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Tabela de conteúdos
- As Seis Formas de Avidia – Introdução ao Prajnaparamita
- 1. Experiência da Separatividade
- Exemplo 1: O Cubo – Separatividade
- Dhyana
- Exemplo 2: O Sorvete – Contemplação
- Exemplo 3: A Imagem numa foto – Separatividade
- Exemplo 4: O Bastão – Inseparatividade
- 2. Experiência de Criação
- 2.1. Surgimento do Observador
- 2.2. Surgimento do Objeto
- 2.3. Surgimento da Localização Espacial, da Paisagem e do Impulso de Ação
- 3. Experiência de Cegueira
- 4. Experiência de Mundo (sânscrito LOKA)
- Exemplo 7: Outras Culturas, Outros Costumes...
- Exemplo 8: A Garrafa de Coca-Cola – Loka
- Exemplo 9 - A Mosca no Braço
- Exemplo 10: Acupunturista & Médicos Convencionais (1) – Loka
- Exemplo 11: O Rádio – Loka
- 5. Experiência de Trancamento, Selamento, Fechamento (sânscrito TANHA)
- 6. A Perda da Visão Espiritual
As Seis Formas de Avidia – Introdução ao Prajnaparamita
Retiro em Viamão, fevereiro/2002
Lama Padma Samten
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AS SEIS FORMAS DE AVYDIA
Avidia é a manifestação de uma cegueira múltipla e é o processo pelo qual nós ficamos presos na roda da vida. É através de Avydia que a roda da vida surge, nos impedindo de reconhecer a natureza ilimitada. Apesar de os Budas nos dizerem que “todos os seres têm a natureza de buda, todos os seres têm a natureza ilimitada”, por estarmos cegos pelo poder de Avydia, não estamos em condições de reconhecer essa verdade.
Avydia é simbolizada na roda da vida como o primeiro dos 12 elos. Quando esse fechamento é produzido, não há sofrimento. Mas, nesse momento, toda a raiz do sofrimento é estabelecida. Esse fechamento é o núcleo da semente do sofrimento. A própria semente surge um pouco mais tarde, mas o princípio ativo, a essência necessária para que a semente surja, é a própria Avydia. É assim que tudo começa, é assim que o primeiro dos 12 elos se inicia. O último elo é o sofrimento, onde nós estamos agora. Nós estamos em meio a uma grande complicação que não conseguimos resolver. Nós manobramos em meio às dificuldades e, de repente, outros sofrimentos surgem, e mais outros. Nós não sabemos muito bem qual a origem daquilo tudo.
Toda essa situação na qual estamos presos agora é montada em 12 elos e se manifesta em 6 reinos. Ainda que recebamos ensinamentos, ainda que os Budas digam que “você tem a natureza ilimitada”, nós não vemos isso. Essa situação, essa queda de uma amplidão para uma coisa muito particular, é o produto de Avydia.
1. Experiência da Separatividade
Ao invés de usar a forma discursiva, explicando de todas as formas possíveis o que é a separatividade, vou explicá-la através de exemplos. Vamos olhar juntos o exemplo e vamos capturar o princípio ativo dele. Mostrarei vários exemplos de separatividade, para que possamos percebê-la atuando.
Para que possamos perceber a separatividade e para que possamos acusá-la de separatividade, é necessário reconhecer que ela não é uma separatividade verdadeira, mas uma experiência de separatividade. Se acreditarmos que a separatividade é verdadeira, nesse momento, nos ficamos presos a ela, perdemos a nossa liberdade. Nós podemos, no entanto, observar que temos a experiência de separatividade, ainda que ela, na verdade, não ocorra.
Vamos observar, através dos vários exemplos, a separatividade surgindo na presença da inseparatividade. Veremos que a inseparatividade parece desaparecer e a separatividade parece surgir, mas, na verdade, a inseparatividade segue operando. Apenas houve um esquecimento, um não reconhecimento da situação.
Como nós estamos olhando, contemplando isso, podemos contemplar sem penetrar, ou seja, nós vemos aquilo atuando, mas não nos deixamos enganar pelas aparências. O nosso refugio, a nossa base, está num processo de quietude, não permitimos a ação do galo, da nova base do resultado do que estamos vendo. Por não permitirmos a ação subseqüente, pelo poder de Dyana, estamos, então, contemplando. Contemplar, porém, sem sentir o efeito.
Exemplo 1: O Cubo – Separatividade
Um hexágono. Dentro, podemos ver um cubo. Vemos que o cubo está na folha de papel, pois, quando olhamos, vemos o cubo na folha. Podemos observar ainda que nós estamos em um certo lugar e o cubo sobre a folha de papel está em outro.
Como podemos perceber a inseparatividade aqui? Porque não há um cubo propriamente.
Tudo que temos aqui são riscos em uma folha de papel. O cubo não se forma no papel. No entanto, ele parece se formar no papel e, desta forma, parece surgir uma separatividade. Mas essa separatividade não é experimental. Por que? Porque, se não há cubo no papel, o próprio cubo surge porque há uma inseparatividade. Nós fazemos surgir o cubo no papel pelo poder da inseparatividade. Curiosamente, a separatividade surge pelo poder da inseparatividade.
O cubo surge e temos a experiência de que ele está fora do nosso alcance. É muito fácil ver que esse não é o caso. Por que? Porque podemos rapidamente transformar o cubo em um hexágono novamente, ele não está separado. Por outro lado, podemos transformar esse cubo em outro cubo. Se o cubo estivesse em uma folha de papel, separado, não teríamos esse poder. Assim, com essa palavra “separatividade” conseguimos introduzir a expressão “experiência de cubo”. Temos a experiência de cubo sobre a folha de papel, temos a experiência separativa, mas ela não é abrangente, não é segura. Na verdade, essa separatividade não ocorre realmente. Então, o primeiro item de Avydia é a separatividade, podemos ver que isso traduz Avydia. Quando a separatividade surge, surge a causalidade. Se quisermos acabar com o cubo, amassamos a folha. Isto seria um processo causal. Vamos supor que o cubo esteja nos perturbando, nós dizemos “vai lá e acaba com ele”.
