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#01 Estrutura dos Ensinamentos – RI 2020
Lama Padma Samten
<Retiro de Inverno, Bacupari, 2020>
https://www.acaoparamita.com.br/programa-de-treinamento-em-21-itens/ - #01
Transcrição: <nome do transcritor, data>
Revisão: <Samira Lima da Costa, 25 de maio de 2022>
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
Caso tenha contribuições para melhorar esta transcrição, entre em contato pelo email repositorio.transcricoes@gmail.com.
Tabela de conteúdos
- #01 Estrutura dos Ensinamentos – RI 2020
- Introdução
- Motivação
- Visão
- Contemplação
- Ação
- Compreensão dual
- Não-dualidade
- Da individualidade para Clara Luz Mãe
- Intersubjetividade
- Clara luz filho dá sentido às coisas
- Cessação da dualidade
- Abordagem do caminho
- Práticas
Introdução
Este ano eu vou trazer as várias formas de produzir benefícios para os seres. Ainda assim o conjunto de ensinamentos tem essa estrutura, que é visão, meditação e ação. Este é o conjunto de ensinamentos originado por Garab Dorje. No entanto, se formos olhar o que aconteceu quando o Buda deu os ensinamentos é a mesma coisa. Os ensinamentos budistas sempre têm esta estrutura. Ou seja, nós precisamos entender. Nós praticamos ou contemplamos a partir da compreensão, e a partir disso nós nos movimentamos.
Às vezes essa estrutura não está claramente dividida. Por exemplo, quando o Buda vai apresentar os ensinamentos Sattipatthana, que é muito simples e muito direto, ele nos convida para simplesmente contemplar. Quando esta contemplação se dá, ela desenvolve visão, e ela mesma já é a meditação. Temos visão e meditação juntas.
A partir disto os bhikkhus se movem e trazem benefício aos seres. O Buda desenvolveu visão. Quando ele desenvolveu visão, curiosamente atingiu a iluminação. Sentado. Mas ele vai ficar 40 dias lá ainda, naquele período, contemplando tudo a partir desta visão iluminada – a visão iluminada do Buda. Ele desenvolve este trabalho adicional. Depois disto ele se mantém em ação no mundo, trazendo benefício aos seres.
Então podemos sempre colocar isso desse modo.
Se nós quisermos fazer um atalho para a estrutura que vamos utilizar, se quiséssemos fazer um conjunto de itens, um eixo dos ensinamentos, depois iríamos olhando as derivações, que são as explicações de cada pedaço.
Mas qual é o trajeto? Tem um trajeto que podemos dizer que é um trajeto de caminho. Esse caminho vai até o final. Mas tem um trajeto de realização, também. Eu vou descrever brevemente essa estrutura para que nós entendamos. Qual é a vantagem de entendermos esta estrutura? Quando nós estivermos ouvindo outros ensinamentos, ou ouvindo mesmo pela internet, nós estamos ouvindo coisas, é bom sabermos qual pedaço aquele ensinamento que estamos ouvindo está ilustrando, está clareando. O que é aquilo.
Por exemplo, aqui e agora enquanto eu falo é bom entender que estou trazendo uma estrutura. Eu não estou trazendo conteúdo do ensinamento. Estou trazendo uma estrutura, para que possamos entender melhor. Como nós temos uma vastidão de ensinamentos, se não tivermos o cuidado de olhar a estrutura, [não] tivermos uma referência nesta estrutura, quando estivermos acessando os ensinamentos, nos perdemos totalmente. Ou seja, começamos a olhar de novo e de novo as mesmas coisas faladas com outras palavras, de outro jeito, cumprindo os mesmos trajetos. Aí nós começamos a comparar como é que um falou, e outro falou daquilo. Daqui a pouco estamos lendo outros trajetos. E dizemos: “bom, mas isso aqui não tem importância - por que então falaram isto?”. Aí nós vamos misturando as várias seções e isto vai nos atrapalhando.
Então é melhor que entendamos esse conjunto.
Eu vou começar descrevendo a abordagem que vem antes da própria estrutura, que é o panorama geral. O panorama geral é assim: o Buda primordial Samantabhadra (sânscrito) ou Kuntuzangpo (tibetano), representa o espaço. Representa, na linguagem Dzogchen, Khadag. Junto com Khadag, vem Lundrup, que é essencialmente o aspecto não temporal, presença incessante. Junto com isso tem Ripga, ou seja, lucidez. Clareza. Não há propriamente, nem decorrência de tempo, nem espaço. Então, o Buda primordial não ocorre dentro do espaço nem do tempo. O espaço e o tempo decorrem da presença incessante: Kadag, Lundrup, Tsal e Lung: Clara Luz mãe.
Isto é a realidade básica. Realidade básica não é o tempo nem o espaço como nós conhecemos. Mas a noção de tempo e espaço decorre desta experiência interna que é a experiência do Buda primordial. Então, este aspecto vai ser super importante porque a partir do Buda primordial surgem estruturas de realidade como, por exemplo, vai surgir a visão Dharmakaya, Sambogakaya e Nirmanakaya.
A perspectiva de Dharmakaya é o que se aproxima do aspecto de Khadag, grande vacuidade, abertura, espaço, espaço não euclidiano, espaço interno – o que se aproxima disso é Dharmakaya.
Sambogakaya são as expressões que podem surgir a partir da mente e da energia. Surgem qualidades. Isso dá origem depois à multiplicidade de deidades, por exemplo. Quando começamos a entender o mundo sutil e como ele se dá, nós vamos descobrir que ele se organiza todo a partir desta estrutura do nível sutil, propriamente. Quando vamos trabalhar o nível sutil, vamos trabalhar Sambogakaya.
E aí tem a expressão que poderíamos chamar de grosseira, que tem aparência grosseira que é, no aspecto último, totalmente purificado e claro, inseparável do Buda primordial, é Nirmanakaya.
Então, Dharmakaya, Sambogakaya e Nirmanakaya são inseparáveis do Buda primordial. Totalmente inseparáveis. São expressões do Buda primordial.
