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Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Tabela de conteúdos
- Os 12 Elos da Originação Interdependente
- Introdução
- Os Seis Reinos da Existência Cíclica (sâncr. Samsara)
- Reino dos Semi-Deuses (sânscr. Asuras)
- Reino Humano (sânscr. Manushya)
- Reino dos Fantasmas Famintos (sânscr. Preta)
- Reino dos Infernos (sânscr. Naraka)
- Os Quatro Níveis de Ensinamentos
- Primeiro Elo - Avidia (tib. Ma-Rigpa)
- Segundo Elo – Samskara
- Terceiro Elo – Vijnana
- Resumo dos três primeiros elos
- Quarto Elo – Nama-Rupa
- Quinto Elo - Shadayatana
- Sexto Elo – Spasha
- Sétimo Elo – Vedana
- Oitavo Elo - Trishna
- Nono Elo – Upadana
- Décimo Elo - Bava
- Décimo Primeiro Elo – Jeti
- Décimo Segundo Elo – Jana-Marana
- O Bardo da Morte
Os 12 Elos da Originação Interdependente
Lama Padma Samten - Retiro na Fundação Peirópolis – 28/08/2000
(Transcrito por Eliane Steingruber)
Introdução
Após o Buda ter atingido a liberação completa, ele passou a manhã seguinte inteira analisando como os seres que manifestam a natureza de buda ficaram presos em um processo como esse, em uma Roda da Vida. Ele examinou como o processo se dá e como é possível a liberação. Ele procurou saber como foi que essa coisa toda aconteceu e como surge a experiência da Roda da Vida.
Se diz que ele percebeu que essa experiência é montada através de 12 etapas, que são etapas sucessivas, causais e, portanto, uma serve de substrato para a próxima. Ele examinou como todas essas etapas são montadas e como podem ser desmontadas, como suas experiências podem ser revertidas. Se diz que ele ia do primeiro ao décimo segundo elo e do décimo segundo ao primeiro. Ele percebeu, então, que nós montamos andando em uma direção e desmontamos andando na direção oposta. Assim é o ensinamento da Roda da Vida.
Como todos os ensinamentos budistas, o ensinamento da Roda da Vida tem vários níveis de compreensão. Nós podemos compreender em um nível muito simples, aonde nós somos indivíduos separados. Nós estamos dentro de uma experiência quase que externa, completamente dominados por alguma coisa e estamos dentro de um processo causal que, inevitavelmente, vai nos levando em uma certa direção.
Todos os seres nascem, vivem em um tempo, durante o qual suas capacidades se expandem, se estabilizam e diminuem. Durante a vida, temos a sensação de sermos um pouco como equilibristas em um circo, muitos pratos girando. De vez em quando cai um, mas conseguimos desenvolver bem essa habilidade. Quando o prato de uma ponta está quase caindo, corremos, o endireitamos e voltamos para os outros pratos e assim vamos. Com o tempo, percebemos que podemos equilibrar mais e mais pratos. Mais tarde, começamos a reduzir o número, até que só conseguimos girar um só prato, que representa o nosso corpo. Finalmente, nem esse conseguimos mais girar. Morremos, estamos liberados dos pratos. Depois tudo começa novamente. Isso é a Roda da Vida.
Quando estamos imersos nesse processo, não conseguimos determinar como tudo começou. Também não entendemos em que direção isso vai. Não queremos que tudo se repita, mas tudo segue girando, independente da nossa vontade.
No sentido budista isso é chamado de experiência da Roda da Vida. Existe uma grande diferença em dizermos que estamos presos na Roda da Vida ou que estamos na experiência da Roda da Vida. Porque? A realidade verdadeira é a natureza ilimitada. No entanto, podemos dentro dessa natureza ilimitada, ter a experiência da Roda da Vida, que é uma experiência limitada. Mesmo essas categorias de limitado e ilimitado não são suficientes abrangentes. Mais adiante poderemos perceber que a categoria limitada também é ilimitada. (Palestra em Guarulhos-SP/08.12.00) ]
Os ensinamentos da Roda da Vida podem ser dados dentro da seguinte característica:
1. Por estarmos presos na ignorância, brota dentro de nós as marcas mentais;
2. Com o surgimento das marcas mentais, surge naturalmente a nossa identidade;
3. Quando surge a nossa identidade, nós tentamos perpetuar alguma coisa;
4. Por querer perpetuar algo, manifestamos o nosso corpo;
5. Surgindo o nosso corpo, fazemos o contato;
6. A partir do contato, temos sensações;
7. Quando surgem as sensações, tentamos sustentar as agradáveis e nos afastar das desagradáveis;
8. Obtemos sucesso e esse sucesso estabelece a nossa visão de mundo, a nossa visão de identidade;
9. A partir daí, as nossas prioridades estão estabelecidas;
10. A partir das prioridades, surgem as urgências;
11. As defesas, os três animais, operam mas, como a impermanência não pode ser evitada, em um certo momento, tudo desaba;
12. Quando tudo desaba, nós mantemos as sementes cármicas, ou seja, não importa qual foi o tamanho do estrago, a semente cármica está preservada.
Então nós reinstalamos tudo, reorganizamos e remontamos a partir da experiência anterior e a partir do impulso da semente cármica.
Assim, tudo vai girando. Nós saltamos para uma outra posição dentro da roda e vamos seguindo.
Quando chega a desgraça final, nós saltamos para um outro ponto e assim nós vamos girando a roda. Esta é a explicação causal, que é uma das formas de usufruirmos do ensinamento sobre os 12 elos. O Buda deu várias vezes o ensinamento dessa maneira.
Ainda que ele dê esse ensinamento desse modo, ele ensinou como nós também podemos, a esse nível separativo, reverter esse processo. Se referindo à pessoas separadas, com experiência de separatividade, ele dizia:
· Temos a experiência de dor, de desgraça, de desespero, de dissolução porque você estávamos envolvidos em um processo de aspiração, de equilíbrio e de busca. Nascemos em algum momento e nos movemos dentro de um mundo que reconhecemos, o que é a décima primeira etapa e a décima também;
· Esse processo ocorre porque tivemos experiências de sucesso;
· As experiências de sucesso estão na dependência de uma visão de aspiração;
· A aspiração esta na dependência das emoções que tivemos em experiências singulares;
· Essas experiências singulares estão na dependência de contato;
· Contato está na dependência do surgimento do nosso corpo;
· O surgimento do nosso corpo está na dependência de uma aspiração;
· A aspiração está na dependência de uma estrutura mental;
· Essa estrutura mental está na dependência de marcas mentais;
· As marcas mentais sugiram pela ignorância;
· A partir do princípio da ignorância tudo se monta;
· Se nós compreendermos aquilo que está antes da ignorância e, assim, nos liberarmos da ignorância, nos liberamos de nossa aflição nesse momento.
O Buda deu, muitas vezes, o ensinamento desta maneira, Ele deu o ensinamento para pessoas que têm como aspiração, receber o ensinamento e utilizá-lo para livrar-se de sua própria dor. Esse tipo de ensinamento corresponde à categoria de ensinamentos Hinayana, onde nós estamos concentrados em nós mesmos, separados do mundo, separados dos outros seres. Nosso grau de interesse alcança apenas a nossa própria identidade. Desta forma, estamos focando os ensinamentos na perspectiva Hinayana.
Olhando os ensinamentos dos Doze Elos na perspectiva Mahayana, compreendemos como todos os seres estão presos nesse processo e tentamos descobrir como se livrar disso. Ainda assim, nós acreditamos, nesta perspectiva Mahayana inicial, que os seres estão separados uns dos outros. Apenas a nossa motivação é tal que a nossa mente os alcança. Não é apenas uma questão de estarmos presos a um processo de sofrimento. Os outros seres também o estão e a nossa mente os alcança. Dizemos_: “Eu não quero que a minha filha passe por isso, não quero que a minha esposa, o meu marido passe por isso, os pais, mães, etc., as pessoas queridas_”. Nós não queremos que ninguém passe por isso. Desta forma, precisamos tornar isto muito claro na nossa mente, temos que encontrar a saída, para poder ajudar os seres. Essa é a perspectiva dos bodisatvas. Mesmo que os bodisattvas não tenham uma compreensão completa, eles têm essa aspiração.
Os Seis Reinos da Existência Cíclica (sâncr. Samsara)Reino dos Deuses (sânscr. Deva)Assim, como começamos a tentar sustentar coisas e a defendê-las, terminamos por encontrar formas de fazer isso. Se somos muito hábeis, encontramos a forma dos reinos dos deuses. Neste caso, conseguimos defender a nossa identidade com muita habilidade. Nós não temos um choque direto, temos uma forma de trazer benefícios aos outros ao redor, mas estamos fixados em uma identidade e temos as sensações de lucro e de perda. A diferença é que conseguimos manobrar tudo e, geralmente, tudo anda bem e todos estão felizes, temos muito mais lucros do que perdas. Um bom exemplo disso, é um vendedor de sucesso. Quando ele vende, ele não só vende seu produto bem, como seu cliente fica satisfeito. Por isso ele segue vendendo. Tudo vai indo bem, por que parar? A nossa maior penalidade é ter sucesso. Quando somos derrotados, nós paramos, pensamos e pulamos para outra coisa. Quando temos sucesso nos fixamos, ficamos presos. Um bom vendedor com muito sucesso nunca vai se mover dali. Ele está preso no décimo elo e o décimo primeiro está funcionando bem. Ele nunca se depara com o décimo segundo porque ele tem habilidade. Porque ele faz isso, porque ele tem essa habilidade, ele desenvolve uma manifestação de auto-suficiência, de orgulho. Nós estamos encontrar um processo de felicidade e de afastamento do sofrimento. Nos temos uma consciência dual e, no meio disso, encontramos chaves duais, comportamentos duais. Esses comportamentos duais são a decorrência natural daquele esforço de encontrar soluções. Por nos encontrarmos presos na dualidade, só podemos ter soluções duais. Assim, nós geramos as 6 emoções perturbadoras, que são o orgulho, a inveja, o desejo e apego, a obtusidade mental, a carência e a raiva. Reino dos Semi-Deuses (sânscr. Asuras)Continuando no exemplo do vendedor, ele está trabalhando no meio daquela experiência, acha que tudo está andando muito bem. De repente, ele se dá conta de que alguém está melhor do que ele. Surge, então um sentimento que ele não estava acostumado a ter e com o qual ele não sabe lidar. Ele sempre achou que estava por cima, nem acredita. Ele pensa: „Como pude me enganar durante tanto tempo? Achei que estava bem e não estava. Tem outros que estão bem melhores do que eu. Como pude ser tão tolo!“ Quando isso acontece, automaticamente, ele passa a encontra-se no reino da inveja. Ele não se dá conta de que acaba de sair do reino dos deuses, onde tudo era feliz, onde tudo estava bem. Ele tem a sensação de que avançou, que está mais esperto. Nesse momento, ele a responsividade do reino dos Asuras, dos Semi-Deuses começa a agir sobre ele. Ele começa a competir e se acha mais esperto do que antes. Reino Humano (sânscr. Manushya)Então ele segue competindo e não obtém resultado, porque sempre existe alguém acima dele. Ele acha seu problema está nos outros que estão acima ou na sua incapacidade de derrubá-los e reassumir seu lugar, como o melhor vendedor. No entanto, o problema está em sua atitude. Por estar preso carmicamente à responsividade, ele não percebe o que está se passando, realmente. Ele tem uma visão, tem a ocultação, a ocultação da ocultação e o processo de resposta automática que o mantém girando. Após continuar girando, um dia cai a ficha e ele diz: „Claro, como eu não havia percebido. Assim nunca vou obter sucesso. Para isso, eu preciso primeiro de...“ Assim surge uma lista de coisas que ele necessita, uma lista cósmica. „Eu seria feliz e poderoso se...“ Nós temos uma lista de desejos e apegos, coisas essenciais para nós. Neste ponto, ele já é humano, já penetrou nesse reino. Estava no reino dos deuses, desceu para os Semi-Deuses e, agora, está no reino dos humanos. Neste reino a experiência não é mais de „Eu quero, eu posso, eu vou...“ mas „Para conseguir eu preciso de...“ Os Asuras têm a experiência de poder. Eles sabem que não têm capacidade total, mas sabem que têm muitas capacidades. Eles não acham que precisam de alguma coisa externa para conseguir algo. Eles dizem: „Eu vou lá e vou derrotar aquele sujeito!“ Parece que eles podem, eles pensam que podem, mesmo não conseguindo, no final. No reino humano, já transferimos a nossa fraqueza para coisas externas, para objetos. Achamos que, se tivermos tais coisas, seremos capazes de fazer isso ou aquilo. Novamente, isso é vivenciado como uma experiência de esperteza. O vendedor justifica: „Claro, eu não tinha aquilo, por isso eu não podia ter ganho.