O processo causal surge porque nós estamos incapacitados, pela separatividade, de fazer o cubo desaparecer. Nós perdemos a noção da inseparatividade, perdemos os recursos e isso significa que nós estamos toldados, estamos obscurecidos dentro da roda da vida, onde o nosso recurso é a causalidade.
A separatividade introduz a causalidade. O próprio surgimento do cubo é não-causal, o cubo não está em causas externas, ele não pode ser explicado pelo desenho. Ele surge numa inseparatividade que está operando. Sempre que usarmos o processo de inseparatividade para produzir os efeitos, estaremos operando de forma não-causal. Sempre que utilizarmos o processo de separatividade, estaremos atuando de forma causal.
Dentro de um processo usual de pensamento, quando olhamos para um objeto, podemos gostar dele ou não. Quando olhamos para alguma coisa, chegamos a uma conclusão. Vemos o cubo e o tomamos o como referência. Nós analisamos se gostamos dele ou não, nos perguntamos o que fazemos com ele. Esse é o processo de pensamento, as coisas surgem e seguem encadeadas.
No processo de contemplação, nós estamos examinamos a inseparatividade, tomamos exemplos e vamos contemplando, tendo sempre o mesmo foco, a separatividade. Ou tomamos um foco mais geral, como Avydia, e começamos a olhar os itens, mas temos um foco geral do qual não nos afastamos. Temos a observação e a conclusão com respeito aos exemplos, mas não nos dispersamos, retornamos sempre ao mesmo ponto sempre, não o perdemos.
Dhyana
Essa habilidade vem a partir de Dyana. Dyana nos faz parar, mesmo que tudo se mova, ou pareça se mover, ao redor. Então, nós paramos, desenvolvemos essa habilidade. Nos damos conta do que está se passando ao redor, mas não precisamos nos mover. Essa habilidade de não-movimento é essencial para que essa contemplação possa acontecer. Nós vamos e voltamos sem nos envolver, a causalidade não vai atuar.
Dhyana é a ação que nos previne do galo. Quando vemos algo, de modo geral temos um impulso de ação. A contemplação pressupõe que não vamos ceder a esse impulso de ação. A separatividade existe, nós fomos lá e vimos aquilo, ela está atuando, mas não obedecemos ao impulso de ação correspondente. Desta forma, podemos parar e contemplar a própria separatividade surgindo. Se, quando a separatividade surge, seguimos alegremente dentro dela, não temos como contemplá-la.
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Exemplo 2: O Sorvete – Contemplação
Ganhamos um sorvete, mas, ao invés de degustá-lo imediatamente, nós o contemplamos. Vemos a separatividade, Avydia, samskara, atração, tudo aquilo surgindo. Começamos, então, a comer o sorvete. Se a sensação for atribuída ao sorvete e o nosso impulso de ação for comer o sorvete inteiro, isto significa roda da vida usual.
Podemos, porém, observar todo esse fenômeno; podemos comer o sorvete, mas não estar sob o impulso que provém do próprio sorvete, seguimos contemplando. Podemos olhar toda a experiência de sorvete com um raio x, sem nos envolvermos, como costumamos fazer na roda da vida usual. E é isso que estamos fazendo.
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Voltando ao cubo, se estivéssemos na roda da vida usual, perderíamos o interesse rapidamente. Nós estamos, porém, contemplando o surgimento da experiência de cubo, o aspecto milagroso disso. Não estamos propriamente sob o efeito do cubo.
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Exemplo 3: A Imagem numa foto – Separatividade
O que vemos aqui? Nesta foto tem uma superfície de água, onde tem folhas flutuando e onde tem as árvores refletidas. Ao reconhecermos a água, podemos dizer “Oh, que quadro simpático!”
Onde estão as folhas? A resposta natural seria “Lá, no quadro”. De fato, isso é efeito de Avydia. Isso é ação de Avydia que nos faz ter a experiência do surgimento das folhas. Tudo o que temos aqui é papel e tinta. As folhas não passam de “experiência de folhas”. No entanto, parece que as folhas, a água e o reflexo de árvore estão no papel e nós aqui, separados delas. Isto é a separatividade.
Contemplação
No entanto, quando olhamos o quadro, poderíamos desejá-lo ter na parede da nossa casa. Esse impulso, esse desejo de prolongar essa sensação é o galo. Neste momento, já trocamos de base e nos perguntamos “Onde comprar, como emoldurar?” Tudo isso é ação do galo, que é a roda da vida.
Neste momento, porém, não estamos fazendo isso. Nós estamos olhando o quadro, contemplando a separatividade que surge. Neste momento, não é o galo que está comandando. Nós estamos parados com o mesmo foco e contemplando esse efeito surgindo. Isso seria a contemplação desse processo de separatividade surgindo, através de um exemplo.
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Exemplo 4: O Bastão – Inseparatividade
Olhemos esse bastão. Qualquer pessoa diria que este é um bastão que aciona o sino. Nenhum cupim concordaria com isso e ele teria mais razão que nós.
Não nos damos conta desse atributo incessante que é produzido e que ele não tem localização. Assim, a inseparatividade está atuando incessantemente.
No momento em que descrevemos o bastão, estamos descrevendo a nós mesmos. Nós e o bastão somos a mesma coisa. Somos inseparáveis e surgimos juntos na mesma experiência.
2. Experiência de Criação
O primeiro atributo de Avydia é a separatividade, que foi explicado acima. O segundo atributo é a criação, a experiência da criação. O objeto surge como uma experiência - existe a criação da experiência.
