que eu olho para aquilo e vejo como Maharaja.
O que parece objetivo na verdade depende da minha mente. Ele pega esse argumento de que aquilo ‘não é’ para poder chegar à conclusão de que a aparência e a sensação daquilo quando surge tem alguma coisa a mais dentro. E a gente tem que descobrir o que é.
Percepção confusa é eu aqui e vendo alguma coisa fora.
Eu acho que falta assim, criadas de modo coemergente. Porque criadas pela mente parece que é uma coisa tipo aquele filme que faz assim e as coisas... tchum! aparecem. Não é uma materialização, é uma construção coemergente. Não é uma construção unilateral da mente produzindo coisas separadas. É o reconhecimento da construção conjunta, do surgimento conjunto. Se não tiver cor sobre o pano, eu não vejo Maharaja. Mas se tiver cor sobre o pano e não tiver alguém com olho e uma estrutura cármica não aparece Maharaja também. Isso é coemergência. Porque tem tinta sobre um pano a minha estrutura cármica aparece na forma de Maharaja que parece estar do lado de fora.
[Pessoa pergunta se existe um universo material]
Não. Se eu digo que tem um universo material, tem um observador que vê o universo material separado. Nós não vamos conseguir dizer isso. Ainda assim, se vier alguém nervoso e diz: “mas, lama, o universo material não existe?” Existe. Aí quando a pessoa se acalma diz: “mas, na verdade, não existe”. Não é que não exista. Existe. Ele é verdadeiro, ele é real, só não é absolutamente existente. Como absolutamente existente? É existente, real, você trabalha com ele. Ele só não é absolutamente existente porque você estala os dedos, aperta o botão errado, e aquilo tudo muda. Ou você nunca mudou a sua visão com relação às pessoas com que você se relacionou? Ou você nunca pegou uma coisa que você gostou e não, agora não quero mais, dá para outro. Então, é isso. As coisas diante de nós... Você nunca pegou uma concha e virou um vaso? Não pegou uma panela, rachou e colocou uma planta dentro? Nunca pegou um sapato velho e colocou uma planta dentro e pendurou fora na parede? Eu também nunca fiz isso. Mas é uma boa ideia, né?
A arte toca diretamente isso. A pessoa pega um tronco e faz aparecer um ser não sei bem o que. A gente vê claramente como aquilo aparece. Eu gosto dos artistas que fazem suas obras e depois ficam olhando para cara do espectador, para saber o que ele vê. As pessoas mais sérias como eu, a Flori, a gente chega na frente daquilo e fica pensando o que deveria ver. Esse olho artístico é um olho interessante. É um olho que já compreende um pouco a coemergência. Por isso que a gente pegou a linguagem da arte como base da escola.
Retomando o texto, nem mesmo a noção da mente a respeito de si mesma é qualquer coisa que não seja uma noção fugidia. Você tem que ter confiança na consciência, na sabedoria primordial (rigpa). Na sabedoria que quando está diante das coisas, vê as coisas. Vê o quê? A natureza ilusória de todas as aparências. Aqui le está apontando a noção de sabedoria primordial. É algo que quando eu sento, olho para as aparências e percebo o aspecto ilusório das aparências. Qual é o segredo dela? Como ela aparece? Estamos arranhando já a última etapa.
Assim, para atingir a confiança na visão, eu tenho três partes. Primeiro, estabelecer a natureza dos objetos que são vistos como externos, enfim, eles são vacuidade. Assim nós chegamos à última frase dessa parte A, que é:
“Através disso você é capaz de estabelecer a natureza dos objetos que são vistos como sendo externos.”
O que é o conteúdo disso? Ele resumiu assim: em verdade sua natureza é ilusória, a natureza dos objetos é ilusória. Ele não existe mais que a aparência ilusória que um mágico cria. Os objetos externos são assim. Portanto, você tem que ter a confiança na sabedoria primordial que vê isso. Isso flui. Você bate o olho e vê isso. Isso é atingir o primeiro estágio na confiança da visão. Ou seja, o olho bate nas coisas e vê que aquilo não é externo. Aquilo é coemergente.
“Isto conduz você ao segundo estágio na prática do desenvolvimento da intuição, que é estabelecer a natureza da mente como o discriminador interno.”
Quem é que está do lado de dentro vendo?
“O criador das aparências objetivas é o sujeito, a própria mente. Porém, se tentar localizar a mente poderá você encontrar seu lugar?
Quando estudamos isso dentro do CEBB, não dividimos os itens A e B. Trabalhamos todos juntos. Na verdade, nós não dividimos os três itens. Por quê? Porque quando nós estamos trabalhando o objeto externo, já aparece a mente como objeto interno, como o mundo interno que produz aquela aparência. Nos exemplos todos que a gente está trabalhando, uma coisa revela a outra. Eu olho o objeto externo e descubro a coemergência. Quando descubro a coemergência, descubro a natureza livre da mente que produz a coemergência de um jeito ou de outro. Trabalhamos os três inter-relacionados. Já neste texto, trata-se de um método tradicional, então é dividido para poder analisar pedaço por pedaço. Mas eles não são realmente divisíveis.
Aqui quando eu digo que “o sujeito é a própria mente” eu já estou criando mente como um objeto. Eu estou olhando para ela. Isso já é separação sujeito-objeto. Não estou vendo ela operando de forma coemergente, estou vendo ela como se fosse um objeto separado de mim. A linguagem começa a ficar difícil. Então acontece que, se eu tentar localizar a mente é como se eu tivesse tentando encontrar um objeto como quem olha separado do objeto. Não vamos a lugar nenhum assim. Mas esse é o sistema tradicional, escolástico. Aonde está a mente?
Pra nós aqui não faz nenhum sentido essa pergunta. Não estamos procurando o local da mente. Já estamos trabalhando com a noção de coemergência. Eu vou procurar o local da mente aonde? Não tem nenhuma ilusão disso.
“Poderá determinar suas características? Ou seja, o que dentro dela existe que está lá? Podemos determinar se ela é substancial?
De acordo com muitos sistemas de pensamento budistas, há técnicas incontáveis que podem ser empregadas para descobrir a origem da mente buscando determinar se verdadeiramente existe ou não.