“ Por que o ser quer ser feliz e quer afastar-se do sofrimento, ele olha para todo o processo, a experiência e acha que não vai conseguir. Esse aspecto de obtusidade mental, Moha, inclui a televisão, álcool, drogas, depressão, ou seja, todos os aspectos ligados a um recolhimento obtuso. Tudo isso é Tamas. Ele se acha muito esperto nesse momento. Ele olha para os outros e acha que eles, também, não vão conseguir nada, que qualquer esforço não vale a pena. Ele não só se considera insuficiente, mas acha que todos os outros o são. A diferença é que ele já percebeu e os outros ainda não, por isso ele se considera muito esperto. Moha é, muitas vezes, traduzido por ignorância. Ignorância, também, é a tradução de Avidia mas são categorias diferentes de ignorância. Dentro de Avidia existe uma inteligência, um brilho. Um cientista muito inteligente está operando sob Avidia. Moha, contudo, é seu pior aluno. Ele olha os livros e nem sabe por onde começar, melhor nem começar. Ele tem um desinteresse. Na Helvética, seria a categoria de Tamas. Avidia, no entanto, inclui Satva que, por sua vez, não é Vijnana, nem Prajna. Avidia inclui todos os três Gunas. Moha, por sua vez, inclui especificamente Tamas. Daí vem, também, a noção de alimentos tamásicos, que nos deprime, que nos obscurece a mente. A carne, gordura, por exemplo, são alimentos tamásicos, porque eles nos produz obtusidade, lerdeza. Os alimentos Raságicos e sátvicos também têm Avidia dentro. Sendo que o alimento sátvico tem o poder de preservar a vida humana preciosa, ele tem uma categoria de sabedoria dentro, mesmo sendo esta dual. Ele está na dimensão de preservar as condições de praticar. Observando as classes de ensinamentos, percebemos que um indivíduo que pratica Satva tem uma compreensão mais elevada. Ainda assim, temos um indivíduo praticando Satva. Ainda existe alguém que acha que algo é melhor ou pior. Ele não está operando com Prajna. Um bom praticante pratica Satva, mas isso não quer dizer que ele tenha a compreensão de Prajna. Reino dos Fantasmas Famintos (sânscr. Preta)Quando estamos dominados pelos componentes de Moha, é como se abdicássemos do interesse e da ação do mundo. Quando tal coisa acontece é uma situação muito grave. Nós somos sustentados pelo mundo sem dar nenhum retorno. Todos nós consumimos água, ar e comida para viver. Se perdemos o interesse com tudo que está ao redor, nossos méritos vão cessando. As mães se cansam, os amigos começam a empurrar. Nossos méritos na relação com o universo cessa. Voltando ao exemplo do vendedor, de repente ele se vê carente. Falta comida, falta roupa limpa, falta abrigo, faltam amigos, reconhecimento, afeto… Falta tudo. Ele se sente rejeitado, não amado, abandonado. Quando isso acontece, ele passa a ser dominado por uma aflição. A aflição é característica do quinto dos reinos, o reino dos fantasmas famintos, a condição natural pela operação geral daquele procedimento. Neste momento, ele percebe que os outros têm e ele não. Ele começa a se dar o direito de chegar e pegar, de roubar. Não compreende o aspecto de mérito, não compreende como as coisas giram. Ele está completamente distante dos reinos dos deuses, onde um dia habitou, onde era capaz de trazer felicidade para outros e para si mesmo. Agora, ele se encontra em uma outra condição. Reino dos Infernos (sânscr. Naraka)Dominado pela aflição, ele começa a ter várias idéias estranhas. Todas elas estão ligadas a acessar aquilo que ele não tem mérito, que nunca poderia ganhar na situação em que está. Porque ele tenta se apoderar daquilo que não merece, ele será perseguida. Assim começa o reino dos infernos. Na medida em que essa relação com o ambiente se torna mais crítica, ele começa a ter a experiência de estar cercada de inimigos, de seres terríveis. Ele se sente legitimamente rodeada de inimigos. Por esse motivo, ele termina por agredir os outros e é, da mesma forma, agredida. No meio disso, existem várias graduações. Existem 10 graus de bodisattvas. Dentro dos primeiros níveis dos bodisattvas ainda existe a noção separativa e é sobre isso que eu estou falando. Nós podemos receber os ensinamentos dentro da perspectiva separativa também, aonde a nossa aspiração é uma aspiração de um bodichitta relativa. Relativa porque nós estamos presos ainda à dualidade; a nossa visão, ela não está ampliada ainda. Mais tarde, vamos ainda olhar esses ensinamentos dentro de uma visão mais ampla, quando percebemos a causalidade operando. Ao mesmo tempo, vamos perceber que a causalidade não é uma prisão verdadeira, que existe uma dimensão de liberdade em cada um desses níveis e nós podemos dissolver a nossa ligação com a roda nível por nível ou de uma forma causal. Vamos, então, entender como esse processo surge, como a delusão se maifesta e como a inseparatividade opera. É sobre este nível que eu vou falar para vocês. Eu vou explicar os 12 elos dentro dessa perspectiva, que é a perspectiva mais elevada. Dentro dessa perspectiva, eu vou iniciar falando do primeiro ao décimo segundo elo, explicando isso de forma causal. Então nós vamos entendendo, também, como o processo não causal pode operar e como podemos nos livrar dele. Nós vamos olhar de várias maneiras e a primeira será de forma causal. É importante que percebamos a delusão operando por todos os lados. Quando nós a percebemos, no primeiro nível de compreensão, sentimos uma espécie de amargor. Dizemos: “Pah! Estou preso nesse processo!” Este, porém, é só o primeiro nível. Nós não vamos nos fixar nisso. Vamos passar quase diretamente para o terceiro nível. É sobre o que eu vou falar neste ensinamento. O nível de apreciação, o nível de quase deleite pela operação mágica da delusão, trazendo esse aspecto todo. É o nível de liberdade. Nós vamos trabalhar nesse aspecto. |
Existem 10 graus de bodisattvas. Dentro dos primeiros níveis dos bodisattvas ainda existe a noção separativa e é sobre isso que eu estou falando. Nós podemos receber os ensinamentos dentro da perspectiva separativa também, aonde a nossa aspiração é uma aspiração de um bodichitta relativa. Relativa porque nós estamos presos ainda à dualidade; a nossa visão, ela não está ampliada ainda.
Mais tarde, vamos ainda olhar esses ensinamentos dentro de uma visão mais ampla, quando percebemos a causalidade operando. Ao mesmo tempo, vamos perceber que a causalidade não é uma prisão verdadeira, que existe uma dimensão de liberdade em cada um desses níveis e nós podemos dissolver a nossa ligação com a roda nível por nível ou de uma forma causal. Vamos, então, entender como esse processo surge, como a delusão se maifesta e como a inseparatividade opera. É sobre este nível que eu vou falar para vocês. Eu vou explicar os 12 elos dentro dessa perspectiva, que é a perspectiva mais elevada.
Dentro dessa perspectiva, eu vou iniciar falando do primeiro ao décimo segundo elo, explicando isso de forma causal. Então nós vamos entendendo, também, como o processo não causal pode operar e como podemos nos livrar dele. Nós vamos olhar de várias maneiras e a primeira será de forma causal.
É importante que percebamos a delusão operando por todos os lados. Quando nós a percebemos, no primeiro nível de compreensão, sentimos uma espécie de amargor. Dizemos_: “Pah! Estou preso nesse processo!”_ Este, porém, é só o primeiro nível. Nós não vamos nos fixar nisso. Vamos passar quase diretamente para o terceiro nível. É sobre o que eu vou falar neste ensinamento. O nível de apreciação, o nível de quase deleite pela operação mágica da delusão, trazendo esse aspecto todo. É o nível de liberdade. Nós vamos trabalhar nesse aspecto.
Os Quatro Níveis de Ensinamentos1. Auto-centramentoQueremos andar melhor no meio desse filme, queremos uma experiência melhor no meio desse filme da Roda da Vida. 2. InseparatividadeDescobrimos que a nossa natureza se torna ampla ao ponto de incluir os outros seres. Já não estamos presos em nós mesmos, podemos olhar os outros seres e nos manifestar pelo interesse para com os outros seres e sentiremos felicidades ou infelicidades, temos os impulsos de ação de uma forma muito mais ampla do que quando estamos apenas olhando para nós. Vemos que na inseparatividade com o outro, podemos manifesta compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paciência, energia constante, concentração da mente e sabedoria. Todas essas qualidade transcendem uma experiência estritamente pessoal. 3. TranscendênciaPercebemos que além da nossa identidade existe uma liberdade. Ela se manifesta como a nossa identidade, mas também, como as qualidades que estão além das identidades. Ainda que nós amemos alguém, esse amor não nos pertence, ainda que pareça ser uma experiência nossa. Da mesma forma que, em uma noite enluarada, nós veremos a lua refletida na água. Isto não significa que ela pertença ao lago, nem a nós. Uma outra pessoa verá a mesma lua refletida em seu lago. Se perguntarmos a ele como ele vê a lua, ele a descreverá um pouco diferente. Se essa pessoa estiver distante, pode até ser que ela nem acredite que haja uma lua esteja em nosso lago. Ela poderá achar que a lua pertence a ela e que ninguém jamais poderá vê-la, a não ser no seu lago. Ainda que essa experiência do amor se manifeste em todos os lagos do planeta, ela não está aprisionada a nenhum deles. Podemos manifestar essas características como possessões pessoais ou como aspectos ilimitados. Percebendo isso, vemos que a característica do primeiro tipo de ensinamento é quando nós procuramos a lua certa para dentro do nosso lago particular. Tendo-a encontrado, procuramos manifestá-la em outros lagos de outros lagos, trazendo benefícios a eles. Nesse momento, a nossa visão se amplia. Nós percebemos agora que, em lugar de estabelecer essa ressonância com uma lua particular dentro de um lago, estendemos os olhos e reconhecemos essa lua que gera todas as outras luas e buscamos nos conectar com essa dimensão, que ultrapassa o limite das particularidade. Como estamos tão presos às noções de particularidades, a nossa própria linguagem não consegue expressar isso direito. Por esse motivo, usamos metáforas, como essa da lua. Que maravilha que a lua que está no seu lago é a mesma que está no meu lago! Podemos ainda usar uma outra linguagem, dizendo: “Eu rezo para Tara” Nós buscamos a ressonância com um ser que ultrapassa as características humanas mas que se manifesta com qualidades que está presente em todos os corações. Neste momento, não nos sentimos mais sós, porque passamos a reconhecer essas qualidades nos outros. Reconhecemos que a nossa natureza divina é igual a natureza divina do outro. Em lugar de dizermos “A lua está só aqui no meu lago”, dizemos: “Que bom que a lua que está no seu lago é a mesma que está no meu lago!” Percebemos que os nossos problemas também são iguais. Existem naturezas que se manifestam em todos os lagos, não precisamos de uma exclusividade. Nos alegramos em reconhecer o nosso coração e o coração da deidade, de Tara, presente em todos. Quando, então, alguém nos olha com uma cara feia, já não acreditamos mais naquela face, sabemos que ali dentro tem o mesmo coração. Assim, nos comunicamos com aquele coração escondido naquela face e aquela natureza responde. Essa é razão pela qual fazemos a prática de Tara, é a canção que cantamos para o coração que, muitas vezes está escondido atrás de uma aparência sofrida. 4. LuminosidadeVeremos muitos sábios de cara fechada. Eles não personificam uma identidade que seja uma personificação de todas essas qualidades. Eles reconhecem incessantemente que todas as manifestações têm a natureza divina. Por onde eles olham, ou ouvem, ou pensam reconhecem a natureza divina completamente presente em tudo o que é sublime, ou limitado, ou infeliz. Observem que o próprio Buda dava ensinamentos nesses quatro níveis. O Buda sentava diante da Shanga e falava. Enquanto ele falava, alguns discípulos pensavam “Esse é o ensinamento verdadeiro do Buda” e guardava as palavras, as memorizava. Muitos discípulos faziam isso. Quando o Buda morreu, seus discípulos escreveram seus ensinamentos e, assim, os textos sugiram. Parece que o ensinamento está apenas nas palavras. No entanto, no momento em que o Buda falava, ele dava mais dois outros ensinamentos silenciosos. O segundo ensinamento é o fato de ele ter interesse por todos. Buda escutava a mente de seus discípulos e sabia qual eram as suas dificuldades e ele falava em ressonância às dificuldades que ele via nas pessoas. Logo ele manifestava diretamente, na frente de todos essa capacidade de alcançar suas mentes, de alargar seu próprio foco e alcançar tantas mentes ele quisesse. Ele dizia: Esses ensinamentos serão úteis mesmo no último Kalpa desse ciclo. Buda Sakyamuni Os olhos do Buda se estendem geração após geração até os momentos finais e ele reconheceu a mente dos seres naquela distância de tempo e deu os ensinamentos pensando nesses seres. Com isso ele estava manifestando compaixão, que é a segunda forma. Ao mesmo tempo, silenciosamente, ele manifestava a terceira forma, ele personifica as qualidades que estão presentes nos corações de todos. Assim, quando nós rezamos para Tara, nós pedimos as qualidades de Tara e pedimos a proteção de Tara. A deidade Tara manifesta esse conjunto de qualidades e perfeições, assim como, o Buda diante da Sanga manifestava isso. Todos olhavam para ele, faziam circumambulação. A mera presença dele transformava a mente de seus discípulos. Ele manifestava ainda a quarta forma. Enquanto ele se dirigia aos seres, ele expressava nos ensinamentos a natureza divina de tudo. Mais ainda, ele mostrava como ele, em corpo limitado, manifestava diretamente a natureza divina, ele une céu e terra em sua própria manifestação. Quando ele sentava, ele expressava a natureza divina na forma humana. Ele revelava diretamente isso acontecendo na cara de todos e ninguém via. As pessoas estão ouvindo palavras, sem se dar conta do milagre incessante de sua manifestação. A prática de Tara pertence ao processo no qual nós invocamos a presença das naturezas protetoras que são concretas, que efetivamente produzem transformações. Lama Padma Samten - Palestra em Guarulhos - 08/12/00 |
Primeiro Elo - Avidia (tib. Ma-Rigpa)
Esse primeiro dos 12 elos, Avidia (Vidya = sabedoria, visão, lucidez; Avidia = perda da visão), é simbolizado por um cego. De um modo geral, todas as Rodas da Vida simbolizam Avidia por um cego, o cego com a sua bengala. Por que cego? Essa é a razão pela qual eu vou usar esse exemplo, o cubo de Wittgenstein.
