Conteúdo
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Tabela de conteúdos
- Seis Selos e os Oito Pontos do Prajnaparamita
- Introdução
- O Primeiro Selo: Dê às aparências o selo da Vacuidade
- O Segundo Selo: Sele a vacuidade com as aparências
- O Terceiro Selo: Sele ambas com a não dualidade de aparência e vacuidade
- O Quarto Selo: Sele a não dualidade com a grande bem aventurança
- O Quinto Selo: Sele a grande bem aventurança com a ausência de pensamento
- O Sexto Selo: Dê à ausência de fixação mental o selo do imutável Darmata
- Usando os Seis Selos para transcender os Cinco Bardos
- Os Oito Pontos do Prajnaparamita
- 1) Primeiro Ponto: Puxamos a forma
- 2) Segundo Ponto: Contemplamos a coemergência (inseparável de quem olha)
- 2A) Coemergência mente-forma: isso é, isso não é, isso é
- 2B) Coemergência mente / forma / energia / paisagem / identidade / causalidade / propósito / visão estratégica / urgências: bolha
- 3) Terceiro Ponto: Contemplamos o aspecto vazio (não tem aquilo dentro)
- 4) Quarto Ponto: Percebemos o aspecto luminoso ou coemergente (tem aquilo dentro)
- 5) Quinto Ponto: Contemplamos aspecto vazio/luminoso (é na forma que o vazio se manifesta), aqui brota a sabedoria primordial, a mente do Darma do Buda
- 6) Sexto Ponto: Contemplamos a energia (vejam o surgimento dos cinco lungs, os lungs dos cinco elementos) que se movimenta em nós, e sua relação com a vacuidade
- 7) Sétimo Ponto: Contemplamos a magia disso tudo e a causalidade decorrente
- 8) Oitavo Ponto: Sorrimos! É assim que o Samsara nos pega! Natureza vajra. Oferenda de Samantabadra. “Diante da energia, que brota da forma vazia e luminosa, eu sorrio.”
- Darmata e a prática da Presença: Quinto e Sexto Selos
- A dissolução da identidade e a construção do bodisatva
- Transmigração e originação dependente
- Sofrimento, vida e morte nas abordagens Mahayana e Dzogchen
- Guru Rinpoche e o aspecto extraordinário
Seis Selos e os Oito Pontos do Prajnaparamita
Lama Padma Samten
CEBB Darmata, Timbaúba, 07 de janeiro de 2015
Áudio: http://goo.gl/75JOkq
Transcrição: Cristiano Ramalho, abril 2015
Revisão: Joana Braga, maio 2017
Palavras chaves: Seis Selos, vacuidade, oito pontos, Prajnaparamita, Pico do Junípero, bardos, roteiro de 21 itens, Presença, Darmata.
Introdução
Então, tinha aquele tema que surgiu ontem, os oito pontos do Prajnaparamita. Vou comentar isso junto com os ensinamentos do Pico do Junípero para os cinco bardos, que tem uma parte que é a culminante desse tema: os Seis Selos. Quando pensamos em visão – dentro dessa classificação que é motivação, visão, meditação e ação – a parte de visão tem a culminância nesses seis selos.
Selos é como se fossem seis compromissos. Seis compromissos de prática, seis compromissos de visão. É raro encontrarmos algo que seja bem sucinto, bem curto, e vá diretamente ao ponto. Esses Seis Selos têm essa capacidade. É importante que guardemos isso na mente. Nós podemos fazer a prática em qualquer momento dos seis bardos, dos cinco bardos, dos quatro bardos. A qualquer momento nós podemos fazer essa prática.
Se estivermos sentados em meditação podemos fazer, se estivermos deitados podemos fazer, se estivermos morrendo, se estivermos sonhando... Onde a pessoa estiver pode – tchup! – lembrar os seis selos e de novo aplicar isso. É uma chave: nós estamos perdidos em algum lugar, totalmente confusos e lembramos dos Seis Selos. Aí aquilo – flopt! – Super rápido. Esses Seis Selos são a culminância dos oito pontos do Prajnaparamita. Eles também podem ser pensados como sendo os próprios oito pontos do Prajnaparamita.
O Primeiro Selo: Dê às aparências o selo da Vacuidade
O primeiro ponto é assim, o primeiro dos seis selos: dê às aparências o selo da vacuidade. Estamos no meio de uma confusão e dizemos “essas são as aparências, as aparências são vazias”. Como vamos fazer esse exercício para lembrar que as aparências são vazias? São as bolhas, a coemergência, os oito pontos do Prajnaparamita. O ponto que estamos comentando é: pegamos uma aparência e começamos a contemplá-la até encontrarmos que ela é inseparável da bolha. Vemos a vacuidade daquilo. Fazemos isso tantas vezes até o ponto em que as aparências ganham o selo da vacuidade.
Vocês podem também fazer esse exercício através da originação dependente. Vocês se dão conta de que tantas vezes contemplaram as aparências a partir da originação dependente que percebem as aparências como vacuidade. Podem também pegar algum exemplo que vocês lembrem, como o templo, como uma foto, como algum exemplo que seja uma garantia... Aí vocês voltam para aquilo e contemplam as aparências que vocês estão e aí uau! Primeiro selo “dê as aparências o selo da vacuidade”.
O Segundo Selo: Sele a vacuidade com as aparências
Depois o segundo selo é “sele a vacuidade com as aparências”. Nós nos damos conta de que aquilo chamamos de vacuidade é perfeitamente localizável nas aparências. Não vamos encontrar a vacuidade senão nas aparências. A vacuidade é uma propriedade direta das aparências, elas são inseparáveis. Então sele a vacuidade com as aparências.
O Terceiro Selo: Sele ambas com a não dualidade de aparência e vacuidade
Então vem esse terceiro ponto: sele ambas com a não-dualidade de aparência e vacuidade. Ou seja, sele ambas – a vacuidade e as aparências são inseparáveis.
O Quarto Selo: Sele a não dualidade com a grande bem aventurança
“Sele essa não dualidade com a grande bem aventurança”: nós nos damos conta da aparência e vacuidade. Não é que o templo me engane, mas o templo manifesta o aspecto. A vacuidade se manifesta como templo, como aspecto luminoso, como templo. Então aquilo é encantador, é maravilhoso. A originação dependente me faz construir uma coisa que não há através de outras coisas que não são, há um aspecto luminoso que faz isso acontecer. Quando nós percebemos isso, a percepção disso produz em nós aquilo que é chamado de grande bem aventurança.
O Quinto Selo: Sele a grande bem aventurança com a ausência de pensamento
“Sele a grande bem aventurança com a ausência de pensamentos”. Esse é o ponto em que fomos consultar lá o tradutor, aparentemente a ausência de pensamento não se aplicaria a isso. Até mesmo porque se conseguimos ver alguma coisa então não cabe na noção de ausência de pensamento. Então aqui, sele a grande bem aventurança com a ausência de fixação mental.
O Sexto Selo: Dê à ausência de fixação mental o selo do imutável Darmata
"Dê à ausência de fixação mental o selo do imutável Darmata." Nós pensamos além de qualquer conteúdo, além de tomar qualquer conteúdo como base, então os referenciais desaparecem e surge a sabedoria primordial.
O Damata surge como a espacialidade incessantemente disponível que se manifesta como aparência das coisas, como a dissolução da aparência das coisas. Ele está sempre ali. Então esses são os Seis Selos. Esses Seis Selos são usados para transcendermos os cinco bardos.
Usando os Seis Selos para transcender os Cinco Bardos
Então estamos no bardo da vida, nós olhamos isso e uau! Eu escapo da aparência da coisas. Nós estamos no bardo do sonho e a gente olha e uau! Eu escapo da aparência do sonho. No bardo do morrer, tudo que surge são aparências, aí de novo nós olhamos além dessas aparências e localizamos aquilo que é livre, que produz a multiplicidade das aparências através da originação dependente. O corpo começa a se sentir mal, a respiração começa a ficar difícil, eu instalo a experiência da morte, mas como Guru Rinpoche vai falar nos Cinco Bardos: a morte é uma experiência da mente, ela não é uma realidade, ela é uma experiência da mente como este templo aqui.