Assim nós começamos. Nós temos esse ambiente. Este é o ambiente no qual nós estamos andando. Nós não estamos no ambiente em que estamos dentro do planeta terra, no qual nós somos seres humanos que andam buscando objetivos aqui e ali, em que existe uma sequência temporal e que tem posições geográficas e históricas dentro disto. Nós não operamos dentro dessa paisagem mental, dentro dessa bolha de realidade ou dentro desse cosmos. Esse é um cosmos construído, em constante modificação, enquanto que a visão de Samantabhadra é imutável. É incessantemente presente e nós vemos claramente que é dela que brota a multiplicidade das aparências. Poderíamos dizer, não apenas a multiplicidade, mas a multiplicidade incessante, constantemente se renovando, das aparências de espaço-tempo e também das aparências comuns, grosseiras que também estão em transição constante assim como o mundo cósmico, os planetas, as estrelas, os buracos negros – em constante modificação, constante mudança.
Então, nós não usamos isso como referência. Nossa referência é uma referência interna. Então, este é o ambiente onde o ensinamento budista brota. Ele vai brotar desse lugar. Ele não brota de referenciais históricos, nem do Buda histórico. Ele não brota disso. Ele até pode se referir ao Buda histórico, mas isso é uma visão particular. Na visão budista, muitos diferentes budas vêm. Muitos budas diferentes virão. Então, existe algo incessante antes de cada um dos budas que vem, e que segue depois de cada um dos budas.
A história do budismo não se limita e não se estreita com o surgimento das eras dos vários budas. Agora nós estamos vivendo a era do Buda Shakyamuni que vai ser sucedida, como o próprio Buda Shakyamuni explica, pela época do Buda Maytreya. E nós temos períodos que são períodos do Dharma e períodos em que o Dharma desaparece; períodos dourados do Dharma e depois períodos de grande aflição e de grande degenerescência. Esses processos surgem e cessam. Mas a história do budismo não está ligada a isso. Ela está referenciada a este grande espaço, Dharmakaya, Sambogakaya e Nirmanakaya, nesses três níveis. E especialmente ao Buda primordial, incessantemente presente num tempo além do tempo.
Esse é o ambiente. Agora, na medida em que estamos em ambientes em constante transformação, nós podemos ver que essas constantes transformações têm uma origem. Não vou tratar aqui ainda deste tema, posteriormente nós vamos tratar disso. Mas o fato é que há sempre um conjunto de construções que serve de base para outro conjunto de construções, que serve de base para outro conjunto de construções, e assim vai.
Isto não é apenas uma questão do mundo humano, mas é uma questão geral de tudo que se manifesta. É exatamente assim. Se vamos estudar as eras geológicas aqui no planeta Terra, vamos entender isso perfeitamente. Por exemplo, o surgimento da água, o surgimento das bactérias, o surgimento dos seres, têm origem do surgimento da atmosfera. O surgimento da atmosfera transforma os seres que podem viver aqui dentro e tem uma complexidade constante se desenvolvendo. E essa complexidade se dá a partir da base anterior, vem dos movimentos anteriores. Cada coisa que se estabelece dá origem e termina servindo de base para um outro desenvolvimento. Quando aquilo se estabiliza, dá origem a outro desenvolvimento e este processo é incessante. Sendo incessante, o próprio processo devora as estruturas anteriores. Paulatinamente ele vai devorando. Por exemplo, os organismos anaeróbicos que existiam aqui no planeta Terra se tornaram minoritários. Eles não desapareceram, mas se tornaram minoritários, porque o próprio desenvolvimento deles produziu o oxigênio, que é letal para eles. Então, é uma coisa mais ou menos assim: nós vamos produzindo lixo, o lixo termina acabando conosco; como eles foram produzindo um subproduto que era o oxigênio, e o oxigênio vai liquidando com eles.
Isto é a essência do sofrimento. Ou seja, qualquer ação termina gerando processos que limitam os próprios funcionamentos.
Nós vamos olhando isto em várias direções. Então, surge aquilo que poderíamos chamar de sofrimento. Estou tratando aqui o sofrimento não como o sofrimento humano, o sofrimento dos seres biológicos, dos mamíferos. Não estou tratando assim. Estou tratando o sofrimento como uma situação do próprio samsara. É natural que surja. Na medida em que os seres vão produzindo seu movimento, é natural que surjam estruturas de compreensão que a cada tempo parecem dominar o processo todo.
Como, por exemplo, agora nós estamos no antropoceno – vamos supor assim. Os biólogos eventualmente chamam este período desse modo porque é dominado pelo ser humano. O ser humano dominou essencialmente os outros seres – exceto o coronavírus – dominou os seres todos e ele vai definindo a situação na qual os outros seres vão vivendo. Ele vai definindo, dando os espaços, e vai restringindo o funcionamento dos seres. Nós estamos no antropoceno, estamos impactando o ambiente todo. O ambiente está sendo conformado, configurado pela ação humana. Nós vamos vendo isso pelos incêndios, pelos processos de produção, nós vamos queimando as florestas, invadindo com os animais domésticos ligados a um processo econômico, e aquilo vai simplesmente impactando tudo em todas as direções.
No entanto, esse processo não parece um processo não-natural, ele parece que é o nosso processo, nossa forma de viver. Essa naturalidade diante dos processos artificiais é chamada em sânscrito de moha. É uma ignorância. É moha. No nosso ambiente doméstico seria o sofá da casa. Sentamos no sofá: normalidade. Tudo bem. Estamos confortáveis. Isto é moha. É uma naturalidade sem vitalidade, uma naturalidade com obtusidade mental. Uma obtusidade mental que leva a uma inércia diante das aparências. Por exemplo, uma das aflições que as pessoas ligadas aos movimentos ecológicos podem ter é ver que mesmo que elas estejam engajadas numa transformação do mundo etc., elas vivendo dentro das cidades, todos os efluentes delas estão parando dentro do rio. Como em Porto Alegre: boa parte do nosso esgoto, dos nossos efluentes, vai para dentro do Guaíba. Isso é muito impactante. É muito triste. A pessoa está ali e não consegue, não sabe para onde vão os efluentes, no mínimo isso. Ela não sabe para onde vai seu próprio lixo, ela não sabe onde é que vão parar os metais pesados das pilhas que ela usa, ela não tem controle sobre isto. Não vê. E com o tempo, enfim, ela vai fluindo. É assim mesmo. Nós terminamos perdendo o controle sobre isso. Quando nós amolecemos e dizemos “bom, isto é assim mesmo”, isso é moha.
Então, há dois tipos de ignorância: a ignorância moha, que é a culminância da ignorância, e nós temos um processo ativo de ignorância, que é avidya, que é a incapacidade de ver. Nós não vemos. Começamos a viver nossas vidas, vivemos nossa vida e pronto. Aquela vida parece que é tudo. Se vocês abrirem os jornais e revistas hoje, as pessoas tentam manter a avidya de sempre: estão vendendo automóveis, vendendo eletrodomésticos, vendendo... Assim, a vida segue. Sendo que nós estamos no meio de uma grande transformação.