Para compreendermos melhor esse processo, nós vamos utilizar imediatamente o exemplo ao lado, o cubo. Eu costumo utilizar este exemplo em muitas de minhas palestras, por se tratar de um exemplo muito eficaz.
Vamos examinar o cubo cuidadosamente. É realmente necessário o examinemos com muito, muito cuidado, porque ele é a chave para a compreensão de Avidia. Se pudermos entender isso, ótimo. Não vou dizer que o cubo é o único meio através do qual podemos compreender esse processo. Não, não é assim, a delusão está por todos os lados. Mas nós vamos usar o cubo como uma porta para acessar essa compreensão. É realmente necessário que compreendamos a operação de Avidia.
Rigpaé uma palavra muito importante. É usada no sentido de lucidez em meio às condições, mas uma lucidez não separativa, uma lucidez transcendente. Todos nós estamos caminhando em direção a recuperar Rigpa. Avidia significa Ma-Rigpa (negação, impossibilidade de Rigpa). Tudo o que pudermos meditar sobre isso é de extrema valia. Tentem! Precisamos contemplar longamente, incessantemente essa situação de Rigpa e Ma-Rigpa. Quando conseguimos contemplar e reconhecer Ma-Rigpa, só podemos fazer isso porque estamos praticando Rigpa. Existem inúmeros exemplos e o método de contemplação disso não é através de uma teoria, mas dos exemplos. Lama Padma Samten - Retiro em Guarulhos - 09-10/12/00 |
Nós podemos gerar grades que nos facilitam na experiência de localizar os exemplos. Essa grade vai surgir como o foco da meditação na sétima etapa do Nobre Caminho. Essa grade está perfeitamente descrita no Sutra do Coração e ela tem 46 pontos, cada ponto tem quatro níveis e cada nível tem três condições. O que são os 46 pontos? Nós vamos olhar e ver como opera a mente que atua junto com os olhos, como surgem os objetos à nossa frente. A perda de lucidez sobre isso, pertence ao processo de Ma-Rigpa. Todos nós estamos envolvidos, a nível de visão, à experiência de delusão, ou seja, Ma-Rigpa. Nós estamos vendo o que não está ali e não percebemos que estamos vendo o que não está. Após uma longa caminhada no meio da neve, um monge chega a um pequeno templo no alto da montanha, entra no local e vê várias pessoas lá dentro, sentindo muito frio, todas sentadas em frente a uma linda imagem do Buda, feita de madeira. No local não havia lenha. O monge, para a surpresa dos presentes, simplesmente pega a imagem e a usa como lenha... Aquele monge estava além da forma. Essa dimensão está operando diretamente dentro de nós. Avidia nos proporciona essa visão. As outras pessoas de dentro do abrigo não viram a lenha. Um segundo mecanismo que percebemos com Avidia é o fato da separatividade. Vejam o exemplo abaixo: Imaginem uma esfera, como se fosse uma grande pérola, transparente, flutuando, mágica. No momento em eu crio a esfera, ela ganha vida própria e ela ganha uma separatividade com relação a mim. Ela ganha vida própria, porque vocês passam a vê-la também, logo, ainda que ela tenha surgido na minha mente, inseparável de mim, eu a vejo separada. Se eu perguntar para vocês onde a esfera está, vocês vão responder: “Ela está ali a sua frente, flutuando” . Eu já não a mais vejo ligada a mim e vocês também não a vêem ligada a vocês, mas vocês a estão da mesma forma sustentando. Com isso, nós fazemos surgir um objeto etéreo. Um ponto muito importante a nível do ensinamento é percebermos que criamos com a nossa mente um objeto, esse objeto só vive na nossa mente e, mesmo assim, parece separado dela. Nós não só criamos o objeto, mas também a separatividade do objeto em relação a nós. Quando Avidia cria o objeto, junto com a criação do objeto surge a noção de separatividade. Este é um segredo secretíssimo de Avidia. Quando olhamos um Buda pintado em um tecido, nós vemos o Buda no pano mas, na verdade, ele é inseparável de nós. Se virarmos o pano de cabeça para baixo, pode ser que não reconheçamos mais o Buda. Para onde ele foi? Ele não estava no pano? A imagem não está ali. A imagem, para surgir, necessita de uma dimensão interna mas, quando vemos a dimensão interna operando, essa mesma dimensão interna produz a experiência de imagem naquele lugar. Desta forma, a separatividade é construída. Precisamos urgentemente contemplar cuidadosamente essa insepartividade! Qual é a utilidade disso? Nós ganhamos liberdades. Quando olhamos uns aos outros, também vemos os outros separados, vemos os outros com qualidades. A situação é muito semelhante com o que fazemos com relação ao pano. Isso é Avidia. Lama Padma Samten - Retiro em Guarulhos - 09-10/12/00 |
Luminosidade
A luminosidade já é a própria natureza da mente operando, ou seja, nós criamos. Nós temos uma liberdade de criar. Como podemos evidenciar a liberdade de criar? Essa liberdade atua incessantemente. Esta é a razão pela qual podemos dizer que a natureza de Buda está em toda nossa experiência. Curiosamente, porque nós manifestamos Avidia, podemos dizer que nós temos uma natureza de buda. Curiosamente, porque nós nos enganamos, porque nós criamos a parcialidade, podemos dizer que a natureza de buda está presente.
Onde a parcialidade se ancora? A parcialidade se ancora na natureza última, na nossa capacidade de criar as coisas. Por que não vemos isso? Por Avidia! Pela própria capacidade de esconder que Avidia manifesta. Avidia manifesta 2 aspectos: A capacidade de se manifestar e a capacidade de esconder.
Esta afirmação é muito, muito importante! Nós vamos ver isso muitas e muitas vezes, vamos constatar isso por todos os lados. Já aqui, por exemplo. Qualquer um de vocês que esteja fazendo alguma outra coisa, perdem facilmente compreender o que eu acabei de falar. Porque nós acessamos uma coisa, não podemos acessar a outra, isto é assim. Curiosamente, se vocês estudarem magia, vocês verão que uma das leis essenciais da magia é esta: Quando fazemos uma coisa, não fazemos outra! Toda a percepção da realidade está dominada por esse processo. É um processo importantíssimo. O Buda diz: “É como o pintor, o pano e as tintas ou como um mágico, que produz seres com galhos e panos.”
Eu acho que a arte está muito dentro desta área. Vejo a arte como algo que pode realmente nos ajudar a trabalhar de forma sustentada e longa com esse tipo de percepção. O teatro, também, pode naturalmente trabalhar com isso, assim como todas as artes plásticas, porque elas vão operar incessantemente com a delusão. Toda arte opera com a delusão, não tem como não fazê-lo. Por isso, acho que este é um campo muito fértil.
Agora, quando olhamos o cubo, podemos ver vários itens importantes dentro, não é? Por enquanto, estamos trabalhando com Avidia, percebendo que tem um nível de luminosidade e um nível de ocultação. Nós temos o vértice A surgindo. Quando surge o vértice A, parece que está tudo resolvido, nós vemos um cubo e pronto, isto se torna toda a nossa realidade. Portanto, quando vemos o vértice A, o cubo do vértice B desaparece; quando vemos o vértice B, o cubo do vértice A desaparece. Não conseguimos ver os dois cubos ao mesmo tempo, um oculta o outro.
O aspecto interessante disto é que o cubo não está propriamente no desenho. Se ele estivesse lá, nós o veríamos de forma permanente. Desta forma, percebemos que existe uma ação mental dentro que faz o cubo surgir - faz surgir a experiência do cubo. Essa ação mental dentro que faz surgir a experiência do cubo é uma experiência que está presente nas mágicas. Ainda que saibamos que a mágica em si é uma ilusão, nós a vemos acontecer, vemos as coisas sumirem ou aparecerem da cartola.
Nesse momento nós precisamos perceber isso operando. Não se trata de uma descrição: A delusão é isso ou aquilo. Nós vamos tentar vê-la, localizá-la através de exemplos. Nós vamos nos assenhorar dessa experiência. Com essa experiência, vamos poder contemplar “Isso é meditação”. Vamos ver a delusão operando por todos os lados, esse é o nosso objetivo.
Ao desenraizar Avidia, desenraizamos os 12 elos. Cessando os 12 elos, a Roda da Vida está desenraizada. Esse é o caminho! Nós vamos acessar uma realidade mágica, não é um processo causal. Nós estamos penetrando na percepção de um aspecto muito profundo da realidade, que não importa se o cubo é ameaçador ou se o cubo é benigno, não nos preocupamos com teor do objeto, o que importa é que, seja qual for a experiência do objeto que venhamos a ter, toda essa experiência é inseparável do objeto de delusão. Precisamos olhar esse processo com muito cuidado.
Há percebemos que existe uma ação mental inicialmente oculta. Quando nos damos conta disso, vamos notar um segundo nível mental de ação. O primeiro é justamente a luminosidade, o segundo é a ocultação.
Ocultação
A ocultação faz desaparecer o cubo. Nós não só fazemos aparecer alguma coisa, como fazemos desaparecer a outra. Nesse processo, nós podemos encontrar muitos exemplos. Quando encontramos uma pessoa que se tornou negativa aos nossos olhos, é quase impossível olhá-la de um aspecto positivo. Precisamos de um grande esforço para isso, é uma dificuldade para nós vê-la de outra forma. Quando nós temos uma visão, aquela visão nos aprisiona em um certo sentido, porque nos impede de olhar outras características, de reconhecer aquilo de uma outra forma.
Então, no cubo nós temos os traços. Esses mesmos traços, proporcionam duas imagens, pelo menos. Logo, a experiência que temos a partir dos traços não está determinada pelos traços. Ela está determinada por uma operação mental interna. Quando localizamos essa operação mental interna, vemos que ela tem liberdades, ou seja, podemos fazê-la surgir de um jeito ou de outro. Podemos criar um click interno que nos faz passar de uma experiência para a outra. Essa experiência de poder passar de uma visão para a outra nós temos de agarrar com muito cuidado, porque ela é a essência da liberdade, a essência da liberdade em um sentido muito sutil. Quando nós abdicamos disso, qual é a liberdade que nos sobra? Nós temos a liberdade de pintar o cubo, de botar um vidro na frente, de botar enmoldurá-lo... E ainda achamos que isso é liberdade! Mas, neste momento, nós não temos mais liberdade alguma! Ficamos com a visão congelada. Nós temos a percepção de que o cubo está no papel. Assim surge a separação sujeito-objeto, surge nós aqui e o cubo ali.
Ainda que nós olhemos assim, o cubo está aqui, não está? Ainda que saibamos que o cubo não pode estar no papel, porque ele depende de uma operação mental, quando essa operação mental se dá o cubo aparece no papel, não é verdade? Então a essência da experiência de separatividade está na dependência da operação mental de Avidia. Avidia cria a experiência do cubo no papel. Ainda que raciocinemos e não validemos isso, ainda que saibamos que não pode ser assim. Através desse exemplo, nós vemos que o cubo não pode estar aqui.
Através do raciocínio, nós percebemos que o cubo surge de forma inseparável da nossa mente. Quando a nossa mente se posiciona o cubo aparece. Quando a nossa mente se reposiciona o cubo aparece de outra forma. Vocês percebam que isso é uma operação que está oculta. Há quantas vidas nós estamos operando assim e não percebemos? Nós não percebemos essa liberdade. É espantoso que um desenho tão simples é capaz de oferecer isso, não é?