2.1. Surgimento do Observador
A criação da experiência tem vários itens. Se observarmos com cuidado, veremos que existem vários pontos dentro da experiência do surgimento de algo. Podemos ver que o objeto obviamente surge. O que parece menos óbvio, é que, ao mesmo tempo, surge o observador também. Espantosamente, levamos um tempo para nos darmos conta disso. Nós estamos automatizados a nos ver como observadores. Se alguém nos perguntar: “Onde está o observador?”, apontaremos para o nosso corpo e diremos: “Aqui estou eu”. No entanto, o observador surge junto com o objeto.
Sem objeto, não há observador. Sem observador, não há objeto.
Para percebermos a mente operando no papel de observador, precisamos ter a experiência de uma mente livre. É muito importante contemplarmos isso, pois esse item nos conecta com a noção de ‘Quem sou eu? Como eu surjo? Como a minha identidade surge? Como a operação dela surge?’ Nós surgimos no mesmo fenômeno dos objetos contemplados.
Temos o surgimento do objeto, o surgimento do sujeito, o surgimento da localização das coisas e o surgimento da localização espacial de posição de objeto e de sujeito. Tudo isso são ‘experiências de’. Essas experiências são tão arraigadas que é difícil observá-las. Para observarmos isso com cuidado, precisamos primeiramente compreender o que é visão e o que é mente.
2.2. Surgimento do Objeto
Nós olhamos e vemos o surgimento do objeto, surgimento do observador, surgimento da localização espacial, que é mais fácil de compreender, porque já vimos a separatividade surgindo. Então, vemos o espaço entre o sujeito e o objeto.
Nós não vemos com o olho físico!
Nós olhamos dentro de um aspecto muito mais amplo, que é sempre a matriz que vamos usar seja para o que for. Isso é a contemplação dos 18 Dhatos descritos no Sutra do Coração, que nos mostra como os sentidos físicos não estão na dependência de seus respectivos órgãos.
Tem mais dois itens aí dentro. Vimos: 1 - o sujeito; 2 - o objeto; 3 - a localização espacial; 4 - a paisagem, onde isso se insere; 5 – o impulso natural de ação. Essa paisagem é a paisagem física e, ao mesmo tempo, mental, onde esse reconhecimento se dá. Nós temos uma experiência de paisagem onde contém tudo. Quando sutilizamos essa paisagem, vamos reconhecer uma paisagem mental atuando. Quando a criação se dá, surge o impulso natural de ação. Ele está ligado à experiência de objeto, à experiência de sujeito, à experiência de localização, à experiência de paisagem e, aí surge o impulso.
2.3. Surgimento da Localização Espacial, da Paisagem e do Impulso de Ação
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Exemplo 5: A Cobra - Matriz
Estamos aqui sentados e vemos uma cobra, uma jibóia, entrando na sala. Olhamos para a cobra e temos uma ‘experiência de jibóia’, mas essa experiência de jibóia não diz respeito propriamente à cobra que está entrando. Nós temos uma experiência de acordo com a nossa Matriz de jibóia.
Nós olhamos para a jibóia, avaliamos a distância e vemos as nossas possibilidades de fugir. Temos, então, o aspecto de localização, temos o aspecto de paisagem e ainda o aspecto de impulso de ação.
Antes de raciocinarmos propriamente, já estamos saindo pela outra porta da sala. Por que? O impulso de ação surgiu! Mais tarde, pode ser que desenvolvamos um outro tipo de relação. No entanto, estaremos sempre sob o efeito de algo que é uma experiência. Uma pessoa que tem uma jibóia domesticada em casa, teria uma reação diferente da nossa. Por que? A matriz de jibóia dela seria diferente. Se ela fosse atacada pela sua jibóia, sua Matriz mudaria.
Por que chamamos isso de experiência? Porque ela é móvel, é plástica, podemos refazê-la, podemos recriá-la. Temos uma experiência separativa, temos a experiência de criação com esses itens vários e, ainda, temos três experiências de fechamento. Todas as outras experiências são a contemplação de como a cegueira se estabelece.
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3. Experiência de Cegueira
A experiência de cegueira também pode ser percebida através do exemplo do cubo, qualquer um deles.
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Exemplo 6: O Cubo – Avydia
Quando vemos um cubo, não vemos o outro. Neste desenho, podem ser vistos dois cubos, um com vértice ‘A’ na frente e outro com o vértice ‘B’ na frente.
Estamos frente a uma cegueira convencional: porque vemos com o ‘A’ na frente, não vemos mais com o ‘B’ na frente. Quando vemos um, não vemos o outro, mas esse processo fica oculto. Quando vemos um, nos ocupamos com ele e não nos damos conta de que perdemos o outro.
Esta é a primeira cegueira convencional. Porque vemos um, não vemos o outro. Quando vemos algo e temos o impulso de ação correspondente ao que vemos, vamos nos movimentar segundo aquela cegueira e vamos seguir assim.
4. Experiência de Mundo (sânscrito LOKA)
Loka_ é uma experiência na qual há o surgimento de um mundo. Esse mundo que surge, é um mundo convencional, é um mundo estreito, que surge sob o efeito da separatividade. Ë a separatividade que produz o efeito de loka.
Quando olhamos sensorialmente ao redor, a nossa mente atua a partir dos sentidos físicos e nós localizamos todas as experiências separativas. Portanto, nós vemos os objetos nos diversos lugares com o conteúdo que nós experimentamos. O conjunto de todos esses objetos e situações chamamos de loka. Nós estamos fechados, presos, dentro dele. Só podemos ter as experiências separativas que correspondem a uma matriz sutil, a um processo mental sutil que nos permite. Esse processo mental sutil, o loka, é o mesmo que nos permite fazer surgir a experiência do cubo, por exemplo. Existe uma estrutura sutil que me permite ter experiências de cubo.
Só pensamos o que pode ser pensado, só vemos o que pode ser visto
Assim, temos as experiências dos vários objetos e, se somarmos tudo, temos as experiências de um mundo inteiro. Como estamos atuando sob aquela matriz sutil, não temos a experiência de outras possibilidades. O nosso número de possibilidades e de experiências de mundo é limitado. Não vamos adiante do loka. É necessário alterar a matriz para que possamos gerar outras experiências de mundo.