A natureza livre da mente segue, mas ela tem uma experiência, ela cria a experiência da morte. A morte não existe, ela é uma experiência da mente, uma experiência construída pela mente. Aí vem o bardo do ressurgimento e nós decidimos ressurgir, nós construímos uma realidade e vamos nos colocar dentro daquilo. Isso também tem aparência, que é vazia, e do vazio brota a aparência. Aparência e vacuidade são inseparáveis. A grande bem aventurança é contemplar isso. Nós percebemos que conseguimos contemplar isso porque não estamos presos num referencial da mente e a ausência de prisão num referencial da mente é o imutável Darmata, é a espacialidade, e tomamos refúgio de novo.
O imutável Darmata é o Buda, o Buda primordial, o Buda inseparável de nós mesmos, o Buda dentro e fora, não tem diferença. Isso é o refúgio, isso é a prática de Guru Yoga, isso é a única forma de nós ultrapassarmos o sofrimento dos seis reinos. Então o Buda, Guru Rinpoche condensa isso em seis instruções, Seis Selos. Eu acho super importante, tornar isso uma prática diária. A todo momento localizamos aparências, vacuidade, vacuidade e aparências, aparências e vacuidade inseparáveis e nós uau! E a grande bem aventurança quando dizemos uau! Conseguimos dizer isso porque não estamos presos no funcionamento daquilo. Não estar preso no funcionamento daquilo é, enfim, a prática de Darmata, imutável Darmata.
Os Oito Pontos do Prajnaparamita
Tendo isso por panorama, agora entramos nos Oito Pontos do Prajnaparamita. Dentro do programa de 21 itens, o Prajnaparamita é o quinto item. Dentro desse quinto item tem o próprio Prajnaparamita e depois tem essa leitura do Prajnaparamita através dos oito pontos. Assim como nos Seis Selos, começamos olhando as aparências. Visualizamos as aparências como vacuidade:
“então dê as aparências o selo da vacuidade”. Como nós vamos fazer isso?
1) Primeiro Ponto: Puxamos a forma
Nós puxamos a forma. Estamos usando o Prajnaparamita: forma, sensação, percepção, formação mental e consciência são aparências. Vamos começar pela forma. Na verdade a forma é o mais importante porque já inclui: não consigo observar nada que não tenha percepção, tenha formação mental, sensação, consciência. Se eu examinar com muito cuidado a forma, já olho os cinco skandhas também. Não tenho como olhar um objeto como esse – que é uma forma – sem sensação, percepção, formação mental e consciência. Não tem como. Os cinco skandhas são inseparáveis. Assim, nós vamos tomar a forma e olhar com muito cuidado e isso inclui as outras coisas.
Então o primeiro dos oito itens é puxar uma forma. Esse ponto pode parecer trivial, mas ele não é trivial. Quando olhamos, por exemplo, o caminho do ouvinte a primeira coisa é se afastar das formas. Por quê? Porque vocês olhem assim: com meditação em silêncio, com shamata impura_,_ nós fechamos olhos, nariz, língua, tato e mente... Queremos ficar totalmente isolados. Se não produzirmos o isolamento nós não temos chance nenhuma, porque quando as coisas aparecem a nossa mente sai esvoaçando para todo lado. Aqui é o contrário. Levamos muito tempo dentro do caminho budista para encontrar esse ponto, para descobrir que o obstáculo a nossa frente é um instrumento da prática. Levamos muito tempo.
Durante um longo tempo nós vamos idealizar: eu quero ir pra um lugar silencioso, isolado, sem nenhuma confusão, sem ninguém por perto, quero ficar sereno, tranquilo, e aí eu vou para o infinito, o infinito e o silêncio são iguais... Aqui é o contrário: puxa uma forma, olhas as aparências. É uma outra coisa. Vocês podem considerar também que isso é o início do caminho Vajrayana Tantrayana: olhe a aparência e a partir da aparência você vai gerar lucidez. Vocês podem imaginar o poder de uma prática onde a própria aparência que nos perturba deixa de nos perturbar e se transforma no instrumento da nossa prática. Nós vamos ganhar lucidez justo com aquilo que aparece, aquilo que perturba.
Na iconografia tântrica isso corresponde à Consorte. A Consorte é o mundo. O praticante, o Buda, está sozinho. Quando surge a Consorte, ela simboliza o mundo: olhos, ouvidos, nariz, língua e tato... Perturbação certa. Mas o Buda e a Consorte se transformam no Buda, não tem separação. O Buda não é o Buda sozinho, porque não tem como o Buda estar isolado. No perfil dele surge o mundo inteiro. O mundo inteiro está ao redor dele, inseparável dele. Então nunca o Buda nunca esteve sozinho: a história do Buda é a história da relação dele com o mundo. Ele nunca esteve sozinho. No final ainda aparece Mara, não tem como contar a historia dele sem falar em Mara. O tempo todo isso pode ser simbolizado pela Consorte, então não tem o Buda sozinho, não há a possibilidade de isolar alguém.
Esse conteúdo diante de nós é o nosso instrumento de prática, sem solução. Então enfim dizemos "ok, eu olho para as aparências e vou começar a praticar com as aparências". O único jeito de nós ultrapassarmos as aparências é perceber a vacuidade das aparências. Aqui, nós desenvolvemos a motivação daquele modo, depois nós praticamos shamata, metabavana, melhoramos as relações todas. Agora estamos podendo focar nos obstáculos à frente. Nesse momento, como nós estamos mais estáveis, nós podemos puxar a forma como um exemplo à nossa frente, esse é o item um.
2) Segundo Ponto: Contemplamos a coemergência (inseparável de quem olha)
2A) Coemergência mente-forma: isso é, isso não é, isso é
Nós vamos começar o item dois com o 2A. O item dois está dividido em três. Por enquanto nós estamos numa versão que é 2A, B e C. Essas versões tem sempre um upgrade, de tanto em tanto.
O 2A é assim: lembramos esse ensinamento, não precisaríamos colocar aqui, mas eu acho bem útil porque ele é muito conciso. Se lembramos essa fórmula de Maitrea, ela também é super concisa, super útil. Maitrea no sutra Madianta-Vibanga, que é um texto super importante. É como se fosse a fundação do Mahayana. O Maitrea vai afirmar: ao olharmos para as aparências podemos dizer três coisas “isso é, isso não é, e isso é”. Aquilo é super útil, vocês podem treinar assim também, onde vocês estão: “isso é, isso não é, isso é”. Aí vem um cara e aponta a arma “isso é, isso não é, isso é”. Vem o cobrador “isso é, isso não é, isso é”. Vem a mulher dizendo “vou me embora, vou morar na Austrália” diz “isso é, isso não é, isso é”. Ou Canadá, ou Inglaterra... “isso é, isso não é, isso é”... Super bonito. Ou Tibete... [risos] “isso é, isso não é, isso é”, super bonito isso, maravilhoso.
É assim: “isso é, isso não é, isso é”. O primeiro “isso é” é denso. No segundo “isso é” percebemos a coemergência. Tudo aquilo que estamos pensando sobre o que seria isso ou aquilo depende da coemergência da nossa mente. A coemergência é super importante. Aí vem o terceiro aspecto “isso é”: isso é daquele jeito móvel. Tendo vacuidade dentro, aquilo não tem solidez. “Isso é, isso não é, isso é”: então todas as aparências são assim.
2B) Coemergência mente / forma / energia / paisagem / identidade / causalidade / propósito / visão estratégica / urgências: bolha
Aí vem o 2B que é onde nós fazemos a prática. Nós fazemos a prática no 2B, percebemos a coemergência da mente com o objeto. Esse ponto é super importante porque ele rege a linguagem também. Escutamos um som e imediatamente vemos o som manifestando um certo objeto. Outra pessoa por coemergência vê o som manifestando outra coisa. Uma terceira pessoa ouvindo o mesmo som vê uma outra coisa. Mesmo que seja uma palavra, uma expressão ou uma frase, nós, de acordo com a coemergência, temos diferentes visões que brotam disso. Então a linguagem também é vazia. O som e vacuidade: isso é a fala dos vitoriosos, a fala dos budas.
