Conteúdo
Construindo terras puras, vivendo em Sangha com sustentabilidade
Lama Padma Samten
Palestra no CEBB Abhirati, Juiz de Fora, MG.
27/11/2022 - Tarde
<https://youtu.be/LIgzMMoDuPw>
Transcrição: Liliane Iten Chaves, (28/03/2023), Marise Ramos Farias (03/04/2023), Cláudia Barbosa de Medeiros, (12/04/2023), Bia Samira Lima da Costa (12/05/2023), Vanessa Mantuani (04/07/2023)
Revisão: Bia Samira Lima da Costa (12/07/2023) e Cláudia Laux (18/07/2023)
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
Caso tenha contribuições para melhorar esta transcrição, entre em contato pelo email repositorio.transcricoes@gmail.com.
Tabela de conteúdos
Ação no mundo e aspecto manifesto das Terras Puras
Boa tarde!
Hoje de manhã nós olhamos o aspecto sutil e o aspecto secreto da visão do próprio Dharma. Hoje à tarde vou trazer o aspecto grosseiro, o aspecto manifesto das terras puras, que enfim são gerados a partir do Dharma.
Nós olhamos, hoje, estes aspectos sutis e secretos do Darma, que são os aspectos geradores das terras puras. Não há uma diferença. As terras puras são um meio hábil, são um processo de manifestação do Dharma entre nós. Aqui, nós teríamos que ter muito cuidado com isso. Esses ensinamentos têm uma lógica. Eles se conectam todos uns com os outros.
Eu queria lembrar esse diálogo do Buda, que mencionei hoje pela manhã. É um diálogo, na verdade não é do Buda, é um diálogo de Ananda com um Brâmane. O Brâmane estava questionando Ananda sobre a continuidade do refúgio da sangha - o refúgio da sangha, na falta do Buda, que tinha desaparecido, e esse Brâmane perguntou: “Agora, quem é o refúgio?” E Ananda disse que o Buda tinha definido que o refúgio não estaria em alguém, um sucessor, mas sim estaria no Dharma.
Esse é um ponto muito importante, significando que o refúgio está no Dharma, e está em Pratimoksha. Significa que nos guiamos pelo Dharma e entre nós, a cada catorze dias, nos encontramos e olhamos como os nossos votos estão sendo mantidos, como está indo nosso comportamento, e como os outros estão manifestando o seu comportamento.
É como uma assembleia horizontal. Nós nos olhamos e vemos como isso está indo. É como se pensássemos: "O que está indo bem, e como posso fazer melhor?". A cada lua cheia e lua nova, olhamos e repetimos esses votos.
Os dez votos são: os três votos de corpo, os quatro votos de fala e os três votos de mente. A intenção de não matar, não roubar, não praticar sexo impróprio, não mentir, não agredir com palavras, não criar discórdia, não falar inutilmente e nem se prender por ignorância, pela avareza, ou pela raiva - esses são os dez votos. Naturalmente estes dez votos se referem também ao oposto: em vez de tirar vidas, proteger vidas etc.
Hoje de manhã eu percorri isso rapidamente, lembrando como isso é praticamente impossível. Dentro do próprio ensinamento budista existe a apresentação das contradições inerentes. Mas, quando vemos as contradições, esta terceira etapa também é importante.
Primeiro vemos os votos; depois as contradições, a impossibilidade de ser perfeito; e aí nós refazemos os votos, enquanto intencionalidade. Se não temos a perfeição disso, nós temos a intencionalidade. Que nós não abandonemos isso porque surgem contradições aqui e ali. Nós mantemos essa visão. Essencialmente é isso. É apenas um lembrete que não conseguimos o voto exato, mas sim a intencionalidade. Esse é o ponto. Nós temos a intencionalidade de não matar, de proteger vidas. Temos essas várias visões e também pankasila.