Existe uma cegueira que diz respeito às experiências que não podemos ter. Estamos presos dentro desse universo e não conseguimos acessar outros. Mas isso é uma segunda cegueira convencional. Ela é mais difícil de ser percebida.
Pergunta: Qual é a diferença dessa cegueira com relação à primeira cegueira?
Lama: A primeira é uma particularidade. Sempre que focarmos uma coisa, não importa em qual Loka estejamos, deixamos de ver outra. Essa cegueira atua igualmente, independentemente do Loka, quando focamos algo, perdemos outro.
No loka, temos um universo de possibilidades de experiências, porque temos uma matriz que nos possibilita coisas. Sempre vamos atuar segundo essas matrizes. Enquanto atuando separativamente, estaremos sempre na dependência dessas matrizes. Essas matrizes ainda se ampliam. Elas definem a cultura de um povo, definem a cultura de uma família, definem o grau de educação que a pessoa teve. A família, a cultura e a educação são processos de construir, de manipular, alguns itens dentro dessas estruturas. Essas estruturas, porém, ultrapassam vida e morte, elas seguem além de vida e morte.
Refiro-me à loka em um sentido muito sutil. Quando uma cultura se estabelece, por exemplo, ela se estabelece em um nível mais sutil do que o próprio acesso convencional, inteligível, discursivo ou mental.
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Exemplo 7: Outras Culturas, Outros Costumes...
Algumas culturas comem formigas e podemos ver que isso não é uma questão de opinião. Para a nossa cultura, seria inimaginável comer formiga. Outra coisa igualmente inimaginável seria olhar uma cobra com olhos de cozinheiro.
Tudo é uma questão da experiência correspondente. No Brasil, não temos a experiência de comida quando olhamos para a formiga ou para a cobra. Podemos até ter um tratado sobre o valor nutritivo das formigas para a alimentação. Intelectualmente, podemos ter todas essas informações, mas nós não temos o Loka correspondente, não temos a experiência de acessar aquilo dessa maneira, não olhamos para a formiga ou para a cobra produzindo esse tipo de impulso, começando a salivar.
Exemplo 8: A Garrafa de Coca-Cola – Loka
Ainda existem umas poucas culturas na Terra que desconhece a coca-cola. Eles olham a latinha ou garrafa e não sabem o que fazer com ela. Quando provam, acham horrível, não acreditam que alguém pode beber algo tão ruim. Um exemplo disso é o filme abaixo:
Um habitante de uma tribo indígena, na África, encontra uma garrafa de coca-cola que havia caído de um avião qualquer. Curioso, o ser olha para aquilo e leva para a sua tribo, que até então, vivia em paz. Na tribo eles encontram mil e uma utilidades para a garrafa, mas as pessoas acabam brigando por causa dela. Cada um acha que a utilidade que ele dá à garrafa é mais importante, por isso ele deve ficar com ela.
A pessoa que encontrou a garrafa vê aquilo como um alerta dos deuses, achando que se apossou de alguma coisa que lhe pertencia, por isso gerou uma grande discórdia na sua tribo. Decidido, ele se prepara para uma longa caminhada, na procura dos deuses que a haviam perdido a garrafa, com a intenção de devolvê-la.
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Loka é uma experiência que brota livre do raciocínio, mas essa experiência não é dominada pelo raciocínio. A experiência de mundo é uma experiência que vem de um nível muito mais profundo. Quando reconhecemos o cubo, essa experiência está se manifestando em um nível muito sutil. Não é uma opinião de cubo que se manifesta, mas uma visão de cubo. Loka domina as mentes que atuam junto com os sentidos físicos.
Nós temos cinco sentidos físicos e um sentido mental. Loka define as possibilidades das experiências sensoriais. Nós não percebemos que a experiência sensorial está filtrada por uma mente específica. No entanto, essas mentes atuam e elas sonham também. Loka é um departamento muito interessante porque é inseparável das próprias mentes que atuam junto aos sentidos físicos.
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Exemplo 9 - A Mosca no Braço
Nós vemos uma mosca caminhando no braço, a mosca vai embora e nós ainda a sentimos por um certo tempo. Isso é um sonho da mente sensorial tática. Não tem mais mosca ali!
Da mesma forma, nós vemos alguém, a pessoa vai embora. Não a vemos mais com os olhos físicos, mas a pessoa continua sendo vista pela nossa mente.
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Nós continuamos visualmente vendo, nós sonhamos visualmente, nós sonhamos de forma tática. Todas as mentes associadas aos sentidos são canais de acesso e manipulação das experiências que ocorrem dentro de loka, mas aquilo que não está dentro de loka não vai ser experimentado. Portanto, a cegueira diz respeito a isso.
Vemos, em vários casos, experiências que não tínhamos antes e que começam a surgir. Existe uma interface. É essa interface que nos permite ver isso atuando.
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Exemplo 10: Acupunturista & Médicos Convencionais (1) – Loka
Quando acupunturistas conversam com os médicos convencionais, ele não se entendem. São dois universos completamente diferentes. Os acupunturistas vêem as energias dentro do corpo, enquanto que os médicos tradicionais não as vêem. Os médicos convencionais, por sua vez, por não verem, vão achar que acupuntura é magia. Eles não entendem como aquilo funciona.
Exemplo 11: O Rádio – Loka
No Tibet, apareceu um vendedor com um rádio, a caixa mágica na qual se escuta a voz de uma pessoa a uma grande distância. Na época em que isso aconteceu, não havia nem energia elétrica no Tibet, então, aquilo era realmente uma caixa mágica. A caixa é mágica porque não está naquele universo. A pessoa vê aquilo funcionar, mas não consegue explicar, ou mesmo, entender como; não consegue incluir aquilo no seu mundo. Isso é uma alimentação de Loka. Uma pessoa daquela época nunca poderia sonhar com o rádio!
