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Tabela de conteúdos
- Os Doze Elos da Originação Interdependente (Dissolução a Nível Causal e de Luminosidade)
Os Doze Elos da Originação Interdependente (Dissolução a Nível Causal e de Luminosidade)
Lama Padma Samten – Fundação Peirópolis, Agosto 2000
(transcrito por Eliane Steingruber)
Introdução
Nós começamos no décimo segundo elo para voltar, para dissolver. Nesse ponto, quando iniciamos no décimo segundo elo, podemos examinar aquilo que está trazendo dor. O décimo segundo elo é sempre experiência de dor. Por definição, aquilo que não queremos que se mova, se move, aquilo que não queremos que aconteça, enfim, acontece; o inevitável acontece. Quando nós chegamos nesse ponto, temos vários níveis de experiência.
No mundo temos muitas liberdades, podemos nos deslocar de um lado para o outro. Entre as múltiplas liberdades, podemos entrar em um Shopping. Quando fazemos isso, tudo estreita um pouco, nós entramos naquele Shopping e não em um outro. Dentro do Shopping, vemos muitos cinemas. Estamos vendo aqueles cinemas e não os cinemas dos outros Shoppings. Entre os múltiplos filmes, podemos escolher um. Feita a escolha, entramos em um dos filmes. Quando nos sentamos e vemos aquele filme, estamos vendo aquele e não os outros. Quando nos deslocamos pela cidade e vemos um Shopping, consideramos isso liberdade. Quando entramos no Shopping, consideramos isso liberdade. Quando vemos os vários cinemas, tomamos por liberdade. Quando vemos os múltiplos filmes oferecidos, mais uma vez, consideramos como liberdade. Quando escolhemos um filme e começamos a assisti-lo, isto também é uma liberdade. Porém, quando estamos dentro do filme, temos a liberdade de estarmos só ali. Da mesma forma, nós também temos a liberdade de ficar presos a um só universo. Nós sofremos e nos alegramos de acordo com a experiência do filme. A Roda da Vida também é um exercício de liberdade: Existe uma liberdade ilimitada, cósmica. Eu vejo um planetinha azul; dentro do planetinha azul, o continente; dentro do continente, o país; dentro do país, a cidade; dentro da cidade, aquela família; dentro daquela família, aquele ventre. Ainda assim, a nossa natureza segue ilimitada. Da mesma forma que, durante o filme, podemos comer pipoca e tomar refrigerante, nós vivemos duas realidades, a da sala e a do filme e ainda temos a realidade humana, podemos achar que entramos no filme errado e sair. Nós temos vários níveis de realidade operando. Do mesmo modo, em plena experiência da Roda da Vida, temos as liberdades originais, nós apenas não as reconhecemos. Quando estamos imersos em uma experiência invasiva, como um filme eletrizante, não nos parece oportuno levantar e sair. Desta forma, ficamos presos por um mecanismo interno, natural. Ao mesmo tempo, nós estamos livres, apesar de não termos essa experiência., sentimos que devemos continuar operando daquela forma. De tanto em tanto, percebemos que a liberdade existe. Principalmente após algo que estivemos ligados por muito tempo, pela impermanência se rompe, como as nossas ligações à casas, trabalhos, pessoas. Tudo aquilo parecia impossível ser de outra forma. Apesar disso, naturalmente tudo gira e a impermanência acontece. Nesse momento, nos damos conta de que aquela rigidez que antes experenciávamos, na verdade, nunca existiu. O mesmo acontece com as situações que estamos imersos hoje. Apesar de agora elas nos parecer fixas, sólidas, elas na verdade não o são e essas são as características da Roda da Vida. A nossa natureza divina não passam pelas circunstâncias que as nossas identidades passam e o nosso corpo pertence à categoria das identidades. Lama Padma Samten , Palestra em Guarulhos, 08/12/00 |
Vamos fazer um percurso dentro desses doze elos no sentido inverso, como se fosse uma meditação, propriamente. Sugiro a vocês que pensem sobre um problema que provoque algum tipo de sofrimento, não importa qual seja. Esse problema deveria ser bem complicado, um daqueles aparentemente sem solução. Esse problema deve ter uma conexão tanto física, quanto mental, quanto emocional, ou seja, que afete a mente, vire, estrague o coração e estrague a saúde. Deve ser um problema que realmente lhes cause mal. Começaremos estudando, analisando os dois métodos de dissolução que o Buda ensinou. Depois, nós vamos examinar o problema escolhido. Nós vamos fazer uma meditação dos doze elos na dissolução de dores.
Existem dois métodos de trabalhar esse problema, o causal e o direto, no qual a luminosidade, a natureza última é compreendida e reconhecida. Nós vamos desenvolver esses dois métodos, começando pelo método direto, de luminosidade.
O Método de Luminosidade
Voltemos ao exemplo do cubo de Wittgenstein:
Quando nós vemos o cubo podemos, lucidamente, dizer: “Eu vejo o cubo”. Sendo assim, podemos claramente dizer: “Tenho a experiência de ver o cubo”. O verbo ver é um verbo separativo. Quando dizemos: “Eu vejo...”, notamos que o verbo falseia completamente a realidade. Aparentemente, de uma forma neutra, parecemos constatar algo externo, como se o cubo fosse algo separado de nós, temos a experiência de ver algo separado de nós. Nós já raciocinamos e vimos que não é assim. Por esse motivo, vamos substituir o verbo ver pela experiência de ver “Eu tenho a experiência de estar vendo”. Examinando dentro da experiência de estar vendo, localizamos que existe a delusão, existe Avidia.
Nós sempre dizemos “Quando eu era criança, eu era assim; quando eu era adolescente, eu fazia tais coisas; quando eu cresci, eu era assim” Observem que nós éramos diferentes em cada etapa. Se formos descrever hoje, já será diferente e, no futuro, nem podemos dizer nada concreto. Vamos nos definindo no decorrer do tempo. Mas quem é que fala isso? Nós estamos um passo atrás de nossas identidades... Nós temos a capacidade de recuar frente às nossas identidades e olhá-las. Nós não somos nenhuma delas. Se dissermos que hoje somos funcionários de uma determinada empresa, não é correto. Deveríamos dizer “Nós estamos”. Tudo o que definirmos como nós, podemos definir como “Eu estava, eu estou...” Podemos definir todas as propriedades como conjunturais. E nós mesmos? Que cara nós temos, então? Imaginem se chegamos amanhã no trabalho e encontramos uma cartinha de demissão sobre a mesa. E agora? Aquela nossa identidade desaparece, morre. Voltamos para casa e pensamos: “Eu acho que vou morrer” No entanto, reconhecemos que não morremos. Nós não somos, nem nunca fomos aquilo, aquela forma de manifestação anterior. Nós continuamos completamente lúcidos, vivos, tudo brilhando, funcionando perfeitamente. Nos lembramos que, antes de entrar naquele emprego, nós já tínhamos esse brilho, esse jeito. Nós sempre fomos assim e essa é a nossa cara. Nós temos essa vida, esse brilho. Esse brilho está antes da vida e depois da morte, a capacidade de parar e de fazer tudo operar. É esse brilho que faz com que nós seguimos da morte em direção à vida novamente. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Já olhamos os vários aspectos de avidia, que são, os aspectos de luminosidade, de delusão, de ocultação e de ocultação da ocultação. No entanto, existe um aspecto, no qual não nos aprofundamos muito. Se trata de um aspecto muito importante – o mais importante! -, no qual vamos jogar lucidez neste momento. Ésse aspecto é o fato de que no processo de delusão, existe uma luminosidade da mente atuando. Quando olhamos os objetos, deixamos de reconhecer o fator que vai nos trazer a responsividade. Quando olhamos um livro, por exemplo, de um modo geral, o olhamos tentando adivinhar seu conteúdo. Nós nos movimentamos com relação ao livro, movidos pela responsividade, como com todos os objetos. Nós olhamos e automaticamente pensamos_: “Oh, que interessante, um livro! Qual é o título? Já ouvi falar deste livro, será que é bom? Acho que vou ler...”_ Todas essas conclusões são responsividades. Passamos os olhos nos livros e podemos aferir e nos mover através da responsividade que brota.
A partir de agora não vamos mais agir assim. Vamos olhar o livro e reconhecer que existe esse brilho, reconhecer que existe essa natureza que faz brotar essa experiência do livro, e que ela movimenta uma energia. Não é o conteúdo do livro que nos interessa neste momento, mas o fato de que nós contemplamos o surgimento dessa energia, desse brilho. O objeto que contemplamos agora não é mais o conteúdo do livro, mas o surgimento do impulso, o surgimento da responsividade. Esse é o nosso objeto de interesse. Reconhecemos que cada objeto nos traz um brilho, nos traz uma manifestação de resposta, de potencial que seja. Não estamos mais olhando seu conteúdo, não vamos mergulhar nele. Nós apenas percebemos que ele surge e, com isso, contemplamos o fato de que a mente tem o poder de jogar um brilho. É como se ela magnetizasse as coisas.
Um livro não pode ser explicado pelo papel e pela tinta. Agora nós podemos reconhecer isso um pouco melhor, através do reconhecimento de que Nama-Rupa faz surgir Shadaiatana, que é a base material. No estágio de Nama-Rupa, nós estamos buscando uma experiência de materialidade que estabilize o estado mental. O poder que atribuímos aos objetos está além da própria constituição do objeto. Quando olhamos para os objetos, olhamos com os olhos de Nama-Rupa e, assim, quando encontramos o que estávamos buscando, aquilo fica imantado pelo significado que colocamos.
Quando olhamos um objeto, o fato de ele estar magnetizado ou não, não é percebido pela sua aparência. É como se nós tivéssemos adicionado no objeto uma propriedade invisível, uma energia. Os objetos passam a gozar propriedades que não são aferíveis visualmente, que estão ocultas, mas que estão se manifestando.
Nós vimos os primeiros elos operando até o surgimento de Nama-Rupa. Quando chega Nama-Rupa, vimos que, na situação anterior, a mente flutua e goza de uma propriedade, que é se estabilizar pela experiência dos objetos. A mente busca uma materialidade. Essa aspiração de materialidade está sempre presente em nós, quando os nossos olhos percorrem alguma coisa. É ela que nos faz dar diferentes significados às coisas. Vamos supor que eu precisasse de uma mesa. Então eu pegaria duas pilhas de livros e, com uma tábua em cima, surgiria a mesa desejada. Assim, eu tenho os olhos de Nama-Rupa buscando uma mesa. Eu olho as pilhas de livros e vejo mesas a partir disso. Sem aquela aspiração de Nama-Rupa, isso não seria possível. Se formos olhar pilhas de livros, com certeza, não encontraremos nenhuma mesa lá. Eu, porém, magnetizo a pilha de livros a ponto de ela virar uma mesa. Esse é o aspecto de delusão. É assim que a delusão opera, ela tem essa propriedade, a mente tem essa propriedade. Eu vou chamar essa propriedade de luminosidade da mente. Nós fazemos surgir junto com Nama-Rupa. É muito importante que sempre lembremos disso.
Se manifestarmos isso de forma inconsciente, sem a devida lucidez no processo, vamos ficar presos ao objeto e ele vai virar um hábito. Vamos acabar olhando para o objeto e dizendo solidamente que ele é isso ou aquilo. Porque temos sempre aquela experiência, ele se torna aquilo que o tomamos por ser. Quando começamos a olhar toda essa questão, podemos ver que atribuímos significados aos objetos e eles ficam dotados dos significados que atribuímos. Muitas vezes, as pessoas que estão ao nosso lado não vêem isso. Uma imagem sagrada, por exemplo, para uma pessoa que não tenha uma tradição religiosa, não tem valor algum.
Podemos verificar que existe em nós uma dimensão sutil que cria, magnetiza, que dá significado. Essa dimensão sutil produz na experiência de objeto a propriedade de criar responsividade. Essa é a essência do magnetismo.
Pergunta: O que é exatamente responsividade?
Lama: A responsividade é o efeito que o magnetismo provoca. Por exemplo, quando olhamos os desenhos de nossas crianças, os achamos lindos. Uma professora já os compara com os outros desenhos de outras crianças e pode até dizer que já viu melhores. Isso significa que nós respondemos emocionalmente, que surge uma energia dentro de nós. Isso movimenta a nossa ação. A resposta já está pronta, ela não passa no processo cognitivo. Nós não nos perguntamos: “Respondo ou não respondo?” Nós olhamos e reagimos inconscientemente. Isto está no nível mais sutil do que os níveis que atuam ligados à mente. Isso está associado aos próprios sentidos, a responsividade já está magnetizada.
A delusão se manifesta produzindo a responsividade correspondente ao objeto que é experienciado. Quando vemos um filme, por exemplo, se nós nos mantivermos lúcidos de que tudo aquilo não passa de luz e sombra, em princípio, não vamos colocar o magnetismo, não vamos nos aterrorizar com as imagens. Se colocarmos o magnetismo, as imagens vão ganhar poder. Eu chamo essa dimensão, o fato de atribuirmos poder às imagens, de luminosidade da mente. O monstro não está na tela, nem na luz, mas nós temos uma experiência de monstro. Como é que sabemos que o monstro surgiu? Porque temos uma responsividade, também a nível biológico.
Agora já podemos compreender e perceber que existe dentro da delusão essa propriedade que imanta os objetos. Existem meditações sobre isso. Uma delas é sobre o nosso corpo, ela é um pouco dura. Nós começamos percebendo os quatro elementos atuando no nosso corpo. Percebemos um elemento de solidez atuando dentro do corpo, que mantém a estrutura; percebemos um elemento de fluidez, que é responsável pela flexibilidade; percebemos o elemento de calor, que sustenta a temperatura e percebemos, ainda, o elemento de ar, os espaços vazios, os gases que operam dentro do corpo. Após essa contemplação, existem dois possíveis rumos. No primeiro, percebemos que a nossa natureza, ou seja, cada um desses elementos vai se dissolver. O elemento sólido está hoje presente, mas amanhã vai se dissolver; o elemento líquido, também, vai se dissolver; o elemento gasoso está presente agora mas, cedo ou tarde, vai se dissolver; o elemento fogo, também, vai se dissolver. Esse é um tipo de meditação sobre o próprio corpo. Enquanto nós meditamos sobre isso, podemos perceber que os quatro elementos estão imantados e surgem com a nossa identidade, mas nós não podemos ser reduzidos aos quatro elementos. Ao mesmo tempo, percebemos a impermanência desses quatro elementos.
Existe uma outra forma de meditação sobre o corpo. Nesta meditação, nós podemos contemplar sobre o próprio corpo ou sobre o de uma outra pessoa. Quando imaginamos o corpo, nos damos conta de que ele nada mais é do que dentes, unhas, cabelos, sangue, nervos, fezes, urina, vermes, excrementos, etc. Neste ponto, podemos perceber que, quando estamos nos relacionando com alguém, não estamos nos relacionando com os ossos, pele, carne, etc. Podemos, então, perceber que nós temos uma percepção magnética. É muito importante percebermos isso. Deveríamos contemplar isso o tempo todo, nunca devemos esquecer disso!
Nós nos movimentamos em um mundo magnético... |
Quando uma pessoa folheia uma revista com muitas fotos, ela está apenas passeando por dentro da sua região que produz magnetismo, que provoca os significados correspondentes. Ela não está lidando com os objetos, mesmo assim, os significados estão aparecendo. A mesma coisa acontece em um filme, não importa qual o seu teor. Ali só tem tela e luz. Os significados, no entanto, estão todos lá. Portanto, nós nos movimentamos dentro de um mundo magnético, e não, em um mundo de matéria. É necessário que percebamos isso. Isso precisa ser contemplado muitas e muitas vezes. Podemos afirmar que o cinema não é real, que as fotos não são reais, mas a realidade é idêntica!