Entre os praticantes, o voto deveria ser para os praticantes que são bikhus. Eu utilizo essa palavra bikhu dentro de uma perspectiva um pouco mais ampla do que algumas interpretações. Segundo algumas interpretações os bikhus são aqueles que são monges. Porém, há praticantes que descrevem o bikhu como aquele que mantém a plena atenção.
Prefiro manter esta visão: que os bikhus são os praticantes que buscam praticar a lucidez. Eles incluem os monges e também os leigos, sem diferenciação. Nesse caso, todos nós somos bikhus. E nesse sentido, também os dez votos se aplicam para nós.
Para os leigos, aplicam-se cinco votos, ou seja, não matar, não roubar, não praticar sexo impróprio, não mentir e não se intoxicar com substâncias variadas, incluindo o álcool. O que é citado efetivamente é o álcool, mas há uma interpretação mais ampla, que vale para qualquer substância. (O açúcar e o café não estão incluídos, para não deixar dúvida e não gerar controvérsia!). Mas aí o pessoal diz: e a farinha? E o sal? E começam assim: “E o leite?” É um pouco complicado. Mas de qualquer maneira, tudo que acharmos que intoxica (já fica esta visão mais geral), nós cortamos – é mais ou menos isso. E surgem perguntas assim: “Mas se eu tomar só um pouquinho?” Vocês veem, a mente é maravilhosa. Nesse caso, vale esta interpretação: a pessoa pode utilizar qualquer substância (mas não coloque o nome da substância na minha boca, não falei nada), e se ela tomar uma certa quantidade da substância que não perturbe a condição da mente, não é um problema.
Essas interpretações já vão ficando assim, por isso no final ficam regras infinitas, se vai fazendo um ajuste nisso. Vale isso, é aceito desse modo: se a pessoa tomar um pouquinho de vinho de missa, mas só um pouquinho, se não tonteou, está bem.
Porém se ela tomar muito e tontear, mas não perder a lucidez completa? Guru Rinpoche podia tomar qualquer quantidade de álcool e não tinha nenhuma perturbação. Essa interpretação é considerada válida, ou seja, não havendo obstáculo, não há obstáculo. Esse é o ponto.
Nesse ponto vêm os yoguis, os Mahasidas, e é um outro assunto. Essencialmente seria esse o ponto, porque eu vi esta pergunta para Jamgon Kongtrul Rinpoche, quando ele veio fundar o Centro Kagyu, no Rio de Janeiro. Isso foi provavelmente em 1989.
As pessoas perguntaram para ele: “E se eu tomar uma substância de poder e alguma coisa se abrir?” A resposta de Jamgon Kongtrul Rinpoche foi: “Nós já temos o samsara, que já é um nível de perturbação da mente. Se adicionarmos outro nível, vai ser uma confusão adicional.”
Isso não quer dizer que as pessoas que tenham lucidez completa não possam manifestar lucidez em qualquer circunstância. Somos capazes de tomar qualquer fração ou qualquer parte dos seis reinos, dos trinta e um reinos do samsara como fator de lucidez. Somos capazes. O Buda é capaz disso. Ele treinou nos trinta e um reinos do samsara, incluindo os infernos.
Mas talvez não seja uma boa ideia. Melhor gerarmos a lucidez a partir das terras puras e, uma vez que atingirmos a liberação, ela estará atingida. Os lugares mais difíceis de praticar não são os lugares em que, de modo geral, nós podemos gerar lucidez. É melhor encontrar lugares melhores, e é por isso que surgem as terras puras. Nós as procuramos porque lá é mais fácil. Nós nos tornamos mais conscientes e somos capazes de aproveitar os obstáculos naturais, que não faltam, não faltam desafios. Somos capazes de aproveitar isso para avançar. Esse é o sentido das terras puras.
Nós nos encontramos nesse ambiente. Nosso refúgio é o Dharma, que é inseparável do Buda. O Buda em nós gera o Dharma. O Buda, na forma do próprio Buda, e na forma dos mestres, faz o Dharma se aproximar de nós. Nós nos conectamos desse modo. Especialmente dentro do budismo tibetano a figura do mestre é muito importante. Porque a figura do mestre, é, eventualmente, atraente. E assim as pessoas, por um vínculo que é cármico, se aproximam do Dharma.