Para engajar-se na prática formal, primeiro de tudo você deve sentar na correta posição de meditação. Deixe que a fala mantenha-se silenciosa e respire naturalmente. Não force a mente fazendo-a muito tensa ou demasiadamente frouxa, apenas mantenha-se relaxado em sua própria natureza pura da consciência.
Algumas vezes quando você senta, dois processos podem ocorrer a você: o de apreender a mente e o de apreender o discriminador. Se perceber isso, então faça que o discriminador olhe para a mente discriminativa, o que é como olhar a própria face diretamente sem nenhum intermediário.”
Aqui ele está nos convidando a usar a mente usual separativa para olhar a própria mente, olhar o discriminador. A gente não vai a lugar nenhum assim. Ele quer que a gente esgote esse foco dual.
“Quando você começa a praticar assim, começa a dar-se conta de que o discriminador e a mente apreendedora não são separados. Você compreende que o objeto discriminado pelo observador e a mente que o apreende são indivisíveis.
Corresponde à mesma experiência.”
Essa descrição aqui é muito importante. Dessa descrição eu tirei a expressão de ‘coemergência’ que usamos. Eu acho muito precioso ele descrever desse modo: o objeto e a mente têm uma única experiência. Essa experiência eu posso chamar de objeto ou de mente. Eu posso escolher. Isso é a coemergência. A inseparatividade. Eu tenho um fenômeno. Esse fenômeno eu chamo de objeto, ou chamo de mente. Isso é de forma direta a descrição de Niels Bohr, na física quântica, quando ele vai falar de complementaridade na natureza da realidade do experimento científico. Ele vai descrever isso: não há essa separação.
Quando a gente pensa em um objeto, pensa em uma partícula, eu não consigo descrever objetivamente a partícula se eu não descrever a mente, como que ela está trabalhando para eu olhar aquela partícula como existente. Não tem como. Se eu quiser pensar a partícula como separada, separada do equipamento experimental, separada do experimento, e etc. até posso pensar, mas não tem objetividade nisso e surgirão ambiguidades. Ou seja, eu penso que tem uma entidade externa chamada partícula, partícula isso, partícula aquilo, e eu penso que ela tem características nela, mas eu vou terminar descobrindo que não, em outros experimentos. Porque aquilo só aparece como resultado de um experimento. E aquele experimento é algo complexo porque envolve muitos elementos. Eu pego tudo aquilo que aparece no experimento e digo que é propriedade do objeto. A gente pega o objeto como se fosse sozinho.E não é.
Assim, em outros lugares que eu pego, como se fosse uma partícula que tem aquelas propriedades eu vou descobrir que ela não tem aquelas propriedades num outro experimento. Aí eu pego outro experimento e digo que descobri outras propriedades da mesma partícula. Eu agrego aquelas propriedades na partícula. Aí quando eu faço um tipo de experimento aparecem algumas propriedades e quando faço outro, aparecem outras, mas é tudo da mesma partícula. Isso funciona bem até que encontro experimentos em que se as propriedades daquela partícula são verdadeiras naquele experimento, num outro experimento eu não posso ver aquelas outras propriedades. Não dá, não tem como. Tornam-se propriedades excludentes.
Quando elas se tornam propriedades excludentes, o método de ficar inventando que a partícula tem aquelas propriedade entra em colapso. Quando ele entra em colapso, todo processo de análise do experimento, a partir da noção de separatividade, entra em colapso junto. Só que a gente precisa muitos anos para se dar conta que no processo o problema é a forma como se está pensando e não o experimento. Aí você começa a refazer os experimentos para ver que deve ter um problema no experimento. O problema não é do experimento, é a forma pela qual a gente está pensando sobre aquilo tudo.
Essa é a transição da física clássica, em ver tudo como se fosse propriedade dos objetos separados, e a física quântica que vê a mente coemergindo com os experimentos. Isso está na ciência, na história da ciência, na filosofia da ciência, na psicologia da ciência, está aí, física quântica.
“Assim você pode vir a ver que o objeto e sujeito, o apego e a ligação não são mais duais. Trata-se de uma experiência única.”
A natureza da mente. Coemergência. A natureza da mente livre produz a posição da mente que vê o objeto de certo modo. Isso é a natureza da mente. Agora, esse salto aqui está um pouco rápido, não é?
“Originalmente livre de quaisquer limitações provindas da atividade mental condicionada.”
O que é isso? Eu tenho darmakaia, natureza primordial. Livre! O céu. A nossa linguagem é céu. Essa experiência de darmakaia, de céu, natureza primordial, espaço básico, ela é viva. Ela pode criar uma coisa ou outra. Ela tem uma liberdade original dentro dela. Essa liberdade original define como eu vou fazer a coemergência surgir. Quando eu faço a coemergência surgir, eu faço o objeto surgir (aparentemente diante de mim). Estou vendo esse processo todo. Manter a visão significa eu não excluir o processo, não me trancar como no reino dos deuses sem forma, meditando em shamata, focados no não pensamento. Não é nada disso, é rigpa! Eu poder olhar a aparência das coisas e ao mesmo tempo conhecendo a natureza livre que me permite ver aquilo coemergir de um jeito ou de outro. Vocês entendem? Natureza livre.
Estou dando um remendo ótimo para vocês. Com um grude muito leve. Encostou parece que grudou, mas daqui a pouco Maharaja vai lá e tira. Trata-se de uma experiência única. Essa compreensão é a base da prática de Vajrasatva, a sabedoria de Vajrasatva. Por quê? Uma experiência! É sempre isso. Seja qual for a experiência que a gente estiver usufruindo, a natureza da mente produziu um aspecto coemergente que aparece como objeto externo, ou aparece como a minha mente. E surge um mundo de objetos como se fossem sólidos.
“O que acontece então, se não há objetos nem sujeito? Tudo que você tem é a experiência da sua própria natureza búdica inata.”