Qual é a diferença entre uma foto e a pessoa real? |
Nenhuma! A delusão frente à imagem real e frente a uma foto é a mesma. O conteúdo efetivo dos objetos está no plano magnético, e não, no plano físico. Caso contrário, os cinemas não funcionariam, tampouco as músicas ou as fotos. Podemos nos assustar com uma foto ou com uma passagem no cinema. Mas, essencialmente, o susto ou não susto depende de uma dimensão magnética que estamos atuando. O mesmo acontece com certas imagens que nos trazem sentimentos agradáveis. Por que a imagem da namorada ou namorado tem o poder de produzir um magnetismo?
O maior mérito das crises afetivas está ligado ao exame do magnetismo, ao exame inevitável do magnetismo e isso é maravilhoso! Contemplem tanto o surgimento, quanto o desaparecimento do magnetismo. Aquela pessoa teve durante um certo tempo aquele poder de magnetizar, depois muda. É uma outra conexão que surge. O magnetismo pode mudar aceleradamente e, às vezes, até para a própria sobrevivência da pessoa.
Existem ainda situações híbridas, que são as piores. A pessoa não sabe ainda se o outro será incluído na categoria de monstro ou se ele vai voltar. Se voltar, será um anjo; se não... A pessoa ainda não sabe se o empurra para os infernos ou se o puxa para uma outra dimensão. Nesta etapa, o magnetismo toma uma forma muito estranha, pois a pessoa não sabe como imantá-lo. Neste momento, podemos melhor avaliar todo o processo. Nele, podemos também incluir colegas, sócios, parentes, etc.
Vacuidade é forma, forma é vacuidade |
Vamos chamar de luminosidade a percepção desse magnetismo. A luminosidade é aquilo que provoca o magnetismo. Ela é uma dimensão construtiva, uma dimensão de operação. Ao mesmo tempo, quando nós contemplamos essa luminosidade, inseparável disso, contemplamos a vacuidade. Nós só temos o efeito magnético, porque as aparências não surgem por solidez, elas surgem por magnetismo. O fato das coisas surgirem por magnetismo, isto mesmo é a vacuidade. A vacuidade não é um buraco. Porque a luminosidade atua, ela denuncia, ela indica, ela expressa, nesse atuar, a vacuidade. A mesma palavra pode ser usada para as duas.
Por que dizemos que a luminosidade é inseparável da vacuidade? Pelo próprio fato de que a experiência de realidade brota do magnetismo que estamos vendo. Isto significa que a experiência da realidade não brota de ossos, pedra, pau, papel ou paredes. Se compreendermos a luminosidade, compreenderemos a vacuidade, compreenderemos a liberdade, porque a vacuidade, também, significa liberdade. Assim sendo, compreenderemos o carma, porque seu surgimento é uma experiência condicionada, sem que notemos a sua presença. Aquilo pode ser assim mas, desde que acessemos aquela região. Podemos usufruir a liberdade com relação ao carma, não precisamos mais responder carmicamente.
Nós percebemos a luminosidade. Quando percebemos a luminosidade, percebemos que, porque a luminosidade existe e ela que traz a experiência de realidade, a experiência de realidade é tédia. Isto significa vacuidade. Se a luminosidade é aferida experimentalmente pela responsividade que brota em nós, a vacuidade é aferida experimentalmente pela liberdade, que passamos a reconhecer. Percebemos que luminosidade opera, porque ela nos provoca impulsos, movimento. Por outro lado, se a realidade surge através desse magnetismo, isso mesmo é a vacuidade. Como observamos de forma experimental a vacuidade? Porque olhamos para aquele fato e vemos que existem liberdades, não precisamos ficar presos à face que surge. Podem surgir outras faces. Só o fato de surgir uma face, ele mesmo já manifesta a liberdade.
Para atuar, o carma precisa da insciência de todo esse processo – “Estou vendo, tenho as experiências e digo que as coisas são sólidas. Não reconheço a luminosidade, não reconheço a vacuidade. Reconheço objetos externos, como monstros, aparecendo diante de mim e, como não sou trouxa, vou sair correndo” – Todo esse quadro está nítido. Quando isso está nítido, atuamos carmicamente, temos as respostas, validamos a responsividade, dizemos que está muito correta, escolhemos qual a responsividade melhor se encaixa à situação e, assim, nos movimentamos dentro da Roda da Vida.
O processo cármico se dá quando não reconhecemos a luminosidade, não reconhecemos a liberdade, não reconhecemos nada. Então reagimos dentro do filme. A responsividade é criada pelo carma, ele ganha significado a partir dela. O que determina qual o tipo de experiência que vamos ter é o carma. Se temos lucidez, estamos livres do carma, porque reconhecemos a beleza, a perfeição de todas as coisas. Se não temos a lucidez, o carma atua de forma oculta e ainda podemos até pensar: “Oh, como sou esperto, percebi isso, percebi aquilo!”. Tudo isso são, simplesmente, manifestações do carma, nada mais.
Vamos supor que uma pessoa precise atravessar São Paulo, sem conhecer a cidade. Tenta a primeira vez e, perdida, pergunta aqui e ali, até que consegue atravessar. Um mês depois, ela se encontra na mesma situação. Percebe, então, que reconhece alguns lugares, mas ainda precisa perguntar muito até conseguir atravessar novamente. Um dia, a pessoa percebe que, se tentar várias vezes e passar, pelo menos, mentalmente por lá, tudo vai ficando mais fácil, até que, um dia ela não precisa mais perguntar. Isso é o poder da prática. Na prática, alguém atravessa conosco de mão dada uma vez. Depois atravessa novamente. Um dia a pessoa precisa tentar atravessar sozinha. Essa é a diferença entre a explicação e a prática. É muito importante que pratiquemos. É necessário que pratiquemos várias vezes, para que tudo fique mais nítido, para ganharmos o poder de andar pelas condições duais com lucidez. Por isso se pratica. Se vocês quiserem agradar um Lama é muito simples, pratiquem! Chagdud Rinpoche Eu até diria que é um desrespeito não praticar. O Lama gasta parte de sua energia vital ensinando. Essa energia não volta mais. O Lama explica e a pessoa pega, agradece e vai. Aquela energia vital passou! A outra pessoa vai pegar por um mínimo. Talvez, na próxima vida, ela vai conectar-se mais facilmente. Então o Lama, pacientemente, explica tudo novamente. E assim vai. Mas aquela energia vital dele não volta mais. Aquilo foi um momento único. Se a pessoa recebe um empurrão, é bom que ela use. Não se sabe se sua energia vital, enquanto ela está ouvindo, vai poder voltar, também. Este é o sentido da prática. Nós pegamos aquilo que recebemos e usamos uma vez, duas, três até conseguir cruzar por aquilo. |
Dissolução a nível de luminosidade
Agora, vamos voltar ao nosso problema insuperável. Vamos analisá-lo com a mesma visão de estudo que estávamos examinando, ou seja, a tragédia na forma de um filme, como os filmes são: Uma experiência de tragédia. Podemos dizer isso em relação aos nossos problemas?
Nós olhamos, agora, a nossa tragédia como uma experiência de tragédia. É comum que, a princípio, alguém tenha um bloqueio nessa parte. Contudo, se olharmos de forma livre, podemos transformar e dizer: “Tragédia é uma experiência de tragédia”. Quando percebemos que uma tragédia nada mais é do que a experiência de uma tragédia, então, podemos olhar o item seguinte. Neste momento, vamos reconhecer a delusão operando, a experiência de tragédia surge pela delusão, ela nada mais é do que uma delusão. Quando olhamos a delusão, percebemos que a experiência de delusão é uma experiência de luminosidade. Quando percebemos a experiência de luminosidade, vamos perceber que a luminosidade é uma liberdade, que manifestamos a liberdade de manifestar isto assim.
Se duvidarmos, podemos retornar ao cubo, retornar à noção de Avidia. Estamos vendo uma coisa e não vemos a outra por ocultação. A própria ocultação está oculta. Quando a luminosidade se oferece, ela oferece uma visão. Não conseguimos ver de outra forma por causa de Avidia. Porque vemos de uma maneira, não podemos ver de outra. Não vemos as alternativas, porque estamos presos à Avidia. Avidia é o processo que oculta as alternativas e cerra essa ocultação. Precisamos contemplar isso! Nós só teremos a capacidade de contemplar a tragéida desta forma, no momento de uma experiência de tragédia, se já tivermos treinado isso muitas e muitas vezes, em outras situações. Só então, fica mais fácil.
Contemplação de uma Tragédia1. Experiência de tragédia Começamos buscando a solidez da experiência. Contemplando como a tragédia é sólida a nível de corpo, fala e mente. 2. Substituição da solidez pela experiência de solidez Como já fizemos vários raciocínios em vários trechos, fica, então, mais fácil de imaginar o que seja substituir a solidez pelo reconhecimento de que é uma experiência da solidez. 3. A experiência da tragédia é a delusão da tragédia Já vimos, também que a delusão da tragédia nada mais é do que a luminosidade criando a delusão da tragédia 4. Luminosidade é liberdade surgimento de uma aparência já é a expressão de uma liberdade. 5. Contemplar liberdade nosso objetivo é tornar a liberdade prática, utilizá-la de forma prática, através da contemplação da mesma. O que significa utilizar a liberdade de forma prática? Significa que podemos seguir com a experiência de tragédia ou como uma experiência de liberdade. |
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Vocês vão ver mestres que choram, o Marpa chorou! Ele não disse_: “Eu vou evitar chorar pois, se eu o fizer, o que os meus alunos vão dizer?”._ Ele não vê nenhum tipo de prisão em manifestar a luminosidade. Ele a manifesta de uma forma totalmente livre. Ele não usa antídotos, não usa qualquer processo de desvio, que ele naturalmente poderia usar. Ele opta por cruzar por dentro, e cruza. Ele manifesta responsividade de forma livre, reconhecendo-a como liberdade. Ele manifesta o reconhecimento das paisagens mentais com liberdade e tem os efeitos normais daquilo. Ele manifesta tudo aquilo sem transformação.
Todas as manifestações de delusão são perfeitas |
Existem liberdades e ele sabe que pode optar. Reconhecendo que esse é um processo de delusão, ele pode optar pela forma de delusão que achar apropriada. Ele elege um critério e o usa livremente, pois tem aquilo nas mãos. Quando ele manifesta o sofrimento, ele o manifesta como liberdade. Se ele optar por não manifestar o sofrimento, ele manifestará a liberdade de não sofrer. Ele pode manifestar outras liberdades!
Antídotos1. As dificuldades podem se manifestar como dificuldades ou como dissolução 2. A dissolução pode ser vista como fonte de dor ou de liberdade adicionais. Quando uma nova situação surge, ela não necessariamente é positiva ou negativa. Por ser uma nova situação, ela encerra outras restrições e outras liberdades. 3. Havendo a dimensão de luminosidade, inevitavelmente, nós temos a dimensão criativa novamente se exercendo: Novas criações, novas identidades, novo universo surgindo, nova paisagem. 4. Vimos que, quando a crise é tão grande que isso não é reconhecido, podemos olhar o passado, situações que já aconteceram conosco, que pareciam insuperáveis, mas com o passar do tempo, tudo foi mudando. Então vemos que não é o tempo passando, é uma transformação de paisagem. Para essa transformação de paisagem, não precisa ter um tempo passando, ela pode, simplesmente, se oferecer. Podemos, então, reconhecer uma liberdade. Desta forma, recuperamos aquela dimensão a partir da lembrança de uma situação passada que se resolveu. Sabemos que não é uma questão do tempo. 5. Quando isso também não é possível, podemos ainda examinar situações de outros seres, de outras culturas. Através dessa experiência vimos como, muitas vezes, as tragédias são o início de outras coisas. Descobrimos que, ao longo da cultura humana, existem camadas de tragédias que servem como bases para reconstruções de outras formas. |
Observem! Quando nós percebemos o aspecto de liberdade, podemos usufruir dela. Como pode ser? A circunstância de tragédia que nós estamos vivendo encerra aspectos de restrição, de dissolução. Caso contrário, não haveria a experiência de tragédia.
Toda dissolução é dissolução de algo construído. Todo aspecto construído significa uma fixação. Toda fixação significa uma prisão. Quando o aspecto de dissolução surge, significa, também, a dissolução de uma prisão. Quando aquela prisão desaparece, existem outras liberdades que surgem no mesmo momento. Sendo assim, nós podemos olhar as liberdades que estão surgindo. Isso acontece nas separações, nas demissões.
Podemos, então, pensar: “Tudo bem, a demissão aconteceu. Mas pode ser que o próximo emprego será melhor, todas as circunstâncias serão melhores, tudo vai ser melhor.” Podemos olhar desta forma. Podemos construir isso assim. Temos o domínio da lucidez, da luminosidade e podemos exercer isso.
Continuando com o exemplo do emprego. Quando o conseguimos, as paredes do local de trabalho pareciam douradas. Alguns meses depois, apesar de elas ainda continuarem as mesmas, mais pareciam as paredes de uma prisão. Isso acontece freqüentemente.
Nós temos esse poder e nós podemos usar essas liberdades a ponto de vista convencional. A liberdade se manifesta mesmo a nível convencional. Uma pessoa que estudou tem liberdades porque estudou, mas está presa, limitada ao que ela aprendeu. A pessoa que não estudou não tem a liberdade de ter o estudo mas, também, não tem a prisão do que ela não aprendeu.
Nunca podemos dizer que algo é concretamente negativo ou positivo. Da mesma forma como não existe uma situação negativa que não podemos transportá-la de forma completa em aspectos positivos pelo poder da nossa luminosidade. Assim, o primeiro aspecto de dissolução do sofrimento que nós escolhemos da tragédia é esse.
Se seguirmos olhando, vamos perceber Maharaja no meio disso. Maharaja, o agente da tragédia. No entanto, Maharaja está rompendo “o que pode ser rompido”. Ele nunca vai romper o que não pode ser rompido. Tudo o que ele rompe está ligado a um aspecto construído, visões parciais, paisagens parciais. Se ele não rompesse, nós seguiríamos presos às nossas fixações. Todo sofrimento, inevitavelmente, aponta para fixações que nós tínhamos. Maharaja, a impermanência, a dissolução, é o nosso mestre sacudindo aquilo que nós tínhamos grilhões.
Podemos usar liberdades até mesmo para sustentar a experiência de sofrimento. Ainda assim, a sustentamos, ainda temos a lucidez dessa sustentação. Podemos também ir até o outro extremo, onde nós vamos olhar a experiência de sofrimento e substituí-la por uma compreensão mais ampla, onde nós estamos vendo liberdades, estamos vendo características que nos permite um ressurgimento de um outro mundo, um ressurgimento.
Maharaja é como se fosse a personificação do atropelamento pela desgraça. De um modo geral, quando estamos presos à experiência cíclica, nós não assumimos ter qualquer responsabilidade perante à desgraça. Nós reconhecemos um agente externo responsável por ela. Esse agente externo chamamos de Maharaja, o grande senhor. Nós o vemos como uma personificação do agente da desgraça.
Podemos olhar Maharaja de muitas maneiras. No sentido convencional, ele é o agente da tragédia, ele é o nosso grande inimigo, destrói todas as nossas queridas construções. No outro extremo, vamos olhá-lo como o Buda incansável, que não esmorece até nos apontar todas as nossas áreas de fixação, porque a experiência de sofrimento está diretamente ligada à fixação. Não há sofrimento sem que o javali esteja atuando. O javali surge por delusão, delusão é liberdade, que é luminosidade.
Olhando com uma visão muito ampla, vemos o sofrimento atuando só sob condições específicas. A dimensão de nossa mente ultrapassa espaço e tempo. Então, a dimensão de sofrimento perde totalmente o poder da responsividade.
Pergunta: O sofrimento, então, ele não acaba. O que muda é a maneira com que o vemos?