Quando entendemos que o som e a vacuidade são inseparáveis, nós estamos entendendo a mente dos budas. Porque o som diz alguma coisa, mas o que o som diz é inseparável do conteúdo interno: isso é coemergência. Não é que o som não diga nada, ele diz de acordo com o conteúdo interno. Do mesmo, as formas dizem de acordo com o conteúdo interno.
Então isso é a coemergência da mente com o objeto. Esse objeto pode ser uma forma visual, auditiva, táctil, olfativa, gustativa ou mental. Em qualquer desses casos é assim. É super importante contemplar a coemergência da mente com o objeto. Quando contemplamos a coemergência da mente com o objeto – seja ele visual, olfativo, tátil, auditivo – podemos dizer “isso é, isso não é, isso é”. Em todos esses casos podemos dizer isso.
Agora, um aspecto curioso disso é que a coemergência do objeto com a mente também é traduzida pela coemergência do objeto, da mente, e se estende até a energia. Esse é um aspecto super curioso, é como aquele amigo que chegou lá com uma arma pro outro: “você roubou minha mulher, agora...”, aí ele – pá! – atirou água no outro. Quando ele viu o outro com a arma, na coemergência ele pensou: “bom hoje não é um bom dia”. O outro jogou água e aí ele pensou “vai ver que é ácido”. Mas não queimou nada, não deu nada... Então aquilo gerou um outro aspecto. A arte tem essa habilidade maravilhosa de simular alguma coisa, de trabalhar com essa dimensão de coemergência. Vocês vejam: quando ele viu a arma ele não viu apenas a arma. Não foi a coemergência do objeto e da mente. A energia dele apareceu. E aí imediatamente nós vemos. Vem a paisagem da mente: ele raciocina “ele vai me matar”. Então tem um raciocínio que se instala, uma visão daquilo: “ele vai me matar”. Aí tem uma identidade: “eu fiz tal coisa”, “ele sofreu tal coisa”, “ela... enfim, porque não mata ela?...só um momento, vou chama-la” [risos] Aí tem uma identidade, que se montou pela situação histórica. Pela decorrência é que surge a identidade. Aí tem uma noção de causalidade: “tendo feito isso vai acontecer tal coisa, aquilo ali, com certeza”. Causalidade. Tem uma noção de propósito: “ele vai fazer isso porque assim ele se vinga e mata e resolve a tragédia”. Tem a noção de visão estratégica, também podemos olhar isso: "para ele não é muito interessante... Um momento! Se tu me matar aqui isso não vai ser interessante pra ti”. Então aquele objeto dá sentido a tudo isso: “não, não mate!”, o cara “eu vou matar, é agora!”, aí tem noção de visão estratégica. Tem uma visão também de coerência, toda a história faz um sentido, tem um sentido aquilo tudo. Tem a noção de urgência, ele diz "não, é agora!”. Também tem a urgência assim: “eu vou fazer que eu vou pra lá, me jogo pra cá e tiro o pé pra cá, um dia eu vi o pessoal do kung fu fazendo uma coisa assim, vamos ver, né? Quem sabe funciona”. Então tem uma noção de urgência “a coisa é agora! Não é depois, é agora!" Aí quando ele dá um jato d’água na cara, ele diz: “era uma bolha”. Aquilo é uma prática budista. Sai algo que diz “BOLHA”, aí a pessoa entendeu a bolha.
Quando a bolha se foi, eles fundem uma amizade, aquilo vira uma uma outra bolha. Faz uma transição de uma bolha pra outra, uma grande bolha, uma maravilha. Mas aquela realidade estava densa, estava sólida, às vezes temos esse tipo de coisa.
Nesse caso eu sempre lembro de uma situação que uma vez eu fiquei: eu fui roubado, fiquei sem documento numa estação de trem na França, não conhecia ninguém. Comecei a telefonar pra todo lado, não encontrava nem embaixada, nem meus amigos, ninguém respondia e eu estava totalmente sem dinheiro e tinha que ir ao banheiro e pra ir ao banheiro precisava pagar. Estava numa situação assim "eu devo ter feito alguma coisa em vidas prévias ou nessa mesmo para merecer esse aperto literal". Eu tinha uma certa urgência, também tinha visão estratégica, tinha urgência... Aí eu catei umas moedas que eu tinha fui lá pra trocar pra também poder telefonar, e por uma razão de bom carma, eu fui roubado nos travelers. Então tinham os números todos e eu tinha ficado com o passaporte com as anotações todas. Eu consegui telefonar no banco, o banco disse que me dava o dinheiro de volta, eu não acreditei mas resolvi ir lá. Só que nevava, eu não tinha como ir. Eu estava trancado, eu precisava de dinheiro pra pegar o metrô e ir, eu não tinha como ir a pé, não tinha como, eu pensava “bom...não tem solução”. Aí eu vi assim “a bolha, né? Não tem solução” Dava vontade de sorrir, porque “não tem solução, mas com certeza eu não vou morrer sentado nesse banco aqui, alguma coisa vai acontecer! A coisa vai acontecer agora. Eu não sei o que é, ela vai acontecer” aí fiquei sentado ali, “Vamos ver, vai acontecer! Essa bolha ela não é real, vai acontecer alguma coisa”. Isso era o ano de 1986.
Como é que eu vou resolver isso? Eu tava com aquelas moedas todas, o banco não quis trocar, porque eles não trocam moedas, eles trocam papel. Aí eu disse “não, eu sou brasileiro estou numa situação assim...eu fui roubado” e o cara disse “próximo!”. “Depois dessa eu vou explodir a França...pior que os americanos". [risos] Aí fui na agência de viagem, eles são todos simpáticos e disse “olha, fui roubado, eu precisava de ajuda aqui”. E eles disseram “ah não, aqui não podemos ajudar”... Eles podiam trocar aquelas moedas e resolver o problema de uma pessoa que está ali, né?
Nada. Voltava pro banco, tentava uma incursão... Na verdade essa impossibilidade ia apertando o trato intestinal e urinário... [risos] Aí eu digo: ”vai dar um escândalo aqui, [risos] aí eles vão me encaminhar para algum lugar, né?" [risos] “Pode ser a saída, então realmente se eu tirar a roupa aqui e pá! [risos] Aí eles me recolhem e me levam para um bom lugar com certeza... Eu estou tentando me comportar direito [risos]. Aí chega uma senhora italiana, quando eu ouvi aquele sotaque parlando, parlando, eu levantei e fui lá: “troca essas moedas comigo? Fui roubado...” E a mulher: “nem precisa trocar, toma aqui o dinheiro! Pega o metrô e vai”. Esses italianos... O mundo vai ser salvo pelos italianos e brasileiros. Aí digo “não, não, vamos fazer um câmbio direito...” peguei aquelas moedas, trocamos, peguei o dinheiro, peguei o metrô, fui até lá, cheguei no banco me perguntaram “quanto que foi? O quê que foi?”... preenchi o formulário, eles me deram o dinheiro, pensei “bah, devia ter dito que era o dobro! [risos] Saía mais rico ainda."
As coisas parecem totalmente impossíveis, parecem sem solução. No fim, tem solução. Na parte médica, situações de doenças e acidente, também passei por várias bolhas, que pareciam obstáculos e não tinha como ultrapassar, mas no fim aquilo dá um jeito e ultrapassa. É super bonito ver a bolha. Você não consegue atravessar com o olhar, mas sabe que tem o outro lado. Aquilo é uma bolha, aquilo não é assim, mas sentimos como se fosse.
Dentro da bolha tem urgência, coerência, visão estratégica, propósito, causalidade, identidade, paisagem, energia, forma, mente, coemergência, aflição, dor... Tem isso tudo. É super útil olharmos as situações e reconhecer as bolhas. Só que quando reconhecemos as bolhas, o que está acontecendo? Na verdade nós estamos selando as aparências com a vacuidade. Olhamos as aparências e vemos a vacuidade. Fazemos isso tantas vezes, tantas vezes que terminamos selando as aparências, sejam quais forem, com a vacuidade. Somos capazes de reconhecer isso.