Vejam como Dzongsar Rinpoche é super atraente. E Sua Santidade o Dalai Lama, super atraente. Todos os mestres têm um aspecto que produz conexão, que nós aproveitamos. Nós, praticantes, aproveitamos a conexão e entramos no Dharma desse modo.
Já o Buda não descrevia dessa forma, mas ele insistia que nós ultrapassássemos o que é chamado de caminho do ouvinte. Ou seja, não basta eu ouvir os ensinamentos e tentar repeti-los. Eu preciso ouvir os ensinamentos de dentro.
O Buda apontava o Buda dentro. Este é um ponto super importante. Quando acessamos o Dharma, nós olhamos para as coisas e temos um olho de sabedoria, é porque o Buda dentro de nós está aparecendo. O Dharma é inseparável do Buda. Quando, espantosamente, o Dharma aparece em nós, de repente nós vemos que ele apareceu nos outros. Isto é muito maravilhoso.
Como aqui: estamos em uma assembleia, que é a sangha. É muito provável que cada um tenha feito uma conexão individual. Não chegamos em algum lugar em grupo, chegamos individualmente, em diferentes circunstâncias. O Dharma surgiu em nós, e o Dharma nos aproxima. Nós nos aproximamos por semelhança e por afinidade, dentro de uma visão elevada. Isto é muito maravilhoso. O Buda descreve as comunidades intencionais, que surgem como a própria sangha por afinidade elevada. Isto forma as Terras Puras. O Buda dá um ensinamento sobre a harmonia das comunidades.
Como podemos viver socialmente? Como podemos nos aproximar e fazer tudo funcionar? O segredo disso é o refúgio no Dharma, no Buda e na Sangha. Esse é um refúgio natural. Nós nos vemos atraídos. Como geramos méritos, e isso é um refúgio, porque nós estamos entendendo o Dharma de algum modo, esses méritos facilitam consideravelmente tudo que vai decorrer.
Por exemplo, evitamos matarmos uns aos outros, no sentido grosseiro. No sentido sutil, procuramos dar nascimento aos outros. Conscientemente, procuramos não deixar ninguém perdido em lugar nenhum. Dar nascimento é entender que há um lugar para o outro. Nós podemos matar num sentido sutil: não há lugar para o outro dentro do ambiente onde estamos. Porém, dar nascimento é nós olharmos como as qualidades do outro podem se manifestar. Abrimos espaço para que as qualidades dos outros se manifestem dentro do ambiente onde nós estamos.
Vejam como é a situação de cada criança que nasce. Hoje, dentro deste mundo que é o samsara, esse mundo externo, as crianças nascem e não têm lugar para elas, como já não tinha para os pais delas. Essas pessoas chegam no mundo e não têm espaço. Eventualmente, nas grandes cidades, elas não têm nem lugar para sentar no chão. Se sentar no chão em algum lugar já surge alguém falando: "Vão caminhando, vão caminhando, aqui não!".
Vejam como isso é difícil, muito difícil. Porém quando alguém coloca um olhar compassivo, acolhe e abre um lugar, é maravilhoso. Naquele momento a pessoa passa a viver. Temos que ter muito cuidado, porque às vezes, dentro da nossa casa, não há lugar para um filho, para um pai, uma sogra (essas pessoas são mal interpretadas, por vezes), não tem lugar para uma mãe. Não há lugar na vida para aquele ser. Nós precisamos entender isso. Não matar não é apenas não matar. É também dar nascimento, encontrar um espaço para as pessoas. Nós tínhamos que fazer um voto assim: "nenhuma criança sem nascimento", o que parece ser algo contraditório, pois, se tem criança, já nasceu. Ela nasceu, mas não nasceu. É como se nós, socialmente, não déssemos nascimento, não tivéssemos lugar para aquela criança ou jovem.