Lama: O sofrimento retorna cada vez que retornamos à paisagem correspondente. Quando a paisagem correspondente não puder ser evitada, isso não significa que a lucidez não seja possível. Reconhecemos, ainda assim, que aquilo está na dependência daquilo. Não é necessário eliminar o sofrimento no sentido da experiência dele. O que fazemos é igualar sofrimento com qualquer outra experiência. Todas as experiências brotam por delusão, todas elas se manifestam como luminosidade, e sofrimento é uma delas. A liberação do sofrimento não está na negação do sofrimento.
O Dalai Lama poderia ter dito “Que bom que os chineses invadiram o Tibete!”. Mas ele disse “Que horror que os chineses invadiram!”. Ele não vai dizer que tudo está bem. Ele não tem nenhuma pretensão desse tipo, isso é o reino dos deuses. São os deuses que fazem isso. Eles evitam o sofrimento.
Nós pertencemos a uma cultura na qual nós temos a exigência de não sermos derrotados e nem sofrermos. De um modo geral, nós sofremos pelo fato de sofrer. Quando sofremos, temos de explicar, não só as circunstâncias todas em que estamos envolvidos, mas como é que nós falhamos e estamos agora sofrendo. Existe um sofrimento duplo nisto.
Se formos demitidos, sofremos por não ter como pagar as contas no final do mês e sofremos por que as outras pessoas vão achar que fomos derrotados, porque fomos demitidos.
Tendo sido demitidos, podemos pensar_: “Eu tenho qualidades que podem trazer benefício aos outros seres ou não?”_ Nós vamos sorrir imediatamente. A resposta é sempre positiva. Todos nós podemos ser úteis, podemos trazer benefícios, podemos alegrar alguém. Nós temos a energia vital, temos o brilho, temos a lucidez. Se alguém não nos ama mais ou se o chefe não nos quer mais, talvez isso seja uma perda para ele. Nós temos essa capacidade. O que vamos fazer, então? Vamos olhar para os seres e ver onde podemos ser úteis. Nós sempre podemos ser úteis de alguma forma.
Vamos, então, nos reintroduzir no mundo, de preferência, com um voto de bodisatva. Se ainda não temos essa lucidez, vamos nos reintroduzir como pudermos, mas a melhor forma é com o voto de bodisatva.
Existem vários exemplos disso. Conheço, por exemplo, uma pessoa que teve câncer, que ficou mutilada, teve de cortar pedaços. Essa pessoa tem seqüelas graves, inconvenientes em sua vida mas, no entanto, diz que isso foi a melhor coisa que passou em sua vida, por incrível que pareça.
Maharaja foi lá e bateu forte. A pessoa teve de parar. Se Maharaja não tivesse batido, a pessoa nunca teria dado conta da fixação que ia liqüidar com a sua vida. Ela acordou!
Nós realmente temos essa capacidade de lidar com Maharaja. Depois que a tragédia passa, tudo começa a tomar um outro rumo. Isso é extraordinário! Isso é verdadeiro e é emocionante porque nos mobiliza. Nos alegra e entristece ao mesmo tempo. Isso é irrevogável, a vida segue. As mesmas pedras das construções caídas serão utilizadas como o elemento principal das novas construções. Nós precisamos ter coragem para cruzar por isso. A vida é assim, tudo morre, mas nós não morremos - dos escombros nos levantamos. No dia seguinte, podemos até querer estar mortos, muitas pessoas realmente se suicidam. Mas, na realidade, nem mesmo aqueles que se suicidam morrem!
Quando nos encontramos ainda vidos no dia seguinte, precisaremos, então, usar a luminosidade e seguir. Quando pensamos “desse sofrimento eu não me livro”, cada vez que surgir essa descarga de de dor dentro de nós, vamos usá-la em outra direção. Se estamos marcados, se não podemos mais agir normalmente, sentar e ler um livro, ver televisão; se há uma voz de dor, de desespero dentro de nós, vamos, então, usar isso para avançar, para benefício dos seres. Qual é a melhor forma de usar essa dor?
Assim surgem as fundações, surgem as coisas maravilhosas, surge o brilho nos olhos da pessoa! Surge aquela coisa que faz a pessoa mover de outra forma, ela começa a fazer coisas incríveis. Ela está mobilizada por uma energia muito grande, ela não pára. Quando, eventualmente, essa pessoa olha para trás, ela percebe que estava morta, que só agora é que está viva.
Os deuses usam suas capacidades para evitar o sofrimento, eles têm esse poder. Eles são aqueles que usam ao extremo a liberdade para manter as coisas como estão. Em um certo momento, porém, tudo desaba mesmo, não tem mais jeito. Suas vidas são muito longas. Mesmo assim, Maharaja não desiste. Ele fica de plantão, espetando os deuses, sabendo que um dia eles não vão ter mais esse poder de se defender. Maharaja conhece a impermanência. Um dia, tudo aquilo termina e, só então, os deuses se dão conta que perderam muito tempo, que não utilizaram seus poderes para a lucidez e que agora irão renascer em reinos inferiores, porque estão marcados por aspectos mentais de dor e rancor. Eles se dão conta do que estão sentindo, mas não têm mais como evitar. Sabem que, por isso, vão nascer em reinos inferiores. Então eles sofrem porque sabem para onde vão.
O controle de qualidade da liberação do item correspondente pode ser aferido pelo fato de que não brotam as emoções perturbadoras, nem impulsos das dez ações não virtuosas. Uma pessoa pode dizer que está liberada, mas estar roxa de raiva. Isso não é liberação! |
Dissolução a Nível Causal
Décimo Segundo Elo - Jana-Marana
Quando formos tratar a nível causal, o que vamos dizer? “Não, você precisa entender, eu construí aquilo com o meu suor...” Desta forma, explicamos exatamente como estamos presos. Quando explicamos isso, o que fazemos?
Quando dizemos que isso não dá, quando dizemos ‘’Você não está entendendo…” vamos descrever o décimo primeiro elo, as circunstâncias da vida. Nós vamos descrever toda a luta que tivemos para consgeuir aquilo que, agora, está desabando. Vamos descrever toda a construção do apego, todas as tentativas de equilíbrio que já fizemos e todos os sucessos parciais que já obtivemos e, finalmente, há quantos anos estamos fazendo tudo aquilo.
Quando descrevemos o porquê de não podermos aceitar aquilo, descrevemos o décimo primeiro elo. Esse é um processo causal, ou seja, nós atribuímos a nossa experiência de sofrimento à alguma coisa. Nós não explicamos o sofrimento como uma delusão, como um brilho, uma liberdade, mas mostramos causalmente. Vocês vão observar que, por esse processo, nós vamos voltando até Avidia.
“Porque nós atuamos de forma causal durante longo tempo, tentando sustentar o insustentável, quando o insustentável desaba, nós sofremos. Essa é a razão pela qual dizemos que o carma é implacável. Se criamos a motivação de sustentar o insustentável, quando o insustentável se revela como é, nos frustramos, porque durante um longo tempo tentamos conter o vento, assoprando contra o vento. Durante um certo tempo tivemos algum sucesso, mas, inevitavelmente, aquilo afunda. Porque aquele esforço foi feito, o sofrimento e a frustração correspondente surgem. Essa é a inevitabilidade do carma”. Buda Sakyamuni |
O carma atua sempre a nível causal. Enquanto estamos examinando esses doze elos, estamos operando sempre com o calote cármico, a sabedoria de saber de como não pagar, que é o caminho mais curto, ou seja, a luminosidade.
Aparentemente, o carma é muito sólido. Naturalmente, se a pessoa investiu naquilo longamente, ela vai ter a frustração correspondente. Mas, se neste momento, retornarmos ao aspecto luminoso, diremos: “Eu investi longamente, por isso, tenho sofrimento – ou não!” Se entendermos qual é o significado de “ou não!”, estamos liberados, ou seja_, “Investi longamente e agora aquilo desabou. Sendo assim, eu tenho sofrimento - ou não!”_
Nós temos ou não liberdades? Temos! Após algum treinamento, percebemos que o sofrimento é apenas a experiência de sofrimento, que sofrimento é luminosidade, que estamos em uma paisagem e toda essa paisagem é sustentada pela delusão correspondente. A luminosidade se esforça para sustentar aquela visão, mas a visão em si não é permanente. Com o passar do tempo, ela vai desvanecendo. Isso é a evidência de que toda essa situação tem de ser sustentada para sobreviver.
Se a experiência é construída, ela é impermanente – tudo o que é construído é impermanente! Então nós usamos esse fato. Nós usamos a impermanência dentro do reconhecimento do aspecto sutil da mente construindo e sustentando a experiência. Nós já vimos isso acontecendo. Novamente estamos comparando o aspecto causal com o aspecto de luminosidade. Vemos que aspecto causal é artificial, ele não precisa ser legitimado. Não precisamos ficar fixos naquilo, podemos liberar. Mais uma vez, usamos a fórmula mágica que aprendemos de como contemplar uma tragédia:
dor |
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experiência de dor |
experiência de dor é uma delusão |
delusão é luminosidade |
luminosidade é vacuidade, liberdade |
liberdade é inseparável de luminosidade |
luminosidade tem a característica da responsividade, manifesta um movimento |
quando a liberdade se oferece, temos opções, temos a sensação de abertura |
Toda essa característica é uma característica de liberação por luminosidade, ou seja, nós reconhecemos sempre as liberdades, a capacidade de construir. Reconhecemos que tudo o que é construído é por luminosidade. Aquilo é uma manifestação de liberdade e nós a reexaminamos. Se compreendemos essa possibilidade, estamos liberados. Caso contrário, terminamos por argumentar.
Diremos, então: “Bom mas isso é fácil falar. Eu vivi tais coisas e, para mim, é impossível abrir mão disso.”, ou seja, nós justificamos a impossibilidade de superar o sofrimento. Quando fazemos isso, olhamos, na verdade, para o décimo primeiro elo. Como podemos justificar a impossibilidade de superar o sofrimento? Alegamos “Você diz isso, porque você não construiu isso tudo que eu construí. Não posso permitir que isso que eu passei anos para construir desmorone, não posso abrir mão disso.” Nós justificamos isso pelo décimo primeiro elo. A própria justificativa já é a descrição do décimo primeiro elo, ou seja, circunstâncias da vida. Porque nós, muitas vezes, equilibramos e fizemos uma certa ação, se negarmos aquele sofrimento, estaremos negando toda uma vida, ou décadas, que ficamos equilibrando ou sustentando aquilo. Aquela derrota não é a dor daquele instante somente, é a dor do tempo que investimos tentando equilibrar aquela situação.
A dor da pessoa está ligada aquele aspecto. Durante o tempo em que ela fez esforço, ela acumulou carma. Ela fez esforço esperando pelo resultado. Examinamos, também, aquelas frustrações que ocorrem e a pessoa eventualmente abandona sua religião ou blasfema. Ela pode até dizer, por exemplo_: “Eu rezei durante 20 anos inutilmente. Porque o sujeito da frente que é vendedor de cerveja trapaceia com todo mundo e os filhos dele estão ótimos, enquanto que os meus passaram por tais problemas. Então, eu fui a missa inutilmente._”
Esse sofrimento está ligado diretamente ao investimento anterior, a pessoa o conecta com o investimento anterior. O Buda descreveu isso. A pessoa opera incessantemente de uma forma cármica, sustentando o insustentável, contando com alguma coisa que, em certo momento vai falhar, porque não há como sustentar indefinidamente, então, nesse momento, a pessoa entra em sofrimento, rancor, raiva e passa por dificuldades.
Décimo Primeiro Elo - Jeti
No décimo primeiro elo, se nós vamos operar dentro da perspectiva da luminosidade, nós vemos a situação da seguinte maneira: “Estou em uma paisagem mental. Nessa paisagem mental eu tenho urgências, ou seja, tenho que levar as crianças para o colégio, tenho de trabalhar, preciso fazer tudo girar, preciso pagar as contas...” todas essas exigências são sólidas, isso é a nossa vida, não pensamos como poderia ser de outra forma. Nem temos nem mesmo tempo para avaliar, seja lá o que for.
Sentimos claramente que temos mais exigências práticas do que somos capazes de atender. Temos exigências que adiamos para quando nos aposentarmos, aspirações para um fim de semana ou umas férias que nunca surgirá. Nós ficamos com aquilo guardado. Nós temos as urgências, temos as coisas médias que tocamos para a frente de uma forma incompleta, insuficiente, e temos coisas que deixamos para um futuro que talvez não surja. Consideramos todas essas exigências naturais, normais, corretas, legítimas.
Esta é a situação da prisão no décimo primeiro elo. Quando analisamos isto de forma causal, alguém vem e nos diz que isso não precisa ser assim, alegamos_: “Não, você não está entendendo.”_ Neste momento, começamos a descrever o décimo elo. Nós nos justificamos com o elo anterior. Dizemos, neste caso_: “Eu sei como a vida é, eu sou um professor, portando, tenho minhas tarefas, tenho minhas responsabilidades, que não são poucas. Eu não posso fugir das minhas responsabilidades.”_
Quando descrevemos porque estamos fazendo as coisas no décimo primeiro, descrevemos o décimo elo. Descrevemos o universo e a nossa identidade dentro daquele universo. Dizemos: “Por que sou assim, (...) e o universo é assim (...), eu preciso fazer (...).” A nossa ação prática e o nosso impulso de movimento estão totalmente justificados por uma visão de mundo e pela nossa identidade. Se a nossa visão de mundo for, por exemplo, preguiça, também está justificada. Dizemos: “Olha, eu não vou nem me mexer, com licença”.
É muito incrível o fato de que, quando explicamos a nossa situação em um elo, sempre começamos a descrever o elo anterior. Nós vamos descendo os elos um por um. Isso acontece naturalmente, sem nenhum esforço. Estamos estruturados dessa forma. O Buda olhou isso e viu. Não foi ele quem criou a Roda da Vida, ele só percebeu que a estrutura da Roda da Vida se dá dessa forma. Para nós é necessário furar isso. O Buda fura de duas formas que, enfim, são a mesma. Nós podemos entender do seguinte modo:
Existe uma preguiça ativa. É como se houvesse um movimento incessante que nada resulta de fato. É apenas uma ocupação, é como se fosse uma indolência ativa. Não tem nada efetivamente acontecendo ali, mas tem um lufa-lufa, tem uma ação incessante, tem um tempo ocupado, mas é como se fosse sempre uma atividade circular que não produz um resultado sólido. O tempo passa, a vida humana preciosa passa e a pessoa diz: “Não posso praticar, não posso isso, não posso aquilo, porque estou ocupadíssimo.” Então ela menciona milhões de coisas que, na verdade, não seriam prioritárias, mas, para ela, se tornaram. Sogyal Rinpoche |
Estamos no lufa-lufa da vida, nas atividades, sejam elas de indolência ou de movimento. No décimo primeiro elo surge a atividade que consideramos incessante. Nós dizemos: “Eu preciso fazer isso!”. No entanto, nunca surge aquela pergunta “Ou não!” Se colocarmos o “ou não” surge uma dimensão de liberdade que, quem sabe, vamos ousar.
Muitas vezes não nos damos conta de que ninguém é insubstituível. Pensamos que se nós faltarmos o universo desaba. No entanto, quando estamos ocupando uma posição, estamos impedindo que outra pessoa ocupe a mesma posição. É necessário percebermos o outro lado da moeda, também. Pode ser que não sejamos a melhor pessoa naquela posição. Quem sabe uma outra pessoa vai desempenhar aquela função melhor do que nós. Estamos ocupando aquele espaço até por uma necessidade de uma identidade, de uma indexacão. Precisamos de uma face.
Olhando com cuidado esse aspecto, dizemos: “Eu tenho tais urgências.” No entanto, podemos melhor (ou mais corretamente) dizer: ‘’Eu tenho a experiência de ter tais urgências.” Olhamos, então, o décimo primeiro elo como aquilo tudo sendo uma experiência de urgência, experiência de um propósito completamente definido e rígido. Depois olhamos para aquilo e dizemos: ‘’Essa experiência é uma delusão, é um processo inseparável da minha própria estrutura, de uma paisagem mental, na qual eu estou operando.’’