Isso é Vajrasatva e, ao mesmo tempo, isso é Samantabadra, Buda Primordial. Buda Primordial diz “tudo que você tem é a experiência da sua natureza búdica inata”. Tudo é manifestação da natureza búdica. Porque eu vou vendo todas as múltiplas coisas e elas são ornamentos da natureza búdica. Quando vocês leem a confissão suprema, a gente faz oferendas a Samantabadra. Nuvens de oferendas a Samantabadra. Nossos olhos passam pelas coisas e quando nós as vemos surgindo como resultado dessa natureza livre, nós estamos oferecendo a Samantabadra. Porque isso que seria samsara, agora está completamente purificado. Ele não é um mundo externo que me arrasta de um lado para o outro. Ele é um ornamento, uma visão, uma manifestação dessa natureza livre sob um aspecto particular que vai produzindo mundos. Esses mundos todos são como fumaça. Como nuvens de oferendas de Samantabadra.
“Nos estágios iniciais da prática você experimentara esse estado livre de dualidade por um instante fugaz. Em um segundo momento a discriminação dual e o apego retornam.”
O que é o apego? Não é apego do tipo “eu quero essa coisa”. Apego é sustentar alguma coisa. Sustentar um movimento sutil da mente.
“Atualmente há muitos praticantes que usam uma parcela de tempo sentados em meditação silenciosa. Se você sabe como praticar os estágios do desenvolvimento de fruição e de fato estabeleceu confiança na visão sendo portanto, capaz de assegurar-se da natureza da vacuidade então a prática mais longa de meditação silenciosa pode ser extremamente iluminadora.”
Para isso os retiros de uma semana, três meses, retiros mais longos.
“Entretanto, se você não tem experiência e apenas senta silenciosamente em meio a conceitos turbulentos e distrações mentais isso é apenas perda de tempo. Durante a experiência de não dualidade permita-se permanecer no frescor da experiência sem alterações conduzidas. Um praticante com inteligência superior será capaz de permanecer nessa experiência de consciência intrínseca indefinidamente. No inicio é difícil permanecer muito tempo, essa experiência é, entretanto idêntica à experiência que você tem entre dois pensamentos.”
Aqui se aproxima um pouco das técnicas do professor Alan Wallace, só que as técnicas dele se referem a shamata, e aqui não é shamata. Aqui é depois da confiança na visão.
“Quando o primeiro pensamento termina e o segundo começa o fresco momento entre eles é idêntico à experiência de consciência intrínseca. A razão pela qual você não está consciente disso é que tem tanto pensamentos surgindo tão prontamente que o momento entre eles não é percebido.”
Do mesmo modo de quando nós estamos ouvindo sons não percebe que há silêncio entre os sons. A gente só percebe os sons. Mas com certeza enquanto, por exemplo, há uma fala, o silêncio dentro de uma fala é mais intenso, tem mais tempo de silêncio do que tempo de som. A gente não vê o silêncio, a gente vê o som. Porque nós estamos sustentando significados provindos do som. Então, o som é o nosso foco.
“Pode ser que você pense que o momento entre os pensamentos sejam um apagamento semelhante à experiência de quiescência impura. “
Onde nós paramos na experiência de consciência condicionada.
“Na experiência entre os pensamentos todos os oito estados cognitivos estão funcionando normalmente.”
Ou seja, o samsara funciona normalmente.
“A mente é luminosamente clara e capaz de reconhecer qualquer coisa e ainda assim totalmente livre de dualidade porque não há a experiência de formações de pensamentos e atividade mental deludida. Se você entendeu isso, significa que você teve um relance da experiência geral da consciência intrínseca.
Por que então vocês, enquanto indivíduos comuns têm tanta dificuldade de reconhecer essa experiência geral como sua própria natureza primordial de sabedoria? Isso se dá devido à intensidade dos hábitos com respeito a dualidade e os pensamentos discursivos. Devido a isso, você é derrotado vez após vez por suas próprias conceitualizações.”
Intensidade dos hábitos significa que, quando aparecem os pensamentos, a gente sai troteando junto com eles.
“Adicionalmente no passado você ouviu instruções sobre a natureza da mente mas falhou na prática. Que método pode ser empregado uma vez que você é tão distraído por sua própria mente? “
Ele propõe um método.
“O método é tentar encontrar a fonte da mente, o criador dos pensamentos discursivos, a causa raiz de todos os seus problemas.
Você já deu-se conta do fato que os conceitos surgem da mente. Agora, você deve perceber onde a mente se origina, onde ela existe, e onde finalmente cessa. Similarmente, tente entender onde os pensamentos discursivos se originam, onde existem e onde cessam.”
Ele está convergindo para o item 3. Ele começou examinando a natureza dos objetos diante de nós, agora a natureza da mente interna e agora ele vai examinar a natureza daquilo que produz as aparências.
“Onde a experiência de iluminação se origina, existe e cessa? Quem sente felicidade e sofrimento? Se chegar à conclusão de que a mente que usufrui a iluminação e samsara, então onde a mente se origina, existe e cessa?”
Ele quer apontar darmakaia, natureza completamente livre e incessantemente presente.
“É tangível ou não? É sem forma?
Se você determinar que a mente tem uma forma, então você deveria tentar determinar qual sua forma e cor. Se é tangível, deve possuir algumas características. Se você pensar que é sem qualquer existência substancial, então deveria tentar examinar que experiência é esta. É essencial ter um professor espiritual que já tenha realizado a natureza da mente para ajudá-lo acuradamente a passar por esta experiência. Um professor espiritual qualificado a este nível de prática é alguém que atingiu a natureza da mente. No Tibete há muitos exemplos onde discípulos foram enganados por professores que não tinham realização.”
Isso é a observação usual dos textos. Eu entendo assim: “evitem os mestres tibetanos” (risos).
Está dito, e por um tibetano!
“A este nível de prática existem muitos perigos e armadilhas.”