Um exemplo de avidya que eu tenho utilizado de vez em quando é a experiência. Por exemplo, nós colocamos um bolo - aqui ninguém faz bolo, muito menos com açúcar - açucarado em cima da mesa. As formigas, não sei como, descobrem. Quando vemos, tem um carreiro de formigas. As formigas estão lá. Aí vocês tiram o bolo. Há! E o carreiro segue. Isto é avidya. Não tem bolo pessoal. Mas o carreiro segue.
Nós estamos um pouco nesta situação. As pessoas estão fazendo propaganda dos carreiros. As escolas estão formando formigas que são capazes de andar melhor nos carreiros e chegar no bolo. Só que não tem mais bolo. Este é o detalhe. Leva um tempo para descobrir que não tem bolo. Então, avidya é isto. Na mente das formigas está lá o bolo. Elas estão seguindo daquele modo. Tem a formação direitinho. Tem o pessoal da disciplina, para elas seguirem exatamente como tem que fazer em direção ao bolo – que não existe mais.
Quando nós olhamos assim – abrindo um parêntese – é a comprovação final de que as formigas têm a natureza de Buda. Porque elas não se movem por um mundo grosseiro, elas se movem em um mundo sutil. No mundo sutil o bolo está lá. Essa é que é a questão. Quando nós falamos das bolhas de realidade, avidya e moha, o que que são as bolhas de realidade? Elas são esses mundos sutis que dominam a nossa energia, a nossa ação mental, as nossas prioridades. Nos mantêm em marcha, mas são ilusórias, são transitórias. No período que o bolo estava lá, nós tínhamos um nível de realidade. Tiramos o bolo, temos outra circunstância. No aspecto sutil as formigas seguem no mundo de avidya, presas naquela visão.
Nós podemos dizer que neste tempo que estamos vivendo agora, estamos vivendo isso. Mas não é esse tempo, sempre tivemos uma bolha ou alguma coisa assim. Eu acho comovente nós examinarmos a história da ciência que é, poderíamos dizer, a história das bolhas que se sucedem. Eu acho maravilhoso os cientistas – ou seja, os grandes luminares, as pessoas de grande visão de um tempo – terem imaginado que a Terra era o centro do universo, que havia uma calota em volta onde estavam todos os planetas e todas as luzes e todos os deuses e que eles circulavam junto com Apolo, no caso o Sol. Eles circulavam, de um certo modo. De vez em quando acontecia alguma coisa extraordinária que era sinal dos deuses, também. Como cometas, meteoros, outras coisas assim. Era um mundo completamente maravilhoso. Ninguém sabia o que era aquela calota, de onde ela tinha vindo, mas o mundo era assim, era um mundo mágico. Realmente maravilhoso.
E tinha esta noção que Deus tinha feito o mundo. É claro! Se tinha uma coisa daquelas, todo mundo olhava um para o outro, e ninguém tinha feito, então Deus tinha feito! A prova é que aquilo estava ali. Aquilo está ali. “Foi você que fez?” “Não, não fui”. “Você sabe de alguém que tenha feito?” “Não”. Como isso é muito, muito grande, a gente não tem ideia o que pode ter acontecido, então Deus criou. Com certeza, é assim.
Quando nós olhamos desse modo, tem essa noção de criador. Aí vem Giordano Bruno que sofreu realmente, na inquisição. Porque, vocês vejam, vem alguma pessoa que resolve ter ideias. Já está tudo escrito pelos grandes sábios de todos os tempos de onde aquilo surgiu. Mas tem alguém que diz: “não, eu tenho uma outra ideia sobre o surgimento”. “Ah, tá! Tudo bem. Vou te dar duas chances. A primeira é assim: te retirar dessas ideias, sumir com isso e ficar bem quietinho. E a outra é fugir. Porque eu vou te pegar".
Porque uma pessoa que tem ideias desafiadoras, imaginem, a pessoa refletindo: “olha, não sei se a bíblia está certa. Nós podíamos propor uma outra coisa”. É realmente impertinente. Eu acho que naqueles tempos eu era do tribunal da inquisição [risos]. Eu estava lá. Queimando gente.
Porque vamos pensar: é muita pretensão. Se alguém se levantar e dizer “eu acho que o Buda está errado”, vamos botar inquisição aqui e...
É muito interessante isso. Mas aí vem o Giordano Bruno. O Giordano Bruno teve a sensação de que ele havia rasgado o véu que encobria a Terra, onde havia os planetas e as coisas todas, e visto o cosmos infinito com estrelas para todo o lado. Galáxias para todo lado. Ele não estava contra Deus. Ele estava a favor de Deus: “Deus é maior do que vocês imaginam. Deus é muito maior! Porque isso aqui é gigantescamente maior!”. Aí resolveram matá-lo. Então Giordano Bruno sofreu desse modo com a inquisição. Ele viu, mas ele não conseguiu dizer que não era. Eles forçaram: “Vamos fazer um acordo. Você diz que não. Você pode conversar com sua família. Mas publicamente você diz que não. Que não é assim. E aí nós te salvamos, não tem problema nenhum”. E o Giordano Bruno: “não, não dá. Isto é muito grande!”. E foi morto. Giordano Bruno viu aquilo muito grande.
Eu acho isso maravilhoso. Que de tanto em tanto nós ultrapassamos literalmente a bolha. Não estamos mais presos na bolha. Nós vemos adiante. Mas eu estou aqui trazendo isto para lembrar o que seria uma bolha.
A bolha é essencial para nós refletirmos sobre o que o budismo faz. Eu falei um pouquinho sobre o Buda primordial que tem esta visão super ampla – além de espaço, tempo, além de mundos, totalmente ampla – que é a realidade. E falei sobre o fato de que diferentes visões de realidade terminam por sucumbir, e que tem um nível de sofrimento dentro disto. Aqui naturalmente esse aspecto da inquisição é um exemplo do sofrimento que vem da própria bolha.
Quando nós olhamos isso, vem uma possibilidade – olhando estes vários elementos – vem a possibilidade de nós entendermos o que Chenrezig faz, o que o Buda da compaixão faz.