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O loka é uma realidade pré-estabelecida, mas nós, convencionalmente, estamos presos a ela. Essa prisão nos restringe dentro da operação convencional. Observem que já temos duas cegueiras convencionais.
Depois, surge um quinto item dentro de Avydia. Vejam que os quatro itens anteriores têm por base a separatividade. Os lokas não surgiriam se não fosse a separatividade também.
5. Experiência de Trancamento, Selamento, Fechamento (sânscrito TANHA)
Surge uma energia de defesa frente à nossa visão. Quando vemos o cubo, temos um apego a um cubo em relação ao outro. Sempre que estamos presos em um certo tipo de visão, temos a dificuldade de trocar, nós resistimos. Essa resistência é o sistema de trancamento.
Como mencionado, quando temos um loka específico, surge uma resistência. Se alguém nos diz: “Não, não é bem assim, você não precisa passar por esse sofrimento”, alegamos: “Como?! Você diz isso porque não está na minha pele!”. Assim, nós resistiremos, não nos dispomos a mobilizar a situação. Quando, finalmente, movemos, nos parece completamente natural ter movido. Então, assumimos completamente a outra posição. Existe uma ‘cola’, uma teimosia e isso é tanha. Isso é um método de defesa adicional.
A primeira cegueira convencional acontece quando nós vemos um cubo e não vemos o outro. Ou vemos um, ou o outro e, por ver um, não vemos o outro.
Nessa primeira cegueira, sabemos que existe um outro, tentamos vê-lo, mas não conseguimos. Tem um processo, uma miopia. Tentamos passar para o outro lado, mas não temos a experiência. É muito difícil. De repente, conseguimos. Então, tentamos voltar e temos dificuldade. É um processo de trancamento, um processo que pode produzir uma vontade de trancamento. Ele é uma impossibilidade sutil, é um processo de perda de mobilidade do referencial da mente que produz a experiência.
Usamos o exemplo do médico convencional e do acupunturista. O médico convencional vê a doença, mas não vê a energia natural do corpo. Ele não trabalha com as energias. Nenhuma disciplina do curso vai ter isso, as energias naturais de cura do corpo. O loka é o processo no qual o médico vai dizer: “Isso aí é feitiço, isso não existe!”. No universo dele, essa visão realmente não existe.
Quando observamos o desenho do cubo, vemos que os dois são possíveis. Os dois cubos estão no mesmo universo, no mesmo loka. O mesmo loka tem os dois cubos. Porém, quando vemos um não vemos o outro. No quarto item, porém, que é a segunda cegueira, a cegueira de loka, é como se o outro cubo não pertencesse ao universo.
Pergunta: É como se fosse um paradigma?
Lama: Um paradigma é uma estrutura, uma visão e o que está fora daquele paradigma não conseguimos acessar. Mas o paradigma está dentro de uma verdade convencional discursiva. É por isso que podemos falar do paradigma.
Aqui é um nível mais sutil. É um processo que atua dentro dos sentidos físicos. Após raciocinar, eu chego a uma conclusão e posso dizer que o fumo não é interessante. No entanto, eu sigo operando com o apego ao fumo. É o Loka que define o apego ao fumo, ele não trabalha a nível de opinião. Ele trabalha a nível de produzir a experiência mesmo.
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Exemplo 12: O Painel de Lâmpadas - Tanha
Vamos supor que estejamos olhando painéis de lâmpadas. No início, quando algumas lâmpadas acendem, umas aqui, outras ali, vemos apenas lâmpadas. De repente, mais lâmpadas acendem, sincronizadas em forma de linhas. Nesse momento, não estamos mais vendo lâmpadas, mas linhas. Com mais luzes sincronizadas, estaremos vendo letras se formando. Depois, as letras formam palavras, as palavras andam e têm significados correndo ali.
Quando as palavras estão andando nem estamos mais vendo letras, já existe uma certa dificuldade de deixar de ver as palavras e olhar as letras. Também não conseguimos deixar de olhar as letras e ver as lâmpadas. Quando começamos a olhar de um certo jeito, temos uma proteção para conseguir seguir olhando daquele jeito.
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Essa proteção é esse quinto aspecto. A disposição adicional para ficar preso, de não mobilizar a visão, de não deslocar nem loka nem objeto. É isso que nos permite andar e nos movermos no mundo. É isso que nos permite uma concentração, que nos permite entrar em um shopping, por exemplo, ver milhares de pessoas, milhares de cartazes de todos os tipos, milhares de mensagens e caminhar retos em direção ao que estamos querendo ver. Nós usamos constantemente o poder do trancamento.
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Exemplo 13: Criança – Trancamento
Nós ensinamos esse trancamento também às nossas crianças. As mães dizem: “Meu filho, você vai à padaria e compre essas coisas, volte para casa e não vá se distrair no caminho. Não converse com ninguém, não aceite presente de ninguém. Você vai e volta, que eu estarei aqui esperando, e eu vou contar o tempo”. Dessa forma, a mãe produz um fechamento. A criança, então, vai, vê os amigos jogando bola, mas resiste. Ele vai e volta diretamente por causa do trancamento.
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6. A Perda da Visão Espiritual
Essa é a perda mais grave. Todos os cinco itens anteriores operam de forma oculta, não vemos acontecer. Alegremente, saímos correndo atrás dos objetos, andamos para lá e para cá, nos movemos dentro dos universos específicos e simplesmente não tomamos conta do que está realmente acontecendo. Isso é Avydia. Esses cinco itens são explicados pelo cego - cego da visão espiritual. Ele não vê isso acontecer.
Quando vemos isso acontecendo, aí vem rigpa. Quando temos a compreensão e nos damos conta disso acontecendo, podemos andar no meio dessas experiências e só vamos encontrar mais exemplos dessa experiência, de se mover no meio desses fenômenos, que apenas apontam Avydia, da mesma forma que estamos aqui examinando esse processo. Nós somos capazes de examiná-lo porque não entramos na magia do cubo, nas várias magias que fazem surgir os mundos específicos que nos prende nisso. Estamos treinando a passagem por dentro e esse treinamento é contemplação. Nós passeamos por dentro e aquilo atua, se não atuar, nós não temos os exemplos para reconhecer. Tudo aquilo atua, mas não nos prende. Nós observamos os itens adicionais que não são mais propriamente Avydia.