Os jovens chegando a uma certa idade, como entram no mundo? Os adultos têm que abrir espaço. Têm que, conscientemente. criar esses espaços, porque os jovens chegam sem habilidades e sem nenhum poder. Se os adultos não abrirem esses espaços de ajuda, como os jovens vão resolver isso? Impossível. Socialmente isso é necessário, isso é super importante.
Quando pensamos em um tecido social, nós começamos a pensar na nossa comunidade: no nosso grupo as crianças têm nascimento, os jovens têm nascimento, os velhos têm nascimento, todo mundo tem nascimento. Isso é super importante.
Como nos relacionamos? Como evitamos os conflitos? Como fazemos as coisas andarem? Mas sempre que pensamos "deveríamos fazer isso ou aquilo", essas disposições, ou compreensão, se chocam com nossas disposições. Nós gostaríamos de acolher um jovem. Mas olhamos para um deles e não achamos, de fato, que o deveríamos acolher. Por quê? Porque somos movidos por emoções perturbadoras. Temos carmas, escolhas. Não temos equanimidade. Não praticamos equanimidade, compaixão, amor e alegria. Não praticamos isso direto.
Em vez de equanimidade, temos preferências. Natural, são as preferências cármicas. Equanimidade é uma forma de prática. Eu olho assim: “Uau! E agora? Eu não tenho equanimidade! De onde vem essa minha não-equanimidade? Como eu a posso ultrapassar? Que carma é esse? De onde vem?". Então estamos praticando. Nós olhamos para as pessoas e dizemos: "Eu gostaria de praticar compaixão!". Mas não estou, propriamente, praticando compaixão: “Não estou batendo, ou não bato sempre". Isso já é uma forma de compaixão.
Porém é difícil praticarmos verdadeiramente a compaixão, entendermos a natureza búdica do outro, e aspirar que ele brilhe, que encontre um bom lugar. Temos dificuldade em acolher o outro com a face que ele tem. Não conseguimos dar-lhe nascimento.
Às vezes os jovens estão tão pressionados. Eu vi isso, vocês provavelmente viram também, porque aqui têm muitos educadores. Você dá papel, lápis, tinta e pincel para eles, e eles não conseguem dar um traço no papel. Eles não têm coragem, porque já fizeram tantas coisas que foram apontadas como erradas, que eles não ousam se manifestar de forma livre. Eles não têm coragem de fazer um borrão no papel, para não ouvir: "Que absurdo, como é que você faz um borrão desses!". Ele não tem coragem nenhuma, se não houver uma descrição exata do que ele deve fazer. E, de repente, ele faz aquilo super tenso. É assim, há o educador querendo deixá-lo livre, e ele não tem coragem de ficar livre. Essas são situações em que se nota que o nascimento está demorando a ser oferecido, de fato.
Além disso, temos dificuldades grandes, especialmente dificuldades culturais. Nós temos formas mentais de viver que dependem de culturas e experiências de vida anteriores. E nós nos estruturamos como sociedade de um tipo, e não conseguimos entender as pessoas com outras formas de ver. Não conseguimos entender.
Por exemplo, observemos os guarani, eles funcionam de um outro jeito. Existe o tempo dos guarani, que não é um tempo cronológico. É um tempo. (É um tempo carioca, acho que vocês me entendem…). Aquilo não está na hora, não é o relógio. Aí, quando é hora, acontece, natural. Mas quando não é, não acontece.
Os guarani foram nos visitar. Uma vez ou outra tivemos esta surpresa, deles dizendo: "Nós precisamos de carona para ir embora". Aí arrumamos alguém para levá-los, e avisamos: "Está tudo pronto, podemos ir". Eles respondendo: "Ah, mas agora não é um bom momento"! A pessoa que vai dar carona não sabe o que fazer. "E quando vamos?". "Nós não sabemos ainda". É interessante, desafiador. Maravilhoso. Isso é um outro tempo, outra visão. Quando vamos encontrando outras culturas, elas operam desse modo. E aí?