3) Terceiro Ponto: Contemplamos o aspecto vazio (não tem aquilo dentro)
Aí vem o item três. Aqui pegamos uma forma, depois pegamos outra forma, depois pegamos outra forma... Essa é nossa prática agora: as aparências onde nós estamos, as aparências são vacuidade. No início podemos furar aqui ou ali, mas temos a sensação de que as aparências são sólidas. Andamos nos lugares e retornamos a uma sensação de confiança e solidez e realidade das aparências. Retorna. O Buda da esse exemplo: o bebê volta ao seio da mãe, ele se sente seguro. Nós voltamos ao samsara e pá! Aquilo é real. Parece que a percepção budista é que é uma bolha, e que as coisas ao redor são sólidas, reais.
Tem um koan do Zen que diz “as montanhas passam enquanto as nuvens ficam”. Aquilo parece um absurdo, na verdade as nuvens passam enquanto as montanhas ficam. Mas na visão budista é assim: as montanhas são as coisas que parecem sólidas. As coisas que parecem sólidas passam. Enquanto que as nuvens parecem transitórias, mas ainda que elas sejam transitórias sempre tem nuvens, ou seja, outros pensamentos, outros pensamentos... A mente está sempre com nuvens, as nuvens seguem. Mas aquilo que parece sólido, sério, terra, verdadeiro... Esse conjunto de coisas da nossa experiência vai passando: o emprego passa, a vida passa. As coisas que parecem super sólidas vão passando. Aí vem o item três.
Dentro desse conjunto de observações com respeito às aparências que nós estamos fazendo, vamos nos dar conta: "aquilo é vazio". Como o templo aqui, vazio. Quando a dizemos "é vazio", não é que estejamos negando. Estamos vendo que surge por coemergência. Elas não surgem em si, elas surgem na relação, são experiências coemergentes. Contemplamos o aspecto vazio: "não tem aquilo dentro”. Nós percebemos o item 4: "percebemos o aspecto luminoso ou coemergente”, ou seja, tem o templo ali.
4) Quarto Ponto: Percebemos o aspecto luminoso ou coemergente (tem aquilo dentro)
A percepção do aspecto luminoso ou coemergente corresponde, nos seis selos, ao segundo item. O primeiro item é “sele as aparências com a vacuidade”, depois “sele a vacuidade com as aparências”. Ou seja, da natureza livre da mente que é a vacuidade, eu faço surgir aquela experiência, então eu vou dizer “tem aquilo dentro”. Nós contemplamos o item cinco.
5) Quinto Ponto: Contemplamos aspecto vazio/luminoso (é na forma que o vazio se manifesta), aqui brota a sabedoria primordial, a mente do Darma do Buda
O item cinco é o aspecto inseparável. Equivale a “sele a inseparatividade de aparência e vacuidade”. Todas as aparências que estamos olhando surgem de modo coemergente, como originação dependente. Juntamos coisas que não são e criamos uma outra coisa. Criamos através de um processo luminoso, de tal forma que não temos nem como criticar, porque é um surgimento maravilhoso, um surgimento extraordinário. O aspecto vazio/luminoso é inseparável. Esse é o terceiro selo.
6) Sexto Ponto: Contemplamos a energia (vejam o surgimento dos cinco lungs, os lungs dos cinco elementos) que se movimenta em nós, e sua relação com a vacuidade
O item seis que vem agora, dos oito itens, é um item que não está dentro dos seis selos mas eu acho super importante: “nós contemplamos a energia”. Vemos, por exemplo, que de acordo com o objeto que nós estamos focando tem um energia que acompanha. O objeto não é apenas uma coisa discriminativa conceitual, ele movimenta a energia e o fato de ele movimentar a energia dá uma sensação de existência real para ele, dá um foro de realidade para aquilo. Quando pensamos sobre as coisas, podemos desconfiar, mas quando a energia acompanha temos a sensação de que é aquilo mesmo. Dá uma convicção da realidade daquilo.
Por exemplo, vocês têm um sonho, vocês sonham com a mãe de vocês que morreu. Ela diz coisas para vocês, vocês acordam e anotam aquilo. Aquilo que vocês estão descrevendo não é apenas o aspecto discursivo do sonho, vocês tem uma emoção junto com aquilo, tem uma energia junto com aquilo. Vem alguém e diz “não, isso foi apenas um sonho” e você responde “está certo que os sonhos existem, mas pra mim surgiu uma coisa muito forte dentro”. Quando dizemos que “surgiu uma coisa muito forte dentro” queremos mais ou menos dizer que aquilo é real de algum jeito. Esse aspecto é crucial. Também começamos a procurar: "será que aquilo que eu ouvi é algo verdadeiro mesmo?" Tem textos que usam esses processos.
Tem um texto da filocalia que é da tradição mística cristã oriental. Tem um texto que eu achei super bonito. O peregrino tinha um mestre. O mestre num certo momento morre e o peregrino tem um sonho em que o mestre está dando o ensinamento sobre o texto da filocalia, esse texto místico. Ele está explicando um parágrafo, um lugar super importante. No sonho, ele vai ali e pega um carvão e risca o texto. O discípulo acorda de manhã e lembra o sonho, “será que o texto tá riscado?”. Ele corre lá e o texto tá riscado... Aí aquilo fica super mágico.
É a mesma coisa, vocês sonham. Como a mãe do Chagdud Rinpoche, ela passou sete dias numa espécie de um coma induzido. Parou tudo. Ela produziu esse estado e viajou por âmbitos extraordinários, onde ela encontrou muitos diferentes seres que eram pessoas que já tinham morrido. Essas pessoas mandaram recados para os vivos, entre os recados estavam locais – uma vez que eles não tinha bancos, e tinha assaltante o tempo todo, eles escondiam coisas. Uma mãe guardou algumas coisas para ser a garantia dos filhos e da família, mas ela foi colhida pela morte e não pode falar aquilo. Ela foi com aquilo engasgado. Então ela mandou recado pela mãe do Rinpoche disse: "olha vai lá, tal lugar tem tais coisas". E aí, tem ou não tem? Ela não era mãe do Rinpoche, era uma jovem ainda – ela voltou, contou aquilo tudo e eles foram lá e encontraram. Esse é um ponto super interessante. Ela era considerada uma emanação de Arya Tara, a mãe do Rinpoche.
Pergunta da sanga: Os Mamonas Assassinas, antes da explosão do avião, teve uma passagem numa reportagem em que um deles conta que tinha sonhado com uma explosão do avião. E ele ainda estava em dúvida se ia viajar ou não, ele viajou e o avião explodiu.
Lama: aí começa isso, né... tem esse âmbito que é um âmbito extraordinário.
Pergunta da sanga: No meu entendimento do processo, acredito que tenha um movimento de energia, coemergente, que aciona as coisas. A energia, para mim, parece que seria o gatilho, o acionador.
Lama: As coisas são movidas pela energia mais sutil ainda. Isso é. Mas eu entendo isso, quer dizer que tem uma causalidade, uma energia se movimenta e as aparências se apresentam. Não apenas através da coemergência, mas através de um processo causal.
É super importante entender a energia porque a energia da uma sensação de realidade. A gente cede. Se a energia aparece é porque aquilo é real.
Vocês vão numa casa meio estranha. Eu já entrei em algumas casas estranhas. A energia é estranha ali dentro. E podemos dizer: “bom, estou criando isso com a minha mente” mas aquilo persiste. Agora eu estou dissolvendo, não quero ficar fixado a isso, mas aquilo tem uma coisa estranha, que não se consegue localizar. Mas porque a energia se move temos a insistência em dizer que tem um problema ali. Ou seja, nós localizamos a energia, a energia vira um objeto e esse objeto ganha um foro de realidade justo porque a energia se apresenta de algum jeito. No entanto, nós podemos simplesmente alterar o processo da energia e essas coisas se desfazem ou tomam outra direção, nós temos essa capacidade de fazer isso.