Mais tarde, começamos observar múltiplos exemplos por todos os lados. Nos enchemos de exemplos, quando entendemos isso. A partir desse ponto, nós percebemos o surgimento simultâneo de sujeito e objeto. Gyatso Rinpoche usa uma expressão que eu considero magnifica:
A inseparatividade é o surgimento simultâneo de sujeito e objeto. |
Quando nós surgimos com uma face, o objeto não aparece com a cara que ele aparece. Quando o objeto aparece com a cara que ele aparece, isso indica uma face interna que geramos. Assim, quando dizemos: “O objeto tem essa face ou eu tenho essa face” estamos tratando da mesma coisa. Se quisemos olhar como somos, só precisamos perguntar o que vemos, porque são inseparáveis. Não há como aparecer uma experiência lá, sem que nós apareçamos aqui.
“Existe uma única experiência. Eu posso escolher e dizer que essa experiência é a manifestação do objeto ou dizer que ela é a manifestação do sujeito. Não se trata de um sujeito e de um objeto, é uma única experiência e eu é que vou definir como vou descrevê-la, objeto ou sujeito. Porque dentro da dualidade da linguagem eu só tenho essas duas opções para me expressar.” Nilsbohr |
Naturalmente, quando nós analisamos a experiência do surgimento do objeto, ele parece que surge lá. Mas se eu disser que eu estou me espelhando lá também não é correto. É uma inseparatividade_. Isto é um mistério!_ A contemplação disso é muito, muito importante.
Para nós, no budismo, existe uma armadilha nesse ponto: “Se eu explicar isso, eu estou perdido! Se eu explico, estou gerando um conceito, que é um objeto mental que eu vejo.” Esse não é um objetivo do budismo, gerar um conceito que vamos passar a contemplar. Observem que essa armadilha vai nos perseguir. Mas como estamos alertas, não vamos cair nela. O nosso objetivo é, em qualquer circunstância, usufruir da liberdade que está inerente a essa experiência que, usualmente, eu vemos. O objetivo do budismo é completamente prático.
A partir da estrutura que dá origem a essa palavra, o fenômeno parece que se refere a um observador e um fenômeno que está sendo observado. Nós estamos escapando disso! Não se trata de um fenômeno sendo contemplado por um observador! O observador se contempla na própria aparência que surge. Quando a aparência surge, ela sugere, ela indica que é algo externo. Quando a aparência surge, surge a dualidade como experiência também. Mas nós não acreditamos mais na dualidade! Agora, podemos ver dentro da aparência da dualidade a inseparatividade. Tudo isso está dentro da descrição do aspecto da luminosidade. Nós precisamos ter clareza disso! Precisamos ter lucidez disso! Isso é a base do sétimo passo do Nobre Caminho Óctuplo, é a base do que se chama Prajna. Prajna é a medalha de ouro que nós deveríamos carregar pendurada no pescoço - uma medalha com o nome Prajna. Essa é a porta de saída da experiência cíclica, é a porta de saída da Roda da Vida. Avidia é a porta de entrada e a porta de saída. De um lado está escrito Avidia, do outro, Prajna, mas a entrada e a saída são a mesma porta.
O objeto surge inseparável. A noção de inseparatividade surge palpavelmente, nós podemos agarrá-la. Até agora, de um modo geral, a noção de unidade ou de inseparatividade era abstrata, como algo que não entendíamos muito bem. Agora, nós podemos agarrar com a mão e começar a examinar. Então a ficha cai...
Os livros mudam com o tempo. Nós lemos um livro, dez anos depois o relemos e percebemos que ele mudou. As fotos mudam com o tempo, as músicas mudam com o tempo, as ruas mudam com o tempo, as estradas, as cidades, as casas, pai e mãe, tudo muda com o tempo. O passado muda. Podemos visitar o passado mentalmente - notem bem que não vamos olhar o que já passou, nós o revisitamos mentalmente. Quando nós retornamos ao passado, mudamos. Nós voltamos do passado diferentes. Vemos , então, o presente de uma forma diferente do que há um instante atrás, por não ter ido ao passado. Fomos ao passado, mudamos, e hoje, no presente, tudo também é diferente. Não só o presente mudou, o futuro, também, ficou diferente. O passado parece algo que contemplamos diante de nós. Assim como contemplamos diante de nós um cubo. Mas o passado que contemplamos diante de nós, ele é inseparável da delusão. Quando nós visitamos e temos uma outra experiência as nossas características internas mudam a forma pela qual vamos ver os objetos surgindo a nossa frente é uma forma diferente. Assim, vamos percebendo que o passado, o presente e o futuro são aspectos dinâmicos e ele só existe neste exato instante. Por que o passado não é algo que passou, o passado é algo que está sendo construído neste momento, da mesma forma que o cubo está sendo construído. Assim vamos indo. Todas as direções que olhamos, vamos percebendo incessantemente esse aspecto.
O passado, o presente e o futuro estão aqui e agora. Só que nós entendemos que o passado que aparece, o presente que aparece e o futuro que aparece têm liberdades que nós não teríamos visto há um instante antes. A nossa percepção de passado é uma percepção congelada, como a percepção do cubo é congelada. A percepção de tudo é congelada, é rígida! Nós não vemos as liberdades. Quando pensamos no passado, podemos até dizer como muitos mestres dizem_: “O passado passou, o futuro não veio, o presente é o que existe!”_. Agora eu estou dizendo outras coisas. Eu estou dizendo que o passado não passou, o presente está aqui, agora, e o futuro está aqui, também! O passado é vivo a cada instante, é reinscrito a cada instante. O futuro é vivo a cada instante e o presente, também, é vivo a cada instante.
Quando revisitamos o passado com as características que nós temos, percebemos que tudo muda. As estradas mudam, as cidades mudam. A cidade da nossa infância, quando a revisitamos, é muito menor do que era. A casa da nossa avó é muito menor, o pátio da escola também. Geralmente, tudo é um pouco decepcionante.
Vejamos agora, se nós encorporamos isso, temos muita coisa para examinar, surge o “terceiro olho”. Surge o olho que reexamina a realidade de uma forma muito mais profunda. Existe uma impermanência interna operando. Existe uma noção de inseparatividade, de liberdade, mesmo quando a experiência parece fisica- e temporalmente separadas de nós, pelo fato de estarmos olhando o passado.
Cada vez que nós acessamos o passado, ele é recriado. Quando nós temos filhos, nós vamos nos lembrar do que as nossas mães fizeram e vamos entender de outra forma. Quando temos uma casa para cuidar, todo um giro financeiro para cuidar, nós pensamos: “Como é que meus pais fizeram isso?”. Quando ficamos bravos com os filhos, entendemos por que os nossos pais ficaram bravos conosco.
Todo esse processo é chamado delusão e não se trata uma opinião! Essa compreensão da delusão nos livra de uma característica ocidental, uma característica grave: Pensamos que a explicação resolve, buscamos uma visão teórica que explique. No entanto, a explicação teórica surge da combinação de objetos que brotam da delusão. Nós temos uma aparente liberdade intelectual, mas os objetos que nós compomos na liberdade intelectual, todos eles brotam da delusão.
O surgimento do cubo como um objeto externo é uma delusão. O surgimento de um observador separado de um objeto que está sendo contemplado a quatro metros é uma delusão. Qual é o sentido prático da delusão? Ainda que vejamos o objeto como um objeto externo, separado de nós, ele tem liberdades que não estamos percebendo e podemos usufruir dessas liberdades. Além disso, existe um processo criativo que também não percebemos. Existe uma ação da mente que não percebemos. No ocidente inteiro nós pensamos que os olhos são neutros, da mesma forma que na física nós pensamos que os instrumentos eletrônicos são neutros. Eles não são neutros! Ainda que seja um instrumento eletrônico, não há como o processo de delusão não atuar quando nós olhamos o resultado que vem dele.
Embora saibamos que o cubo não está no papel, nós o vemos lá. Existe uma experiência mental que nos faz experimentar o cubo no papel. Isto é a delusão! Percebam que não é uma conclusão mental, não é o resultado de um raciocínio. Até mesmo o raciocínio nos diz que o cubo não está ali. Podemos separar o raciocínio da experiência, não é verdade? O raciocínio nega a experiência. Por outro lado, sabemos que não está no olho. O olho nos permite qualquer uma das experiências, percebemos que, quando um surge, o outro desaparece. Existe uma construção que nos oferece uma experiência de um objeto. Essa construção surge inseparável da mente, o objeto surge inseparável de uma mente que usufrui dessa experiência. Esse processo é a delusão.
Ocultação da Ocultação
A delusão faz surgir, não é verdade? Então nós estamos usando a delusão para o processo criativo, que faz surgir a experiência, seja do que for. Avidia, porém, tem um elemento a mais. Tem a ocultação. Quando surge o aspecto positivo manifestado através da delusão, não percebemos que algo desapareceu. O aspecto de ocultação parece que fica oculto. O aspecto mais importante de Avidia não é o surgimento, mas a ocultação. O surgimento é como uma liberdade, mas a ocultação é a própria essência da prisão.
Avidia opera ocultando mas, quando ela opera ocultando, ela oculta que ocultou. Por que ela oculta que ocultou? Porque ela nos ofereceu alguma coisa brilhante, sensacional. Então nós ficamos presos e temos uma resposta. Nós vemos um impulso e seguimos com um outro impulso e, então, nós começamos a girar.
Avidia oculta Avidia |
Como Avidia oculta Avidia? Em primeiro lugar, Avidia tem o aspecto positivo, o da delusão. Então fazemos surgir o objeto, ele aparece. Quando um objeto aparece, o outro objeto some. Isto é o aspecto de ocultação inerente. Mas quando Avidia surge e produz a ocultação, nós não percebemos que houve a ocultação. Por que não percebemos que está havendo uma ocultação? Porque justamente o aspecto luminoso de Avidia ocupa toda a atenção da nossa mente. O fato de um objeto surgir à nossa frente nos domina, toma toda a nossa atenção. Nós ficamos dominados pelo objeto. Não percebemos que estamos deixando de ver alguma coisa. Nós não vimos porque nós vimos! . Porque nós vimos alguma coisa, nós deixamos de ver outra. Mas nós nem percebemos que não estamos vendo, nós, simplesmente, não vemos. Todo esse processo é muito sutil. Temos de contemplar esse processo muito constantemente. Meditem sobre isso!
Tanha
Tanha significa teimosia mental. Quando estamos focando um cubo fica difícil de ver o outro, não queremos passar para o outro. Tentem! É muito difícil mudar, é desconfortável, não é? Quando começamos a pensar de um certo jeito não queremos mexer naquilo.
A contemplação de Tanha é a base da contemplação dos bodisatvas. Eles vão ver que os seres, não só estão presos por Avidia, mas também por tanha. Os seres não conseguem ver, não tem jeito. Então os bodisatvas ficam observando e tentam libertá-los. Ficam tentando sempre de um outro jeito até que aquilo se revela. Então o outro se sente feliz, porque ele tem uma liberdade. Na inseparatividade está também a energia do bodisatva.
O aspecto de Tanha é muito importante, porque nós vamos nos defrontar com essa experiência inúmeras vezes. Muitas e muitas vezes nós nos fixamos em pontos. Vocês observem que Tanha não é a teimosia usual. A teimosia usual é discursiva, ela pode ser verificada. Tanha é uma teimosia cósmica, ela aparece sem avisar. Ela está oculta por ela mesma. Ela é a ocultação que a própria Avidia oculta.
No fato de nós vermos um cubo, nem é noticiado que ali tem uma fixação.. Não tem um aviso_: “Atenção, você está sob a influência de Tanha!”_ Não tem nenhum alarme. Existe um silêncio, uma conivência. Tanha está oculta. Na verdade, Tanha está operando dentro de Avidia. O cientista está preso nisto
Nós só vemos o que pode ser visto, só pensamos o que pode ser pensado... Wittgenstein |
Isso é a essência de Tanha. Nós estamos presos às nossas estruturas. As nossas estruturas de expectativas só permite que vejamos através delas. Existe uma dureza inerente nesse processo. Essa dureza está oculta. Os cientistas, por exemplo, estão presos à essa dureza. Albert Einstein dizia que é muito raro um cientista ter uma idéia nova durante uma vida inteira, raríssimo. Isto acontece porque nós estamos presos às estruturas. Elas nos impedem, nós não temos a liberdade. Nós manifestamos tudo dentro das estruturas. Isto é Tanha, é a nossa prisão.
Wittgenstein dizia ainda: “O que nós não podemos pensar sobre, nós não podemos negar.” Este é um princípio de liberdade magnífico. Ele nós liberta da própria estrutura só com essa frase. Se nós percebemos que a nossa estrutura não dá conta de certos fenômenos, nós não podemos negá-los. Por exemplo, a estrutura ocidental sobre o raciocínio sobre o corpo humano não permite que nós entendamos acupuntura. Logo, nós não podemos também negá-la, só porque não conseguimos entender aqueles fenômenos. Entendendo os fenômenos a partir dessa estrutura, podemos avaliar se aquilo é ou não possível. Mas se não conseguimos entendê-los, eles não cabem no nosso arcabouço. Não cabendo no nosso arcabouço, não podemos, baseados no nosso arcabouço, negá-los.