Aqui a armadilha seria assim: se a gente encontrar um céu, não há o céu. Se encontrar o espaço, não há espaço. Isso é uma forma de explicar. Espaço básico além das galáxias antes do big bang... Estamos perdendo tempo. Não é isso. Quando ele diz espaço...Por exemplo, quando vocês estão dentro de uma experiência comum, como que a gente consegue se deslocar? A gente se descola de um conceito para outro. Mas, na verdade, esses conceitos todos estão dentro de uma grande região, dentro de um grande espaço livre. Se eu não tivesse esse espaço livre sutil não teria possibilidade para pensar sobre essas coisas. Estaria fixado a um pensamento. Não teria possibilidade de deslocar isso para outras regiões. Quando estamos no meio dos pensamentos, sejam eles quais forem, no meio das aparências autogeradas, no meio à experiência de coemergência que está produzindo as aparências variadas, a gente precisa ter a clareza de que atrás disso tem a liberdade de que posso simplesmente apagar aquilo e criar de um outro jeito.
Então, esse espaço livre incessantemente presente dentro da forma, entre as formas, esse espaço não é tocado pela própria forma. Ele está lá. Então nós descobrimos que quando pensamos, quando não pensamos, e ele está lá, o espaço. Quando estamos iludidos no meio de shamata, no meio de alguma coisa está lá esse espaço também. Tudo lá. Sempre!
Nós vamos desenvolver confiança na visão. Significa que vamos reconhecer esse espaço. Nesse espaço brota a sabedoria primordial. O espaço é vivo. Eu olho as coisas construídas e Ah! Está ali.
Mas para eu poder olhar qualquer coisa como algo construído, onde eu estou? Numa região não construída, que é esse espaço primordial. Se eu chamar isso de espaço primordial e tentar localizar isso em alguma coisa, estou reificando, criando confusão. Preciso transformar isso numa experiência que está sempre disponível. Eu vejo que aquilo está sempre disponível.
“Se, por meio de seu processo de exame, você for totalmente incapaz de encontrar a mente e o que você encontrou em lugar dela é como o âmbito do próprio espaço ainda que seja incapaz de expressar isso, então está na trilha certa. Entretanto, esta experiência de vacuidade não é a negação de tudo, não é cair no niilismo, ou pensar que nada existe.”
Não é cair no niilismo, negar as aparências. Qual é a diferença? Se eu olho para as aparências e nego, estou numa etapa onde não vi a coemergência. Porque se eu nego as aparências ainda não fiz a pergunta “se aquilo não é, como parece que é”? Quando eu faço a pergunta “se aquilo não é, como é que aparece que é” eu descubro a coemergência. Quando descubro a coemergência, descubro o espaço livre que aciona a coemergência. É esse o espaço. Esse espaço se manifesta na coemergência que produz as aparências e se manifesta no silêncio entre as aparências.
“É uma experiência que é muito aberta; e, no interior desta espacialidade, existem muitas, muitas possibilidades. É importante ser muito cuidadoso com respeito à profundidade desses ensinamentos.
Se tomá-los literalmente, sem qualquer experiência meditativa, há o perigo de tornar-se confuso com respeito à realidade e perder sua sanidade. Esta é a razão pela qual é importante receber ensinamentos sob a proteção de um professor qualificado de acordo com a tradição. Por esta tradição, a iluminação pode ser atingida em um corpo e em uma vida, porque estes ensinamentos têm o poder de estabelecer os praticantes no estado de liberação onde há uma liberdade perfeita de todos os traços da percepção confusa”
É uma experiência muito aberta – isso significa que, mesmo que tenham coisas muito parciais, a abertura continua. Por exemplo: tem uma confusão em casa e felizmente chega a mamãe. As crianças estão presas numa experiência fechada. A mamãe chega e produz uma abertura. “Não se preocupem, vamos secar o chão, levantar isso, isso aqui não é nada, não tem problema”. Pronto, se resolveu o problema todo. Não que a pessoa não esteja vendo aquilo, ela está vendo, mas tem uma abertura. Por isso que as mães já estão no céu e vão direto para o céu (risos).
“Reconhecer a natureza da mente é realmente o ponto de compaixão de todo o caminho; entretanto isto também pode ser perigoso se você não se aproxima de forma cuidadosa e correta.”
O que é compaixão? A única coisa que a gente pode chamar de compaixão é efetivamente produzir a liberação. Todos os outros são processos compassivos que nos levam enfim a esse ponto. Mas se não tiver esse ponto...
Com isso nós concluímos o segundo item dos três itens que levam à confiança na visão. Vamos para o terceiro item.
Os Quatros Estágios da Sabedoria Primordial 1. Confiança na visão a) Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos b) Localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno c) Estabelecer a visão da natureza da realidade 2. Experimentar a meditação 3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias 4. Fruição |
“No que diz respeito ao desenvolvimento da confiança na visão, o terceiro passo é abarcar a visão da natureza da realidade. De acordo com este tesouro redescoberto pela emanação irada de Guru Rinpoche, Dorje Drolö, a luminosidade aberta é a natureza de Dorje Drollö. Isto se refere à natureza da mente de todos os Budas, que é a natureza de todas as deidades de meditação, de todos os lamas, dakinis e verdadeiros objetos de refúgio.”
Dorje Drollo é o devorador de demônios. É uma figura impressionante. Irado! Por que devorador de demônios? O espaço básico é devorador de demônios. A essência de Dorje Drollo é o Prajnaparamita. Não tem nada que fique em pé. Os demônios são as ilusões. Devorador das ilusões porque eu reconheço as ilusões sustentadas a partir de coemergência, existindo dentro de um céu. Não só encontramos a ilusão das paisagens, mentes, energias, corpos flutuando no meio daquilo, mas olhamos e vemos como integramos, não precisamos ficar em oposição. Liberamos, literalmente. Não é que a gente destrua, a gente libera. Essa luminosidade aberta é a natureza de Dorje Drollo, se refere à natureza de todos os budas, natureza do espaço, natureza de todas as deidades de meditação. Todos os yidams, todos os seres de sabedoria sambogakaia brotam disso. Depois leiam a Confissão Suprema, linha a linha, e vocês vão entender o que estamos dizendo. Leiam também Prece aos Três Kaias do Lama, Prece para Alcançar a Cidadela da Sabedoria Intrínseca, e A Essência da Confissão de Vajrasatva.
Se eles são objetos de refúgio representam o surgimento a partir da natureza primordial.