Chenrezig define de uma forma muito especial a compaixão. É uma habilidade que eu não saberia como descrever. Eu não tenho muita experiência com outras tradições, mas eu acho que se as tradições funcionam por causa de Chenrezig. Ele traz a noção de caminho. Caminho no budismo é paramita. É super importante isto. Deve haver outras tradições que também se referem deste modo, mas eu desconheço. Essencialmente a noção de paramita é muito importante, porque ainda que o Buda primordial esteja disponível incessantemente e que ele seja nós mesmos, como nós criamos mundos sutis, nós surgimos dentro desses mundos sutis como identidades que também não são verdadeiras. Elas são tão verdadeiras quanto a identidade determinada das formigas chegarem no bolo. Surge uma identidade, tem um nível sutil, uma inteligência, que impulsiona as formigas em direção ao bolo, mesmo que já não exista.
Então, nós também, andamos em direção a alguma coisa. Tem uma bolha que dá sentido à nossa existência e aos nossos movimentos e nós nos sentimos aquilo, porque a energia circula por dentro de nós. Nós nos sentimos aquilo, nós não nos sentimos o Buda primordial. Ainda que tenha a natureza dentro de nós que propicia até este surgimento, esta identidade, do caminho, das energias etc, ainda que haja isto, nós não nos sentimos assim, porque nós surgimos com uma inteligência que opera dentro da bolha, buscando alguma coisa.
É assim. Este é o ponto. Aí se estabelece o processo da bolha, o processo ilusório de como que nós andamos. Quando nós entendemos esse fato, nós entendemos que mesmo que o Buda primordial seja completamente concreto, real, vivo, incessantemente presente, nós perdemos a capacidade de reconhecê-lo. Nós não vemos isso, isso não pertence ao nosso mundo.
É como alguém jogando um jogo de tela de computador e aparece num cantinho o Buda primordial [acenando]: “olha pessoal, isto aqui é uma ilusão, a inteligência que criou o jogo sou eu. Abandonem o jogo e olhem para mim”. Não vai funcionar. Criança nenhuma vai parar para olhar aquilo, para olhar o Buda primordial. Aí, entrando no jogo, tem os vários obstáculos e problemas que vão acontecendo ali dentro, aquilo vai produzindo um nível de aflição.
Aí vem Amitaba – o buda primordial emana Amitaba – e na tela aparece um ser assim, parado. A pessoa pede para tirar da frente. Não adianta.
E vem Chenrezig: “eu vou ajudar, você vai vencer”. Este é o processo de Chenrezig. Ele cria uma artificialidade que nos leva além daquele nível de sofrimento correspondente. Ele tem que nos encontrar dentro da bolha.
Aí aparece um tutorial: “Você está indo bem no jogo? Você pode ir melhor. Por exemplo, se você meditar. Se você fizer alguma coisa…”. Aí começa. Chenrezig pega a estrutura da bolha e monta uma saída a partir da estrutura da bolha. Este caminho de saída é um paramita. Porque quando nós começamos a percorrer, aquilo parece um caminho sério. Quando chegamos ao final dizemos: “Páh! vou deixar isto para trás”. Porque a visão se ampliou, não precisa mais do caminho. O caminho é um processo no qual andamos por dentro da artificialidade da ilusão.
Na visão budista todas as tradições religiosas são paramitas, são caminhos. Essa é uma razão também para entender por que não deveria haver um processo excludente entre as tradições: porque todas elas de algum modo beneficiam os seres, elas pegam os seres em algum lugar e vão levando para outro lugar – em princípio, para um lugar melhor.
Sua Santidade o Dalai Lama chega a dizer que todas as tradições são indispensáveis. São muito úteis. E quando ele é confrontado com o fato de que algumas tradições não descrevem a iluminação, não vão até o ponto final, Dalai Lama diz "bom, mas o caminho das pessoas não é uma coisa de uma vida. É uma coisa de muitas vidas. Então a pessoa faz uma etapa numa tradição. Na próxima vida ela faz em outras tradições que levam adiante”. Ele tem este tipo de abordagem.
Então, é importante entender o caminho. O caminho começa na bolha e a bolha é o lugar em que estamos. Eu poderia dizer que “o caminho nos alcança onde nós estamos”. No mundo "'real", onde nós estamos. Mas, eu digo: “o caminho nos pega no mundo ilusório onde nós estamos”. Nós descrevemos a bolha, e não a realidade.
Nós poderíamos dizer que as tradições religiosas precisam se adaptar à realidade dos seres. Mas aquilo não é uma realidade, é uma realidade de bolha. Não tem uma consistência real nisso. Então Chenrezig vai nos alcançar na bolha.
O primeiro elemento dentro da bolha que é o elemento transformador para nosso funcionamento é a motivação.
Motivação
Nós precisamos definir a motivação. A motivação também faz parte do caminho. Eu tenho uma motivação inicial e vou melhorando-a. Vou melhorando. Se nós estamos dentro da bolha a nossa motivação é reforçar a identidade, que está ligada aos três animais. Se estamos dentro de uma bolha, tem 3 animais. Nós vamos tentar escapar dos três animais. Se nós estamos dentro da bolha estamos presos aos 3 animais e nossa ação é essencialmente upadana.
Eu acho este diagnóstico maravilhoso. Este é o diagnóstico que o Buda fez, ele usava essa linguagem. Nós estamos presos à ignorância, que corresponde ao javali, o centro da roda da vida. Nós estamos presos à ignorância na forma das ações que surgem, que são representados pelo galo (ou pombo) que cisca incessantemente buscando alguma coisa, e nós estamos presos à serpente, a à raiva, à defesa dessa identidade e à reforma da identidade – porque desta raiva brota um novo javali. O javali se reinventa.
(Em tempos de coronavírus a palavra é reinvenção. Nós temos que nos reinventar. Ou seja, os javalis anteriores não estão mais funcionando).
Vamos dizer, o bolo não está lá, as formigas têm que se reinventar. É uma coisa curiosa. Se vocês olharem o carreiro das formigas, elas se desorganizam, começam a andar cada uma para um lado. Dá uma confusão, elas não sabem para onde vão. Perderam o sentido da vida, entraram em crise. Depois, elas se arrumam segundo uma outra direção ilusória, que funciona por um tempo e depois cessa, também.
Nós temos esse aspecto da motivação – ela deriva para uma motivação do samsara. Motivação do samsara são os três animais, é simbolizada pelos três animais do centro da roda da vida.
Alguns mestres das tradições do início dos ensinamentos do Buda enfatizavam muito o diagnóstico disso através de upadana. Upadana corresponde ao nono elo. Então, nós temos desejo, apego e aí temos as ações volitivas que são upadana. Para nós as ações volitivas são totalmente naturais. Nós seguimos nossos impulsos, as ações volitivas. Estamos sempre buscando alguma coisa a mais. É isso: upadana.