Isso surge não como uma conclusão mental, mas de uma forma visível. É como se nós víssemos. Neste caso, estamos vendo com a mente. É um objeto da nossa mente, estamos vendo, estamos contatando aquilo. Não parece que haja qualquer raciocínio, aquilo é auto-evidente. Tudo o que é auto-evidente está manifestando Avidia, quando vemos uma coisa, não vemos outra e provoca a responsividade. Avidia tem, inevitavelmente, a dupla ocultação. Tem a ocultação e mais a ocultação de que uma ocultação está ocorrendo. Assim ficamos realmente presos naquilo, pois não vemos qualquer outra alternativa. Porque não vemos qualquer outra alternativa, isso mesmo é a manifestação de Avidia. Isto é a Avidia! O não ver não é a ausência de ver mas um fenômeno construído, é a cegueira do primeiro elo. O não ver é uma ação e não uma ausência de ação.
Então nós percebemos que tudo isso é a luminosidade e que a luminosidade é a ação correspondente da mente. Nesse momento, nós vemos que isso também é uma liberdade. Podemos escolher nos manifestar assim, fazer surgir essa paisagem mental, operar aí dentro, fechar a sensibilidade para certas coisas, ocultar a não sensibilidade, operar focados em um certo aspecto. Então todos os significados brotam e a nossa ação segue. Podemos escolher fazer isso. Quando dirigimos, por exemplo, é melhor que não olhemos a paisagem. Deixamos a paisagem na ocultação, pois nós temos de olhar a estrada. Nós percebemos, nos restringimos para que temos sucesso em diversas ações. Enquanto nos restringimos, isto é a ação de Avidia. Nos descobrimos passando pela infância dos filhos e não olhando para ele. De repente eles já cresceram. As vezes temos a noção de que estivemos cegos por anos e isso é realmente uma cegueira, é a cegueira legítima, é Avidia – a cegueira com os olhos abertos, com tudo funcionando.
A loucura é uma espécie de loucura desse tipo. A pessoa afunda para dentro de um mundo de ações e perturbações e cada placa que ela encontra manda ela urgentemente em uma certa direção. Assim a pessoa fica fazendo círculos dentro de um mesmo universo. Ela não está louca, só está presa.
Como romper isso? As vezes o processo causal não dá, porque a pessoa está especializada nesse processo, ela está presa em uma armadilha que elas não saem pelo processo causal. Então, precisa usar um outro processo. É necessário descobrir se ela tem receptores para escapar, se tem receptores para qualquer coisa fora daquele circuito. Os receptores, neste caso, são chamados de méritos. Quem for ajudar, precisa parar e olhar aquela situação. O mérito que eventualmente exista em uma pessoa, é o receptor que poderá retirá-la daquela situação. Até então, ela está com toda usa sensibilidade presa no circuito.
Isto acontece conosco, também. Nós estamos igualmente com as nossas sensibilidades presas dentro de circuitos. Como saímos disso? É necessário que alguém venha e nos fale. Os quatro pensamentos que transformam a mente estão voltados a ativar os receptores para nos retirar desse processo. Todo esse exame dos doze elos também, é o que estamos fazendo, ativando os eventuais receptores que estejam ali para nos retirar.
O grande mérito que eu vejo no discurso do Dalai Lama é essa extraordinária habilidade de pegar os dois receptores que temos para desgraça, ou seja, o caminho para desgraça, que é o desejo de obter felicidade e o desejo de se afastar do sofrimento, o processo dual de reconhecer isso. O Dalai Lama pega isso e transforma no caminho de transcendência. Ele pega aporta da prisão da Roda da Vida e a transforma na porta da liberação. Por uma série de argumentos e por uma série de raciocínios ele faz isso acontecer. A pessoa vai contemplando isso de uma forma cada vez mais profunda e vai utilizando isso como alavanca para o caminho espiritual.
“Eu não sou budista, minha religião é bondade, amor e compaixão.” O que é a ética para o terceiro milênio? Todos os seres desejam felicidade e desejam se afastar do sofrimento! Isso constrói a ética. Isso é uma prática diária, incessante. Ela não é a prática formal, mas pode ser, também, a base para as práticas formais, mas é uma prática incessante. Podemos produzir profunda e rápida transformação. Nesse livro o Dalai Lama diz: “Todos os seres têm receptores para isso, mas nem sempre têm receptores para tornar-se budistas, mas isso não é tão importante.” O que importa é que eles tenham receptores para esse aspecto. Ninguém precisa passar por um caminho específico para isso. O importante é que a pessoa cruze por isso. Isto é libertador! O próprio Dalai Lama diz ainda que, talvez, as tradições religiosas sejam dispensáveis... A Ética Para o Terceiro Milênio, S. S. Dalai Lama |
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A ação do Dalai Lama já é um bom exemplo de como atuar no décimo primeiro elo de forma livre. Ele está manifestando uma forma, ou seja, o décimo elo – “Eu sou isso e estou no mundo como eu vejo”. Ao mesmo tempo, ele está manifestando isso com uma liberdade. Ele não está fixado nas urgências, no processo do elo. Ele está livremente manifestando aquela liberdade de agir, de se movimentar, de trazer benefício aos seres.
Ele também manifesta isso quando diz: “Eu talvez seja o último”. Ele diz isso sem dor. Ele poderia se preparar para se manifestar com o décimo quinto, não é? Poderia preparar o caminho para que o próximo tenha um andamento mais fácil do que o dele. No entando, ele não está pensando assim.
O lama é aquele que molha a semente que está presente nos outros. Todos os seres têm a natureza de Buda. Se essa natureza começa a germinar, tudo anda por si mesmo. As pessoas encontram os caminhos naturalmente. Os caminhos já existem, eles estão visíveis, é só uma questão de ter olho para vê-los. Quando a pessoa começa a operar aquele aspecto, aquilo anda por si. O objetivo do lama não está ligado a qualquer estrutura espaço-temporal... |
Tanto nós na nossa vida, na medida em que nos engajamos em nossas atividades, ficamos dominados por Avidia, ou seja, nossa atividade é o aspecto aparente, o aspecto de ocultação. Porque focamos aquilo, nós usufruímos a experiência do cego, que é o símbolo do primeiro dos doze elos, Avidia. Porque focamos alguma coisa, perdemos a amplidão da visão. Como focamos algo, aquele algo nos faz surgir o impulso de movimento. Quando este se oferece, nós esquecemos, perdemos a percepção de que a nossa visão não é mais ampla. Isto é a ocultação do que estava escondido. Ocultamos o fato de que estamos ocultando alguma coisa. Então a visão é selada. Aí aparece a visão de um mundo completa. Aquela visão do mundo parece suficiente, não tem dúvidas. Aquilo responde tudo, o nosso coração está preenchido, nos sentimos com todos os propósitos.
Nós vamos ver uma pessoa de manhã no mercado financeiro chegando alegremente com uma pasta preta e dizendo: “Bom dia!! Vocês querem comprar as ações...“. Ela está presa em um tipo de mundo. Não tem nada ali dentro. Não há alguma realidade naquilo, mas a pessoa está inteira lá dentro.
Podemos observar às 08:00 da manhã diferentes pessoas fazendo diferente coisas e todas inteiras. Aquelas que não levantaram, também, estão inteiras, dormindo. As urgências todas fazem sentido e as pessoas estão presas, cada uma em um mundo específico. Quando elas se encontram, elas se olham e os mundos não se misturam. Um trazendo cafezinho para o outros, mas, nem mesmo aquele café, eles não o vêem da mesma maneira. São mundos, universos. E quando os universos são separados, a linguagem não funciona muito bem. A linguagem não é o som, ela é a delusão associada ao som e a delusão associada ao som está na dependência dos universos que dotam o som do significado. Nós temos receptores para som.
Assim, podemos seguir contemplando tudo isso. Quanto mais contemplarmos mais entenderemos. Nós vamos contemplando e escrevendo livros. Quanto mais claro isso fica para nós, melhor.
Estamos limitados em um processo deste tipo. Qual é a origem dessa limitação? Como podem duas pessoas caminharem lado a lado, viverem na mesma casa ou dormirem na mesma cama em universos diferentes? Isso acontece, é incrível! Como é possível esse fechamento? O outro, de repente, nos sacode e pergunta: “Em que mundo você está?” E nós respondemos, surpresos: “Como? Eu sou eu mesmo... Não estou em mundo nenhum.” O outro diz_: “Você não reage, você não me vê, olhe para mim!”_ O outro não entende mais nada, ele está em um outro universo e não se dá conta disso.
Come surge o fechamento? Temos que contemplar muito Avidia, ele é mágico, atua de forma mágica. Nós temos de nos dar conta disso, perceber isso! Quando uma coisa aparece, produz uma ocultação e essa ocultação fica oculta, selada. A ocultação da ocultação se produz pela responsividade. Quando um objeto surge, tem a delusão e tem o impulso da ação correspondente. Dentro disso tem Tanha, que é a qualidade de hábito, de teimosia. Como podemos ver Tanha agindo? Precisamos de exemplos para isso.
Pergunta: Não existe um conceito filsófico que explique como Tanha age?
Lama: Se utilizarmos conceitos filosóficos, logo em seguida, nos perdemos. Quando usamos conceito filosóficos, não percebemos que aquilo, também, é um estreitamento. Como esse estreitamento acontece? Porque nós não estamos experimentamos. Quando vemos exemplos, para entendê-los, temos de nos colocar dentro e caminhar um pouco por dentro. Portanto é como se fosse uma experiência. Nós olhamos o conceito filosófico como nós olhamos um copo. Começamos a contemplá-lo, o viramos de um lado para o outro, é diferente. Nós não precisamos experimentá-lo. Logo nós temos inseguranças. Então, corremos para uma biblioteca, para ver o que já disseram sobre o tema. Então vamos terminar fazendo pós-graduação e continuar não entendendo, porque a experiência sempre vai faltar.
Avidia é a estreiteza da visão. Uma estreiteza tão interessante, que parece amplidão. Tem todo um panorama que se descortina. É o paradoxo da educação_, “quando eu entendo, nesse momento, estou aprisionado. Posso não estar, mas estou"._ Então esse posso não estar é a nossa porta de saída, Prajna. Podemos operar daquela forma, mas reconhecer que estamos operando.
Quando entendemos isso, então, Avidia fica perfeita. Podemos fazer prostrações para ela, dizemos: “Que espantoso, que maravilhoso, claro, isso é maravilhoso. Se Avidia não existisse, tinha de ser inventada!” Aquilo que nos permite focar a mente, operar no mundo, operar ali dentro é Avidia. Imaginem um cinema sem Avidia! Como poderíamos entrar no filme? Avidia é um milagre, é espantoso, é uma liberdade que a nossa mente tem. Nós treinamos as crianças a focarem uma coisa e não olharem para a outra, sempre. “Não faça isso, não vá a festa, não saia com os amigos, estude!”
O cinema é um bom método de meditar. Parece uma brincadeira, mas percebemos exatamente quando nós entramos naquilo e a responsividade começa a atuar. Nós podemos testar isso para os seis reinos. Toda sala de Dharma deveria ter uma locadora, já classificada com os seis reinos...
Então nós estamos no cinema e começamos a sofrer. Mesmo que tenhamos um pacote de pipoca em uma mão, uma coca-cola na outra, estamos sofrendo. Como isso é possível? Isso é Avidia operando, está ali! Não estamos mais vendo pipoca ou coca-cola. Nós estamos presos no filme e tudo aquilo está operando, e choramos, ou rimos...
Pergunta: Devemos, então, evitar aqueles filmes que gostamos e preferir aqueles que não conseguimos ver, como para muita gente filmes de terror ou psico, etc.?
Lama: Tanto faz. Aqueles que gostamos têm as emoções positivas que são, também, aprisionantes. A televisão também funciona. Este tipo de meditação não precisa ser muito longo. Podemos ligar a televisão e usar dois tipos de meditações. A primeira é olhar dentro da tela e observar todas as emoções surgindo. Essa forma de olhar dentro, já é o sétimo passo do Nobre Caminho.
No segundo tipo de meditação, não focamos a tela, mas um pouco abaixo e deixa a tela aparecer. É muito surpreendente. Quando olhamos abaixo, tentamos nos concentrar, como a meditação do tigre na floresta. Ele está contemplando o movimento da floresta, mas ele não se move, ele não se envolve com o que está acontecendo ao redor. Esta meditação correspondo ao sexto passo do Nobre Caminho Octuplo, onde nós estamos treinando estabilidade. Nós paramos e vemos as imagens surgindo, mas elas não têm a força. Essencialmente estamos treinando o nível de Avidia propriamente, de responsividade, está vendo a luminosidade. Como ela está focando abaixo e está concentrada, a energia dela está ali embaixo, ela não está na construção da delusão da imagem. As imagens estão ali como palha, nós não construímos. De vez em quando nós nos perdemos, então vemos que construímos. E voltamos. A esse nível percebemos direitinho que não tem aquilo que está ali, quando ela passa a olhar, ela está atuando automaticamente com o processo que produz significados, ela vê nossas emoções surgindo, começando a dançar no meio daquilo. Podemos então dizer: “Isso é o magnetismo. Esse magnetismo eu atribuo. Isso é luminosidade. Esse é o conteúdo do mundo inteiro.”
Se a televisão existisse naquela época, o Buda a iria certamente apontá-la como um bom exemplo, como uma boa prática. Ele usou as coisas semelhantes da época, a pintura e o teatro.
Outro exemplo maravilhoso é, quando vemos um filme de guerra, com bombardeios, tiros, após o término do filme, podemos examinar a tela e veremos que ela não tem um furo. Como pode ser? Da mesma forma, a nossa natureza também não leva tiros. Apesar de todas as peripécias que passamos, a nossa natureza que faz surgir as coisas, essa natureza não nasce e não morre. É uma meditação muito importante percebermos a atribuição do poder sobre os objetos.
A nossa natureza não nasce e não morre... |
Começamos a ver um filme, temos vontade de chorar e pensamos: “Essa minha vontade de chorar é completamente tola.” No entanto, se desviarmos o choro, isso é uma construção, se chorarmos é uma construção da mesma forma. Às vezes, quando vemos em um filme uma circunstância que parece a circunstância de nossa vida, choramos e paramos, achando-nos ridículos. Depois, voltamos a chorar. Mais uma vez, nos sentimos ridículos, achamos que não precidamos daquilo e paramos novamente. Assim, vagueamos por várias paisagens.
Se tivermos lucidez nesse processo todo, poderemos optar por chorar ou não, tanto faz. O importante é estarmos lúcidos. Tendo lucidez podemos pensar: ‘’O choro é perfeito, também... Dentro desse conjunto de situações eu estou dentro dessa paisagem e dentro dessa paisagem o choro é completamente natural.” Para ilucidar o processo, podemos avançar por dentro daquela paisagem. Podemos também chorar para perceber toda a experiência de sofrimento que os seres estão imersos. Neste caso, não estamos com a ocultação da ocultação, não estos presos, propriamente. Nós andamos por dentro daquilo, temos aquelas experiências, aquilo produz o efeito todo mas temos uma liberdade no meio disso.
O espantoso nisso é que nesse processo de prisão, Avidia, que oferece a solidez das paredes. Como Avidia tem a ocultação e a ocultação da ocultação, aquilo que nós vemos parece que é a única realidade. Como aquilo parece que é a única realidade, a nossa ação parece plenamente justificada, a responsividade parece plenamente justificada, e nós reagimos. No meio dessa reação, nós nos comportamos dentro de cada um dos reinos. Nesse momento, cada um dos seis reinos nos parece completamente sólido, nós não vemos outra coisa, tudo está nítido. Todos nós justificamos: “Isso é assim!” Descrevemos, desta forma, a nossa realidade de forma completa. Se alguém vier e disser que não precisamos passar por isso, dizemos que a pessoa está delirando “Isso é assim!” Nós não vemos saída, nós estamos presos no processo.