“Para realizar tal natureza, você não necessita buscar em qualquer outro lugar especial que não dentro de você mesmo. Tal natureza é a essência de sua mente e é a experiência auto-originada. Realizar isso é abarcar tudo que constitua samsara e nirvana. A mente de todos os Budas, nossa própria natureza inata, é a experiência da sabedoria primordial, livre da dualidade, luminosamente clara, desobstruída em sua compaixão.”
Acho boa essa explicação, mas tenho medo, não gosto da noção de que é dentro de mim ou fora de mim. Parece que vai surgir novamente uma reificação de um ‘eu’. Pensem que quando estamos profundamente dentro de nós, a gente escapa de nós e encontra o espaço primordial onde todas as manifestações surgem. Não é que a gente vai encontrar um ponto cada vez mais profundo, único e separado, vamos encontrar esse espaço amplo.
“Luminosamente clara e desobstruída em sua compaixão”. Aqui Gyatrul Rinpoche está usando a noção da espacialidade livre de dualidade e luminosamente clara e desobstruída em sua compaixão, como sabedoria primordial.
Mas ele introduziu palavras novas nessa ultima frase, introduziu a espacialidade, associada à sabedoria. E também a compaixão. Ele está falando em vacuidade, luminosidade e qualidades, os atributos da natureza primordial, mas não introduziu, não explicou isso. Essa natureza de espacialidade tem vacuidade, ou seja, não tem objetos dentro, nem ganchos, nem nada préconcebido. Vamos profundamente dentro disso e não encontramos nada, como o silêncio, por exemplo. A gente está aqui falando e existe um silêncio. O que tem dentro do silêncio? Dentro do silêncio só tem silêncio, natureza do espaço. Mas esse espaço é vivo, luminoso, capaz de produzir formas. Quando o espaço associado à luminosidade produz formas, essas formas são auto liberadas. Quando não entendo e fico preso, preciso de uma sabedoria primordial que dissolva isso. Sento novamente em silêncio, vejo como que as formas surgiram, sorrio e dissolvo. Dissolvo sem necessidade de dissolver, por isso a gente sorri. Libero as formas, sem a necessidade de destruí-las.
Ele vai descrever a mente do Buda como a união entre o som e a vacuidade. Aparece o som, o que seria a forma, e a vacuidade juntas, que é a mente do Buda. Isso é muito bonito e muito curto. Estamos imersos na forma, que é inseparável da vacuidade, e sorrimos para ela. As formas estão todas liberadas. Essa compreensão é a sabedoria primordial. Para poder ver isso eu tenho que estar sentado nesse espaço, não posso estar sob o poder das formas que aparecem, vejo, mas não estou sob o poder delas. Elas aparecem e posso liberá-las, seguir com elas como quem brinca, mas não está sob o poder do brinquedo.
Estamos buscando nesse texto acessar sabedoria primordial, acessar essa mente. Aqui ele chegou ao final da visão, descreveu essa mente. Visão é descrever a mente da sabedoria primordial. Ele introduz a palavra compaixão. Dentro da sabedoria primordial isso em si mesmo já é compaixão, o ponto final que libera samsara. É a essência da compaixão. Da essência de compaixão brotam todos os meios hábeis, tão simples como acolher as pessoas num posto de saúde, para depois conectar uma outra coisa, e outra coisa, até que lá pelas tantas elas acessam isso. A essência da compaixão é essa.
“... essa natureza é desobstruída em sua compaixão.”
Porque qualquer coisa que possa prender em si mesma a compreensão disso, já desobstruiu. Ela é aquilo que dissolve até o último átomo da aparência do samsara e o seu poder sobre os seres. Dissolve completamente. Dissolver não é uma boa palavra. Libera samsara. Não precisa dissolver a forma, liberamos as formas, é diferente.
Com isso ele descreveu a visão, e se praticarmos iremos desenvolver a confiança na visão. São quatro estágios, agora precisamos ir para o segundo, que é experimentar a meditação.
3.4.2 Experimentar a meditação
Os Quatros Estágios da Sabedoria Primordial 1. Confiança na visão a) Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos b) Localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno c) Estabelecer a visão da natureza da realidade 2. Experimentar a meditação 3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias 4. Fruição |
“Após você ter atingido confiança na visão, se pode então focar a prática de meditação como aprofundamento da visão.”
Essa é a razão pela qual as pessoas vão entrar em retiro, de três meses, seis meses, um ano, dois anos, três anos, o tempo que for. Uma semana, um fim de semana. Estamos fazendo isso.
“Repousar livre de pensamentos do passado, presente ou futuro. Posicionado na consciência fresca não intermediada é também chamado de meditação.”
Aqui vamos praticar visão. A meditação vai ser a prática da visão. Vamos sentar e sustentar a visão em meio às circunstâncias.
“Esta experiência aberta, luminosa, que é a natureza auto-originadora da mente de cada um, não necessita ser buscada como uma experiência meditativa separada.”
Gosto de ouvir isso, os grandes mestres dizendo as coisas assim. A gente começa a mitificar a meditação e ele vem e diz “você não precisa imaginar que essa experiência aberta e luminosa, natureza auto-originadora da mente de cada um necessite ser buscada como uma experiência meditativa separada”. Não preciso fabricar uma experiência meditativa para isso. Não preciso, mas posso, e pode ser útil, mas não preciso.
“Você não necessita pensar que está criando uma experiência artificial.”
Não é uma experiência artificial. A meditação se torna uma experiência natural.
“É simplesmente reconhecer-se e manter-se diretamente introduzido ao reconhecimento de sua própria natureza.”
Natureza do espaço, do céu.
“Este é o significado do darmakaia (corporificação da realidade última). Além do mais, nesta experiência darmakaia, as percepções sensoriais estão presentes e são simplesmente observadas imparcialmente, sem qualquer discriminação dualística ou apego.”