Estou aqui falando sobre isso apenas para trazer a importância da energia como um aspecto complementar ao aspecto cognitivo, ao aspecto discriminativo, aspecto conceitual que nós, de maneira geral, privilegiamos e que é o objeto maior de todo o processo discursivo. _O aspecto de energia, ainda que não o estejamos incluindo com tanta frequência no aspecto discursivo, precisa ser incluído porque ele legitima a sensação de realidade. _
Quando as pessoas, por exemplo, começam a se perturbar – elas têm alucinações, elas tem problemas, elas têm várias coisas – tendemos a puxá-las através do processo cognitivo. As pessoas não estão operando no processo cognitivo, elas estão abandonando o processo cognitivo discursivo, lógico, causal, em direção a um processo de como a energia está se movimentando. Ainda que a pessoa use as palavras que indicam coisas lógicas, ela não está operando daquele jeito. Aí você resolve o aspecto lógico, mas o problema não se resolve. Continua sem se resolver porque o aspecto lógico é apenas uma expressão de um aspecto de energia. Enquanto aquele aspecto de energia continuar operando a pessoa não consegue se livrar daquilo que logicamente, em principio, ela não precisa ficar dependente, operando.
Mas esse é um processo de culpa. Isso eu já vi acontecendo com pessoas que se perturbaram fortemente, vi as pessoas desenvolverem esse sentimento de culpa. Você vai lá e explica: “perdoa, resolve aquela culpa”, aí vem os outros: “não, tem nada, ta tudo...”, “não, mas eu isso é assim...isso é”, “não, não é... está tudo resolvido. Encerrado o assunto. Tudo ok, todo mundo de mão dada aqui, encerrou." "Ah mas ainda assim, isso aqui está aqui, eu fiz isso, eu tive isso...” porque não é o aspecto discursivo de que ela está falando, ela está falando que a energia dela continua torta. Esse é um ponto super delicado, Como a pessoa não está acoplando a energia ao aspecto discursivo ou pensamento, quem tá de fora diz “bom, essa aqui agora só com prozac, com rivotril, com alguma outra coisa... porque saiu da casinha, deu um problema."
Pergunta da sanga: Eu poderia falar do trabalho terapêutico, da questão da terapia floral? Porque é uma questão da terapia energética. Eu chamo isso de bloqueios da criatividade, mas não da criatividade só artística, e sim da criatividade de gerar novas situações.
Lama: Sim, interessante, essa linguagem eu acho ótima. Eu acho que a terapia floral pode realmente ajudar. Eu tive uma namorada, ela tava numa clínica e eles estavam fazendo um tratamento floral nela, eu achei aquilo tão bonito, sabe? Ela tava sentada num lugar confortável, eles pegaram uma flor e projetaram com um projetor de slides na altura do coração dela... Achei aquilo super criativo, ela tava sob o poder daquela flor.
Aí tu pensa: “vamos nos respeitar, isso não é nada!”, mas não! Porque a origem dos problemas não está no aspecto grosseiro, ela tá no aspecto sutil. Se a pessoa vê aquela flor trazendo aquilo como um princípio ativo, inundando ela, aquilo já tá inundando. E tá inundando a ponto de alterar a química do próprio corpo. É bom entender isso, terapia floral funciona, com certeza.
Esse é o princípio da magia. A magia funciona ou não? Funciona! Se é tudo mágico, pessoal! Vamos pensar, vamos respeitar, né? É assim. Quando vamos imaginar a operação dos xamãs é assim também, eles vão operar desse jeito, eles sabem isso, eles conhecem bem esse processo.
Pergunta da sanga: o surgimento dessa energia, essa noção de realidade, está ligado ao surgimento dos cinco lungs de forma não livre?
Lama: O condicionamento das aparências está diretamente associado aos cinco lungs. É, aí tem o aspecto cármico que produz esse movimento. Se tivermos todo o processo discursivo e a energia segue numa direção, nós continuamos presos. Se tivermos o mesmo processo discursivo, mas a energia mudou, nós estamos livres.
Eu acho que as coisas mais intensas são as relações familiares. As coisas mais intensas. Por exemplo: o filho brigou com a mãe, ou com o pai. Essas coisas acontecem, volta e meia ouvimos esses relatos. Aquilo é uma super dor pra mãe, a mãe passa mal, o pai passa mal. Eles têm uma sensação de perda, porque durante um longo tempo as identidades familiares não são outras identidades, não se trata de uma relação entre pessoas. Aquilo é o mesmo ser. Se produz essa separação, o mundo se fraciona, aquilo dá o maior problema, é uma coisa grave. A energia também se altera todinha. É uma super confusão.
Pergunta da sanga: Como algumas pessoas podem ficar felizes com a infelicidade alheia, muito felizes, alegríssimos?
Lama: você está em [retiro de] silêncio, né? [risos]
Pergunta da sanga: é um silêncio seletivo. [risos]
Lama: ah tá. Essa pergunta é boa, isso é o que caracteriza os infernos.
Pergunta da sanga: Sabe, uma relação linda que você poderia "oh, elas ficaram bem, elas estão bem" Mas não: “ai que ótimo, vou fazer uma coisa pra dar errado.” Por quê? Eu odeio eles que acham isso.
Lama: Pois é, essa é uma liberdade da mente. A outra possibilidade é não odiar.
Esse ponto da liberdade da mente é super importante. Isso é o que caracteriza a ação de poder. Ou seja, o outro faz a barbaridade que fizer, se nos perturbarmos terminamos ficando igual ao outro. Aquilo é o efeito completo. Mas aqui eu não estou entrando nos temas, estou trazendo a importância do aspecto da energia. Aspecto da energia é super importante. Ele é sutil, ele não é muito tratado. Se vocês olharem os textos, é só aqui e ali que vai aparecer isso.
Pergunta da sanga: Qual dos textos o senhor recomendaria para dar mais fundamento a isso?
Lama: Tem um texto do Thynlei Norbu. Thinley Norbu trabalha vários desses aspectos. Ele
é filho de Dudjon Rinpoche. Ele tem essa especialidade, ele tomou essa direção, mas os textos dele são super difíceis. Mas é possível acessar essa biografia, esses temas, e estudar. Ele tem vários textos, eu posso mandar pra ti talvez uma relação desses textos.
Pergunta da sanga: Então tem nessa área as cinco sabedorias e esses oito pontos?
Lama: Eu acho que bastaria isso, sabe? Porque o melhor livro é a compreensão. O livro tá aberto diante de nós. Aí eu posso olhar direto ou ficar olhando através do olho que o outro teve e aí eu começo a olhar. Mas se tivermos o olho que já está vendo isso é melhor ir contemplando, simplesmente assim. Todos os objetos têm energia. Por exemplo, estamos entrando na sala e aí “eu preciso de uma cadeira”. Podemos dizer “eu preciso de uma cadeira”, “eu preciso de uma cadeira!”, “eu preciso de uma cadeira... ou não”, o raciocínio é o mesmo, mas a intensidade é a energia que vai delimitar. As coisas todas são assim.
Pergunta da sanga: Lama, no caso dos sonhos premonitórios, sonhamos e a energia acompanha... Por exemplo, gente que você não conhece e depois passa a conhecer. No momento do sonho você está sem devidamente utilizar esse corpo, mas no momento seguinte, quando você chega a ver essa pessoa ou aquelas situações, você está no corpo denso. No entanto a energia é a mesma. Seria possível estar no sonho e a energia ser diferente?
Lama: a energia pode mudar. O tempo todo. A energia também pertence às aparências, ela também é vacuidade.
Estou aqui apenas trazendo esses exemplos para localizarmos o que significa contemplar a energia. Quando vocês olharem a energia contemplada vejam que ela tem cinco aspectos: tem éter, tem ar, fogo, água e terra, vejam isso.