Para que possamos compreender melhor como Avydia age, precisamos perceber que a inseparatividade está atuando incessantemente. Precisamos reconhecer que nós criamos todas as circunstâncias. Cada vez que olhamos para o cubo, o reconstruímos. Por esse motivo, podemos reconstruí-lo diferentemente. Como não nos damos conta disso, pensamos que o cubo é a experiência de cubo, que ele está na frente, separado de nós. Mais tarde, quando o reconstruímos de forma diferente, dizemos: “ele não é mais o mesmo!”. Atribuímos a função a ele.
Desta forma a impermanência pode surgir, ela não tem como não surgir. Porque a inseparatividade segue atuando, os objetos não estão nos objetos, eles são a experiência de objetos e assim existe uma impermanência natural nesse processo. A impermanência surge como a própria manifestação da inseparatividade.
Espiritualidade
Na verdade, eu usei essa expressão, não porque eu vou trazer de uma outra experiência a palavra espiritual para usar aqui. Essa é uma expressão que estou usando e estou definindo a visão espiritual por isso mesmo. Aqui, neste contexto, a visão espiritual é ter a clareza sobre esse processo. Não ter a visão espiritual é não ter essa clareza. Eu não estou buscando de uma outra tradição, de uma outra explicação, o significado da palavra espiritual. Estou oferecendo aqui mesmo esse significado.
Quando essa visão ativa é produzida, vamos desenvolvendo os resultados correspondentes. Esses significados vão solidificando em forma de marcas. A contemplação dos exemplos se torna cada vez mais fácil para nós, o loka vai surgindo efetivamente. Vão surgindo as estruturas por trás. Essas estruturas vão se expandindo, vão se tornando mais complexas. As estruturas que surgiram em um nível, permitem o surgimento de outros níveis, tomando as anteriores por base. Tudo vai se tornando mais e mais complexo. Assim, nós vamos girando dentro da roda, vamos passando de um item para o outro dos 12 elos. Assim, surge a possibilidade de contemplarmos essas coisas.
Dhyana (meditação)
Na contemplação, usamos o poder de Dhyana. Nós paramos. O corpo pára, a energia se estabiliza, pousamos a mente sobre o item separatividade. Quando pousamos a mente sobre o item separatividade, parece que não vem nada. Como temos dhyana, não nos afastamos do tema, não nos afastamos do ponto. Seguimos olhando. Daqui a pouco, começamos a ver a separatividade. Então, começamos a ver os exemplos, uns após os outros. Isso é a contemplação específica. Essa passagem da experiência de não vermos para, de repente, a experiência de vermos, é uma experiência muito parecida com aquelas gravuras “3D”: nós não vemos..., não vemos..., não vemos..., e, subitamente... vemos!
Dhyana pode ser dividida em três itens: o corpo, a energia e a mente. Se conseguirmos dirigir isso, o processo aleatório cessa. Assim, podemos ver aquilo que é mais difícil, porque, se olhamos um pouco e nos dispersamos, não conseguimos penetrar no que é complexo. Portanto, precisamos ter a estabilidade. Se olharmos uma gravura “3D” e tivermos a mente dispersa, jamais estaremos em condição de cruzar aquela aparência e ver o desenho. Para isso, necessitamos de uma mente que seja capaz de parar, de uma mente que penetre.
Estamos entrando na sexta etapa, que é a capacidade de praticar dhyana. A partir do olhar, até que aquilo começa a aparecer, nós começamos a contemplar os itens específicos. Sabemos que a separatividade está em tudo e que a inseparatividade, também, está em tudo. Podemos, então, pousar os olhos sobre qualquer lugar. Assim, fazemos brotar a visão disso. O cubo se torna um exemplo desnecessário. A separatividade e a inseparatividade estão em todas as coisas. O cubo é só para facilitar, mas podemos pousar os olhos em qualquer coisa e isso estará acontecendo.
Podemos, então, pousar os olhos e não vermos. Mais uma vez, voltamos para o cubo, para nos lembrarmos. Procuramos, então, outros exemplos e perseveramos até que aquilo apareça.
Então, nós estamos começando por dyana, que é a sexta etapa do Nobre Caminho. Nós começamos pela estrutura, gerando primeiramente a capacidade de parar o corpo, estabilizar a energia e pousar a mente onde quisermos. Isso é dhyana. Se ficarmos dispersivos, com a mente vagueando de um lado para o outro, não conseguiremos penetrar nas coisas mais difíceis, como a visão “3D”. Por isso, temos de gerar a habilidade de poder penetrar nisso. Por esse motivo, o primeiro passo da meditação é esse.
Esse é o foco tríplice, na verdade, corpo, fala e mente. Depois disso, podemos começar a contemplar, item por item. O Sutra do Coração tem 46 itens para serem contemplados. Todos eles subdivididos. O nosso objetivo é gerar a capacidade para poder penetrar no Sutra. Enquanto não possuirmos essa estabilidade, não conseguiremos penetrar nisso. Agora estou começando a arranhar esse conteúdo. A primeira forma de penetrar nisso é através de Avydia. Estou explicando Avydia, porque Avydia está presente em todos os 45 itens que estão descritos no Sutra.
No momento em que nós estamos examinando isso, vendo os exemplos, já estamos praticando a contemplação, apoiada pela palavra, pela explicação. É como se eu estivesse empurrando um automóvel cujo motor não quer pegar. Neste caso, eu estou empurrando com palavras, para ver se, em um certo momento, aquilo acontece na mente de vocês. Quando isso acontecer na mente, aí nós aproveitamos melhor o tempo. Então, nós podemos parar. Teremos a própria habilidade de andar no meio disso e ver por nós mesmos.