Nós nos sentimos uma identidade com impulso, energia e raciocínio. Temos objetivos e vamos nos movimentando dentro destes objetivos, buscando atingi-los de modo sem fim. Nós vamos substituindo uma coisa por outra, uma coisa por outra, e aquilo não acaba nunca.
Este é um diagnóstico, é um sintoma da nossa situação. Então, nós vamos seguindo por upadana.
Essa parte não interessa para nós. Quando nós olhamos motivação e olhamos o samsara nós entendemos: esse é o problema. Quando nós vamos olhar motivação, nós podemos olhar as motivações do caminho, que são: a motivação sravaka, pratyekabuddha e mahaiana. Este é o processo. Nós estamos seguindo essencialmente a motivação mahaiana. Isso é uma abordagem.
Eu diria que os cristãos também seguem a abordagem mahaiana, porque eles buscam também trazer benefícios aos outros seres. Eles estão seguindo com esta motivação.
Aí nós temos esta motivação: “Sim! eu quero seguir deste modo. O mundo tem algo muito profundo que eu quero descobrir”.
Então, da motivação nós vamos para visão.
Visão
Aqui entra a parte da estrutura que corresponde aos ensinamentos de Garab Dorje, que é Visão, Meditação e Ação. Aqui eu coloquei etapas anteriores. Eu coloquei antes da visão a motivação, porque os ensinamentos de Garab Dorje são para Manjushrimitra. Pense! Quem é Manjushrimitra? Não precisa perguntar por motivação. A motivação está completamente estabelecida. É um grande praticante.
Então, houve visão. Mas não havendo isto, se a pessoa não tem esta decisão, ela precisa definir a motivação. Agora, [quem tem] a motivação já está querendo transformar sua vida. Mas nem todas as pessoas querem transformar sua vida. Na verdade, a pessoa, de modo geral está mergulhada em avidya, que é a perda da visão, e ela está mergulhada em moha, que é o aparente reconhecer, como aspecto natural, avidya.
Se as formigas estão indo em direção a um bolo inexistente: “ah! isso é da vida, isso é assim mesmo”.
Aí tem uma formiga com mala no pescoço, recitando mantras que diz: “vocês estão todas erradas, estão perdidas. Porque vocês buscam aquele bolo que não existe. Depois, outro que não existe. Depois, outro que não existe”. “Ih, que papo é esse?!”.
Isto é moha. Aquilo sempre foi assim no mundo das formigas e sempre vai ser. Qual é o problema? É isso.
Aquela formiga radical está querendo fazer uma transformação. Aquilo não vai dar certo. Aquela motivação não alcança aqueles seres. Então, é necessário que venha uma formiga hábil que vá ali dentro e fale com as formigas a linguagem das formigas: “existe uma mesa onde há um bolo dourado que por mais que se coma nunca termina, quem provar aquele bolo atinge uma condição de uma felicidade incessante, aquilo é de uma doçura que não há nenhum bolo que jamais tenha manifestado algo assim. Aquela manifestação, aquele é o grande bolo Kadag incessante…”. E as formigas: “Uau! Onde tem isso?”. “Se você me seguir eu explico onde tem esse bolo…”.
É preciso uma linguagem que funcione para aqueles seres. É assim.
Então, nós precisamos voltar para a bolha; ali tem motivação, e aí vem visão. Essa parte de visão, essa categoria de ensinamento, vai explicar o que nós temos de mais profundo. Este é o ponto. Vai explicar a natureza primordial.
Contemplação
Na sequência, porque a pessoa desenvolve a visão e perde a visão, ela tem que fazer contemplação. Ela vai contemplando a multiplicidade de experiências a partir daquela visão, e vai reconhecendo isso de tal modo que não perde mais a visão. Mesmo que ela olhe as coisas aparentemente ilusórias, as coisas aparentemente ilusórias expressam a clareza da visão e do aspecto último.
Durante um longo tempo praticamos meditação e contemplação. Não basta a pessoa ser apresentada para a visão. Porque ela pega e perde, pega e perde.
A pessoa é introduzida à visão, mas é através da meditação e da contemplação a visão que ela começa a brotar naturalmente de dentro. Se a visão brotar naturalmente de dentro, a pessoa não precisa mais ser apresentada à visão, porque a visão já brota naturalmente de dentro. E quando essa visão passa a brotar naturalmente de dentro, através do próprio processo de exercício interno da visão, de ver as coisas aparecendo lúcidas, a própria pessoa vê – aí surge a ação.
Ação
A ação o que que é? É a utilização da visão em meio a qualquer circunstância.
Quando nós trabalhamos essa visão, nós podemos focar não apenas o caminho que leva a essa culminância, mas podemos olhar a culminância com mais detalhe.
Compreensão dual
Poderíamos dizer: existe uma culminância enquanto um indivíduo atingindo uma culminância. A pessoa passa a olhar as coisas, mas ela vem de um caminho onde há alguém olhando. Então há sempre um ponto a partir do qual as coisas são olhadas. Este ponto – o limite dessa abordagem e o que precisa ser feito adiante – é apresentado por Dudjom Lingpa. Quando nós sentamos mesmo em meditação, mesmo tendo ouvido tudo, lembrando tudo, podemos não perceber, mas temos a sensação de ser alguém vendo tudo e entendendo tudo.
Dudjom Lingpa descreve assim: “Eu vejo tudo, entendo tudo”. Ele vai olhando aquilo tudo e vai descrevendo lucidamente todas as experiências. Aí ele escuta o rugido de um animal próximo. Ele tem medo. “Como eu posso ter medo? Como eu posso ter medo?”. Ele se perturba pelo fato de que ele se perturbou.
Como alguém que tem uma visão completa pode se perturbar? Essa é a pergunta. Esse é o limite da visão que poderíamos dizer que é a visão individual. Desse ponto em diante, Dudjom Lingpa vai descrever a não-dualidade. Enquanto nós estamos seguindo o caminho, ainda assim lembramos de coisas, falamos de coisas e apontamos coisas. Sem que percebamos estamos duais em relação às coisas, nós estamos descrevendo as coisas e eventualmente descrevemos a própria não-dualidade. Nós estamos descrevendo aquilo como experiências específicas, mas estamos dentro de uma bolha, não estamos dentro de uma mandala. Então, nós seguimos com os impulsos correspondentes à bolha em que estamos, e essa bolha produz impulsos diferentes do que a própria compreensão correspondente traria.