7) Sétimo Ponto: Contemplamos a magia disso tudo e a causalidade decorrente
Esse é o item seis, aí vem o item sete: “contemplamos a magia disso tudo e a causalidade decorrente”. É como se estivéssemos agora no quarto selo. O primeiro é “sele aparência e vacuidade”, o segundo “sele vacuidade e aparência”, terceiro é “sele a inseparatividade de vacuidade e aparência”, o quarto “sele a inseparatividade com a grande bem aventurança”. Aqui, o sétimo ponto do Prajnaparamita corresponde ao quarto selo: “contemplamos a magia disso tudo”. É um processo mágico, ele está operando, mas é mágico! “E a causalidade decorrente”: coloquei essa “causalidade decorrente” porque nós temos esse aspecto recorrente sempre. Por exemplo, se tem uma causalidade aquilo parece real, parece real num sentido absoluto. Então vemos a magia e vemos que a magia produz a causalidade e, portanto, a causalidade não é senão algo decorrente da própria magia – ela não é verdadeira. É como a causalidade do jogo de xadrez: o jogo de xadrez não é verdadeiro, é uma artificialidade que eu criei, mas a causalidade decorrente aparece. Eu posso matematizar, colocar no computador para pensar aquilo como se fosse real, mas aquilo depende de como eu olho: enfim torre, bispo, etc, dependem de uma convenção que eu criei. Não tem solidez ali. Então o item sete é isso, contemplamos a magia disso.
8) Oitavo Ponto: Sorrimos! É assim que o Samsara nos pega! Natureza vajra. Oferenda de Samantabadra. “Diante da energia, que brota da forma vazia e luminosa, eu sorrio.”
No item oito nós sorrimos. Quando eu contemplo a magia, é a bem aventurança, e isso é complementado pelo item oito, “eu sorrio”. Aí eu vejo: assim o samsara nos pega. As aparências têm a natureza vajra. vou chamar de natureza vajra a aparência, o samsara.
Essa lucidez corresponde a oferecer as aparências a Samantabadra. “Diante da energia que brota da forma vazia e luminosa eu sorrio”: a liberação daquilo ocorre pelo riso, pelo sorriso e não pela seriedade. Não é pela dinamite, eu penso "isso aqui é sólido eu vou explodir tudo”, não é isso. Aquilo não é sólido. Não temos que destruir o mundo: vamos ver como é que aquilo surge. Quando virmos como é que surge, aquilo já está livre. Não precisa ser destruído. O samsara não é negativo, o samsara é lúdico. Se vocês olharem, a nossa dor não é conceitual. Ela diz respeito à energia. Quando a energia se move e tranca, aí brota a dor. Não é o conceito, é a energia, o movimento da energia.
Temos que absolver o samsara, temos que liberar o samsara, iluminar o samsara. O Prajnparamita nos ajuda a compreender esse aspecto mágico da realidade.
Darmata e a prática da Presença: Quinto e Sexto Selos
Quinto Selo: Sele a grande bem-aventurança com a ausência de pensamentos
Esse é um ponto super importante, nós meditamos isso. Começamos sempre meditando com as aparências. Do mesmo modo, nos seis selos, o último do ponto disso é Darmata. Porque nós vamos meditando nas aparências e nós descobrimos que, para podermos meditar nas aparências e ver isso, estamos num lugar não condicionado. Se eu estiver num lugar condicionado, quando eu olho as aparências, eu engato algo causal e prático. Mas aqui não, eu olho para aquilo e contemplo aquilo. Só consigo contemplar aquilo porque não estou preso a uma estrutura que responde. Isso é o quinto selo: não estou preso a uma estrutura que responde.
Sexto Selo: Dê à ausência de pensamentos o selo do imutável Darmata
Não estar preso a uma estrutura que responde, isso é Darmata. Isso é o sexto selo. Nós estamos em Darmata, o fato de que conseguimos contemplar desse modo é uma indicação indireta de que estamos em Darmata.
Darmata não é alguma coisa que vejo como quem olha um objeto, mas eu percebo pelo efeito, de modo indireto. Quando nós estamos nesse lugar a nossa prática muda, não é mais contemplar as aparências. Nossa prática agora é nos mantermos no Darmata. Quando nos mantemos no Darmata isso é a prática da Presença, que é item seguinte aqui, depois dos oito pontos do Prajnaparamita. Isso remete à prática da Presença.
A dissolução da identidade e a construção do bodisatva
Então a prática da Presença, junto com a prática dos oito pontos do Prajnaparamita, vai remeter pra um item adiante que é a dissolução da identidade. Não há propriamente uma dissolução, mas é essencialmente a compreensão de que nosso movimento se dá a partir dessa liberdade. A liberdade é a nossa essência. Nossa essência não é um conjunto de referenciais rígidos. A nossa essência é essa liberdade. Nós procuramos qual é a identidade que tem dentro dessa natureza livre e não encontramos: então isso é a dissolução da identidade. Isso nos possibilita entrar no bloco 3 – é o final do bloco dois e vamos entrar no bloco três agora. Já que a nossa essência é livre, luminosa, o que vamos colocar dentro como meio hábil para nos mover no mundo? Vamos usar as cinco sabedorias junto com os cinco lungs, vamos movimentar as energias e as sabedorias, vamos povoar essa mente livre com esse conteúdo que é o conteúdo da mente do Buda.
Quando ganhamos habilidade nisso, entramos no quarto bloco, ou seja, vamos nos levantar para ajudar os seres em meio ao mundo: esse é o treinamento! Vocês vejam, a mudança de perspectiva toda, ou seja, a travessia para o outro lado, é o Prajnaparamita. O Prajnaparamita é isso, o mantra “OM GATE GATE PARAGATE PARASAMGATE BODHI SOHA” significa isso: atravesse, atravesse com segurança para a outra margem, onde a visão agora brota de um outro jeito. A essência dessa outra margem é os seis selos. Os seis selos começam com as aparências e terminam com a natureza livre da mente, que é Darmata. Isso se aplica a qualquer circunstância, a qualquer um dos bardos: bardo da vida, bardo do sonho, bardo da meditação, bardo do morrer, bardo do pós morte, bardo do renascer.
Transmigração e originação dependente
As transmigrações ocorrem desse modo. Nós temos transmigrações dentro do bardo da vida, temos transmigrações do bardo da vida para o bardo do sonho, nós temos transmigrações dentro do bardo do sonho. Nós temos transmigrações do bardo do sonho para o bardo da vida, e do bardo da vida para o bardo da meditação. Temos transmigração dentro do bardo da meditação.
Nós temos transmigrações também do bardo da meditação para o bardo da vida e do bardo da vida para o bardo do morrer. Temos transmigrações dentro do bardo do morrer para o bardo do pós morte. Do bardo do pós morte para o bardo do renascer. Do bardo do nascer para o bardo da vida e assim por diante.
Em todos os casos, onde vocês estiverem vocês estarão operando com a mente da originação dependente, vocês estão vendo coisas e criando outras coisas. Vocês estão no julgamento diante de Yama: vocês estão querendo pegar os argumentos e criar a liberação, criar a absolvição. Estamos sempre num lugar tentando criar uma outra coisa. Às vezes dá, às vezes não dá. Quando não dá, é uma outra coisa que se criou, não é uma coisa que quisemos, mas também criamos aquilo. A mente da coemergência está sempre fazendo isso, o tempo todo.
Vocês estão dentro de um avião, o avião vai cair. Vocês estão pensando: “bom agora eu vou me apertar bem aqui com o cinto, segurar bem... Sabe lá o quê que vai dar, né? Vou abraçar o assento e vamos em frente. Vou segurar meu notebook aqui porque eu não quero perdê-lo.... meu celular aqui, minha carteira de identidade e meu dinheiro aqui, e minha mochila nas costas e aqui nós vamos... com o ticket da bagagem que eu quero recuperar depois.” [risos] Ainda pensamos que tem alguma coisa a ser feita. E daí explode tudo. A nossa mente é tão poderosa, tão poderosa, que vem os aviões lá salvar tem alguém preso num banco flutuando no oceano, com uma mochila nas costas. [risos] Pode acontecer, né? Mas é um pouco isso, "já que vai explodir tudo, pelo menos alguma coisa eu guardo..." Vamos guardando alguma coisa. Então a mente vai querendo construir, “bom agora eu vou morrer mesmo, então pelo menos que eu vá pra Jesus Cristo” Tem sempre uma transmigração, puxamos mais uma transmigração. Agora vou transmigrar para tal coisa.