A estrutura pura e mental que opera inseparavelmente do nosso processo já permite ver que nós estamos aprisionados à Avidia, que nós temos uma estrutura de rigidez que vai se manifestar nos cientistas; na impossibilidade dos cientistas dialogarem com a espiritualidade, dialogarem com outras coisas. Porque eles tentam a reduzir tudo à própria estrutura que eles estão operando. Eles dizem: “Isso não cabe dentro da ciência, isso não é possível.” Isso é repetido muitas vezes e isso é Tanha.
Mesmo a impermanência é uma estrutura budista, ela é um remédio. Mais adiante, nós vamos ultrapassar a impermanência. No cubo não tem uma volição propriamente. Esse processo parece todo oculto à mente discursiva. Mas, como se fosse uma forma de proteção, parece que tem uma mente que dói e tenta se defender. Todo o processo não é voluntário, ele opera independente da nossa vontade. Ele opera a nível automático. Então surge a noção de carma. Eu não digo: “Eu desejo que apareça um livro à minha frente.” Eu não digo assim, eu vejo o livro. O processo é automático.Avidia é a cegueira que brota da visão. Podemos encontrar bons exemplos desse processo por todo lado, na arte, na educação, na psicologia, na filosofia, é só observar.
Vamos usar o exemplo da educação. Ela é libertadora porque nos oferece estruturas que nos ampliam a visão. Mas, quando essas estruturas surgem, Tanha surge junto, Avidia surge junto. Mas não é necessário que seja assim...
Como podemos superar esse aspecto? Não será suprimindo as estruturas que isso será superado, mas gerando as estruturas, gerando as visões correspondentes e criticando as estruturas também. É importante reconhecermos os limites das estruturas que nós estamos operando ou, pelo menos, saber que todas as estruturas têm limites. Precisamos treinar o reconhecimento dos limites das estruturas.
Podemos utilizar exemplos anteriores, entre eles, a física clássica - as várias visões cosmológicas, o sistema leocêntrico, o sistema geocêntrico. Através desses exemplos podemos reconhecer que, cada vez que uma estrutura se ofereceu, nos permitiu ver várias coisas positivas e, ao mesmo tempo, ocultou as outras possibilidades. Desta forma, poderemos reconhecer Avidia operando incessantemente hoje também e esse reconhecimento poderá despertar, pelo menos, o desejo de descobrir quais são as limitações das estruturas que nós estamos operando.
Não é necessário, porém, achar que basta dinamitar as estruturas com as quais estamos operando. Isto não é o suficiente. As estruturas têm méritos e têm dificuldades e assim é a característica, da mesma forma que as nossa identidades também têm méritos e dificuldades. Só isso nos perdoa o fato de termos a face que nós temos. Todas as nossas faces são Avidia, são limitações. Nós vamos exercer essas limitações por liberdade. Assim, nós vamos seguindo. Não temos outro jeito.
Podemos reconhecer através de Avidia uma dimensão extraordinária que está criando todo esse processo. É a dimensão de brilho da mente, a dimensão mágica que está operando dentro disso. Vendo desta forma, Avidia é uma magia maravilhosa! Neste ponto, nós começamos a contemplar, a trabalhar no sétimo passo do Nobre Caminho. Estou dando esse ensinamento da Roda da Vida a nível do sétimo passo, e não, a nível do primeiro. A nível do primeiro passo, dizemos_: “Estamos todos aprisionados à Roda da Vida e essa roda nos leva ao sofrimento inevitável no final. Todos os seres estão submetidos a isso e é melhor que tentemos sair o quanto antes.”_ Os ensinamentos a nível do primeiro passo vão nos mostrar como podemos gerar uma motivação para receber ensinamentos e para ir adiante.
O meu objetivo ao dar esses ensinamentos a nível do sétimo passo é mostrar, livre da noção de um EU, como nós nos ilhamos e como nós nos desilhamos, como entramos e como saímos dessa prisão e como podemos perceber a perfeição que está imersa no processo sutil da prisão, onde está a liberdade em meio à própria manifestação da prisão. Esta é uma outra categoria de ensinamentos mas com o mesmo foco: Os doze elos.
Segundo Elo – Samskara
No segundo elo nós temos as estruturas surgindo. Chamamos essas estruturas de Samskara (Skara = cicatriz, Samskara = conjunto de cicatrizes = marcas por hábito). Como vemos Samskara? As estruturas internas começam a surgir a partir de Avidia, a partir da criação. Nós geramos as estruturas a partir da delusão.
Vejamos o exemplo deste retiro, nós estamos fazendo um pouco disso agora, estamos reconhecendo Avidia. O reconhecimento de Avidia já é uma estrutura que está operando. Nesse momento, nós estamos gerando essas estruturas para ver liberdades. Estamos usando o poder da mente para reconhecer essa operação. Antes, essas estruturas foram criadas e nos aprisionavam. Agora, nós vamos olhando e lucidando essas estruturas, criando assim a liberdade correspondente.
O símbolo utilizado na Roda da Vida para essa estrutura, eu considero um símbolo muito bonito. Ele é um potista trabalhando com o barro. Analisem: O potista começa com uma bolota de barro, um torro, então ele vai girando aquilo. No final de seu trabalho, ele continua com a bolota de barro, não há outra coisa, senão bolota de barro. A experiência dele, porém, já não é mais a de uma bolota de barro. Ele já está vendo um pote ali. Quando ele vai descrever a diferença entre a bolota de barro e a bolota de barro, ele vai ter de falar na forma. Essa forma é um aspecto sutil que ele vê naquela bolota. Ele não vai poder explicar aquela forma na microestrutura do barro. Ele só vai poder ver aquela forma a partir de um processo de delusão que opera na própria bolota. Olhando esse aspecto, acho que até a teoria do surgimento do homem a partir do barro é um aspecto interessante.
Vamos colocar um outro exemplo: Imaginem que uma pessoa começa a trabalhar com a bolota de barro e gera um pote. Mas ela não gostou dele e o desfaz e faz um outro. Ainda não satisfeita, ela o desfaz novamente e torna a refazê-lo várias vezes, até surgir o pote que ela tinha em mente, como ela gosta, que espelha a natureza como ela vê. De onde surge essa aparência do barro? Ela surge de um aspecto inseparável dela mesma, ela olha para o barro e vê o pote. Da mesma forma que nós olhamos para os riscos e vemos o cubo. Agora, porém, ele tem uma estrutura – semelhante à estrutura que se manifesta no cubo. Isto é a delusão operando!
A seguir, ele pega aquele barro e o coloca sobre a mesa para secar. Ele faz isso com três ou quatro bolotas. De repente, as crianças vêm brincar ao redor. Nesse momento, ele manifesta o terceiro item – o surgimento de sua identidade. Isto acontece porque ele se descobre apegado à estrutura. Ele não quer que aquilo caia no chão. É um processo no qual ele olha para si e vê que ele tem uma estrutura de defesa com relação aquele processo. Quando ele encontra a sua estrutura de defesa ele diz “eu - isso”, ele pode falar dele mesmo. Nós só vamos encontrar as estruturas quando surge a cobra, propriamente. O javali já são as próprias estruturas, mas o javali não se revela a si mesmo, a não ser através da cobra e do galo.
Os Três Animais
No budismo, a nossa identidade está representada por três animais, o javali, a cobra e o galo. Nós agimos dentro das estruturas, que são representadas pelo javali. Mas nós só vamos poder localizar essas estruturas quando a vemos reagir. Ela não vai aparecer por si mesma. Se alguém nos perguntar se temos alguma fixação, podemos até responder “Não, acho que não, nenhuma...” Se olharmos para dentro, não as vemos. As estruturas só aparecem, quando alguém nos faz alguma coisa e nós reagimos. Neste momento, o javali vai se revelar na cobra ou no galo.
O galo é a atividade incessante. É a nossa atividade de proteção através da ação incessante, contínua. Por exemplo, se quisermos ver se nós somos boas donas de casa, nós não precisamos perguntar a nós mesmos. É só olhar para a casa e ver se o galo o começa a atuar ou não. Podemos até pensar que somos uma boa dona de casa - uma pessoa pode gerar opinião que quiser sobre si mesma. No momento em que perguntamos a uma outra pessoa, ela vai ver, por exemplo, um quadro torto na parede, lixo no canto, louça para lavar, etc. e vai provavelmente responder “É... mais ou menos...” Por que o outro responde assim? Porque o galo revela. Talvez a pessoa até pergunte: “Isso não te deixa um pouco nervosa, essa bagunça toda?”. Se nós respondermos “Não, até que não...”, neste caso, nem o galo, nem a cobra está atuando sobre nós.
Através desse processo podemos, indiretamente, observar as pessoas. Os Lamas, em geral, usam isso. Chagdud Rimpoche usa muito isso. Para saber como uma pessoa é, olhe quem está ao redor. Olhe como as coisas giram ao redor, não é necessário olhar para a própria pessoa. É ao redor que todas as manifestações vão aparecer.
Samskara são as marcas com as quais estamos operando. Eventualmente, podemos gerar consciência sobre essas marcas. Não é necessário que tenhamos consciência sobre elas, elas atuam, com ou sem consciência. Por esse motivo, não é necessário que tenhamos uma consciência sobre uma identidade para que ela possa operar. Vendo desta forma, livrar-se ou não da identidade, não tem grande significado. Lutar contra a identidade não é o ponto. O ponto é gerar uma liberdade. Nós estamos buscando a compreensão da liberdade desse processo. Como nós vemos que essa liberdade se torna restrita por Avidia, se manifesta como marcas, sabemos que ela está oculta. A prisão está oculta. Olhando assim, sabemos que o processo discursivo não vai nos trazer a liberdade. Descobrimos que em nada ajudará se colocar discursivamente em um ponto de aversão. Pode ocorrer, em um certo momento, da pessoa gerar uma função coerente em função das suas marcas. Isso corresponde ao terceiro nível.
Classes de EnsinamentosQuando olhamos os ensinamentos, sejam em livros, seja quando os ouvimos, é necessário reconhecermos que classe de ensinamentos estamos ouvindo. As diferentes classes falam de forma diferentes os mesmos ensinamentos. Existem ensinamentos que olham para a Roda da Vida como um problema, em mesmo dou esses ensinamentos. Em outros ensinamentos, vamos ver a Roda da Vida como perfeição. É necessário que vejamos em qual classe de ensinamentos em que estamos imersos. A pessoa só vai ouvir a Roda da Vida como perfeição quando ela tiver a capacidade de ouvir isso. Nós aqui estamos quase que entrando diretamente nisso. Estamos pulando, praticamente, todos os ensinamentos preliminares. Estamos entrando direto na sétima etapa do Nobre Caminho, como se nós fôssemos meditantes. De um modo geral, para ouvir esses ensinamentos, a pessoa precisa ter, no mínimo, a experiência de estabilidade, o que a permite penetrar nesses âmbitos todos. Então, de alguma forma, vocês têm isso também, desta ou de outra vida, pois vocês estão entendendo um pouco o que seja esse processo. Na verdade, o método do Buda é um método de girar a roda. Então, nós vamos até a décima segunda etapa e voltamos para a primeira. O que vai acontecer quando nós retornarmos para a primeira? Vamos olhar tudo isso e ficar estupefatos, vamos comparar com os bjetivos corriqueiros da nossa vida e vamos dizer: “Nossa, que estreiteza me limitar ao espaço e tempo, a operar a partir de aspectos tão limitados.” Então entendemos melhor o que significa a decisão de ultrapassar os limites da Roda da Vida. Esta abordagem é realmente interessante. Nós começamos pela meditação e temos uma visão cósmica. Nós retornamos, então, a nossa vida e com muito mais facilidade dizemos: “Eu quero ir adiante!” Às vezes quando estamos imersos no próprio panorama da nossa vida, fica muito difícil dizer “eu quero ir adiante”, pois só vemos aquele panorama e os ensinamentos corriqueiros vão nos fazer andar a partir do sofrimento que estamos tendo. Normalmente, não conseguimos ver adiante mas vemos, pelo menos, o sofrimento e queremos sair disso. A partir dessa realidade, vamos recebemos os ensinamentos. Esse método, porém, é um pouco lento! Eu prefiro o método como aconteceu comigo mesmo. O sofrimento não era interessante para mim, não era um bom ponto de partida. Eu podia me livrar do sofrimento de muitas outras formas. Foi o aspecto gigante, como esse que nós estamos olhando, que me atraiu, me deslumbrou. Quando vemos isso, não somos mais os mesmos. Nós tentamos depois incorporar, manter essa visão na vida o tempo todo e isso nos impulsiona a ir adiante, a fazer prática. Quando a visão se amplia, ela não tem mais como se restringir. Lama Padma Samten |
Terceiro Elo – Vijnana
Esse é o momento em que a cobra começa a atuar, a ação de defesa começa a atuar. A cobra atua de uma forma explosiva e o galo, de uma forma constante. Observem que a essência do terceiro nível, Vijnana, está nos ventos e nas energias internas. Ela se manifesta no nível de mobilização de energia, brilho, para a ação. Surge o movimento, surge a ação de defesa. A bolota de barro ganha, então, uma feição. Essa feição surge inseparavelmente das estruturas internas. Quando aquela experiência do vaso está presente,ela se espelha na bolota de barro. Ela é uma delusão, mas ela se torna sólida. Uma outra pessoa olha para aquele barro e ela não vê assim, as crianças vão, quem sabe, achar que seria melhor amassar aquele barro e fazer uma outra coisa. Elas estão livres daquele processo que o outro gerou.