Não é que o samsara seja extinto, ele é liberado, vejo as aparências, mas elas não têm o poder de me arrastar, estão presentes e são simplesmente observadas imparcialmente, sem qualquer discriminação dualística ou apego. Aqui não olhem apenas como apego emocional às coisas. É necessário entender que existe um apego mais sutil, que é o fato de que olhamos alguma coisa e tentamos sustentá-la. Por exemplo, olho lá fora e vejo uma borboleta. Não é que tenha apego emocional à borboleta, mas agora estou tentando ver, paro todo o resto e fico olhando aquela borboleta. Isso é a sustentação de uma experiência, tenho uma experiência e tento sustentar e ampliá-la. Isso é a essência do samsara. Não estamos apegados à borboleta, ou seja o que for, estamos apegados à experiência de parar e sustentar, controlar o surgimento de alguma coisa. Esse é o nosso apego.
“Esta abertura é luminosamente clara e abarca a tudo, sem sofrimento, porque não há dualidade. Não podendo beneficiar, não pode prejudicar. Vai além do âmbito do benefício ou prejuízo, aceitação ou rejeição. Você não mais precisa pensar: “Oh, eu não posso fazer isto; eu não devo fazer aquilo.”
É a percepção do aspecto lúdico da realidade. Dentro da nossa prática do Programa de 21 itens essas partes estão subdivididas em muitos itens. A gente trabalha isso com muito detalhe: na meditação linha a linha do Prajnaparamita e depois nas oito frases para contemplação do Prajnaparamita dentro das experiências discriminativas ao redor, e nos quatro níveis da prática de presença. São ornamentos do item dois, que é a meditação sobre a natureza primordial.
3.4.3 Sustentar o comportamento nas atividades diárias
Os Quatros Estágios da Sabedoria Primordial 1. Confiança na visão a) Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos b) Localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno c) Estabelecer a visão da natureza da realidade 2. Experimentar a meditação 3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias 4. Fruição |
“O terceiro passo é manter a continuidade do nosso comportamento. A conduta deve ser semelhante à meditação, e a meditação deve ser como a visão. Cada um contém o outro.”
Qual é a essência da meditação? Visão! A conduta é visão.
“Usualmente você considera que conduta é a experiência pós-meditativa que ocorre após a sessão formal. Sustentar a continuidade é integrar visão, meditação e ação.”
“Uma vez que o equilíbrio meditativo é manter-se simplesmente na consciência intrínseca, aberta, não intermediada, totalmente luminosa e relaxada, quando você chega a esta experiência, deve perceber que todas as aparências e experiências são como uma manifestação ilusória da natureza da consciência intrínseca. Todas as formas são vistas como uma divindade de meditação, manifestação divina. Você pode ouvir a essência de todos os sons como sendo a do mantra.”
Eu diria assim: manifestação ilusória e lúdica.
Aqui ele usou uma nomenclatura do Vajrayana. Na nossa prática podemos usar assim como está, mas temos observado, por exemplo, se eu vou utilizar a sabedoria da deidade, vamos supor, a sabedoria do Buda Akshobya, sabedoria do espelho, e olhamos em todas as direções e vemos exemplos da sabedoria do espelho. Estamos dentro da mandala da sabedoria do espelho. Quando bate o olho, não é quando bate o pensamento. Já vemos aquilo como exemplo. Surge a mandala. O aspecto que a gente pensa sobre as coisas é mais introdutório. Quando a gente chega às mentes associadas aos sentidos, as aparências surgem com a cara daquela sabedoria também. Temos a sensação de um mundo ao redor que é a mandala daquela sabedoria, daquela deidade. Todos os sons são aquilo também. Tudo o que experimentamos com olhos, nariz, ouvido, língua, tato e mente são expressões daquela sabedoria. Significa que ela está fluindo, é a fruição daquela sabedoria. Estamos na mandala. Essa fruição é o quarto estágio. Vamos praticando a ação no cotidiano, aspirando essa fruição. Mas a gente tropeça e retorna, tropeça e retorna, essa é a prática no cotidiano, podemosretornar. A prática na vida cotidiana é ótima.
Na nossa prática, juntamos a fruição com a meditação e ação. Porque somos convidados a agir no mundo externo, e devemos agir com a compreensão da vacuidade. Damos nascimento, giramos, sonhamos e fazemos tudo funcionar. Aquilo tudo é vacuidade. Estamos praticando visão, meditação, já que praticamos tudo de forma consciente, usando como ação e um tanto já exercemos como fruição, porque já funciona quase normalmente. Em outros casos a gente não consegue. Eu fui lá e não consegui, tive raiva, tive medos. Mas outra pessoa fala, “não, olhe assim”. Como sanga vamos nos protegendo e gerando essa capacidade de fruição e ação na vida cotidiana. A gente desenvolve como se fosse uma terra pura, não estamos iluminados, estamos num ambiente propício junto com a sanga onde o que surge como obstáculo a gente já vai entendendo melhor. É isso o que estamos fazendo.
“Todos os pensamentos são compreendidos como a atuação da consciência pura. Você pode também considerar que as aparências na vida diária são como um sonho, uma ilusão, sem verdadeira existência inerente.
A este nível de prática, não há distinção entre meditação e conduta. A experiência meditativa pode ser mantida na forma como se percebe as aparências da vida diária e dirige a pessoa. Isto significa que os pensamentos discursivos seriam utilizados como a aparência do caminho, em lugar de um obstáculo.”
Isso é maravilhoso! A gente não está pensando que precisa remover pensamentos, remover coisas, temos que iluminar essas coisas. Vamos liberá-las!
“Quando discriminação e apego cessam, os pensamentos surgem como uma ilusão, para adornar o caminho.”
Nesse sentido vem a noção de oferendas de Samantabadra. Vou olhando em todas as direções e vendo nuvens de oferendas de Samantabadra. Ofereço ao Buda primordial a visão comum que não é mais uma visão comum, é a visão de como as aparências comuns surgem da natureza livre da mente. Assim, os pensamentos e obstáculos surgem como um adorno do caminho, como uma oferenda.
“Se, talvez, você ainda pensar que um pensamento discursivo está causando dano, trazendo dor ou problema, apenas entre nele e veja que é vazio por natureza, e ele se dissolverá. Se seguir o pensamento e permiti-lo controlar a mente, terá perdido a visão.”
Isso seria apego. A gente pega um pensamento e começa a sustentar sem perceber. Imediatamente se perde a visão.