Quando olhamos esse processo da prisão, ele não parece tão complexo. Mas ele se completa em corpo, fala e mente. Quando choramos, as lágrimas descem, não é verdade? O corpo está ali atuando! A fala, ou seja, a emoção está atuando! A mente está presa naquele processo, tudo está completo! O processo pode ser completamente abstrato. A prisão é irreal, mas nós temos os inimigos. Os inimigos podem não ser verdadeiros, a outra pessoa pode não se considerar inimiga, por exemplo. Ela não deseja causar mal, mas nós estamos com essa sensibilidade. Nós dizemos que o outro está buscando nos causar mal. Assim podemos até adoecer! A sensação, a constatação de que existe alguém nos desejando mal já nos provoca uma forte reação dentro do corpo. Se isso se torna repetitivo, vamos certamente adoecer. Quando a pessoa vem e diz: “Mas eu tenho o maior carinho, o maior respeito por você...” Com essa constatação, temos um grande alívio, podemos, finalmente, respirar novamente. Vemos o peso que tínhamos em cima cair, dissolver. Esse peso, porém, era um peso que vinha da delusão, de Avidia.
“Eu ensinei o Dharma de sonho para seres de sonho, imersos em sofrimento de sonho...” Buda Sakyamuni |
Se isso é assim, também temos liberdade. Se há realmente alguém com um olho ‘pesado’ em cima de nós, não precisamos reagir! Aí vem a liberdade da ação, a liberdade da prece. Nós temos liberdades nesse processo. Essa liberdade vai até o ponto da morte. Nós temos liberdade frente à morte. O processo, a experiência de viver vem a partir da experiência que nos brota dos sentidos físicos, ou seja, nós estamos presos a um corpo. Essa é uma prisão que tem o conteúdo de Avidia, também. Por esse motivo, o Buda, no final de sua vida disse: “Eu não vim e eu não vou...” Ele nunca esteve preso. Se não percebemos que o sofrimento tem esse conteúdo, nunca teremos como ajudar.
A emancipação de Avidia é o reconhecimento da liberdade. Nesse ponto, vamos olhar Avidia como uma maravilha, como uma experiência realmente extraordinária. Tanto Avidia, como ocultação, como a própria ocultação da ocultação, quando se revela, olhamos aquilo e achamos aquilo espantoso, tudo maravilhoso. Podemos seguir contemplando…
Acredito que, nos tempos em que estamos vivendo, veremos isso incorporado na cultura. Acredito realmente que isso vai acontecer. Isso vai se tornar domínio público. Não tem razão para não ser, não existe nenhuma razão para isso estar oculto. Acredito que ainda vamos viver esses tempos. Isso aflorou de uma certa medida dentro da física quântica, na arte... É um processo lento que vem vindo, assim. Quem se conecta com isso ganha uma chave, os olhos brilham. Vejo que novas identidades humanas surgem a partir disso, é um processo. Em uma linguagem do terceiro milênio, vamos dizer que isso é um portal que a humanidade cruza e esse portal já está aberto. Não tem mais obstáculos para cruzar isso. Quem cruza é uma outra pessoa, ela se torna um outro ser. Ela vai olhar a realidade de uma forma muito mais profunda, muito mais hábil e a compaixão natural surge. Sem haver o cruzar por isso, a compaixão natural não tem como se exercer. Para que isso aconteça, temos de entender qual é a dor dos seres, que é a prisão, a origem de todas as dores. Se o processo de lucidez exigisse esforço, talvez não tivéssemos chance. Mas o processo de lucidez é prazeroso, é alegre, ele ofusca o processo de obtusidade mental. Quando o processo de lucidez surge, não queremos mais a obtusidade. Isso significa que na luta do bem com o mal o bem ganha. Por outro lado, na luta do bem com o mal, o mal não tem raiz. Onde é que está a raiz do mal? Só tem a lucidez e ela é a base de tudo, ela é quem constrói a prisão. Não tem como dissolução, não tem como destruição. Mesmo que os universos sucumbam a natureza última está sempre livre. Lama Padma Samten |
No décimo primeiro, estamos examinando a prisão aos propósitos da vida, Avidia atuando como o nosso horizonte de urgências. Se não conseguimos liberar isso, através desse processo de reconhecimento, se não conseguimos reconhecer a nossa liberdade natural, nem tão pouco a liberdade de seguir fazendo o que estamos fazendo como expressão da própria liberdade, vamos justificar as nossas urgências “Faço isso porque o universo é de um certo jeito.” Neste ponto, descrevemos a nós mesmos e o nosso universo. Não nos damos conta de que são inseparáveis, que o universo é inseparável de nós, que o universo é a experiência de universo.
Estamos dominados por Avidia. Se alguém tentar nos convencer de que aquela visão não é a visão correta, o que vamos usar como elemento de solidez? O nono elo, Upadana. O décimo é a descrição da nossa identidade e do mundo. O nono, Upadana, é simbolizado por uma pessoa colhendo com sucesso os frutos de uma árvore.
Décimo Elo - Bava
Quando surgimos, o mundo surge inseparável de nós, ele depende da forma como nós estamos inseridos. Ele surge aos nossos olhos à nossa maneira. Existe uma prática, que é a de olhar um ponto logo à frente de nós. Quando olhamos um ponto à frente, não necessariamente, vemos o que está ali. Podemos olhar à frente, mas, sem mover os olhos, focar os objetos ao lado esquerdo, ao lado direito, acima, abaixo... Podemos pousar o nosso foco em diferentes pontos. Não só isso! Para cada ponto, podemos olhar com diferentes olhos, atribuir diferentes significados, diferentes interesses. Nós temos um mundo multidimensional. Quando estamos vivendo em uma época anterior, escolhemos um certo aspecto, uma certa forma, desse aspecto multidimensional. Essa certa forma produz uma experiência de mundo. Nos não escolhemos a forma de olhar, porque é uma forma cármica. Não escolhemos nem o que focamos, nem o que escolhemos para atribuir significado ao que nós focamos. Nós, simplesmente, olhamos para as coisas e vamos vivendo isso de uma forma que parece completamente natural. Mas ela não é natural! Conforme o tempo passa, aquele universo que se produzia como experiência de uma certa forma, deixa de se produzir como experiência daquela forma. Nós, então, estranhamos, porque temos aquilo na memória e agora precisamos reconstruir aquele universo de uma outra maneira. Por que estou lembrando disso? Porque quando estamos presos a um universo específico, com uma identidade específica, pode ser que não nos demos conta disso. Tudo aquilo parece muito sólido, enquanto experiência. No entanto, quando olhamos as experiências passadas, que pareciam muito sólidas, não são mais o que um dia foram. Chegamos a conclusão que, no passado houve essa liberdade e agora também existe essa liberdade. Nós é que não a estamos vemos agora, assim com tambem não a vimos no passado. O que nos produz a experiência de que o universo é dessa maneira? Avidia! Quando olhamos para as coisas, vemos as coisas se desenhando de uma certa maneira. No décimo elo surge em si mesmo pelo poder de Avidia. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Dizemos: “O décimo elo é completamente natural. Isso são as evidências da vida” Estamos, assim, usando a causalidade “Eu tenho a experiência, portanto do mundo é assim”. Não percebemos que não precisamos fazer esse raciocínio. Se nós percebermos o décimo elo em si mesmo como liberdade, a limitação de nossa visão como Avidia, a ocultação que isso proporciona e a ocultação da ocultação. Se tivermos instruções sobre isso, podemos bater na testa e dizer: ‘’Realmente!!!” Assim temos liberdades e podemos simplesmente transitar. Se transitamos para uma outra paisagem, o sofrimento correspondente do décimo elo é uma opção. Podemos seguir com o sofrimento ou não, porque temos a liberdade das paisagens. Quando temos a liberdade, extinguimos o décimo elo pelo reconhecimento de Avidia atuando ali. É como se nós déssemos um pulo do décimo para o primeiro elo.
A sílaba “A”é a luminosidade da mente, o poder de mágico de Avidia. Se percebermos que a própria experiência de universo é a manifestação da sílaba “A”, passamos a ter a possibilidade de repousar a nossa mente no reconhecimento da sílaba “A”. Se fizermos isso, nos livramos da experiência da Roda da Vida, porque a sílaba “A” está além da Roda da Vida. Ela é a construtora da Roda da Vida, mas não pertence a ela, não pertence à ação da Roda da Vida. A sílaba “A” não permite a persualização, ela é luminosidade, todos os seres têm a sílaba “A” operando. Todos os seres se enganam. O engano é muito bonito, é maravilhoso, ele aponta diretamente a sílaba “A”. Por que? Porque nós temos uma experiência de realidade como um pássaro que bate como um vidro. Por que ele se enganou? Porque ele produziu uma experiência de realidade e aquilo não funcionou, mas ele viu aquilo, teve a experiência daquilo. Ele é capaz de voar por uma experiência de realidade que ele mesmo produz. Essa experiência pode ou não funcionar. Quando funciona, tudo bem. O mesmo pode acontecer conosco, quando dirigimos um automóvel. Por isso acontecem acidentes. Nós achamos que uma curva é para a direita e ela é para a esquerda; achamos que o cruzamento está livre, mas tem um carro no caminho. Ninguém se acidenta porque quer, todos se acidentam pelo poder da sílaba “A”, nos enganamos. Nós nos guiamos pela região sutil da sílaba “A”, é ela que produz a experiência de realidade. É muito importante percebermos que estamos sempre dentro de paisagens sustentadas por essa energia. A morte também é uma paisagem desse tipo, todas as alternativas de vida são assim. Logo, isso é o antídoto para as paisagens, pois quando experienciamos uma paisagem e sabemos que ela é o produto de Avidia. Quando temos aversão a alguma pessoa, ficamos cegos para suas qualidades. Isso é Avidia, nós somos cegos porque vemos. Lucidez significa reconhecer incessantemente a sílaba “A” atuando em todas as experiências. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Se não percebermos isso, se não temos a liberdade das paisagens e das identidades, esse processo de prisão precisa ser tratado de uma forma causal, porque nós estamos rígidos. Dizemos: “Não, eu sei como é que é...” Neste caso, vamos analisar o nono elo.
Nós podemos hoje mesmo escolher onde vamos renascer, podemos renascer agora. Nós renascemos a cada instante, porque nos recolocamos com uma identidade a cada instante, logo essa experiência está disponível. Amanhã, segunda-feira, vocês vão renascer em ambientes já definidos de um modo geral, ou não. Essa liberdade é um pouco assustadora, mas é verdadeira. Por que precisamos renascer da forma que temos renascido à cada segunda-feira? Podemos renascer em uma condição de trazer benefício aos seres. Se renascermos em uma condição de lutar por algo que iremos perder mais tarde, estamos carregamos água em cesto de palha, perdendo tempo, o que é quase sempre o caso. É muito importante percebermos que, mesmo as circunstâncias através das quais reconhecemos o mundo e a nossa própria identidade são sustentados pela sílaba “A”. Acharmos isso bom ou não, isso não vem ao caso. O importante é reconhecermos que isso de fato é assim. Melhor ainda, testar se isso é assim. Na medida que testamos, veremos que realmente é assim. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Nono Elo – Upadana
Porque colhemos com sucesso os frutos de uma árvore, a árvore é o mundo. Dizemos: “Eu sei me relacionar com o mundo! Do mundo eu obtenho o que eu preciso. O mundo é assim e eu sou assim” Nós sabemos o que o mundo é. Logo, a nossa experiência de mundo não é sem base. Ela tem por base a experiência do nono elo, de Upadana.
Existem vários exemplos que podem caracterizar esses universos operando. Um deles é a soberba da cavalaria Polonesa na segunda guerra mundial. Todos os cavalos gordinhos, tudo funcionando muito bem. Toda aquela hierarquia operando bem e aí vem os tanques. Foi uma guerra rápida, os poloneses não tiveram a menor chance. Outro exemplo é o da soberba tibetana frente aos chineses. Não tiveram nenhuma chance, também. Os chineses construíram primeiro as estradas e, depois, entraram com as divisões blindadas...
No entanto, quando estamos montados num cavalo com uma lança na mão sabemos o que podemos fazer. Temos sucesso naquilo, fazemos demonstrações, participamos de competições, tudo está legitimado. Estamos colhendo os frutos de uma árvore, mas essa árvore já está morta. Aquele universo inteiro já não existe mais. No entanto, continua produzindo frutos.
Tudo aquilo é um universo, nós podemos criar um ranking “eu tenho sucesso, eu sei fazer isso, eu sei fazer mais rápido do que todos.” No entanto, aquele universo inteiro que está produzindo frutos não alcança mais do que um certo tanto, é limitadíssimo. Mas quando estamos presos naqueles frutos que estamos colhendo, nem nos damos conta disso. Então surge o décimo elo, que é um universo inteiro limitado. Mas esses universos existem paralelamente, eles se chocam como continentes que se chocam. tudo voa em pedaços. Quando estamos colhendo frutos, é bom que olhemos de que tipo de árvore estamos colhendo, é bom que nos demos conta de que aquilo é uma opção.
De novo, nós podemos olhar aquela experiência de sucesso como liberdade, ou seja, uma ação sob um universo de Avidia, que está oculto. Quando nós olhamos e reconhecemos as liberdades, constatamos que podemos escolher a árvore que estamos vinculados ou não. Se não tivermos a experiência de escolher a árvore, seguimos colhendo os frutos e parece que aquilo está perfeito. A nossa vida fica presa aquele tipo de árvore que nós estamos focando. Isto não que dizer que não funcione. Funciona! Nós estamos fixados naquela árvore, produzindo aquele movimento e os frutos vão surgindo e nós temos a satisfação correspondente. Tudo está perfeito até Maharaja aparecer…
Nós podemos encontrar diferentes métodos de fazer isso. Se jogamos lixo pela janela, produzimos satisfação. Nós nos livramos do lixo. Podemos, então, continuar jogando lixo pela janela, produz resultado. Se dissermos que não produz, não é verdade. Mas nós temos de ver o que estamos fazendo, se queremos esse caminho para produzir felicidade ou não. Este é o ponto que o Dalai Lama enfatiza.
Quando colhemos frutos de uma árvore, não necessariamente significa que os frutos são bons. Significa que eles são desejáveis, mas nem todas as coisas desejáveis são efetivamente positivas. Se as coisas desejáveis não são positivas, elas são sustentadas no aspecto desejável por que? O que as sustenta? Vemos que elas também são sustentadas pela sílaba “A”, como o engano surge. Mais adiante, carmicamente a pessoa tem as conseqüências aparecendo. No entanto, no momento em que a pessoa usufrui a experiência, parece que aquilo é favorável, por isso ela se sente colhendo frutos. A essência desses frutos, porém, é o engano básico. Se a pessoa perceber que é o engano básico, ela reconhece a sílaba “A” atuando e pode, naturalmente, se perdoar disso. Se ela não reconhecer a sílaba “A”, ou seja, o processo não causal, ela vai justificar sua ação pelo treinamento, pela aspiração anterior. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Se percebemos a liberdade, tudo bem. Caso contrário, vamos justificar: “Não, me custou muito para montar tudo isso. Eu planejei tudo com muito cuidado, isso não veio porque caiu do céu. Eu pensei, estudei, organizei. Nunca vou abrir mão disso...” Assim está a cavalaria funcionando. Ela funciona e está perfeita. As locomotivas a vapor, também, funcionam. Os computadores de dez anos atrás continuam funcionando. Só que ninguém precisa mais deles, aquilo passou. Mas nós não percebemos isso porque estamos fixados. Assim, nós justificamos a montagem de tudo aquilo como a razão pela qual nós não vamos abrir mão da árvore que está produzindo frutos.