Isto é muito comum nas relações entre as pessoas. Nós pegamos um mesmo objeto que o outro olha com muito cuidado e não reconhecemos aquilo que o outro reconhece, nós damos um uso que o outro jamais permitiria. Essa é a tragédia nas relações com as crianças, por exemplo. Por que? Porque elas dão usos inusitados às nossas coisas queridas. Elas manifestam uma liberdade que nós jamais nos permitiríamos.
Quando as estruturas surgem, surgem as defesas dessas estruturas e elas começam a manifestar a energia de movimento, a ação começa a surgir. A ação mental de Avidia não tem movimento, propriamente. Então surge Samskara, a aparência incessante de um mundo, começamos a localizar isto, a localizar aquilo. Juntamente com Tanha, surge então, a nossa vontade de sustentar algo. Quando aparece uma ameaça, nós nos mobilizamos e, desta forma, surge o movimento. Nos movimentamos como quem se movimenta em 3D. Quando surge Vijnana, o carma está totalmente presente, porque o carma significa a ação. Todo o carma significa defesa, os processos automáticos que nos leva à ação.
Esses três primeiros níveis estão presentes mesmo quando nós não dispomos de um corpo físico. São três níveis sutis que nos permitem sonhar, nos permitem ressurgir também, buscar um corpo novamente. De acordo com as marcas que com as quais estamos atuando, geramos a nossa aspiração e o nosso movimento. Assim determinamos, através da aspiração que estiver presente, qual o corpo que nós vamos buscar. A busca do corpo é o quarto item.
Resumo dos três primeiros elosEu opero Avidia e, com Avidia, eu gero marcas mentais, Samskara. Quando as marcas mentais estão automatizadas eu tento defendê-las. Então surge o movimento de defesa, que pode ser a cobra ou o galo. Quando surge o movimento de defesa, a noção de carma está presente. Carma significa ação, o movimento está presente. Isso completa a visão da identidade. Essa identidade é a identidade sutil que existe independente de um corpo físico. Essa identidade se manifesta em nossos sonhos. Quando sonhamos, sonhamos através dessa identidade. Ela é a origem do corpo que se manifesta na forma física ou em sonhos, quando estamos dormindo. Quando se completa Vijnana os três animais estão presentes. Só no nível de Samskara ainda não existe a defesa. Lama Padma Samten |
Vamos determinar uma marca mental. A marca mental poderia ser “Amanhã vamos passar o dia inteiro meditando.” Nesse momento, isso é uma marca. Ainda não avaliamos se isso deve ser assim ou não. Isso é Samskara. Daqui a um ou dois minutos, todos já se posicionaram. Se eu disser_: “Muito bem, vamos então fazer meditação”_ a metade vai achar a idéia péssima, enquanto que a outra metade vai adorar. Surgiu a nossa identidade. Surge um movimento, surge uma defesa, uma ação. Já poderíamos ver um movimento político aqui. Uns diriam “Sim, sim, é melhor isso, é pior aquilo!” Isto é o galo tentando propor e defender, através de um processo de movimento.
80% chega, então, a uma conclusão. 20% vai apelar para a cobra. Vão dizer “Eu não vou fazer isso! Isso é um processo de ditadura do grupo!” Neste ponto, já existe um movimento, não estaremos mais tratando de uma marca neutra. Não estaremos mais olhando aquilo de uma forma livre. Já teremos um posicionamento, um movimento, uma aspiração e uma guerra! O terceiro aspecto é a identidade que brota. Não basta ter a marca, ela pode não ter defesa.
Responsividade
Responsividade está dentro da descrição de Vijnana. Não há responsividade que não gere a própria identidade de um eu.
Responsividade substitui a lucidez |
Por esse motivo a lucidez é muito difícil. Podemos igualmente dizer que o carma substitui a lucidez. Quando nós vemos um objeto, nós respondemos ao objeto. Quando respondemos ao objeto “Eu quero, não quero, é assim, é assado”, neste momento, nós não temos o menor espaço para a lucidez frente ao significado, ao surgimento, frente à coisa alguma. A essência da prisão é o fato de que a experiência do surgimento de Avidia já provoca a responsividade. Um pouco mais adiante, ele já se manifesta como outros elementos. E assim vai seguindo.
Todos os reinos estão presos às identidades, à separitividade. A experiência separativa está legitimada e Avidia nem é reconhecida, muito menos, suspeitada. Avidia opera completamente oculta. Oculta por que? Pela responsividade. Quando um objeto aparece, dizemos_: “Preciso urgentemente fazer tal coisa!”_ Nem percebemos o fato original do surgimento mágico daquele objeto. Quando ele surge, já tem uma seta apontando “Olhe para lá!”, nós olhamos e vem outra seta “Olhe para lá!”. Nós seguimos olhando e vamos girando a roda. Não chegamos a perceber o fato cósmico que é ter aparecido aquela seta. Entramos automaticamente na mensagem da seta.
Nós estamos examinado agora o que chamam os 12 Ayatanas. Eles fazem parte dos 46 itens do Sutra do Coração, a última etapa do Nobre Caminho. Vejam que, para fazer isso, é necessário que tenhamos a capacidade de parar. Se não tivéssemos a capacidade de parar e focar um tema após o outro, não teríamos como entender uma coisa dessa. Essa habilidade nós desenvolvemos na sexta etapa, que é a meditação. O primeiro elemento da meditação é a responsividade. Por que? Porque a responsividade é o nome da prisão. O elemento que nos aprisiona é aquilo que parece que é a nossa liberdade, é inacreditável! Por isso fica oculto. A prisão só nos engana, porque é muito bem organizada, muito bem feita, é realmente muito fácil de se engana. Ela só está ali porque ela é realmente muito difícil de se liberar. Mas ela não é difícil porque é pesada, mas porque ela nos engana, prende a nossa atenção. A nossa prisão é a responsividade.
Quando nós vemos um cartaz, onde está escrito ‘Compre sorvetes Kibon’. Automaticamente, nós respondemos comprando ou negando. Não olhamos para o fato elementar, original de que aquilo está produzindo significados. Nós engolimos o significado e nos posicionamos. Quando fazemos isto, já perdemos a liberdade porque já recebemos a mensagem e ficamos aprisionados a ela.
Se alguém nos agride, tem uma mensagem nessa agressão, e nós engolimos essa mensagem. Nós agredimos a pessoa de volta ou fugimos. Nem sequer nos damos conta de que a própria mensagem é inseparável de nós, que podemos receber a mensagem assim ou não. Ao contrário, nós analisamos e chegamos ao resultado de que temos a “opção” de retrucar ou fugir. Com isso, nós legitimamos a mensagem, não percebemos que a mensagem necessita de receptores em sua linguagem. Esses receptores são o próprio carma. No momento em que nós atuamos daquela forma, tem uma ressonância com o outro. Naquele exato momento, acabou a liberdade, ainda que pensemos que a liberdade está toda lá, ou seja, fugir ou retrucar.
A prisão se manifesta com a aparência de liberdades, nos oferecendo “opções de liberdade”. Naquele momento, nos sentimos completamente livres para fugir ou para atacar. No momento em que aquilo se oferece, escurece a nossa mente, ficamos cegos. Não vemos a opção original. Nós não precisamos aceitar aquilo! Existe uma inseparatividade na experiência!
Todos os objetos nos oferecem uma mensagem. Nós perdemos a liberdade, porque atribuímos um significado direto sem nem perceber o que fazemos. O fato de termos atribuído o significado se manifesta pelo impulso que nos surge, pela responsividade que nos surge. Essa responsividade é o próprio galo atuando, é a ação. Nós temos o impulso de ação, começamos a nos movimentar. Mas a ação é o carma, a própria palavra carma significa ação. O carma nos impulsiona para movimentar. É o nosso carma que escolhe os significados, escolhe a nossa ação, ele nos impulsiona naturalmente de forma que nos cega. Ele oferece certezas.
Nós precisamos começar a jogar lucidez, item por item da nossa operação que hoje é inconsciente . Nós estamos penetrando em uma região obscura. Avidia opera sob uma região obscura, da mesma forma, samskara e vijnana também operam em uma região obscura. Tudo isso está operando dentro de regiões que nós nunca jogamos luz e nunca examinamos, mas que produz incessantemente resultados. Neste momento, estamos nos aventurando para dentro de uma região usualmente obscura. O resultado final disso é o desaparecimento do barro que reveste, que cobre o diamante. Não é que o diamante não esteja ali, ele só está coberto de barro, está opaco.
Quando estamos lúcidos, a delusão já não é mais vista como um processo de engano. Quando a delusão se oferece, ela já é a própria luminosidade da mente atuando. Quando o movimento é feito, não há perda da visão ampla.
Pergunta: Como surgiram as manifestações?
Lama: Nós reconhecemos que é uma prática de liberdade, nós fazemos isso todo o tempo é a essência do aspecto de criatividade. Temos as liberdades de criar e criamos, movimentamos, fazemos surgir as aparências. Quando as aparências surgem, nesse momento, nós podemos ansiar que esse aspecto que fizemos surgir se torne impermanente. Assim, criamos as marcas de uma forma estável. Mais adiante aquilo se torna uma fixação, vai para uma região onde responde automaticamente e começa então a surgir Avidia, começa surgir a ocultação. De repente, não vemos mais nada. É um processo passo a passo, onde vemos surgir todos os aspectos, podemos observar etapa por etapa surgindo. A etapa mais original, a primeira é o exercício de liberdade, que podemos fazer todo o tempo. Essa mesma liberdade estamos exercendo constantemente nas várias conexões.
Como tudo começa. No sentido budista, porém, isso é uma extrapolação da nossa mente cotidiana, de uma mente causal. A causalidade não é o fator original. Quando explicamos qualquer coisa de uma forma causal, nós necessariamente explicamos com base em uma outra característica que tem de ser assumida de forma não-causal. Se assumirmos isso de forma não-causal, você vai perguntar “Mais por que?” É o mesmo processo do que dizer: “Deus criou o mundo.” “Mas por que?” Porque Deus exerceu sua vontade. Mas por que Deus exerceu sua vontade? Porque ele é todo-poderoso, ele pode fazer isso. Mas por que Deus é todo-poderoso?
Isto é um vício de pensamento associado à linguagem. É um processo causal. Como processo causal ele vai necessitar isso. Como é que na lógica e na filosofia isso é resolvido? Criamos um paradigma, um postulado. Nós assumimos condições sem condição. A ciência não tem como se exercer sem isso. Existe um início que é não discutido. É um processo que é sempre luminoso. O processo não é para ser aberto de forma causal. Se abrimos aquele aspecto de forma causal, nós vamos remeter a um outro início, que é não-causal. Não existe outra possibilidade.
No sentido budista nós vamos abandonar todos os processos causais, eles não são muito importantes. Nós temos uma possibilidade muito maior no aspecto de luminosidade do que no aspecto causal. O aspecto causal não manifesta todas as liberdades. Só conseguimos eliminar o carma num processo não-causal.
Quarto Elo – Nama-Rupa
Já temos três marcas sutis operando: Avidia, Samskara e Vijnana. Surgimos com uma identidade mas não temos ainda a materialidade. Esse é um ponto muito interessante. É esse ponto que nos leva a botar quadris na parede, pintar as paredes, decorar a casa com objetos, escolher os móveis, etc. O que significa isso? Quando olhamos para um quadro, por exemplo, nós temos uma experiência sutil. Como guardar essa experiência sutil? Guardando o quadro. Nesse momento, começamos a operar com o fato de que certos objetos nos remetem a sustentação de aspectos sutis. Os aspectos sutis flutuam, mas se colocarmos objetos que nos evocam esses aspectos sutis passamos a tornar aqueles aspectos sutis mais permanentes.
Os aspectos mentais abstratos se beneficiam de uma materialidade. Começamos, então, a procurar a materialidade com a intençâo de sustentar os estados mentais sutis. Por esse motivo, por exemplo, procuramos lugares serenos, quando queremos serenidade. Também os locais oferecem esse poder. Se tomamos Avidia, Samskara e Vijnana como base, naturalmente vamos ver que os objetos têm poder sobre nós. Ainda que não raciocinemos dessa maneira, nós temos esse impulso. Como se fosse uma lucidez da nossa mente, dizemos: “Tais objetos são especiais”. Uma refinação disso está no Feng Shui. O objetivo no Feng Shui não é a liberação. É um processo que utiliza o nosso aspecto cármico para provocar resultados cármicos. O objetivo é, através da combinação de elementos, provocar um efeito. Se dentro da nossa casa, por exemplo, existir qualquer desconforto e não sabemos bem a origem, eles podem examiná-la. Pode ser que eles descubram que elementos em nossa casa que nos trazem perturbação. Alguma coisa assim só se dá a nível cármico. Os grandes mestres meditam em cemitérios. Qual é o Feng Shui do cemitério? O mais inauspicioso de todos - a morte.