Esse é o limite da visão individual. Porque estamos dentro de uma bolha? Porque se nós perguntarmos: “você que ouviu, esse rugido está onde?” a pessoa sente que lá está o bicho, ela está aqui; ela é um ser e o bicho é outro ser, e o bicho tem ideias que não seriam apropriadas para ela mesmo. Isto aqui não vai dar certo.
Então, isso corresponde à dualidade. Ela tem toda a compreensão, mas essa compreensão está presa dentro de uma visão ainda dual.
Não-dualidade
Esta é uma etapa da realização. Ela começa nesse ponto onde a pessoa realmente entende isso tudo, e precisaria ir adiante. A pessoa pode dar um pulo aqui direto, um pulo não-causal, não discursivo, sem caminho nenhum, e compreender a não-dualidade. Assim, imediatamente, não só compreender a não-dualidade, mas repousar na não-dualidade. Nós poderíamos dizer que essa não-dualidade, esse trânsito último, vem como o trânsito da clara luz filho, ou seja, clara luz enquanto alguém, para uma clara luz mãe, que é a clara luz que neste momento não tem ainda uma descrição – mas ela ultrapassa, ela é a clara luz que produz todas as aparências, que produz todas as vidas, todos os surgimentos, em todos os lados e todos os bichos que atacam.
Tem uma clareza disso. Tem um natural repouso. Não tem uma operação dual da mente. Quando nós examinamos, por exemplo, a prática do Buda da medicina, nós chegamos no ponto de dissolver os aspectos criados. Nesse momento a nossa consciência atua livre de tudo que é essencialmente criado. Isto seria o aspecto não-dual e não individual. Tem uma clareza de que todas as ações que brotam de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato são as ações que vão produzindo as sensações de individualidade – olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente associada, por sua vez, a olhos, ouvidos, nariz, língua e tato.
Esse é o processo no qual os referenciais são os referenciais dos doze elos. Nós estamos operando de um modo limitado, e vamos ultrapassar isto: nós repousamos nessa natureza não-dual. Essa natureza não-dual é essencialmente a clara luz mãe. Ela não é clara luz de alguém: é a Clara Luz simplesmente.
Quando ela é clara luz 'de alguém' ainda falta um pedacinho.
Da individualidade para Clara Luz Mãe
Se nós quisermos um trajeto para sairmos dessa noção de indivíduo para clara luz mãe, eventualmente nós podemos contemplar todos os seres tendo a natureza de Buda, não só nós. Porque nós estamos fazendo um caminho onde só nós percorremos isto.
Eu começo a olhar os outros seres e vejo que as formigas, as abelhas, os cachorros, os gatos, gambás, graxains, tatus etc., todos os bichos por todos os lados, as tartarugas e os peixes, todos eles têm a sua própria inteligência, constroem seus próprios mundos e fazem as coisas andarem.
Então, nós olhamos isto. Entendemos também a sabedoria da igualdade, sabedoria do espelho. Ou seja, a nossa mente consegue entender a mente do outro operando daquele jeito e produzindo suas próprias realidades.
Quando nós vamos contemplar porque isso ocorre, nós descobrimos que as mentes não estão separadas. Todas elas pertencem à clara luz mãe. E isto é a base da sabedoria do espelho e da sabedoria da igualdade. E nós vamos olhando estes seres todos.
Quando nós vamos olhando os seres todos, vamos olhando a partir da nossa própria experiência. Nós vemos que o nosso próprio corpo tem múltiplas inteligências por dentro que são interligadas. E essas inteligências, do mesmo modo que as inteligências dos ecossistemas, se interligam como um tecido em vários níveis. Os peixes se interligam com os pássaros, com as tartarugas, com os gambás. Aquilo vai para todo lado em todas as direções. Eles se interligam com as bactérias, se interligam com os vírus e se interligam com os seres todo de todos os níveis, e se interligam com o planeta todo, nas temperaturas, nos fluxos d'água, de ar etc.
Intersubjetividade
E nós vemos que essa interligação é super complexa, porque cada ser olha o seu mundo ao seu jeito, e o outro olha o mundo de um outro jeito. E esses jeitos de olhar produzem movimentos que se interligam. Esse cosmo não é “um cosmo”, é uma multiplicidade de cosmos, porque cada ser, cada inteligência, tem um cosmo, e esses múltiplos cosmos se interligam. Então, nós temos uma rede fantasmagórica – tem esta palavra que é usada também.
O mundo é uma superposição de múltiplos mundos, mas não linear. Não é que você pega um outro mundo e põe, e pega outro e põe. Não, porque cada mundo que vem, se constitui pela “reordenação” e por uma visão própria de mundo do outro ser, recriado aos olhos próprios. Como nós recriamos uma coluna com olho humano, sendo que isso foi criado pelo olho dos eucaliptos? O olho cósmico do eucalipto cósmico produziu este tronco cósmico. Nós olhamos para isso e dizemos “é um poste”. Pronto. Nós pegamos isso, são contatos entre mundos. Podemos olhar para o tronco morto e podemos olhar para os troncos vivos. Então, porque olhamos para os troncos vivos, nós estamos também plantando eucaliptos.
Estes mundos se interligam. Os mundos vivos se interligam. O eucalipto tem suas ideias e nós temos nossas próprias ideias. Vamos ver o que vai dar.
E assim são os seres em todos os lados. Estes mundos nem são mundos parados. São mundos em constante transformação. Todos eles acionados pela natureza luminosa que constrói realidades.
Construir realidades é assim: as aranhas constroem teias, os pássaros constroem ninhos, nós cultivamos a terra e produzimos agricultura. Isto é construção de realidades.
Todos os seres constroem realidades. Eles têm um nível sutil, uma inteligência inseparável dessa observação sutil, que produz movimento em nível grosseiro, e os mundos se estabelecem. Quando os mundos se estabelecem, os outros seres olham para os mundos. As lagartas olham para nossas plantas. Nós achamos aquilo um desrespeito, porque afinal são as nossas plantas. E as lagartas olham para aquilo e “ah!” resolvem redefinir aquelas realidades e andar simplesmente do jeito que elas acharem.
Por quê? Porque todos os seres têm a natureza de Buda. Eles constroem mundos. Construir mundo é assim: a formiga sobe na mesa em busca do bolo que já não existe. Isto é construção de mundo.