Se, no nono elo, reconhecermos a luminosidade, a liberdade e Avidia, nós voltamos diretamente do nono para o primeiro elo e, de lá, nós saímos. Caso contrário, significa que estamos fixados e descemos para o oitavo.
Oitavo Elo – Trishna
Nós voltamos de forma causal para o oitavo item, Trishna. Quando chegamos no oitavo item, podemos, de novo, perceber “Sim, claro, planejei isso. Da mesma forma, poderia ter planejado outras coisas. Eu construí isso, mas não precisava ter sido assim.” Outra vez, existem abundantes exemplos de que isso é uma liberdade que nós tínhamos, que exercemos, mas não precisamos ficar presos. Vemos que enquanto estamos planejamos aquilo, estreitamos a nossa visão. Assim está Avidia operando. Avidia produz ocultação, que por sua vez fica oculta. Nos damos conta de que aquele processo é uma delusão, a delusão é luminosidade, que é liberdade atuando... Então, reconhecendo todo esse processo, podemos sorrir para ele, vemos que ele está atuando, vemos a beleza disso... Podemos até continuar com aquela árvore, se for o caso. Caso contrário, seguimos.
Quando nós vamos ampliando a nossa visão, pode ser que os casamentos passam a sofrer dentro dessas ampliações. Nós vamos descobrindo que essas árvores podem ser dissolvidas ou não, é uma opção nossa. As próprias árvores surgiram por opção. Nós podemos seguir sustentando essas opções dentro da perspectiva do diamante, nós não perdemos a lucidez. Nós não vamos escurecer a visão novamente. É uma decisão nossa, fazer as coisas desta forma, até então não tinha sido. Talvez um casamento, neste momento, vá se tornar, enfim, um casamento. Até agora, não havia tido a opção. O padre perguntou “sim ou não?” e a pessoa respondeu que sim, mas ela não tinha tomado aquela decisão, de fato. Agora sim. Agora ela tem a liberdade. |
A própria restrição é uma liberdade. Se a liberdade for uma restrição à restrição ela deixa de ser uma liberdade. A liberação é mais bem aplicada. A liberação permite o efeito pontual. A pessoa está operando com uma restrição de liberdade, mas aquilo é uma liberdade maior do que a própria liberdade, porque aquilo é liberação. Só porque ela tem liberação, ela pode utilizar uma liberação à liberdade. A pessoa percebe, por exemplo que, se ela opta pela liberdade, aquilo é uma opção, como qualquer outra.
O Buda surge com braços e pernas, ele manifesta o infinito por se fazer finito. Essa é uma dimensão muito importante, devemos nos lembrar sempre disso. Isso é a razão pela qual os bodisatvas retornam. A expressão de Nirmanakaya está ligada a isso “O ilimitado se faz limitado, o infinito se faz finito”. Ainda assim, quando o finito se dissolve, ele diz: ‘’Eu não vim, eu não vou.” Ou seja, “Eu nunca fui finito, eu só manifestei o infinito na aparência finita!”
No oitavo item, nós planejamos a árvore. Estamos planejando como vamos fazer para colher todos os frutos, um após o outro. Se alguém nos tentar mostrar que tudo isso não é necessário, contestamos dizendo: “Não, você não entende porque você não provou chocolate. Se você tivesse provado, você saberia porque eu tenho uma fábrica agora.” Vamos, então, encontrar pessoas fazendo coisas que, um dia, sucessivamente elas gostaram de fazer. Talvez já não gostem mais muito, mas, durante um período aquilo as mobilizou. Como justificamos o planejamento, a nossa construção? Pela sensação anterior. Tivemos uma sensação de que aquilo era bom. Essa sensação é o sétimo elo.
Na vida, praticamos muitas ações incorretas, inadequadas. Só vamos conseguir perdoá-las se nos dermos conta disso. O mesmo acontece com todos os outros seres, sem exceção. Eles também fazem ações incorretas. Mas a essência de suas aspirações não está em tijolos; essa essência não é pedra, nem cimento, nem concreto. Ela é etéria, por isso é possível uma mudança. Mais importante do que mudar, é perceber que essa essência é a manifestação de uma natureza que não está dentro da vida e da morte. Ela é a manifestação de uma natureza mais sutil, está atrás da própria Roda da Vida. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Sétimo Elo – Vedana
Vedana é simbolizado por uma flecha no olho, nós ficamos cegos pela segunda vez. Nós simplificamos todas as etapas anteriores e baseamos todas as etapas seguintes em uma sensação. Baseamos todo o estreitamento de visão em uma sensação. Ocultamos, então, as seis etapas anteriores. Não olhamos mais a microestrutura. O fato de termos uma sensação boa justifica tudo. Avidia ganha um grande poder neste momento.
Socialmente, culturalmente, uma coisa é boa, agradável, já está justificada por si mesma, não é? Isto significa a flecha no olho. Observem as pessoas que usam drogas. Elas dizem que a droga é muito boa. Até querem sair disso, mas o problema da droga é que ela é, realmente, muito boa. Nós temos um mecanismo de fixação. O fato de alguma coisa ser boa nos tira toda a defesa. Nos temos esse referencial “Quando aquilo é bom, ótimo, está bom!”
Estamos aprisionados ao processo de Vedana. É muito difícil gerarmos liberdade com relação à Vedana, porque nós não queremos, não estamos interessados. Tudo está indo bem, estamos gostando, estamos satisfeitos. Ao contrário, o que nós queremos é garantir Vedana.
A dificuldade no primeiro passo do Nobre Caminho se solidifica a partir disso, porque o nosso referencial é Vedana. Se, para seguir um caminho espiritual, tivéssemos de abandonar Vedana, 90% das pessoas desistiria ali. Nós entramos em um caminho espiritual porque queremos nos sentir bem. Esse é um ponto muito delicado. É um ponto onde os santos se defrontam direto. Eles dizem que se sentir bem ou não, não importa. Na verdade, até preferem não se sentir bem. Isso não é uma boa solução, porque isso não é liberação. Eles continuam usando o mesmo referencial, só que eles apontam em outra direção.
Esse processo é muito delicado, novamente chamo atenção para Avidia. Nós vemos algo, aquele algo simplifica tudo, oculta a profundidade e oculta que ocultou. Nos oferece os propósitos, então, surge o sentido de carma operando e assim segue. Ele nos retira o desejo de liberação. O processo substitui o desejo de liberação pelo impulso de atender a satisfação, que parece vir de outra direção e, assim, giramos a roda.
Ainda assim, tudo isso está perfeito. Reconhecemos todo o processo, reconhecemos delusão operando, reconhecemos que a delusão tem uma energia mágica que chamamos de luminosidade. Reconhecemos que, quando a luminosidade se oferece produz significado, produz impulso, produz beleza e, ao mesmo tempo, porque aquilo se oferece de um certo jeito, reconhecemos que não está no objeto o que vemos nele, nem a satisfação que ele produz, nem o brilho, nada disso está dentro dele. Isso tudo é a natureza da delusão. Quando percebemos isso, reconhecemos que a essência da delusão é o aspecto magnético dela. Ela é etéril ou similar a um sonho, mas atua.
Quando percebemos que a essência não está no objeto, mas atua, isto significa compreender a vacuidade do objeto, compreender a liberdade. Porque vemos o objeto se manifestando com a cara que ele tem e entendemos como ele aparece com aquela cara, nesse momento, percebemos que luminosidade produz nele esse efeito. Isso acontece porque há liberdade para que esse efeito possa ser produzido e outros também. A maior prova de que a liberdade existe é que a aparência aparece. Vacuidade não é um buraco, uma ausência de aparência. Não! Quando a aparência aparece, isso é prova de que a liberdade de produzir aparência está ali. Aquela aparência não tem solidez. Curiosamente, no mesmo fenômeno, vemos luminosidade e liberdade. Vemos prisão e liberdade se manifestando como prisão, tudo junto.
Se conseguimos reconhecer isso, nesse momento, sorrimos para Vedana. Podemos, então, pegar um quindim e comer, dizendo: “Isso é a prova da vacuidade, quindim é vazio!” Ainda assim, acontece um milagre, nós comemos quindins e o estômago se enche. E engordamos!
Pergunta: Não existe o risco de usarmos essa desculpa para legitimar os apegos?
Lama: Claro, se usarmos sob o ponto de vista conceitual apenas, pode ser. Não podemos deixar de observar que, nesse nível, Maharaja está de olho, ele está nos observando. Então dizemos: “Estou comendo este quindim sem nenhum apego, ele é pura vacuidade.” De repente, alguém vem e diz: “Esse quindim é meu!’’ e nós respondemos: “Não, é o meu!”
Pronto, Maharaja apareceu e mostrou a realidade. Se nós temos liberação, temos liberação. Caso contrário, Maharaja oferece rapidamente a experiência. Quando não temos liberação, temos ligação cármica, a dor aparece imediatamente para nos avisar.
Olhamos o aspecto do Venada sob a ótica da luminosidade, nós observamos como isso surge. Nós reconhecemos os vedanas – gosto, não gosto; quero, não quero – como um processo que não pertence ao objeto que estamos contemplando. Sabemos agora que a experiência do gosto, não gosto sempre serefere a algum dos objetos dos cinco sentidos físicos ou do sentido abstrato. Esses objetos passam a ganhar essa característica, nós respondemos a eles com um gosto ou não gosto; quero ou não quero.
Sendo assim, percebemos que o gosto, não-gosto é uma experiência de gostar ou não gostar. Então, começam as etapas. Ao invés de gosto, não gosto, eu tenho a experiência de gostar ou não gostar. Nesse momento, percebemos que temos uma liberdade, uma experiência. No item seguinte, olhamos para a experiência e dizemos: “Essa experiência é uma experiência de delusão”. Quando percebemos uma experiência de delusão, não dizemos mais “eis uma maldita delusão!” mas “eis uma maravilhosa delusão! porque já percebemos o aspecto criador, o aspecto de brilho, de magia que existe na característica que passamos a ver no objeto. Nós gostamos, temos uma atração – ou uma aversão.
Nós temos abundantes exemplos, podemos contemplar por todos os lados dessa maneira. Existe uma prática, a de Tsog, na qual nos alimentamos e vamos contemplando os variados sabores dos alimentos e a delusão que está associada à experiência de cada alimento. Da mesma forma que contemplamos isso a partir do sabor, podemos contemplar a partir da visão, da audição, do olfato, do tato e, assim, vamos classificando as coisas.
Podemos agir mesma forma com os objetos abstratos. Dizemos: “Tais coisas são terríveis!” Percebemos uma perspectiva, uma paisagem mental atuando em um por um desses itens. Essa paisagem mental dá significado, serve de base para aquela característica que estamos vendo. Aquela característica é uma experiência, nós a vemos sendo sustentada. Existe uma energia sustentando aquilo. Podemos espreitar essa energia surgindo ou não surgindo.
Existem vários tipos de métodos. No momento, estou utilizando a linguagem verbal, ou seja, estou empurrando o carro, se o carro pegar, vocês vão conseguir meditar sobre isso. Se não houver o empurrão, pode levar muito tempo para o carro pegar sozinho. O ponto de como proporcionar para outros a experiência daquilo é o grande problema de um professor, seja ele de matemática, português, geografia, história... É como empurrar o carro para o outro começar a operar. Eu vejo todo esse processo como caminhar. Quando caminhamos, repousamos sobre um pé e, depois, sobre o outro e assim vai indo. Eu considero que todos os métodos são como remédios. Eles têm contraindicações e efeitos colaterais. O que podemos fazer, eventualmente, é combinar remédios, para tentar evitar os efeitos colaterais e tentar equilibrar. Ainda assim, neste nosso encontro, se vocês tiverem alguma confusão ao final, eu considero isso um bom resultado. Este é um método também usado no ZEN. O ZEN utiliza o método de criar uma dúvida não resolvível. Quando essa dúvida não resolvível opera, Toku Dassan diz: “É como uma bola de ferro incandescente. Não consigo nem engolir, nem vomitar e aquilo segue queimando.” Esse é o melhor método. Ele não nos permite mais parar. Dentro dessa perspectiva, se nós estamos aqui agora olhando isso e isso vira de perna para o ar a nossa compreensão, a nossa identidade, as nossas relações, etc., então, isso é um bom resultado. Nós vamos seguir pensando. Nós vamos avançando e vamos encontrando alguns elementos de segurança. Esses elementos começam, enfim, a nuclear a nossa compreensão e nós vamos re-estruturando tudo a partir deles. Esse método é bem específico para os reinos dos deuses. Se você começar a prática, mas o resultado estiver em contradição com a sua aspiração, você não vai obter resultado. Essa conciliação do resultado com a aspiração, curiosamente, é uma etapa muito difícil. É muito comum as pessoas entrarem e a aspiração delas não é o que a prática vai oferecer. A prática vai criando uma outra dimensão e eles estão querendo manobrar dentro. Algumas pessoas lucrariam mais se fizessem um curso de PNL. O que elas estão buscando é um processo sutil de manipulação das condições, de maneira que elas consigam construir o que elas acham que é a fonte da felicidade no espaço e no tempo. É muito difícil de se livrar disso, muito difícil. Na verdade, nós não conseguimos nos livrar desse obstáculo antes de chegar na oitava etapa do Nobre Caminho. Antes de cruzar por Prajna não temos chance. Só quando nós cruzamos pelo reconhecimento de Prajna na Roda da Vida, nos doze elos, é que vemos a insignificância da dimensão mental que estamos operando e, só então, podemos desejar ir além do que estávamos operando. Existem várias armadilhas como, por exemplo, um fazendeiro do Mato Grosso, um empresário de São Paulo ou um empresário americano, ou mesmo, um caminho maravilhoso. Isto é tão sutil. Nós, facilmente, trocamos o resultado do caminho pelo caminho! Isto é chamado de materialismo espiritual. |
Voltando ao exemplo da televisão, nós podemos parar diante dela, ou de um filme e não olhar para ele propriamente. Nós vamos vê-lo apelando, chamando e vamos ver apenas sons e imagens. De repente nos ligamos, olhamos e nos vinculamos. Então, percebemos que não são mais sons e imagens apenas, agora tem uma magia atuando. Voltamos mais uma vez a nos concentrar fora da tela e desligamos o processo, nos estabilizamos novamente. Depois, voltamos novamente o observamos o processo ocorrendo.
Na época do Buda não tinha televisão e a liberação era muito mais lenta. Agora nós temos a bênção da televisão. Na época do Buda, as pessoas andavam a pé, também. Os cenários iam mudando com muita lentidão. Naquela época, existiam pessoas que passavam suas vidas inteiras presas em um vale. O idioma de um vale não era a mesma do que a do vale ao lado.
Hoje, especialmente no ocidente, nós temos uma diversidade incrível, uma diversidade de quadros. A realidade virtual é completamente natural para nós. Acredito que o Dharma no ocidente vai adquirir uma feição realmente brilhante, em toda a sua história. Isto se sobrevivermos a nossa loucura.
Existe um brilho de luminosidade que é característico do ocidente. O ocidente afundou no materialismo que brota da materialidade e o oriente no materialismo que brota da vacuidade. Nós, o ocidente, geramos uma corrupção das aparências e o oriente gera uma corrupção da liberação das aparências, ou seja, de uma insensibilidade, de uma não resposta. Nós nos refugiamos no mundo externo e eles, no mundo interno. Ambos têm equívocos. Para entender o equívoco do mundo interno, basta ouvir o Trungpa Rinpoche falando. Para entender o equívoco no mundo externo, basta olharmos para nós mesmos.
O mundo externo brota de luminosidade. A nossa habilidade é trabalhar de forma cada vez mais sutil, sustentando luminosidades cada vez mais sutis. Nós atingimos muitos Sidhis nisto. Nós transformamos pedras em naves espaciais, a enviamos para Marte, pegamos as imagens disso e espalhamos pelo planeta inteiro ao vivo.