Ainda assim, a meditação, como todo método, termina em um certo ponto, que é quando não precisamos mais parar para poder ter essa experiência. A experiência se torna natural. Porque quando a separatividade se dá, de um modo geral, nós não a percebemos.
Na física quântica, Niels Bohr diz: “Os paradoxos pertencem à física clássica e não à física quântica.” As coisas aqui também parecem paradoxais, mas isso se dá dentro da visão comum. Nós não sabemos como brota a impermanência, de onde brota a dor, mas todas são subprodutos de Avydia. Como nós temos uma visão separativa, nos atamos a uma experiência, não queremos que aquilo se mexa. Quando, inevitavelmente, tudo se mexe, já temos um processo de defesa acionado para aquilo. Quando esse processo de defesa é acionado, o chamamos de dor.
Vemos essa dor, essa agressão toda que utilizamos para fazer tudo equilibrar, como uma coisa completamente natural. Assim, surgem as 6 emoções perturbadoras e as 10 ações não-virtuosas de forma completamente natural, necessária. Mas tudo isso é um esforço de sustentação da visão insustentável. Por que ela é insustentável? Porque ela não se exerce verdadeiramente. O que se exerce verdadeiramente e incessantemente é a inseparatividade, quer a reconheçamos ou não.
Como esse efeito de inseparatividade segue atuando, não conseguimos manipular como gostaríamos. Nós ficamos à mercê de uma série de processos que escapam à nossa intervenção. Porque a nossa intervenção está dentro de um loka e o universo é muito mais amplo do que um simples loka. E o universo segue se movimentando. Ele atravessa as nossas fronteiras de lokas sem o menor esforço. E nós só temos aquele recurso estreito dentro dos lokas. Assim, surge o sofrimento, a sensação de impotência.
Pergunta: Então a impermanência não existe, mas sim, a experiência de impermanência?
Lama: A impermanência sempre se dá com relação a objetos separados, ela está na dependência disso.
Pergunta: Não existe algo como o centro da inseparatividade? Algo que possamos nos ancorar como sujeito?
Lama: Sim, o refúgio. O refúgio é duplo. Na verdade, ele é triplo, ele pode ser ampliado. O refugio funciona mesmo nas piores situações. Quando recuperamos a visão espiritual, reconhecemos que existe uma liberdade natural que permite o surgimento das separatividades. A multiplicidade de todas as coisas é possível porque existe uma natural liberdade. Essa natural liberdade é o refúgio último. É isso que nos permite dizer: “Tal coisa é uma experiência de...”
Se sentimos dor, reconhecemos que é uma experiência de dor e, então, podemos sorrir para aquela experiência. Se alguma coisa desaba, reconhecemos a tragédia como uma experiência de desabamento, de tragédia. A natureza não-construída está presente, tanto que as construções podem surgir. A natureza não-construída é um substrato onde as construções podem surgir.
Por esse motivo, tomamos refugio na natureza não-construída. Ao contemplarmos tudo isso, vemos a natureza não-construída oferecendo substrato para todas as construções.
De uma forma muito curta, na meditação, durante uma grande dispersão mental, também podemos dizer “isso é o que eu estou fazendo com o silêncio”. Essa expressão retira a pessoa da luta contra as aparições. Aquilo se torna uma aparição natural da luminosidade e da liberdade que permite o surgimento de Avydia, permite o surgimento dos lokas. Essa experiência de substrato de todas as possibilidades é uma experiência mais fundamental.
Nós tomamos refúgio nessa natureza, que é uma natureza totalmente acolhedora, de onde brota tudo como possibilidade também. O tempo brota dessa natureza, mas ela não está dentro do tempo. O espaço brota dela, mas ela não está dentro do espaço. Todos os objetos brotam dela, mas ela não está dentro dos objetos, nem é redutível a algum objeto. É como um quadro em uma sala de aula. Ele contém todas as aulas de todos os professores, mas ele não está nas aulas.
Pergunta: Durante a meditação, apareceram, na porta à minha frente, várias figuras diferentes, como bichinhos, pessoas, montanhas, etc. Eu tentei vê-los como a luminosidade da mente atuando. Mesmo assim, eles me atrapalharam, pois tiraram toda a minha atenção.
Lama: Este é um bom exemplo para mostrar como a dispersão manifesta a natureza luminosa da mente. Quando você está vendo essa sucessão de entidades e de seres, incluindo a própria porta, tendo as várias experiências, isso é a natureza da mente se oferecendo, ou seja, essa mobilidade, essa capacidade de construir, de sustentar. Quando você olha para porta, um conjunto de pontinhos talvez lhe permita ver um rosto, uma imagem.
Observemos, então, o que significa o objeto. O objeto é aquilo que vai estabilizar uma certa estrutura, vai permitir a manifestação mais estável de uma certa estrutura. Essa é a razão pela qual nos fixamos nos objetos. Mas isso é uma inseparatividade. O objeto ganha aquela feição a partir dessa experiência que surge de fato. O objeto não é objeto, mas a experiência de objeto.
A luz que entra nos olhos é a mesma, a experiência sensorial é a mesma, mesmo assim, começam a aparecer muitas e muitas coisas. Você está passeando dentro da experiência que produz a gênese do surgimento dos objetos. A partir disso, você pode perceber a inseparatividade que existe entre você e os objetos efetivamente. Porque são diferentes experiências que brotam da mesma luz externa. A mesma experiência sensorial produz diferentes experiências de reconhecimento.
Essa experiência é similar à do cubo, só que no seu caso é múltipla. Essa mobilidade aponta diretamente para essa natureza. A dispersão mental é uma manifestação dessa liberdade. Ela é uma manifestação da mente totalmente acolhedora.