Quando entramos no quarto elo, nós, inconscientemente, descobrimos que certas coisas são agradáveis e outras não. Nós percebemos claramente que os objetos, a materialidade, tem o poder de sustentar estados mentais específicos. De um modo geral, nós estamos inconscientes disso. Nesse ponto, de Nama-Rupa, nós ainda não temos o objeto. Começamos a desejar o objeto, por isso que é simbolizado por um barqueiro. Nós temos aquela aspiração mas ainda não encontramos o objeto correspondente que possa sustentar aquela aspiração. É como o barqueiro navegando no rio buscando encontrar um lugar – o barqueiro ainda o está procurando.
A pessoa tem uma boa idéia. É como se ela dissesse: “Eu vou montar uma escola”. Então ela vai nos classificados procurar um prédio. Ela ainda não o encontrou, mas ela tem a idéia. O aspecto sutil está lá. Ela não vai conseguir descansar enquanto aquilo não estiver materializado. O barqueiro vai se deslocando pelo rio da vida com um olho que já tem um “filtro”, as marcas mentais. Esse filtro é definido pelos três aspectos anteriores, Avidia, Samskara e Vijnana.
Como sabemos que o encontramos? Existe uma energia que brota, uma ressonância. Essa energia é o selo, é a marca. Existem abundantes exemplos para esse processo: “Eu gosto mais de lençóis azuis” ou “Eu prefiro carros grandes, ou pequenos, ou vermelhos”. De onde surge essa preferência? Existe uma conexão. Experimentem passear pelos shoppings observando isso, vocês vão perceber que cada objeto tem um teor.
Nama-rupa é simbolizado pelo barqueiro. Nós estamos vagueando no rio da vida, portados de um filtro, esse filtro aciona o processo. Ele opera na expectativa de estabilizarmos os estados mentais que desejamos através do poder da discriminação, do objeto. Ele causa isso e não nos damos conta. Quando presenteamos alguém também é assim. Nós tentamos dar um presente que traga um estado mental à tona. Nós oferecemos um estado mental ao outro.
Pergunta: Tudo isso faz parte da mente discriminativa?
Lama: Não, isso não pertence à mente discriminativa. É um processo mais sutil do que os Vedanas. Não é a sexta mente operando, não é o sentido mental observando um aspecto simbólico que já foi determinado, localizado. Não existe uma arquitetura mental nisso. O que existe é um processo de ressonância. A pessoa vai passando e vai vendo se tem ressonância ou não. Está em uma sutileza maior. Ainda não é o pensamento, ele ainda não surge.
O objeto estabiliza um estado mental, com o qual temos uma ligação cármica. A nossa identidade está ligada ali. O amor é outro bom exemplo. A forma pela qual as coisas acontecem, um olha para o outro e brota um estado interno. Olhamos para aquilo e dizemos: “Aquilo sou eu” . Surge uma identidade realmente próxima.
Tudo o que conectamos a nível de nama-rupa parece conosco mesmos. Observem que os filhos parecem ser nós mesmos, o mesmo acontece com a nossa casa, com a nossa bolsa, o nosso corpo, a nossa roupa, e assim por diante. O nosso corpo surge exatamente assim. Nama-rupa produz a experiência de que morreremos juntos quando perdemos algo precioso, como o nosso corpo, por exemplo. E nós morremos juntos... Nós nos identificamos com certos objetos, porque eles sustentam componentes que acreditamos ser nós mesmos.
No momento em que tudo se desmorona, surge o pavor da dissolução. Vamos usar um exemplo com um de vocês. Vamos supor que um de vocês perdesse o marido ou esposa, perdesse todos os filhos, perdesse o emprego, a casa, o país... Como vocês se sentiriam? A pessoa se pergunta_: “Que faço? Quem sou? Eu sou alguma coisa?...”._ Ela olha para as estrelas e as estrelas não são mais as mesmas, as montanhas não são mais as mesmas... tudo ficou cinza, nada adquiri mais o valor ou a atração que havia antes. O mundo morre, desaparece. A pessoa vagueia, ela flutua. Se tiramos todos esses aspectos, que são a estabilização dos nossos estados mentais, isso pode realmente acontecer.
“Todos nós temos o mesmo vaso, a mesma natureza de buda. Quando os ensinamentos são oferecidos há uma dimensão sutil e uma dimensão explícita nisso. Na dimensão sutil há uma ressonância, porque, para o outro entender o ensinamento, tem que gerar aquele som dentro dele. Esse gerar o som significa que ele está atuando com o mesmo sino. É como, também, se ele tivesse vários sinos, quando um sino ressoa, só um sino dentro dele é que vai ressoar. Aquele sino é o sino da natureza de buda na sua originalidade. Quando entendemos alguma coisa é um aspecto muito sutil, porque a base surge.” Lama Padma Samten |
Quinto Elo - Shadayatana
Quando surge nama-rupa, ou seja, a busca, o elo seguinte, shadayatana, se capacita. Na roda da vida, shadayatana é simbolizado por seis casas, ou uma casa com seis janelas, que representa a nossa materialidade física. Nós estávamos buscando a materialidade, agora, encontramos. A materialidade surge, ela está ali, nós escolhemos. Qual é o conteúdo da materialidade? Ele já é a delusão da materialidade, a delusão que ela traz. Quando nós olhamos para aquilo, vimos que está dotado do conteúdo sutil, que brota da aspiração de nama-rupa, que brota, inevitavelmente, ligado a vijnadas e a samskaras. Quando fitamos a materialidade, nesse momento, a delusão é possível. Quando olhamos a materialidade, brota o conteúdo das aspirações anteriores, que são todas ocultas. Junto com a materialidade aparece a delusão.
Quando estamos operando com avidia, vemos que se trata de um processo de construção de escolhas. O aspecto de delusão necessita que tenhamos uma conexão com a matéria. O sentido que vamos atribuir está ligado às nossas aspirações. Nós nos identificamos com aquela matéria, ela está ali.
Podemos também analisar shadayatana pelo ponto de vista de um cientista que cria um instrumento.
Ele, primeiro, concebe o raio-x, mais tarde ele detecta o raio-x. Ele não vai encontrar o detetor antes da concepção. Nils Bohr examinou esse caso com todo cuidado. Por esse motivo, ele dizia que o equipamento experimental, Shadayatana, é inseparável da estrutura acadêmica que o fez aparecer. Não existe um Shadayatana, sem que haja uma estrutura acadêmica anterior. As teorias, os postulados, as visões, todas elas estão manifestadas no equipamento.
O equipamento experimental não se separa do cientista. |
O equipamento experimental surge no universo mental do cientista, espelhando seu universo mental. Quando o equipamento experimental atua, ele encontra objetos. Esses objetos, também, são inseparáveis das próprias teorias. Depois de Shadaiatana nós temos Spasha.
Sexto Elo – Spasha
Shadaiatana é como se fosse seis construções, que simbolizam os seis sentidos, Spasha já é a utilização desses seis sentidos, o encontro dos sentidos com seus objetos. Spasha é quando nós usamos aquela materialidade, como se fosse a nossa expressão.
Na Roda da Vida, Spasha é simbolizado por um bebê no seio da mãe ou por um casal de namorados. Quando surge Spasha, surge o corpo que está operando no seu universo. A delusão está operando firme.
Por isso é que o corpo da mãe provoca uma delusão que o corpo de uma outra mulher talvez não provocaria. Existem todos esses níveis atuando e spasha é o contato, especificamente.
Na medida que há o contato com spasha, ou seja, a medida que spasha se exerce, surge vedana.
Sétimo Elo – Vedana
Nós podemos achar que é bom, ruim ou indiferente. Vedana é simbolizada por uma pessoa enfiando uma flecha no próprio olho. Nesse momento, ela ficou cega pela segunda vez. Ela já estava cega por avidia, agora ela enfia a flecha no olho. Todas as etapas anteriores eram inconscientes. A partir desse momento, elas se tornam conscientes. Tudo o que ela poderá ver será o gostar ou não gostar. Ela simplifica todo o processo anterior pelo gostar ou não gostar. É o que nós fazemos, não é verdade?
Pergunta: Gostar ou não gostar do que? Lama: De um modo geral, ela sente apenas. Quando uma pessoa toca na mão de uma outra que ela ama, ela diz que gosta. Mas isso não está na pele, não é verdade? Se você toca em alguma coisa e gosta. Então você descobre que aquilo era uma cobra, qual é a sua reação? Onde estava aquele gostar? Onde estava aquela sensação agradável? Ela não estava no objeto, estava em um aspecto sutil. De um modo geral, tudo isso está no inconsciente. A pessoa acha que sensualidade é contato físico. Na verdade, é um outro processo mais sutil. A pessoa pode perceber isso ou não. A pessoa acha que a beleza está no aspecto de visão, na forma, mas também não é. |
Com vedana, nós simplificamos todo um conjunto de operações mentais, e, então, surge o gostar e o não gostar. Assim, nós ficamos cegos da camada para baixo. As pessoas têm muitas certezas... Elas se movem dizendo_: “Eu gosto disso, eu quero isso, ou não quero isso”_. Aquilo dá um sentido de propósito, uma sensação de vida, de identidade, de movimento.
Oitavo Elo - Trishna
Como seguimos adiante? Com base em vedana, o que fazemos? Nós achamos que vedana é ótimo. Seguindo o exemplo de um vedana positivo, se achamos que uma coisa é boa, nós tentamos sustentar e reproduzir aquilo. Quando não gostamos de algo, tentamos também sustentar a nossa proteção frente àquilo. Seja como for, tentamos construir, elaborar. A etapa seguinte, tomando vedana por base, seja agradável ou desagradável ou indiferente, pensamos sobre aquilo, elaboramos, construímos de novo, pomos luminosidade a operar. Descobrimos que_, “para isso funcionar, nada melhor do que...”._ Aí temos um bom propósito, que não sabemos bem qual é, depende das circunstâncias. Vejamos o exemplo de uma pessoa tem um trailler de cachorro quente. No momento em que ela percebe que tudo vai indo bem, ela planeja ter dez traillers. É o momento em que ela faz a conta no final do mês e percebe que está ganhando dinheiro. Agora, ela quer multiplicar.
Trishna é potencializar. Está representada na roda da vida por uma pessoa tomando chá. Também poderia ser representada por amigos conversando na mesa de bar, planejando, plantando, construindo. Podemos, também, dizer que trishna é a aspiração da expansão daquilo que se provou. Podemos, neste caso, incluir a ação também - a ação de “plantar a árvore”.
Nono Elo – Upadana
Porque planejamos, plantamos, vamos com certeza colher. Neste elo, estamos diante de uma árvore colhendo os frutos, ou seja, deu certo! O planejamento deu certo. É como se tivéssemos plantado uma árvore e, agora, estamos colhendo os frutos. Por que plantamos a árvore? Porque um dia provamos do fruto e gostamos, agora queremos mais, então, planejamos um pomar. Aquilo está produzindo e nós, muito felizes, estamos colhendo o resultado.
Décimo Elo - Bava
Bava é representado por um casal fazendo amor. Poderia também ser perfeitamente representado por uma pessoa contemplando um cosmo inteiro. Nesta etapa, surgimos dentro de um universo. Solidificamos nosso universo. Em um sentido, se trata de um nascimento. Entretanto, o sentido de nascimento não precisa necessariamente ser representado por um casal que vai tornar isso realidade. O melhor sentido de renascimento é quando uma pessoa se descobre dentro de um universo. É alguém fitando o céu, sem perceber que ela e o universo são inseparáveis. Surgimos pela experiência de upadana.
Também surge uma soberba. Dizemos: “O mundo eu conheço, eu sei como as coisas funcionam, eu tenho experiência. Eu vou lhe explicar, o mundo é assim. Se você quiser ter sucesso, faça como eu.”. Temos uma soberba. Quando descrevemos o mundo, descrevemos a nós mesmos. Vamos encontrar muitas pessoas com sucesso na vida e todas elas descreverão o mundo, mas os mundos não coincidem, porque são mundos particulares. Todos esses mundos são perecíveis. Na verdade, nos vemos como uma identidade, dizemos: “Eu....” e aí nos descrevemos bem. Nós descrevemos o mundo como nós somos e explicamos porque somos assim. Explicamos porque aquilo é esperto, porque aquilo é inteligente. Temos a emoção daquilo também. Nos sentimos integrados, estamos realizados na vida.
A experiência que temos é perecível. Como sabemos que essa experiência é perecível? Vejamos o passado. Nós podemos ver que as nações eram cosmos e elas desapareceram. Os deuses desapareceram, a teoria clássica da física desapareceu. As visões cosmológicas desapareceram, tudo desapareceu, uma coisa após a outra. Tínhamos a cosmologia grega e desapareceu, a cosmologia geocêntrica desapareceu, a cosmologia de Descartes desapareceu. Uma por uma dessas cosmologias foi desaparecendo.