Pergunta da sanga: Eu tive uma experiência no avião, uma situação bem difícil. Daquelas que as aeromoças ficam todas em pânico. Nesse minuto – nesse minuto não, nessa fração – eu só me lembrei do seguinte: meus filhos estão bem. Estou em dia, não tinha dívida, não tinha nada. [risos] E eu ia para uma finalização, para uma coisa muito importante para mim. Então eu vou morrer feliz! Estou indo para uma coisa que eu gosto, mas tinha isso de estar em dia e os filhos bem. Quando cheguei eu comecei a dar as informações das minhas contas para eles. Tinha essa coisa de estar em dia.
Lama: uma vez eu vi uma história que tava o Dalai Lama, o Bill Gates e um hippie dentro de um avião. E o piloto, naturalmente, né? De repente há um barulho. O piloto vem no meio de uma fumaça e diz “olha, é assim, o avião vai cair, só tem três paraquedas, eu peguei um e já tô indo” e se jogou. Aí tinham o Bill Gates, o Dalai Lama e o hippie e dois para quedas. O Bill Gates diz “bom, eu sou o homem mais inteligente do mundo, já vou indo”, pegou um e se jogou. Aí ficaram dois e um paraquedas. O Dalai Lama diz “bom, eu já vivi bastante, faço prática de transferência da consciência, não tem problema. Você é jovem, vá para Alto Paraíso ajudar o CEBB lá.” Aí o hippie disse “não esquenta velhinho, o cara mais inteligente do mundo saltou com a minha mochila”. [muitos risos].
Pergunta da sanga: O que é a transferência da consciência que o Dalai Lama mencionou aí na história? De onde vem?
Lama: É assim: a consciência é a bolha. A bolha perdura. O avião cai, a bolha flutua. Agora, se nós temos um lugar de segurança sutil, transferimos a consciência para ali dentro. Explode tudo e a consciência não morre. A coemergência e a originação dependente seguem a partir do ponto onde a consciência está. Ela começa a criar realidades de um outro jeito, como num sonho. A transferência de consciência é isso: nos colocamos num lugar, esse lugar pode ser visualizado. Aí depende. Se a pessoa tem lucidez, ela não precisa fazer a transferência porque ela já está no local, ela já tem a lucidez. Mas se a pessoa não tem a lucidez, ela se lembra dos ensinamentos e tenta ir pro lugar onde aquilo está, onde a memória ainda a remete. É como eu estou dizendo, “eu estou em paz, eu estou bem, está tudo bem”, então é uma região de segurança.
Pergunta da sanga: O Lama falou que tem um ponto da prática em que vamos pra shamata e nos sentimos seguros lá, como se estivéssemos em casa. Seria mais ou menos isso?
Lama: O estado de shamata é um estado de consciência, eu posso ir para um lugar desse.
Aí vai depender. A pessoa deve ir para o melhor lugar que ela tem. O melhor lugar que a pessoa pode acessar é o melhor conselho. Mas se a pessoa puder acessar lugares mais elevados é melhor ainda. Às vezes a pessoa não consegue acessar nada muito elevado, porque durante a vida inteira ela nunca acessou nada elevado. Vai dizer “raios, quem é que fez a manutenção errada desse lugar aqui?” A pessoa vai pros infernos provavelmente, só com raiva dos mecânicos. Essa parte final da vida é super importante para não nos localizarmos em algum lugar negativo.
Pergunta da sanga: Na Guru Yoga tem a transferência da mente do mestre para o discípulo. Tem algo a ver com isso?
Lama: Ela tem a ver, mas a Guru Yoga é um caminho. Guru Yoga é assim: quando a pessoa começa a olhar a mente do Buda e a mente do mestre com a mente do Buda e a pessoa tenta copiar essa mente do Buda. Isso é um processo.
Pergunta da sanga: É como se fosse uma transferência? A mente do mestre continuando no discípulo?
Lama: Dependendo do nível dessa prática não tem a sensação de mestre e discípulo. Não tem nem a separação do Buda, do mestre nem do discípulo. Se houver uma pratica inicial, o discípulo tem a sensação de que ele tem a sua mente, o mestre tem a sua mente e o Buda tem a sua mente. Esse processo ele vai se aperfeiçoando, na medida em que ele vai se aperfeiçoando essa noção separativa desaparece.
Pergunta da sanga: Lama, sobre essa prática do Prajna, essa questão de olhar para a energia diante da emoção, da Roda da Vida. Pelo que entendi do que o Lama falou, não vamos tentar manipular a emoção. Vamos reconhecer que essa emoção vem de uma energia livre, de um aspecto livre da mente e vamos repousar nesse aspecto, mas não precisamos nos preocupar nossa mente em tentar resolver aquilo.
Lama: É, não precisa. Por exemplo, quando nós estamos fazendo a prática a nível de méritos é melhor termos pensamentos positivos do que pensamentos negativos. Quando a prática se dá nesse nível absoluto isso não é necessário, é o caminho mais direto. Ainda assim, Guru Rinpoche diz “se você entende isso, melhor praticar méritos”. Porque aí a pessoa entendeu, ela está livre, ela pode praticar méritos e evitar os carmas. Ele diz “eu mesmo cuido muito delicadamente para evitar os carmas, para evitar ações que produzem sofrimento para os outros seres”. Ainda assim, dentro do samsara não tem como. Não vamos conseguir de modo absoluto evitar o sofrimento sobre os outros seres. Isso é uma das coisas dolorosas. Além do mais, isso é tão grave que não conseguimos viver sem matar.
Sofrimento, vida e morte nas abordagens Mahayana e Dzogchen
Esse aspecto de "não dá para viver sem matar" não tem como ser resolvido dentro da abordagem Mahayana. É só dentro da abordagem Vajrayana que isso vai ser resolvido, a abordagem Dzogchen. Porque na abordagem Dzogchen não tem vida e morte. Enquanto nós considerarmos que tem vida e morte, sofrimento, tudo isso é real, não tem solução. Porque nós, mesmo enquanto bodisatvas andando no mundo, nossa existência no mundo – que é para ajudar os seres – é contraditória com a própria vida dos seres. Não temos como evitar de matar. Mas aí dentro da perspectiva Dzogchen é uma outra visão, que se aproxima muito da perspectiva xamânica e da perspectiva indígena também.
Por que ainda que eles não tenham ódio, não tenham ódio nenhum, eles se veem dentro de uma teia da vida. Teia da vida e morte. Tem um filme do Kurosawa que é Dersu Uzala. Ele vai trabalhar bem esse ponto, a harmonia de vida e morte. Esse é um ponto que une o processo xamânico, ou seja, "eu morro, eu nem existo, eu estou na teia da vida, a vida é uma coisa que não morre. A expressão da vida surge e cessa. É melhor eu entender a vida e não ficar fixado nas múltiplas expressões da vida como absolutas, como algo a ser infinitamente preservado." Então não tem, por exemplo, agressão, mas pode ter morte. É uma morte sem agressão, ainda que isso possa parecer contraditório. O que morre e o que sobrevive não tem muita diferença: eles vivem uns nos outros porque a vida é ampla. Essa é a visão do Dzogchen também. Isso é pouco comentado.
Eu vi o Dalai Lama comentando essa compreensão. Ele tem uma dificuldade, quando ele chega nesse ponto ele tem uma dificuldade. Então essa compreensão do Dzogchen que é a transcendência da aflição que vem junto com o voto de bodicita, bodisatva, de salvar os seres. Isso dentro do Sutra do Diamante está resolvido. Assim, quando o Bodisatva diz “eu quero salvar todos os seres”, os seres já estão salvos porque na lucidez os seres não têm vida e morte. Eles já estão salvos, mesmo que eles estejam em sofrimento. Agora para nós, na visão condicionada, dizemos “bom, se vida e morte são iguais; se o sofrimento, afinal, é assim então estou liberado”. Aí a pessoa sente que esse ensinamento não é correto porque quando vai entender esse ensinamento ela tem a tendência a abusar. Por estar presa na roda da vida, ela volta para um sentimento auto-centrado e pensa que pode abusar os outros.