Clara luz filho dá sentido às coisas
Então, todos os seres têm a natureza de Buda. Nós vemos esses cosmos complexos interligados. E se nós olharmos dentro de nós e contemplarmos o que parece que dá sentido e impulso à vida que existe dentro de nós, vamos encontrar a clara luz filho, a clara luz em nós. Ela dá sentido às várias coisas. Ela dá sentido às teias de aranha que nós construímos, dá sentido aos prédios que nós construímos. Não só dá sentido como mantém os prédios vivos. Se dá algum problema você vai lá e pinta, substitui, arruma e mantém, porque aquilo está mantido num nível sutil e não no nível grosseiro. Então tem uma clara luz que mantém isso. Quando nós olhamos essa clara luz, ela ainda tem um nível de dualidade, tem uma sensação de realidade na identidade. E quando cessa, há esse movimento extraordinário da cessação das identidades: não estamos mais operando pela visão de uma identidade, mas olhamos de modo vasto a multiplicidade das inteligências. Aí nós repousamos na vida da própria clara luz. Isso, na imagem tibetana, é quando uma gota d´água é jogada dentro do mar.
Qual é o único jeito pelo qual uma gota não vai evaporar? É jogá-la de volta para o mar. Ou seja, qual o único jeito de uma vida individual não cessar? Joga dentro da clara luz mãe. A clara Luz Mãe não cessa. Aí a gota “não, não quero voltar. Nãããão!”... e voltou para dentro do mar. Ela lá dentro: “e agora o que que eu sou? O eu não sou?”.
O que é, e o que não é? Isso é uma brincadeira que às vezes eu fazia: a garrafa com água do mar flutuando dentro do mar, tendo o grande medo de que a garrafa quebre e a água de dentro da garrafa se misture com a água do mar. Essa é esta passagem.
Cessação da dualidade
Este ponto da Clara Luz Mãe inclui a não-dualidade. É uma forma também de explicar o desaparecimento da própria identidade que, para nós, é meio assustador porque a identidade é o último traço da bolha. A bolha não é uma bolha externa, é uma bolha que é fundida com a própria identidade que vê a bolha. Então, nós chegamos neste ponto. Nós fomos purificando a bolha e fomos purificando a identidade dentro da bolha.
Entendemos tudo. Nesse ponto, agora, nós dissolvemos. É o ponto final. Não tem raciocínio. Não tem alguma coisa para pensar. Não tem nada. Tem a clareza.
Abordagem do caminho
Nós temos uma abordagem que é a ‘abordagem do caminho’. Nós partimos da bolha e passamos para a motivação possível dentro da bolha, que é o que vai impulsionar o caminho. Isso vai avançar em direção à visão, depois a meditação correspondente: visão, contemplação, meditação. Isso vai nos levando à ação. Este processo pode ser circular: nós vamos à ação num certo nível e retornamos para a motivação, melhoramos a visão, meditação, contemplação, ação. Este pode ser um processo circular.
À medida que nós vamos andando dentro disto, eventualmente nós vamos sentindo que há uma purificação de alguém que vai fazendo estes trajetos. Isto caracteriza a visão individual. Só que essa visão precisa ser purificada. Nós temos que ir até a não-dualidade. Essa visão individual vai se ampliar quando nós vermos todos os seres dispondo disso, dessa capacidade, da natureza de Buda. E quando nós vermos o mundo como esse cosmos complexo interligado, inseparável, onde os seres vão construindo seus mundos e isto é revisto pelo outro, aquele mundo vai se tornando complexo.
Talvez a palavra seja realmente complexidade. Tudo complexo, interligado. E desse ponto nós então vemos a Clara Luz Mãe produzindo todas as inteligências e mantendo-as inseparáveis. As inteligências não são separadas. Elas são expressões da Clara Luz Mãe do mesmo modo que as labaredas são expressões do fogo – ainda que as labaredas surjam e cessem, o fogo segue. Essa não-dualidade é o sorriso diante desse fogo que segue.
Um outro exemplo é o próprio mar. A não-dualidade, esta vastidão do mar que ultrapassa a consciência de gota. Dentro dessa não-dualidade, cessa a identidade das gotas e cessa a aflição e o sofrimento correspondente aos três animais e todas as características das bolhas.
Então, esta é a estrutura.
Nós estamos em algum ponto - aliás, nós estamos em vários pontos, dentro de uma estrutura deste tipo. E os vários ensinamentos correspondem a isso. Muitas vezes eu fico comovido por ver sua Santidade Dalai Lama dedicar um tempo longo e uma energia definida dentro da classificação de motivação, por exemplo, que é o início do caminho.
Sobre o Dalai Lama, ele sendo uma emanação de Chenrezig, como nós vamos reconhecer que ele é uma emanação de Chenrezig? Porque ele está fazendo o trabalho de Chenrezig. O trabalho de Chenrezig é essencialmente pegar as pessoas que estejam imersas nas suas bolhas e colocar de algum modo dentro do caminho. Eu acho comovente, ele tentando melhorar a bolha. Ele não está nem tirando as pessoas da bolha ele está melhorando a bolha.
Ele diz: nós não precisamos de tradições religiosas, nós podemos utilizar o bom senso, usando referenciais éticos e morais. Nós precisamos é melhorar a ética e a moral. Isto é bolha. Nós vamos melhorar a bolha. Nós precisamos ser melhores seres humanos. Isto é comovente.
Ele não está falando da vacuidade. Ele está falando de nós sermos melhores seres humanos. Eu acho isto comovente.
Ele fala em utilizar os ensinamentos dentro das estruturas das escolas, dentro das estruturas de ensino. Então ele trabalha diretamente para melhorar o mundo. Se nós estivermos olhando esses ensinamentos na perspectiva de visão, meditação e ação, aquilo pode parecer estranho. Porque eu estou falando sobre como melhorar as escolas através de uma estrutura moral e ética, mas este processo inteiro está indo pro abismo. Se eu não entender que eu estou dentro de uma estrutura vazia de significado, onde os significados são construídos, eu não tenho chance nenhuma. Aí o Dalai Lama está calmamente… Ele tem uma visão de múltiplas vidas para os seres. Eu acho isto comovente.
Bondade, compaixão, .... Maravilhoso.
Se nós estamos falando de clara luz mãe, a clara luz filho fica muito estranho de olhar, o ensinamento que está falando sobre como nós vamos tratar melhor o lixo, e vamos tratar melhor isto e aquilo. Estranho. Por isso é muito importante nós vermos a grade toda, ajuda as pessoas a passarem por um outro lugar que depois passa por um outro lugar, que depois passa por um outro lugar, e vai indo.