A visão bíblica de mundo também não é mais levada ao ponto de concretitude material. Vocês vejam que um dos argumentos contra o Corpénico, quanto a teoria Heliocêntrica, foi que Josué tinha feito o sol para com suas trombetas. Se na bíblia diz que o sol parou, então, era o sol que se movimentava em torno da terra. Assim sendo, é uma heresia, um afronto a bíblia, um livro completamente sagrado, imaginar que a terra se movimenta em torno do sol. Como pode uma mente humana diminuta ter a pretensão de se posicionar de forma diferente! Esse tipo de visão também sucumbiu. Imaginem como essa visão era forte. Essa visão é forte hoje. Vocês vejam que também isso vem e vai.
Isso diz respeito à bava. Quando, por exemplo, um ex-oficial nazista está sendo julgado, ele está sendo julgado fora do contexto dele. Quando ele matou, seu universo era completamente diferente, ele estava dentro de uma construção totalmente diferente da construção na qual ele está sendo julgado. Isto diz respeito à bava, aquele mundo desabou, morreu.
No bava, a pessoa está sucetiva à tragédia. Dentro de um bava nós cometemos ações. Quando nós olhamos as nossas ações de um outro bava, aquilo parece trágico. Se olhamos a nossa infância à luz dos dias de hoje, nós também temos visões completamente diferentes. Essa é a razão pela qual o passado muda. Os bavas mudam!
Bava é um conceito muito importante. Ele é, ao mesmo tempo, identidade e mundo. Os dois são inseparáveis. É um processo de delusão, mas uma delusão já cósmica. A delusão se oferece em vários níveis, desde avidia nós estamos com delusão. Ela vai se oferecendo em camadas e vai selando os níveis inferiores que, então, têm uma conexão por um aspecto muito simples. Agora, neste momento, nós selamos novamente. Nós selamos todas as nossas experiências anteriores, o “gosto e não-gosto”, está tudo selado. Agora, tudo brotou na forma de visão de mundo, visão de identidade. Surgimos com uma identidade em um mundo. O “gosto, não-gosto” já quase que desaparece porque nós, simplesmente, automatizamos o processo, nós “sabemos como as coisas são, como elas funcionam.
“Eu, sentado aqui no jardim Jatawana, percebo os mundos ilimitados em todas as direções. Em cada um desses mundos existe uma Roda da Vida específica, existem seres específicos, existem Budas específicos, existe uma lucidez que dissolve a Avidia específica. Da coroa da cabeça de cada um desses Budas brotam luzes que me conectam a eles e a todos nós. Essas luzes se espalham e se reconvergem no topo da cabeça e atingem todas as manifestações incessantemente. Quando essas luzes atingem todas as manifestações, todas as manifestações dançam a música do Dharma. Todas as ondas do mar oscilam com o som do Dharma, todas as plantas, todas as cores, tudo oscila com a música do Dharma. Todos os cantos dos pássaros, todas as manifestações elas oscilam revelando o som intrínseco de Avalokteshvara. O som que cura todo o sofrimento, o som que pacifica toda a ansiedade, toda a dualidade. Toda a realidade aparece cosmicamente bela e toda ela se revela completamente perfeita e completamente emancipadora. Quando o Buda está sentado em um lugar espaço-temporal ele olha e seus olhos abarcam tudo, porque o universo inteiro, ou a soma dos universos, são um diamante. Os olhos não param nas paredes. Esse olho que nós estamos desenvolvendo, compreendendo, ele ultrapassa as paredes." Buda Sakyamuni |
Décimo Primeiro Elo – Jeti
Jeti significa “circunstâncias da vida”. Ele é simbolizado por uma criança nascendo, ou seja, ela vai passar por nascimento, crescimento, envelhecimento, decrepitude e morte. Mas o ponto importante das circunstâncias da vida é o fato de que estamos sempre ocupados, tentando equilibrar alguma coisa. É esse elo que vai nos provocar a sensação do décimo segundo elo. Enquanto nós crescemos, estamos buscando estabilizar alguma coisa. O mesmo acontece quando amadurecemos e envelhecemos. Tudo isso faz parte desse processo. Os aspectos de crescimento, envelhecimento e decrepitude são o aspecto externo somente. O que movimenta tudo isso? É o nosso esforço de nos manter equilibrando aquele universo.
Esse elo poderia ser perfeitamente simbolizado por um equilibrista girando pratos. Ao longo da vida, ele tenta aumentar o número de pratos até que ele atinge um ponto. Depois, no envelhecimento e na decrepitude, o número de pratos que ele consegue cuidar começa a diminuir. Então chega um ponto em que ele está girando um só prato, seu corpo, ele come e dorme, é tudo. Mais tarde, eventualmente, ele ainda vai precisar de um apoio mecânico para ajudar o prato girar. Mais adiante, nem assim dá. Então ele morre. O envelhecimento é caracterizado pela perda de habilidade, pela redução das facilidades de mover em meio ao Bava e a sua identidade. Tudo aquilo começa a não mais funcionar direito.
Décimo Segundo Elo – Jana-Marana
Em um certo ponto, vemos que não existe um retorno no processo de estreitamento de nossas habilidades. Nesse ponto, temos a sensação de que estamos começando a morrer. Mais tarde, ocorre a morte biológica. Com a morte biológica parece que tudo termina - mas não.
Nem precisamos considerar a morte biológica, basta pensar em um outro exemplo, como perda de emprego, separação, coisas assim. Podemos nos certificar que também ocorre da mesma maneira. Tudo aquilo vai se estreitando, estreitando e, de repente, não é mais possível ser sustentado, tudo termina.
Quando nos referimos à morte aqui, queremos dizer que morre décimo elo inteiro. Morte significa dissolução de bava, ou seja, a identidade e o mundo correspondente. Isso pode ser um processo individual ou mútuo. Pode acontecer também com muitas empresas, quando estas abrem falência. Pode ainda afetar uma nação inteira ou culturas. Imaginem a situação dos índios aqui no Brasil, a situação das missões que foram destruídas. São universos que desapareceram. Observem os espanhóis chegando no México e construindo catedrais onde, antes, estavam os templos. A história humana é a destruição sucessiva de bavas. Todas as construções passam por isso, as teorias científicas também passam por isso.
Quando o décimo segundo elo se encerra, o que surge dentro de nós? Já não temos mais possibilidades, mas nós temos ainda duas qualidades, que preservamos até o momento final. Essas duas qualidades cruzam conosco na morte.
Quando nos aproximamos da morte, sabemos muito bem o que não queremos que aconteça novamente. Nós temos raivas, dores, rancores, aversões. Dizemos_: “Tudo isso aconteceu por causa de...”,_ poderíamos fazer uma lista. Ao mesmo tempo, dizemos: “Eu perdi as seguintes coisas maravilhosas, eu não gostaria de ter-me privado de...”. Nesse momento, surge na nossa mente todos os seres queridos, todas as situações favoráveis que naquele momento não temos mais.
No momento da morte, nós temos duas aspirações: Uma de nunca reencontrar as condições negativas que tivemos de passar. A outra é a de nos fixarmos de uma maneira realmente lúcida, nítida, decidida com os aspectos positivos. Assim, com essas duas aspirações, nós entramos no sonho do bardo. Nós estávamos no sonho da vida e agora entramos no sonho do bardo. A nossa mente vagueia, ela voltou a uma circunstância, onde a materialidade não estabiliza mais os estados mentais. Nós não podemos mais contar com a materialidade para estabilizar os nossos estados mentais. Esses estados mentais são como o sonho à noite, a nossa mente vagueia sem estabilidade. Mas nós temos duas aspirações, uma de rejeição e outra de aproximação. Com base nisso, nós vamos redefinir o próximo renascimento.
Após a morte, saltamos diretamente para nama-rupa, porque essas duas aspirações representam a estrutura de avidia, samskara e vijnana, que se preservam. Nós desejamos apenas estabilizar as estruturas que nos garantam a felicidade e o afastamento do sofrimento. Assim, nós saltamos para algum dos seis reinos, que é visto como a melhor solução. Dessa forma, nós reiniciamos a roda, tudo se repete, tudo recomeça.
O Bardo da Morte
Existem seis bardos. A palavra “bardo” foi usada por mim nesse momento como o bardo da morte - supressão da biologia, da materialidade. Como surgiu a materialidade? Nós queríamos estabilizar estados mentais a partir da materialidade. Sem essa estabilidade, a mente fica volátil novamente. Ela fica volátil como a mente de um sonho. Como a mente que sonha à noite, ela salta de um lugar para o outro e não precisa de lógica nesse processo, porque opera por luminosidade e não por causalidade. Ela, simplesmente, salta de um lugar para o outro.
Nós operamos com essa natureza luminosa. Se percebemos a natureza luminosa nesse momento, isso é a própria liberação. Uma experiência muito oportuna, se pudermos perceber isso. Podemos atingir a liberação completa nesse momento!
Se não percebermos, estaremos sob o efeito das duas emoções. Então vamos querer uma ação causal, precisamos de um objeto que estabilize as emoções positivas e precisaremos de uma garantia com relação às emoções negativas. Nesse momento, nós vamos olhar a nossa mãe como aquela que proporciona isso e o nosso pai como aquele que nos perturba, no caso dos meninos. No caso das meninas, justamente ao contrário, o pai seria visto como fonte de felicidade e a mãe, como fonte de perturbação.
Quando completa os doze elos, nós saltamos novamente para uma aspiração. Queremos, então, a concretude de nossa aspiração.
Vejam vocês a grande lucidez do Dalai Lama, nós deveríamos fazer prostrações a ele, neste momento. Vejam a grande esperteza dele, do budismo em geral. O Dalai Lama enfatiza esse ponto incessantemente.
Todos os seres desejam a felicidade e desejam se afastar do sofrimento Dalai Lama |
Isto é a herança da nossa morte anterior! Todos os seres desejam a felicidade e desejam afastar-se do sofrimento! Não importa em qual dos reinos eles estejam, eles só querem isso! O Dalai Lama pega isso, que é o que nos conduz para baixo e inverte o processo. Ele diz_: “O.k., você quer felicidade e quer se afastar do sofrimento, então examine o processo que você está utilizando para obter a estabilidade da sua felicidade!”._ Ele começa, então, com um processo dialético que vai nos levar a subir, que nos empurra para cima. Ele pega a semente da desgraça e a transforma na semente da iluminação. Só um grande mestre consegue fazer isso!
A prisão em que nos nós encontramos é totalmente virtual, ela não é verdadeira. Entretanto, para quem está dentro dela, ela é totalmente verdadeira e fixa. Só um grande mestre pode chegar diante dos seres que estão livres, mas não experimentam a liberdade, e mostrar o caminho lento em direção à liberdade. A cada momento, os seres têm responsividades, por esse motivo, eles não conseguem experimentar a liberdade.
Quando nós compreendemos esse ponto, nós podemos voltar ao primeiro dos oito passos do Nobre Caminho, ou seja, o que nós temos feito? Qual é o nosso propósito de vida, o que andamos fazendo? Esta é a pergunta no primeiro passo. Nós só conseguimos compreender melhor isso, quando passamos pelos doze elos e vemos o que nós temos feito. Nesse momento, pode surgir um propósito mais elevado, o que é o objetivo disso.
Tendo chegado ao final do décimo segundo elo, ainda não examinamos como ultrapassar essa experiência. Vimos apenas como essa roda gira. Reconhecemos, também, que esse aspecto dos doze elos é o mais sofisticado dentro da Roda da Vida. Nós olhamos, no início, os três animais, depois, olhamos a impermanência que está ali, que é uma coisa aparentemente simples de entender. Ainda que não compreendamos bem porque a impermanência surge, podemos reconhecer que ela está presente. Depois, nós olhamos os seis reinos, que pode se transformar em uma prática de meditação, ou seja, encontrarmos os nossos impulsos correspondentes aos seis reinos, incessantemente. Este é um ponto importante, o de contemplar o fato de nós estamos sempre agindo na possibilidade dos impulsos dos seis reinos, reconhecermos aquilo dentro de nós. Então, nós olhamos os doze elos. Mas nós os olhamos da perspectiva da construção, como saímos do primeiro e chegamos ao décimo segundo elo. Nós saímos de um plano muito sutil e chegamos em alguma coisa muito concreta, que é a experiência de dissolução, morte, aflição. No meio disso, ficou claro que Nama-Rupa desempenha um papel importante, na medida que determina as motivações sutis que produzem a nossa identificação com a matéria, com a materialidade que nos sustenta os diversos estados mentais. Então, toda sensação de morte está ligada à dissolução do Shadaiatana e, portanto, a frustração daquele esforço, que é Nama-Rupa. Na próxima etapa nós vamos olhar esse processo, como o Buda explicou, que é a meditação sobe a dissolução da experiência. Essa dissolução se dá em dois níveis. Este é um tema realmente muito importante. Isso é a essência do processo de liberação. O processo de prisão são os doze elos, o processo de liberação é a liberação dos doze elos. Lama Padma Samten |