Então esses ensinamentos em geral são muito pouco falados. Eles são muito difíceis de entender e usar de uma forma correta. Mas, na medida em que a pessoa vai purificando, ela vai se defrontar com esse sofrimento de Chenrezig: de ver que a vida – tomada como expressões individuais – não tem muita solução. Ainda que o Bodisatva esteja voltado a trazer benefícios, se ele não está lá pelo 9º e 10º bumi ele tem ainda uma aflição. Mas ele vai superar essa aflição quando vir a naturalidade de vida e morte. Ele não vê mais a morte como alguma coisa, como a morte, como a dissolução. Ele vê que a vida inclui vida e morte. Mas não é tão simples. A vida não é abalada pela sucessão das expressões particulares dela mesma que inclui vida e morte.
Pergunta da sanga: Como se fosse ver essa energia criativa, né?
Lama: É. A energia criativa está ali. Não tem nenhum momento em que ela não esteja. Então vai haver essa transição nessa direção.
Pergunta da sanga: É esse aspecto de reconhecimento, esse aspecto de admiração? Lama: É. Aí a pessoa se livra de vida e morte.
Pergunta da sanga: Vida e morte não podem ser vistas como uma renovação?
Lama: Olhando sobre o ponto de vista individual, vamos encontrar a renovação das expressões da vida e morte. Mas é super importante entender que além das expressões de vida e morte existe a noção da vida que não cessa, não treme diante de vida e morte. Na visão cristã se fala de vida eterna. Esse é um ponto. Eu não sei se essa expressão é acompanhada de uma compreensão verdadeira, mas essa expressão está ali. No budismo ninguém fala de vida eterna porque não tem essa noção de eternidade também. Eternidade tem algo ligado ao tempo, então no budismo tem algo atemporal, o principio vivo é atemporal. É atemporal em primeiro lugar porque ele não tem mudança, então se não tem mudança não tem tempo. Quando você olha com o olho atemporal a multiplicidade das expressões, ainda assim você não consegue mais ver o tempo porque a quantidade das expressões são coisas que surgem e cessam. Aquilo não altera em nada a manifestação da vida que não flutua.
Se vocês quiserem entender as histórias de Guru Rinpoche, entendam que Guru Rinpoche operava dentro dessa visão. Todos os grandes mestre operam dentro dessa visão. Às vezes o movimento deles em meio ao mundo fica estranho porque eles estão operando desse modo. Eu lembro de um fragmento de Don Juan, dele viajando com a mulher. A mulher era a garantia de comida para ele. Não só porque ela era capaz de catar comida, era capaz de fazer tudo, mas numa situação extraordinária ela também era comida. Ela não tinha esse terror, ela também tinha uma visão além de vida e morte. É um outro padrão. Eu não sei, por exemplo, se as civilizações Incas, com os sacrifícios humanos, se eles tinham essa compreensão ou não, eu não sei. Pode ser que aquilo seja somente uma coisa de terror, mas pode ser que não. Nós não temos um registro do aspecto histórico disso, não temos a continuidade da visão das tradições religiosas. Mas eu acredito que algumas dessas tradições encontraram esse aspecto da permanência além de vida e morte: eles viram a vida além de vida e morte. Eles viram isso. Nas nossas tradições isso não está claro. No ocidente inteiro isso não está claro. Ainda que tenha uma ou outra menção, a morte é considerada super densa, super importante: é um grande portal na história da coisa. Nessas outras tradições esse portal começa a desaparecer. Na tradição budista tem algo intermediário, tem os ensinamentos Mahayana. Eles vão indo e vão nos ajudando diante do terror da morte, diante dessa passagem, mas isso vem do aspecto samsárico.
Os grandes mestres – como Guru Rinpoche, Yeshe Tsogyal e outros grandes mestres – transcenderam totalmente isso. Além do mais, quando transcende isso há um outro aspecto muito extraordinário que também é pouco comentado, mas é um aspecto extraordinário. Por exemplo, se a nossa expressão se dá através do corpo mas ela se dá no sonho, nós não temos uma limitação da expressão ao corpo. Então nós podemos ter vários estados sutis na ausência de corpo e podemos continuar nos manifestando de algum modo através disso. Então no budismo tibetano isso é super claro e não falado.
Guru Rinpoche e o aspecto extraordinário
Chagdud Rinpoche, por exemplo, tinha isso muito explícito porque ele olhava para as deidades e para os mestres e para a linhagem de uma forma densa, como se ele estivesse se relacionando com alguém. Ele tinha uma confiança, ele tinha uma sensação que ele se comunicava, que ele era capaz de expressar aquilo. Como se tivesse uma intencionalidade brotando e ele tivesse uma conexão de Guru Yoga com uma intencionalidade acima da expressão física dele. Aí eu pude presenciar, porque eu estive bem próximo dele em muitos momentos, pude presenciar isso.
Quando eles falam de Guru Rinpoche, Guru Rinpoche não é Guru Rinpoche. Guru Rinpoche é Guru Rinpoche! É uma outra coisa, aquilo é super denso. É como se Guru Rinpoche pudesse apontar o dedo e intervir de algum modo. Se vocês olharem o Lótus Branco vocês vão ver o que significa a expressão de Guru Rinpoche como alguém que é capaz de agir; como um princípio ativo que é capaz de agir em qualquer circunstância e a prece de sete linha é a comunicação com Guru Rinpoche: “HUNG OR DJEN IUL DJI NUB DJANG TSAM”. Nós invocamos aquilo. Aí se prepare, Guru Rinpoche aparece de algum jeito. Tem essas instruções no Lótus Branco: suba no topo de um prédio e grite “Guru Rinpoche, manifeste sua presença!” Teve uma época lá no Caminho do Meio que pegou a moda assim, as pessoas subiam e berravam
“Guru Rinpoche, manifeste sua presença!” Eu não sei se deu algum efeito de fato, mas alguma coisa aconteceu. Tem as histórias, Miphan Rinpoche vai contar que o mosteiro de Nalanda foi salvo desse modo e muitas coisas aconteceram a partir desse tipo de intervenção. Aí começa a misturar o aspecto místico. Dizemos “vamos respeitar! Prajnaparamita é a vacuidade daquilo tudo!”. Aham! Mas aí “vacuidade daquilo tudo” não resolve mais totalmente, por quê? Porque tem a luminosidade. A luminosidade pode começar a construir coisas. Guru Rinpoche é emanação luminosa da natureza livre da mente que é vacuidade. Ele é uma emanação através de Amitaba. Aí começa a surgir um imaginário desse tipo.
Eu prefiro me relacionar com Guru Rinpoche como a própria vacuidade, como inseparável de Samanthabadra. Não ter uma relação muito pessoal com ele, assim “tudo bem, ele lá, eu aqui. Aqui está bem assim.” Eu prefiro não desenvolver uma noção pessoal, porque quando personificamos o mestre ou a deidade nós nos separamos. Quando nós trabalhamos no aspecto primordial, é inseparável, então é mais profundo do que o aspecto separado. Ainda que pensemos que o aspecto separado é mais profundo – então eu rezo pra ele e ele vem e intervém e bate nos outros e eu posso ir embora – isso não é uma boa ideia. A melhor forma é compreender a inseparatividade. A noção mediúnica de Guru Rinpoche, a noção de ele em algum lugar olhando e vai nos ajudar, nos reduz a uma insignificância: nós continuamos uma gota separada do oceano, secando. Nós precisamos nos jogar dentro do oceano e desaparecer. Aí não tem separação. Então operamos dentro da noção mais ampla da mente primordial, é melhor.
Com isso estamos encerrando o nosso encontro. Eu acho que vale a pena dedicar a nossa vida a aprofundar nessas coisas. É super bonito! Isso é melhor que Matrix, muito bom! Além do mais, nós estamos dentro da coisa, não é vendo um filme lá, estamos no meio da coisa e o jeito como agimos faz com que as coisas vão mudando. Magia não é algo que eu ouço sobre, está aqui direto.