Estamos examinando esse aspecto criativo e vemos que Avidia está ali dentro. Quando Avidia se manifesta como gosto ou não gosto, produz uma ocultação que, por sua vez, fica também oculta. Assim nós ficamos presos, independente do reino em que estejamos.
Voltamos ao exemplo do cubo. Quando um cubo surge o outro desaparece. O aspecto mais importante não é o surgimento de um cubo, mas o desaparecimento do outro. Nesse processo é importante perceber que não é apenas um cubo que desaparece, mas qualquer outra coisa quando focamos uma.
Desde os tempos sem início, tratamos os ladrões como filhos preciosos... Buda Sakyamuni |
Dentro disso atuam seis ladrões. Eles roubam a nossa liberdade, sem que percebamos. Quando dizemos: “Eu vejo tal coisa e ela é linda!” estamos achando isso maravilhoso. O ladrão está nos oferecendo aquilo, nos enganando, tirando-nos toda a liberdade e nós ainda consideramos todo esse fato maravilhoso. Esta perspectiva de ver Avidia é como se fosse Hinayana, consideramos então a delusão um obstáculo. Nós não precisamos nos posicionar desta forma. A única forma de superar esse processo é reconhecer que a liberdade segue e que temos uma operação maravilhosa da mente produzindo essa experiência.
A vacuidade está na própria aparência do objeto... Chagdud Rinpoche |
Porque a própria aparência do objeto surge, essa é a razão pela qual podemos reconhecer na aparência a vacuidade. Por que? Para entender, precisamos fazer todo o raciocínio para entender que a delusão está operando, que o teor daquele objeto é virtual. A luminosidade cria aquela aparência, vemos que aquela aparência está ali, mas não está na materialidade do objeto. Quando vemos a aparência, só a vemos porque temos a liberdade de criarmos isso daquela forma.
Cada um desses itens, desses doze elos, quando aparece é um produto deste tipo. Desde a experiência de sofrimento, a experiência de propósito da vida, de mundo e identidade, a experiência de sucesso, de planejamento e, agora, a experiência de Vedana. Quando surge o eu gosto, só mesmo o fato de surgir um eu gosto é um objeto para o meditante. Para quem não é meditante, quando surge o eu gosto, ela vai reagir à mensagem com um devo fazer isso, não devo fazer aquilo. Para ela surge automaticamente um propósito natural. O meditande diz ‘’Nossa, que espantoso! Eu gosto!” Ali está o praticante contemplando essa experiência. Assim fazemos a prática de Tsog, com alimentos ou frente a todos os sons. Isto é a prática dos Rigdzins**,** a prática de atenção, de lucidez. A prática dos bodisatvas Mahasatvas, a prática do Sutra do Coração. No Sutra do Coração nós temos uma cartografia, um mapeamento. Nós utilizamos 46 itens para mapear a nossa possibilidade de ação.
Durante todo o tempo, dia e noite, durante os sonhos, antes de acordar de manhã, antes de dormir à noite, a todo momento vocês precisam contemplar a dissolução de cada um desses elos através do processo de luminosidade, do reconhecimento da liberdade! Não tem como o processo discursivo substituir essa experiência. Vocês precisam tentar fazer isso, experimentar isso. Quando vocês tiverem uma grande dor ou uma grande alegria, precisam experimentar esse processo. Isso só pode ser entendido corretamente através de uma experiência. Lama Padma Samten |
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Quando não entendemos o procedimento de luminosidade, vamos usar o procedimento usual. “Para mim é muito simples, eu tenho essa sensação porque eu ponho o quindim na boca e, é muito simples, eu gosto!” Não adianta querer complicar as coisas, eu sempre gostei de quindim e sei que é gostoso” observem como isso é concreto. Passamos assim imediatamente para o plano causal. Como explicamos a nossa sensação? Pelo elo anterior, Spasha, contato.
O próprio gostar está relacionado pela sílaba “A”, esse aspecto de sustentação. Se não fosse assim, nós não trocaríamos o gostar pelo não gostar ou não gostava o gostar pela indiferença. A cada manhã recriamos o ser que está ao nosso lado e essa é a sílaba “A”. Cada vez que reencontramos alguém, ressurgimos positivamente. Ressurgimos, recriamos a própria pessoa e o universo ao redor. Sempre temos o poder de recriar. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
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A ciência aborda esse ponto, mas o simplifica. Albert Einstein acha que é possível gerar um som só de um lado sem nenhuma influência da mão. Ele persegue o fato de que podemos bater aqui, isolar o efeito disso e manifestar só um lado. Ele diz que podemos isolar uma partícula, podemos ver a partícula em si mesma, sem nenhuma perturbação. Essa é uma diferença entre ele e Newsborn. Este afirma que temos o evento. Esse evento nós medimos, podemos dizer que aquilo é o instrumento ou objeto se manifestando, é a nossa escolha. O objeto, por sua vez, só se manifesta inseparável do instrumental e das concepções e das perguntas.
Na física quântica nós formalizamos isso. Nós vamos colocar essa questão como formalismo matemático, onde as perguntas estão presentes. É uma estrutura lógica que é utilizada, é diferente. Essa inseparatividade também está presente nessa estrutura matemática.
Sexto Elo – Spasha
O ponto do contato é muito interessante, também. A experiência de contato é como a experiência de percepção. Percepção nada mais é do que uma outra palavra para delusão.
Vamos olhar esse tema a partir da ciência. O cientista diz: ‘’O experimento é neutro”. Contudo, na física quântica essa idéia, essa afirmação já está ultrapassada. Newsborn diz: “O objeto que encontramos a nossa frente é inseparável do instrumento que gera o experimento. Não há como separar o instrumento do objeto. O Instrumento e o objeto criam um fato e depende de mim a decisão de chamar aquilo de manifestação do instrumento ou manifestação do objeto!” Quando chamamos aquilo a manifestação do objeto, qual é o papel do instrumento? O instrumento não fez nada? Se é assim, por que o utilizamos?
O instrumento está ali representando inseparavelmente os conceitos, as concepções, as perguntas do cientista, que, por sua vez está inseparavelmente ligado à estrutura cognitiva dele que, por sua vez, está ligada aos pressupostos que ele está operando. Estes, por sua vez, são inevitavelmente inseparáveis da linguagem e da cultura que ele está operando. Então temos a linguagem, a cultura, os pressupostos, as teorias, a concepção do experimento, o surgimento do equipamento, a leitura do equipamento. Então vemos o objeto e, quando ele surge, esquecemos de todo o resto. Não tem mais equipamento, não tem mais conceito, não tem concepção, nem cientista, não tem mais nada. Aquele fato revela propriedade como se fossem só do objeto. Isto é uma simplificação grosseira, a própria delusão. Hoje em dia, infelizmente, os cientistas ainda não estão lúcidos. No entando, Newsborn já chegou a essa conclusão em 1925 e ele foi ocultado pelas teses.
Olhando sob o ponto de vista de luminosidade, Spasha é muito fácil porque o contato é a própria percepção. Quando fazemos o contato, a percepção (Samjana) e o contato (Samskara) parecem a mesma coisa. Desta forma, nós temos a operação da delusão (Avidia).
A partir de toda essa análise, podemos perceber que tem a delusão, que vemos como liberdade, vemos o aspecto criativo da delusão, reconhecemos que junto com a delusão tem Avidia, que é um sentido mais geral – a delusão é o aspecto criativo, quando ele surge, surge também o aspecto de ocultação, que é Avidia; Avidia, o aspecto de ocultação, ele mesmo fica oculto, pelo fato de que, junto com a luminosidade, brota um significado, um sentido, um impulso, um raciocínio, uma seta que nos indica ‘’Faça isso!” . Quando brota essa responsividade, isso apaga o fato de que a delusão surgiu e Avidia estava se manifestando.
Tractatus (Wittgenstein) O mundo é tudo o que é o caso... Aqui Wittgenstein está incluindo o observador, ou seja, o mundo é a soma das coisas que nós consideramos pertencentes ao mundo. Essa é uma perspectiva muito diferente da perspectiva científica, onde é afirmado que o mundo pré existe a nós, o que não se sustenta. Essa visão científica não explica nem mesmo como podemos ver o Buda pintado em uma tela. No entanto, se alguém não tiver a estrutura do Buda dentro só vai aparecer pano e tinta. ...e se as coisas são o caso ou não, depende de uma estrutura anterior... Todos os objetos que compõem o mundo dependem de uma estrutura que os compõe. ... os objetos surgem em espaços de objetos. Os espaços de objetos podem ser vazios, mas não há a possibilidade de surgir um objeto que não em um espaço de objeto... Temos internamente a nós espaços de possibilidades. Só conseguimos ver os objetos surgindo nos espaços que eu imaginei. Logo, estamos presos pelas estruturas lógicas que estamos operando. ... se o meu universo não permite eventos, esses eventos eu não posso negar. Eu só posso negar o que é possível dentro do meu universo e não ocorre... Um pensador dentro de um outro universo não tem a possibilidade de reconhecer eventos operando dentro de outros universos, mas não é uma culpa do evento, mas do universo mental onde o pensador está operando. Nós estamos aprisionados a estruturas e é necessário reconhecermos esses aspectos. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
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Voltando à televisão, que é um meio poderosíssimo de meditação, vamos analisar a questão de como ligamos uma imagem à outra. Como isso ocorre? Nós temos uma sucessão de estados mentais que surgem. Uma imagem nos coloca em um estado. Quando estamos naquele estado, a outra imagem ganha significado. Assim vai indo. Nós nem nos damos conta disso.
Uma mocinha bonita, frágil e indefesa está dirigindo um carro por uma estrada deserta. Um ser terrível está preparando, mais adiante, uma armadilha. “Não, como ela é linda! Não pode verdade, isso não pode acontecer com ela...” A mocinha bonita e frágil segue calmamente no seu carro, cantarolando. O ser terrível já está com tudo preparado – é impossível que alguém possa escapar. “Não tem ninguém para salvá-la? Não é possível... Não pode ser verdade!” Charlies Bronson caminhando tranqüilamente. “Ele é o salvador! Cara, acorda! Você tem que salvar a mocinha!!! Não vai dar tempo!” Enfim, o ser terrível derruba o carro da mocinha e a ataca. “Não, isso não poderia ter acontecido! Pobrezinha... Charlies, onde está você que não aparece!!!” O telefone toca. Charlies Bronson o atende e é informado do caso. Imediatamente se dirige ao local. Corre, não vai dar tempo! Corre!!! A mocinha está resistindo “socorro, socorro!’’ No momento exato, chega Charlies Bronson... “Mata! Mata logo, vai!...Ufa! Matou.... Finalmente!” As cenas acima não têm nada haver umas com as outras, mas nós é que, automaticamente, as ligamos, as conectamos. Nós ligamos tudo isso. Nem precisamos de legendas ou som. Se olharmos um pouco acima da televisão, veremos o Buda acenando para nós e gritando: ‘’Acorda! Atenção, tudo não passa de uma delusão!” |
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Quando as mãos se batem, qual é o som que vem só de uma mão? |
A ciência aborda esse ponto, mas o simplifica. Albert Einstein acha que é possível gerar um som só de um lado sem nenhuma influência da mão. Ele persegue o fato de que podemos bater aqui, isolar o efeito disso e manifestar só um lado. Ele diz que podemos isolar uma partícula, podemos ver a partícula em si mesma, sem nenhuma perturbação. Essa é uma diferença entre ele e Newsborn. Este afirma que temos o evento. Esse evento nós medimos, podemos dizer que aquilo é o instrumento ou objeto se manifestando, é a nossa escolha. O objeto, por sua vez, só se manifesta inseparável do instrumental e das concepções e das perguntas.
Na física quântica nós formalizamos isso. Nós vamos colocar essa questão como formalismo matemático, onde as perguntas estão presentes. É uma estrutura lógica que é utilizada, é diferente. Essa inseparatividade também está presente nessa estrutura matemática.
Da mesma forma que eu só penso o que pode ser pensado dentro dos meus espaços, a filosofia só pensa o que pode ser pensado. Logo, a filosofia não tem importância, ela não tem mérito. Eu coloco tudo o que pode ser pensado em um grande plano e passo um círculo em volta. O que está do lado de dentro do círculo não me interessa. Aquilo pode ser pensado. É o que está fora que realmente interessa. Quem entendeu o Tractatus, sabe que ele mesmo é uma escada. Uma vez que subimos por isso, o que vamos fazer com a escada? A jogamos para trás, não precisamos mais dela, já estamos em cima. Wittgenstein |
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Se entendermos Spasha através da luminosidade, podemos nos liberar. Caso contrário, dirá: ‘’Existe uma coisa muito simples, eu tenho um instrumento que eu boto lá vejo aquilo.” Neste caso, vamos explicar pelo instrumento, a percepção se explica pelo instrumental, ou seja, a visão se explica pelo olho... Diremos: ‘’Não é assim? Então feche os olhos e tente ver alguma coisa... Abra os olhos, você vê? É simples, tem alguma coisa óbvia aí, é o olho que está vendo!” Automaticamente, nos defendemos com o elo anterior.
Quinto Elo - Shadaiatana
Quando nós olhamos, o que vê não é propriamente o olho. Existe uma mente incessantemente presente que vê escuridão ou vê luz. Existe uma mente lúcida atuando e falando sobre o que ela está operando ou melhor, manifestando. O Buda fala da natureza da permanência e nós estamos ligados à natureza da impermanência. Quando vemos os objetos, temos seqüências mentais, parece que tudo anda e a Roda gira. Nós temos responsividades, ver para nós está ligado à experiência de responsividade. Quando não vemos, significa que não está havendo a responsividade, olhamos aquela escuridão e nada nos apela, nada brilha, nada anda. Tudo está ali, a nossa mente está acordada, está vendo. O Buda cita os exemplos do corpo dormindo e a mente alerta, ela vê. Nós estamos ligados ao detetor, ao instrumento.