Então é super importante entender isso. Eu acho que uma das grandes contribuições do Dalai Lama nessa vida foi justamente introduzir o budismo, tirar o budismo de dentro da estrutura monástica, que é de onde ele, Dalai Lama, vem, e trazer para dentro do cotidiano do Ocidente, do mundo complexo que nós vivemos, dentro de um processo de globalização, de interligação completa do mundo. O Dalai Lama foi capaz de fazer isto.
Eu acho completamente extraordinário este trabalho. Só que, se nós olharmos isso na perspectiva da estrutura monástica, nós vamos achar muito estranho. Porque o primeiro passo da estrutura monástica é você renunciar ao mundo e entrar num mosteiro que tem um funcionamento totalmente independente daquele tipo de estrutura. Totalmente independente.
Se você pensar: “não! No mínimo eu deveria ajudar o mundo a funcionar melhor, porque aí o mundo me mantém melhor”, a estrutura monástica não é necessária. Porque o ponto central é gerar mérito. Se quem tiver dentro do mosteiro tiver gerando mérito, o mosteiro está garantido. Não importa o que que acontece dentro do samsara. Não importa. Se o samsara estiver muito, muito mal, você transfere o mosteiro para 200m ou 500m acima. Porque o fogo do samsara está limitado pela altitude. Porque ao subir 500m, as terras lá em cima são muito piores. O lugar é muito mais difícil de chegar. As guerras do lado de baixo não chegam àquele lugar. Se em tempos anteriores aquela altitude de mosteiro era o suficiente para as guerras não chegarem, mas agora tudo piorou, então eu subo um pouco mais. Por que por mais fogo que tiver lá em baixo, aquilo não sobe.
Eu acho isso muito interessante. É como aqui. Aqui no Bacupari as terras com interesse econômico vão até um certo ponto. Dali em diante não tem. O processo econômico não consegue penetrar. Porque são colinas de areia, aquilo muda o tempo todo, muito vento, não tem água, não tem como colocar sentido em propriedade daquilo. É como as montanhas muito altas. Você vai indo, vai indo, vai indo. Até um certo ponto, ainda se pode dizer que tem um interesse do mundo econômico. Adiante daquilo, não tem mais. Ninguém vai se estabelecer ali.
Então este é um ponto interessante. Essa é uma razão pela qual os mosteiros estão sempre em lugares um pouco inacessíveis. Super difíceis de serem alcançados porque assim eles se livram das guerras.
Quando nós dizemos “eles se livram das guerras”, não é que eles se livram das guerras daquele império que está invadindo este império. Não. Este aspecto histórico não importa. É que as guerras são as guerras. Os seres humanos produzem guerra por que eles são a expressão dos 12 elos. Eles têm desejos e apegos, eles saltam por cima dos outros, eles constroem mundos e eles tentam converter os outros mundos ao mundo deles. É simples. É como os impérios. Vão convertendo as estruturas regionais ao mesmo tipo de visão do império.
Então, a forma como os mosteiros lidam com isto é uma forma de simplesmente se manter à parte. Por outro lado, os monges não estão ali para terem filhos, para terem famílias, para educar as crianças. Eles não estão ali para isto. Eles estão focando outras coisas. E quando nós dizemos que eles estão focando, não é uma questão da mente. É a mente e a energia deles. A energia deles funciona de um outro jeito. Com outro brilho. Quando eles estão dentro deste processo de aprofundar os ensinamentos, fazer prática, manter um dia igual ao outro, e se ajudar em grupo, eles estão fazendo isso, e a energia deles está assim. Não é que eles façam isso porque eles estão obrigados ou presos a um tipo de compromisso.
Os compromissos, eles mesmos estabeleceram, porque acharam que aquilo era interessante. Então eles estabelecem e mantêm, não há uma prisão nisso. Mas a mente deles brilha desse modo. Assim funciona a estrutura monástica. Quando nós olhamos, novamente, Dalai Lama dando instruções para os leigos, em meio ao mundo, melhorarem as suas vidas e cuidarem disso e desenvolverem ciência e desenvolverem ética e um tecido social melhor e cuidarem de todas as pessoas, etc., aquilo pode parecer estranho na visão monástica.
Por isto que é super importante nós entendermos isso, entender a estrutura de Chenrezig, como Chenrezig atua. Se nós estamos dentro da estrutura monástica e achamos que aquilo enfim, é tudo, isto é uma estreiteza. Por quê? Porque a estrutura monástica pertence a um caminho. Se a estrutura monástica não levar à iluminação, à liberação, e os seres não puderem andar pelo mundo como o Buda andou para trazer benefício aos outros, então a estrutura monástica não está muito útil.
Então, o fato de nós sentirmos a energia pulsando por dentro de nós, dentro do Darma e dentro das coisas, é simplesmente a energia pulsando por dentro de nós dentro de algo que é excludente a outras coisas. Aquilo tem um nível de avidya também, ali dentro.
Nós utilizamos isso para poder aprofundar, tem um indivíduo ali aprofundando. Mais adiante esse ser vai se reconhecer como clara luz filho e ele precisa ultrapassar essa visão individual e chegar neste grande oceano, neste grande espaço da clara luz mãe.
Aqui eu estou contemplando, trazendo exemplos de como são necessárias estas diferentes partes do caminho. É como as diferentes partes do caminho. Quando uma olha para a outra pode parecer um pouco estranho.
Práticas
Essa parte de todos os seres terem a natureza de Buda é muito profunda. Ela exigiria, para isso ficar bem claro, uma contemplação longa. Eu acho que essa é uma razão pela qual os praticantes têm tradicionalmente vivido em lugares muito próximos à natureza.
Isto vai nos ajudar a reconhecer que a chave para trabalhar neste ponto é a originação dependente. Nós vemos que o terreno anterior serve de base para um outro conjunto de ações mentais e de energia. E esse conjunto novo que começa a surgir serve de base para um outro. E assim nós vamos olhando. Nós vamos olhando na direção da expansão e nós vamos olhando como aquilo veio vindo de baixo.
Isto é superimportante.
Hoje de manhã eu considero que conclui esta etapa da estrutura. Eu estou trazendo este primeiro objetivo, vamos andar por dentro desses conteúdos, ou seja, vamos entrando em cada uma dessas partes da estrutura e clarificando isso. Cada uma dessas partes tem textos correspondentes, quase que infinitos textos correspondentes, em diferentes níveis.
Nós vamos trabalhando isto.