“Por outro lado, se você absorver o pensamento, verá que a natureza dele é vazia e ele se dissolverá, como as ondas que se elevam do oceano e desaparecem de volta no próprio oceano.”
A confissão suprema vai descrever isso. Quando a gente descreve isso, libera todas as nossas confusões no espaço básico. A gente faz a confissão e resolve.
“Nada há de errado com o surgimento de um pensamento discursivo, quando você percebe que ele surge da consciência pura e dissolve-se de volta na consciência pura.”
Por mais impuro que seja o pensamento discursivo, por mais complicado, ele é apenas isso. Ele surge e cessa. Essa é a essência da confissão e da liberação. Vocês vão ver nesse texto.
Vejam no texto Confissão Suprema: “atendam-me com a sua suave bondade amorosa e estabeleçam-me firmemente para que eu nunca oscile do espaço básico da não dualidade”. Isso é o que estamos aspirando. Não escapar disso.
“Embora vocês vivam em equanimidade não referencial” (ele está se referindo aos Budas), concedam-me a absolvição suprema da não dualidade”. Qual é a absolvição suprema? Vejo que a confusão toda surgiu da dualidade e se eu quero a absolvição, tenho a experiência da não dualidade como a experiência básica, vejo como a dualidade surgiu e sorrio para ela. É uma construção luminosa a ilusão, não tem nada dentro e por isso eu posso obter a absolvição.
“A verdade última além da elaboração” é o que estamos trabalhando, a verdade última. Não permite nenhum referencial, de julgamento, baseado no pensamento discursivo, no entanto, se houver quaisquer erros que venhamos cometer devido à mera ilusão da verdade relativa, a gente comete erros dentro do mundo relativo, é isso. “Arrependo-me sinceramente e rogo pela sua clemência”. Essencialmente estamos pedindo a absolvição suprema da não dualidade.
Quando percebemos que o pensamento surge e se dissolve no espaço básico, na consciência pura, temos a absolvição do pensamento discursivo, a dissolução das ações equivocadas, é simplesmente isso. Tem o espaço básico que é a essência de tudo.
“Quando você for hábil para reconhecer que os pensamentos discursivos nada mais são que a manifestação da própria consciência intrínseca, que são vazios e sem existência inerente verdadeira, você os deixará passar e dissolver-se de volta em sua fonte vazia.”
Isso é uma prática. Mas também podemos nos manter operando dentro disso, é a ação de um Buda, de um nirmanakaia, ele se mantém agindo no mundo. Isso é a essência dos meio hábeis, ele gera processos ilusórios e dentro desses processos traz as pessoas que estão presas em direção a uma lucidez maior até o ponto em que se atinge a liberação. A essência dos meios hábeis é isso, poder girar no meio do mundo de várias formas.
“Em resumo, você precisa ser cuidadoso nessa prática de conduta como caminho para não ser perturbado pelas distrações e dominado por seus hábitos a discriminação e apego.”
Aqui tem uma perfeição. Se a pessoa disser “eu estou liberada”, vejo isso e fluo de forma lúdica no meio da natureza primordial que é a minha consciência, estou completamente livre disso. Aham! A pessoa está no meio daquilo. O menor traço de apego que ela tiver, produz o traço de sofrimento. Se tiver volumes de apego, tem volumes de sofrimento. Se ela gritar no meio, vai gritar o quê? Vai reclamar de quê? Ela não tem liberação? Se está no meio daquilo e as pessoas prendem-na, amarram, tocam fogo, é a hora de ver se ela tem a liberação ou não.
Se a pessoa vai para o fundo de uma prisão ou alguma coisa assim, porque não foi entendida, ela tem a capacidade de se liberar daquela condição ou não tem? Liberação não é assim, transformar todos em formiga e ir embora, é passar por dentro da sua própria experiência como quem está no espaço básico.
“Como praticante, sua prática deveria ser como um rio que flui incessante e estável.”
Aqui ele já introduziu a fruição, está pegando cada um dos itens, confiança na visão conduz à meditação e meditação conduz à ação no mundo. A ação no mundo, quando amadurece, conduz à fruição. Não é assim, minha prática de meditação sentado em posição de Vairochana deveria ser como um rio que flui. A prática, no sentido amplo, que é a lucidez, deveria ser como um rio que flui.
Comparem com shamata impura e pura, onde não temos a compreensão da natureza da realidade, não temos a compreensão da natureza primordial, não temos a compreensão de como as coisas surgem. Simplesmente paramos e nos mantemos estáveis observando a respiração e evitando flutuar a mente, observando a energia, cuidando para não doer o joelho e nos achamos iluminados. Pensem!
Isso não serve para desclassificar. Comparem, por exemplo, com o estudo da Roda da Vida. Tem o javali, o galo, a cobra, os seis reinos... é o início. Enquanto não entendermos a nossa vida e gerar uma base, uma fundação, e nessa fundação pudermos manifestar compaixão e aspiração de andar, não vamos meditar, e se não meditarmos, não estabilizamos a mente, e se não estabiliza a mente não se consegue ver. É um jogo de visões onde o espaço está lá atrás. É tão difícil quanto ouvir uma fala e o silêncio enquanto a fala se produz. É mais difícil ainda ouvir a fala e o silêncio em meio aos sons e os significados que estão por trás, como um som e tendo por trás dos significados o espaço livre. Mais difícil! Como vamos ver tudo isso se não estabilizarmos a mente?
Se não pudermos ver lá atrás, estamos presos com alguma coisa na frente. Essa alguma coisa na frente está saltitando e tentamos prendê-la. Isso é apego. Enquanto sustentamos, começamos a ter ciclos de mortes e renascimentos sustentando coisas, é o que acontece com a infinidade dos seres. O samsara, o poço da experiência cíclica, é muito profundo.
Quando vamos falar com as pessoas nunca podemos mostrar a boca de saída do poço, elas não entendem. Precisamos mostrar uma coisa menor, e eles vão avançando por estágios. Como alguém que está no fundo do oceano mergulhando com um tubo, ele tem que subir um pouco para respirar naquela pressão e aí sobe mais um pouco. Se subir direto, não dá. Temos que fazer isso.