Quando estamos operando dentro da causalidade, quando surge um objeto, nos perguntamos: “Por que esse objeto? Qual é o significado? O que devo fazer com isso?”. Assim começamos a andar no mundo daquele objeto e isso é a roda da vida. Quando percebemos que aquilo é a manifestação que passa a surgir a partir da liberdade natural, a partir do silêncio, vemos esse fenômeno extraordinário que é a mente produzindo isso, produzindo as experiências como se fossem externas, com se fossem na porta. Tudo isso é espantoso. Isso é o sonho da sua mente visual. A sua mente visual está sonhando.
Alayavijnana
Se quisermos olhar essa mente, existem aquelas duas expressões em sânscrito. Uma delas é alayavijnana. Essa matriz em sânscrito se chama alayavijnana. Se quisermos ter uma experiência de alayavijnana, é só olhar em volta. Isso tudo é alayavijnana. Contudo, nós não vemos isso como alayavijnana, mas como um conjunto de objetos. Se fecharmos os olhos, talvez veremos os mesmos objetos nas mesmas posições. O que estaremos vendo então? Alayavijnana! Não estaremos vendo com os olhos! Vemos diretamente a estrutura. Podemos atribuir o mesmo significado aos armários, às portas, às janelas, à Eliane. Atribuímos as mesmas estruturas, estão impressas em alayavijnana. Quando abrimos os olhos, não vamos ver melhor, porque a Eliane é a mesma, com olho aberto ou fechado. Eu vejo a Eliane a partir de alayavijnana. É alayavijnana que me permite ver e não os olhos.
Os sentidos físicos são um ornamento da visão.
A visão, neste caso é tomada em um sentido mais amplo do que a visão dos olhos. Com alayavijnana, movimentamos os 5 sentidos físicos e a mente. Só podemos ver o que está impresso em alayavijnana, estamos presos nessa matriz. Isso é o loka, é o mundo. Por isso podemos afirmar que a mente e o mundo são a mesma coisa. Enfim, não há separação nisso. Porém, se quisermos tratar das emoções e da mente, podemos tratar separadamente, como tratamos corpo, fala (emoção) e mente, mas, enfim, os três estão unidos.
Pergunta: De onde surge a lógica?
Lama: A lógica é uma operação da sexta mente. Paramos para pensar, vemos objetos do nosso pensamento. Manipulamos, então, esses objetos de uma maneira lógica, ou não. Os objetos que estamos manipulando podem ser surgidos a partir da experiência das mentes associadas aos sentidos físicos. Essa mente de raciocínio não penetra na mente dos sentidos físicos, pois ela não tem o poder. Ela é um deles, é equivalente. Nós pensamos com os sentidos físicos sem nos darmos conta disso. Uma pequena mobilidade de pensamento com sentido físico é essa: percebemos que trocamos o cubo e o vemos diferente. Porém, o ver é uma operação da mente ligada aos olhos.
Em tibetano, a mente racional está ligada a Nampashepa. As diferentes mentes também não são separadas. Cada uma é chamada de uma outra forma, existem muitas palavras para designar uma a uma. Tem um núcleo que gera diferentes descrições, mas a separatividade entre elas de fato não existe. A liberdade dos seres dentro da roda da vida é muito difícil frente a isso. É muito difícil em todos os reinos. Até no reino humano é muito difícil. Na condição humana, os ensinamentos estão disponíveis. Os Budas passaram e encontraram um jeito milagroso de pegar a própria confusão, mergulhar dentro dela e tirar alguma coisa, além da própria confusão, e isso é o milagre.
O Bodhidharma livrou os seres da almofada.
Para nós, o ponto importante é poder aproveitar depois o tempo da meditação, ou seja, parar e ser capaz de reconhecer os diferentes pontos atuando. Precisamos treinar isso quantas vezes forem necessárias, incessantemente. Isso nos permite fazer prática aonde estivermos. Isso nos livra da almofada. Se diz que Bodhidharma livrou o budismo da almofada. Nós não precisamos da almofada para fazer essa prática. Não precisamos ficar parados para fazer isso. Talvez no início, mas mais tarde não mais. Esta é a ênfase nesse ponto.
Todos esses ensinamentos são, lastimavelmente, auto-secretos, todos. Nós vemos, mas daqui a pouco não vemos mais, mesmos que nos lembremos de todas as palavras. Por isso, enquanto estamos sob a benção de poder ver, que olhemos isso muitas e muitas vezes. Isso é semelhante a um sonho, que nós tentamos nos lembrar depois, mas, quando acordamos, ele se foi. É necessária uma condição particular de mente para que possamos acessar isso. Nós nem percebemos que entramos nisso. Depois que saímos, não conseguimos mais retornar. Por isso, é necessário que, enquanto estivermos nessa condição favorável, passemos muitas e muitas vezes por esses pontos para que alguma coisa, pelo menos, 1% disso nos permita reentrar.
Pergunta: O que fazer frente a um problema?
Lama: Depois isso se torna um pouco mais fácil. Ainda assim, quando surge uma perturbação mais grave, nos perdemos completamente. Isso é praticar. Da próxima vez, faremos melhor. Tomamos como estímulo o fato de que vamos cruzar pela morte. Nesse momento, precisaremos ter lucidez. Ainda assim, com o fator benéfico, por pior que seja os fatos, a tragédia ou mesmo a morte, mais tarde nós retornamos. Maharaja não tem tanto poder assim. Maharaja é a própria manifestação dos Budas. A atuação de Maharaja se dá dentro dos lokas e eles são etéreos. Devemos sempre lembrar-nos de que nada está perdido quando tudo parece perdido.
Quando olhamos o cubo, observamos que existe uma troca de visão. Essa visão não é causal. Normalmente, utilizamos a palavra racional para coisas que são causais. Agora, estamos tentando utilizar uma linguagem convencional para chegar ao ponto de reconhecer as ações não-causais. Estamos usando a linguagem do mundo, trocando o mundo pela terra pura, olhando dentro do mundo diretamente o processo não-causal atuando. Enquanto fazemos isso, uma das coisas saborosas dessa contemplação é que toda ação causal é, na verdade, uma ação não-causal. Essencialmente, a causalidade não elimina a não-causalidade.