Buda: ‘’Ananda, quando você olha os jardins através da janela, você vê as árvores, a grama, o riacho, a montanha? Ananda: Sim mestre, claro. Buda: Agora vamos supor que em uma madrugada, antes do sol nascer, em uma noite sem lua, névoa densa. Quando você olha pela janela, o que você vê? Ananda: Nada Abençoado, não vejo nada. Buda: Como você pode dizer alguma coisa tão sem sentido, Ananda? Ananda: Abençoado, é muito simples, tendo luz eu vejo, na escuridão, eu não vejo. Buda: Isso é absurdo, Ananda, não tem sentido! Ananda: Abençoado, é muito simples. Todos os seres que têm dois olhos na face, quando tem luz eles vêem, sem luz, não vêem. Buda: Como você pode dizer algo assim sem sentido, tão absurdo, Ananda? (…) |
A visão não é neutra, mas filtrada por áreas de interesse que representam as estruturas e expectativas anteriores. Existe toda uma ação inconsciente, operando dentro do tato, do olfato, da audição, da visão. Um por um dos sentidos físicos opera com uma região inconsciente, portanto só vê um certo tipo de mundo. Para nós, o mais importante disso é perceber que a experiência que houver é sustentada, enquanto uma experiência, pela sílaba “A”. Quando tocarmos, ouvirmos, vemos alguma coisa, a sílaba “A” está manifestando a experiência que estamos sentindo e isso é um objeto de meditação e contemplação. O próprio contato não é neutro. Tem um aspecto muito profundo operando atrás disso. Quando não reconhecemos isso, alegamos que o contato pode ser explicado pelas mãos, que a visão pode ser explicada pelos olhos, etc. Nos livros de física podemos ver a seguinte explicação da visão: A imagem entra pelo olho, toca na retina e é invertida. Então, ela entra nos respectivos canais, chega no cérebro e, assim, vemos. Esse processo de reconhecimento é mal-entendido. Pensamos que existe uma materialidade e a visão é uma coisa simplesmente física, mas não é. Por desconhecer esse fato, justificamos a experiência de contato pelo órgão de contato. Parece que a visão vem do olho. Parece que o cubo vem da objetividade do olho. Sem que haja qualquer troca da imagem que entra no olho, podemos ver dois cubos diferentes desenhados ao lado. Portanto, podemos reconhecer que não é o instrumento que produz a imagem. Nenhum dos dois cubos é cubo. Em ambos os casos, só temos uma folha de papel riscada. Não tem três dimensões. A terceira dimensão surge como surge o Buda. Posso trocar uma pela outra sem alterar a imagem. Mas a nossa experiência da imagem muda. Assim, percebemos que existe um elemento a mais operando ocultamente, que produz a experiência da imagem e não pode ser explicado pelo órgão do olho, nem pela luz que entra. Quando troco um elemento de estrutura interna, troco a experiência. Logo, fica visível a estrutura interna operando. Entendendo que a experiência não está no órgão dos sentidos, podemos perceber que a experiência do órgão dos sentidos está, por sua vez, na dependência de algo luminoso, construído. Imaginem uma pessoa que ficou cega repentinamente. Essa pessoa continuará tendo sonhos. O nosso centro de visão independe dos olhos. Mesmo de olhos fechados, podemos ver o rosto que desejarmos, podemos evocar imagens do passado, do futuro. O centro de visão é etéril, sutil. As imagens são sustentadas pela sílaba “A”. Elas podem ser apoiadas pela experiência sensorial, mas a experiência sensorial não é a base. Caso contrário nunca nos enganaríamos. Nunca veríamos uma cobra onde só há uma corda. A luz que entra é a mesma luz. Como podemos nos enganar? Só nos enganamos porque não vem da luz. Isso tem uma importância muito grande para fenômenos ligados a experiências de loucura. Nas crises psicóticas as pessoas têm a experiência de visão e audição. No entanto, esses experiência não são partilhadas pelos outros. O centro de visão excitado por medo, por outras conexões passa a atuar independente da necessidade de ter um estímulo físico. Para nós é importante perceber que a experiência dos sentidos não pode ser explicada pelo órgão. No Sutra do Coração nós estudamos isso através dos 18 pontos. Nós contemplamos, meditamos cuidadosamente sobre cada um dos sentidos físicos, cada um dos órgãos associados aos sentidos físicos, cada um dos objetos dos sentidos e cada uma das mentes associadas a cada sentido físico específico. São 18 pontos que vamos examinar. Esse ensinamento da Roda da Vida que estou dando agora é uma mistura do ensinamento da Roda da Vida com o ensinamento do Sutra do Coração. Essas regiões temos que dar tempo para penetrar. Precisamos olhar dentro de nós e examinar com muito cuidado, encontrar os vários exemplos na nossa vida, até o ponto que a nossa experiência deixa de ser automática numa certa direção e conseguimos, então, reconhecer essas liberdades em meio a própria liberdade. Nesse momento, estamos com várias áreas inconscientes operando automaticamente. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
O Buda dá também o exemplo do sino. Quando o sino toca nós ouvimos. Quando o sino pára de tocar, nós ouvimos também? Sim, o silêncio! Através do som, ele introduz a natureza da mente. É um processo interessantíssimo para introduzir a meditação. Estamos lúcidos ao tocar do sino e o continuamos após este parar de soar. A nossa mente é drenada pelos sons, pelas aparências, pelas discriminações. Ela começa a girar e nós aprendemos a reconhecer a mente lúcida, com ou sem o objeto. Aprendemos, também, a reconhecer a permanência que está além até mesmo da temporalidade, porque os objetos vão produzir mais adiante a noção de espaço e de tempo. A nossa mente está antes disso, antes da delusão, propriamente. Nós jogamos lucidez para o processo que vem antes da delusão.
Nesse momento, estamos presos com a idéia de que nós vemos com os olhos. Não vemos que o objeto surge inseparável dessa ação mental, que é a delusão. Se percebemos o papel do instrumento, que ele é criado segundo às expectativas anteriores, seu aspecto luminoso do instrumento, podemos reconhecer a liberdade. No caso da física, as luzes que vemos são uma estreita faixa de freqüência, os sons que ouvimos, também, são uma estreita faixa de freqüência.
Shadaiatana surge por Nama Rupa, que é a busca. Nós temos uma concepção.
Quarto Elo – Nama Rupa
No caso da ciência, temos uma concepção de partícula. Nós vamos querer o detetor daquilo, mas a noção de partículas está dentro de uma teoria. Isto está dentro de um processo que concebemos. Descobrimos, então, um jeito de legitimar, de encontrar aquela partícula. Consideramos a partícula é existente por si mesma, que ela está ali e pensamos que se nós vermos tal coisa, teremos a prova dela, da partícula. Assim geramos esse processo e encontramos a partícula. Essa partícula prova, então o arcabouço todo que estamos raciocinando. Isso nos perturba um pouco. Nós mesmos legitimamos a prova cientifica.
Namarupa é como se fosse um centro gerador, uma volição geradora. Namarupa é como se fosse os espaços de possibilidades. Temos os espaços e, dentro deles, tem o que podemos encontrar e o que não podemos encontrar. Eu estou limitado a encontrar aquilo que eu me permito encontrar. O importante neste momento é perceber que Nama Rupa é luminosidade, que começamos a construir os universos a partir disso. Vejam no exemplo abaixo como funciona Nama Rupa.
Estamos agora na Fundação Peirópolis. Poderíamos escolher um Nama Rupa. Aqui não poderia ser uma boa escola para crianças? Gili, que é professora, já suspira com um ar sonhador. Isto significa fala, emocional. Neste momento, começamos a pensar, onde seriam as salas de aulas, onde seria a diretoria, a biblioteca, etc.
Vamos mudar de idéia e fazer, por exemplo, uma clínica. Metade da sala suspira (médicos, terapeutas) “Oh, uma clínica, que boa idéia!”. Nós trocamos o Nama Rupa, podemos ver que isso é luminosidade. Então, criamos tudo de outro jeito. “Claro que é uma clínica, já tem até....” Então começamos a assimilar tudo o que vemos com uma clínica.
Nós puxamos uma grade e tudo aparece, puxamos uma outra e tudo, novamente, aparece. Essas grades são luminosidade. Elas vão gerar o instrumental, Shadaiatana, que vai encontrar, enfim, as coisas.
Nama Rupa pode ser reconhecido assim, como luminosidade. Se não reconhecemos essa luminosidade, neste caso mais uma vez voltamos ao elo anterior. Como surge, de forma causal, Nama Rupa? ‘’É que me brota uma imaginação nítida, tudo aquilo é como se fosse um destino, uma indicação, uma telepatia. Eu sou assim!” Quando a pessoa diz ‘’Eu sou assim’’ ela está descrevendo Vijnana. Ela tem uma emoção, uma energia. Um brilho brota nela.
Terceiro Elo – Vijnana
Quando a pessoa vai se descrever, ela diz: “Falou em escola, falou comigo.” A pessoa se define desta forma. Isso é descrição de Vijnana, surge a identidade. É natural que ela tenha aquela identidade, ela olha para todos os lugares e vê escolas. É natural que ela ande “procurando e encontrando” alunos.
Vijnana é um brilho, não é? Vijnana é o aspecto de delusão, só que aí está em um nível que não é a própria mente discriminativa. Vijnana está operando em um nível de energia interna. A pessoa localiza sua energia faz ela operar, a pessoa vê aquilo e legitima o surgimento daquela energia, que aciona e dá brilho e faz tudo acontecer. Todas as delusões vão todas brotar desse mesmo brilho.
Se sabemos que se o brilho existe, tudo funciona e, se ele não existe nada funciona, veremos que aquilo é brilho mesmo. Não tem mais como decompor isso, já aparece como brilho mesmo. Sendo que o brilho está aparecendo sob condições. De forma causal, vamos ainda dizer: “Não isso não é brilho livre. Ele não é assim. Eu tenho essas marcas desde infância, eu tenho essa tendência. Isso sempre esteve comigo, eu sempre fui assim. Eu sou essas marcas.” Localizamos essas marcas em Samskara. As marcas são Samskaras.
Vijnanaé o surgimento da identidade no nível mais sutil. Não é a mesma categoria de Bava. Ao contrário de Bava, nível de identidade em Vijnana é muito sutil. O eu aqui não é o corpo físico, mas significados, impulsos, marcas cármicas. Porque aparece muitas vezes o mesmo impulso, dizemos que nós somos esse impulso. Os impulsos são sustentados pela mesma energia de sustentação do cubo, da esfera, a sílaba “A”. Essa energia é apenas um brilho da mente. Nesse ponto, ainda nem existe a materialidade. Se conseguimos ver isso, entender isso, veremos que há apenas essa energia sutil e que podemos, simplesmente, manifestar liberdade com relação a ela, manifestá-la em uma outra direção. Percebemos que a prisão não existe. Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Segundo Elo – Samskara
Nesse momento dizemos: “Samskaras são marcas preexistentes, cósmicas, Deus me fez assim. Isso é o que de mais íntimo existe em mim.” A pessoa está encontrando o eu nisto. Se a pessoa localizar que o Samskara pode ir ou pode não ir, que Samskara manifesta uma luminosidade, que vai se manifestar como Vijnana, como fonte da identidade dela, oferecer os propósitos de motivações, que vai resultar nos prédios, nas estruturas, que vai fazer os contatos, agradáveis ou desagradáveis, que a pessoa vai planejar mais adiante, etc., até que tudo desaba.
Se a pessoa perceber isso, ela está reconhecendo a luminosidade. Se ela não reconhece a luminosidade, então, ela vai para Avidia. De um jeito ou de outro ela vai ter de reconhecer Avidia.
Assim, ela segue e faz o último elo de volta. Para chegar em Avidia, no último elo, ela vai Ter de descobrir direto que Samskara é Avidia, é delusão, é construção. Existe um processo de luminosidade que criou aquela marca. Aquela marca não está estampada a fogo, ela é livre, podemos criar outras marcas.
Em Samskara a pessoa já não existe mais. Estamos tratando de marcas internas. O conjunto de marcar mais os seus impulsos caracteriza uma pessoa. Um conjunto de marcas mais outros impulsos, caracteriza outra pessoa. Essas marcas são a base, os tijolos de qualquer construção o cármica. Assim, localizamos, encontramos esses Samskaras e vemos que eles são marcar presentes nas estruturas matemáticas da consciência, nos espaços. Tem os elementos de possibilidades dentro desses espaços. Esses elementos são essas marcas. Se não tivermos o Buda estampado como uma marca dentro de nós, não teremos como reconhece-lo. Essas marcas estão presentes por todos lados, o tempo todo. A pintura surrealista é um bom exemplo disso. O pintor Dali, por exemplo, criando aqueles relógios tortos. Aquilo incomoda, por que ele não faz um relógio direito, precisa ser torto? Que artista é esse? Na verdade, não tem nenhum relógio ali. Ele pôs tinta em cima de papel. Tudo está corretíssimo. Quando nós olhamos, nos incomodamos. Como pode tinta sobre pano nos incomodar? Nós temos marcas mentais nas quais os relógios têm uma certa aparência. Aquilo parece um relógio, mas não encaixa nas minhas expectativas de um relógio. Na verdade, ele produz a experiência das expectativas, ele permite ver as expectativas. Quando encontramos aquela imagem, as marcas são acionadas de um certo jeito e nós não temos como manter aquelas marcas e, ao mesmo tempo, ter o reconhecimento do relógio. Nós não temos a experiência de poder compatibilizar marcas diferentes. Por isso a arte é interessante para permitir como essas marcas são montadas e como estamos operando diretamente com elas. Como o mundo depende do observador, ele não é o que ele olha. Se nós apenas olhássemos o mundo, nunca iríamos nos incomodar com gravuras, diríamos: “Que bárbaro!” Tudo seria perfeito. Podemos, porém, escolher as marcas. Quando escolhemos certas marcas, isto significa que podemos produzi-las também. Percebemos, então, que podemos criar marcas. Podemos sustentar umas e não sustentar outras. Qual é o poder de sustentação da marca? A luminosidade da mente, a sílaba “A”. Nós não conseguimos vê-la operando, mas já conseguimos começar a adivinhar. É aquela que sustenta um cubo e, depois, sustenta o outro cubo. Ela está por trás de todas as experiências. Precisamos aprender a reconhece-la, ela está sempre operando. Entendendo isso, compreendemos que as marcas mentais têm a consistência de Avidia, a luminosidade da mente produzindo particularidades. Por que a luminosidade produz marcas? É a liberdade! Lama Padma Samten, Retiro em Guarulhos, 09-10/12/00 |
Primeiro Elo – Avidia
Chegando neste elo, vemos que Avidia é o processo que cria tudo. Ele é luminosidade, é energia, ele é liberdade.
Fizemos várias tentativas. Saímos do décimo segundo elo para Avidia ou para o décimo primeiro. Do décimo primeiro para Avidia ou para o décimo e assim por diante. Enfim, sempre Avidia. Se a pessoa teve de fazer aquilo etapa por etapa, em doze etapas ela chegou a Avidia. Se ela reconheceu Avidia em uma das etapas, ela se liberou ali.
Reconhecendo Avidia, ela recupera a liberdade de criar, de construir todos os doze elos, de lucidez nesse processo.
Nesse processo nós vamos até a dissolução da nossa identidade. Quando isso acontece, nós podemos ressurgir como um bodisattva.
Assim ele usa o poder de Avidia, cria uma aparência, cria uma motivação, uma conexão. Ele sela, escurece o resto, faz surgir as marcar necessárias. Ele faz surgir a identidade, as respostas automáticas. Ele faz surgir os propósitos, Nama Rupa. Ele faz surgir a manifestação mesmo.
Dentro disso tudo ele mantém a lucidez de tudo ‘’Em cada uma dessas etapas é assim, mas eu tenho o incessante reconhecimento de que aquela etapa é luminosidade’’. Ela está incessantemente conectada com o ponto zero dos doze elos. Este é o deleite dos bodisattvas, ele sorri para aquilo tudo, incessantemente. Quando ele se aproxima do final de sua vida ele diz que o justo pagamento de toda a sua vida, o que é? A dissolução disso tudo, a morte. Que outra coisa ele espera ganhar? Para eles, morte ou não morte também não tem diferença.
Imaginem a bondade dos bodisattvas. Eles vão e voltam. Este mundo é muito restrito. Isto aqui é um micro, micro, microcosmo, é muito estreito. Aqueles seres optam por manter suas mentes operando dentro dessa coisa estreita, estreita por um longo tempo. São uns poucos seres que têm um sonho específico e aparece um bodisattva ali dentro para cuidar daqueles seres. Eles abandonam aquela mente cósmica, livre e manifestam alguma coisa específica assim.
Vamos agora reintroduzir a questão da ética. Se os doze elos são como que doze grupos de ações humanas, não há nada que não esteja descrito dentro dessas categorias. Nossa ação toda é descrita por esses doze estados, por essas doze condições. Se olhamos tudo isso como manifestação de luminosidade e liberdade, onde vamos introduzir a ética? Onde, e como, vamos introduzir um bem e um mau nisso? Se não temos um referencial verbal, como vamos nos comportar no mundo? Será que algum referencial é possível? Esse é um ponto muito importante e o budismo tem uma contribuição muito original nisso.
Nós estamos vivendo os tempos da destruição da moral, porque não encontramos um referencial que seja efetivamente seguro. Nós buscamos um referencial absoluto. Nós não o vamos encontrar, porque esse referencial absoluto não existe. Ele é a perfeição de todas as coisas, é a natureza última e ela não pode ser atingida pelas circunstâncias.
[ES1] Primeiro estudo sobre a roda da vida. Composto de dois textos, respectivamente, contrução e dissolução dos 12 elos. Este segundo texto trata da dissolução dos elos a nível causal e de luminosidade.
Esta leitura pode ser complementada pelo texto “os 12 ayatanas”.