3.4.4 Fruição
Os Quatros Estágios da Sabedoria Primordial 1. Confiança na visão a) Reconhecer a natureza dos objetos que são vistos como externos b) Localizar a experiência da natureza da mente, o discriminador interno c) Estabelecer a visão da natureza da realidade 2. Experimentar a meditação 3. Sustentar o comportamento nas atividades diárias 4. Fruição |
É a mandala natural, sem esforço.
“A quarta e última etapa é o modo pelo qual a fruição é atingida. A fruição é o reconhecimento de nossa própria natureza da consciência intrínseca, originalmente pura, livre de confusão.”
Esse reconhecimento não é assim: um observador observando um objeto e esse objeto chamase consciência intrínseca primordialmente pura, livre de confusão. Não é encontrar um objeto. Foi indo, indo e até que encontrou o objeto no topo de uma pirâmide de cristal, no terceiro mundo sutil que só atingimos com o corpo translúcido obtido através de fluido especial de Guru Rinpoche. Ele só vem quando a lua se alinha com o sol num solstício a cada quinhentos anos. Não é isso, felizmente!
A fruição é o reconhecimento da nossa natureza sem precisar reconhecimento. É o usufruto, o fluir. Quando a gente diz reconhecimento, tem uma mente dual reconhecendo, mas aqui essa palavra é muito mais profunda do que parece, por falta de outras que a gente coloca reconhecimento.
“Esta experiência que é o resultado de visão, meditação e conduta, é a experiência de iluminação ou liberdade última da confusão da natureza da existência cíclica. Se sua prática é forte, então, mesmo antes de sua morte, ao realizar esta natureza e manifestála de acordo com estes quatro estágios, você estará liberado. Não sendo assim, a liberação ocorrerá no momento da sua morte ou no estado do bardo. Por meio das bênçãos da realização desta prática, é certo que a liberação ocorrerá durante um destes períodos.”
Não pense agora que está chegando a alguma coisa, pense assim: a visão, como está? Os três pontos estão ok? A meditação, consigo sustentar a visão durante a meditação? Quando retomo as atividades comuns, aquela visão se mantém? E quando se mantém, é sem esforço, incessante, e naturalmente presente, útil e operativa? Isso é a realização. Está fluindo sem obstáculos.
“É imperativo ter uma forte fé em seu professor raiz, aquele que o introduz à natureza da mente, de tal forma que você possa reconhecer sua própria natureza. Estas são as instruções piedosas para o sucesso nesta prática. O resultado final de quiescência, intuição da sabedoria primordial, mahamudra e mahasandhi, nada mais são do que isto.“
ANEXO – ROTEIRO DE MEDITAÇÃO – 21 ITENS p. 126
ANEXO – Roteiro de Meditação – 21 Itens
01 |
Motivação |
Querer se livrar para produzir benefício aos seres. Entendemos: lodo, água, talo, flor, nascimento, radiância, céu. |
02 |
Shamata impura |
Interrompemos a operacionalidade comum do mundo e sentamos. Focamos a respiração e vemos o corpo se energizando. |
03 |
Shamata pura |
Mantemos o brilho no olho e no corpo e nos mantemos abertos ao que ocorre no mundo externo, sem responder. |
04 | Metabavana | Alteramos nossa capacidade de olhar o mundo, nos colocando positivos diante de situações de apego, aversão e indiferença. |
05 | Prajnaparamita | Purificamos os enganos cognitivos. Coemergência, vacuidade dos 5 skandas, luminosidade, êxtase, alegria. “Diante da energia dinâmica que brota da forma vazia e luminosa, eu sorrio”. |
06 | Repousar na Presença | Visão do Espaço Básico, a Natureza Última: em shamata, com foco na estabilidade e na mente; na experiência comum de observar um objeto ou em ação no mundo. |
07 |
Elemento éter |
Propósito. Brilho nos olhos seguido de impulso, energia de socorrer. |
08 |
Elemento ar |
Expansão. O natural movimento de expansão no contato com o universo. |
09 |
Elemento fogo |
Energia. Corpo aquecido, energia de vida. |
10 |
Elemento água |
Flexibilidade. Mobilidade do corpo, impulso de movimento. |
11 | Elemento terra | Força. Firmeza. Produz a presença no mundo, sustenta as identidades (bodisatvas). |
12 |
Sabedoria do Espelho Buda Akshobia |
Damos nascimento. Capacidade de acolher os seres do jeito que eles chegam. Aquele ser não é aquilo que manifesta. Aspiramos que se livrem dos obstáculos. |
13 | Sabedoria da Igualdade Buda Ratnasambava | Colocar-se no lugar do outro e operar a partir daí. Surge interesse genuíno em promover as qualidades positivas deles. Cuidar deles ou cuidar de nós significa a mesma coisa. |
14 |
Sabedoria Discriminativa Buda Amitaba |
Inteligência que olha o samsara, e nos permite manter lucidez e serenidade em meio ao mundo. Terra Pura. Visão lúcida: 4NV e o NC8P. |
15 |
Sabedoria da Causalidade Buda Amogasidi |
Nossas ações têm conseqüências. Esforço de olhar para dentro dos carmas e dissolvê-los, usando lucidez. Capacidade de intervir. |
16 |
Sabedoria de Darmata Buda Vairochana |
Abandonamos todos os apegos, identidades e repousamos na Natureza Última. Capacidade de fazer o outro reconhecer sua verdadeira natureza. |
17 | Sabedoria de Vajrasatva | A natural perfeição de todas as coisas. No surgimento da experiência, a liberação! Reconhecimento de que os fenômenos são naturalmente puros por virem da Natureza Última. |
18 | Verdade | Guru Yoga. Mantemos vivos na mente todos os itens anteriores, andando no mundo. |
19 |
Coragem |
Enfrentar obstáculos e situações difíceis que se apresentarão. |
20 | Paciência | Não cultivamos a culpa conosco nem com os outros. O universo se move e nos ajustamos do melhor modo para segui-lo. |
21 |
Perseverança |
Não desistimos. Continuamos na posição correta. Não duvidamos. |
[1] [ingl. “insight”]