Uma das coisas que nós pensamos: vamos fazer uma vaquinha da Sangha toda. Vamos comprar uma terra para os guarani e vamos levá-los lá. Nós contamos isso para eles e, em vez de aceitarem, ficaram mudos. Bom, o que houve? Ficamos surpresos, mas tudo bem. "Eles vão responder ou não vão responder?", "Vamos respeitar o tempo deles".
Passaram-se uns dois meses e, aí veio a resposta. Eles vão consultando os Karaí, falando com o cacique, mas não é o cacique que manda. Bom, se não é o cacique é a mulher do cacique? Também não é. São seres que estão lá no silêncio, dentro da mata ou dentro de uma casinha em algum lugar, que eles vão consultando, vão consultando.
Eles chegam com uma cara meio assim, para baixo, sentam-se entre eles. E a conversa vai durando e durando. O velho fala como quem não diz nada, e eles entendem como quem entende. Voltaram e nos disseram: ”Nós não precisamos”. Nós olhamos para eles com surpresa. Eles responderam: “Nós já temos toda a terra”.
Está certo. Posso não estar entendendo muito, mas é assim. Porque os deuses estão completamente vivos e esta terra é dos deuses, não dos brancos. Os brancos estão aqui, mas não têm a terra. Pensam que sim, mas não a têm.
Os guarani estão retos no meio da desgraça, e temos que entender isso. Eles olham para nós e nos veem como frágeis. Eles não nos veem como aqueles que dominam o tempo e a realidade. Nós somos os que não entendem os deuses, nem os antepassados, não entendem as florestas, os rios, o céu ou as estrelas. Nós não entendemos nada. Somos grosseiros, super grosseiros, porque nos movimentamos de um jeito completamente estabanado. Mas nosso movimento não abala o céu nem abala as deidades, que seguem com vidas infinitamente longas, além da vida humana e além da cultura presente. Isso significa uma visão cultural completamente diferente.
Nós recebemos essas crianças guarani, abre-se um espaço dentro do nosso mundo estreito, e queremos que eles se adaptem a esse mundo estreito como se fosse uma realidade. Não vai funcionar, por maior boa vontade que tenhamos. Nós podemos até nos abrir, mas nossa abertura não é verdadeira. É uma abertura dentro do mundo como o entendemos, um mundo estreito. Isso é um encontro entre culturas.
Melhor nós entendermos que isso é muito mais profundo do que poderia parecer. Se nós olharmos, por exemplo, a cultura africana, vemos que não há uma cultura africana, há muitas diferentes culturas africanas, como há muitas diferentes culturas indígenas, também. Mas se tomarmos só a cultura Iorubá, é uma coisa muito parecida, porque as deidades Iorubás estão totalmente vivas. Elas são totalmente claras. Se nós quisermos lidar com as pessoas que têm isso de um modo consciente ou mesmo de modo sutil (que não brotou na consciência, mas está operando dentro do mundo sutil), eles vão ter um outro tipo de relação com a realidade, que não é o tipo de relação com a realidade que nós temos. É totalmente diferente.
Se examinarmos o tipo de relação que temos com a realidade, vamos ficar um pouco empalidecidos. Porque a nossa cultura vigente, a cultura dominante, está sem raízes, sem referenciais seguros. Trata-se de uma cultura que se sustenta pelo fato de estar indo adiante, só isso, sem uma base segura.
Houve o tempo em que nós dizíamos que éramos uma cultura cristã, ou uma cultura católica, o que nos dava base. Hoje não dizemos mais. Eu até diria que a cultura católica, com seus referenciais tal como se estabeleceram, chocou-se com a ciência, chocou-se com a psicologia, e ficou abalada.
A cultura católica incorporou a ciência e a psicologia, a educação e visões políticas muito mais amplas, mas sem conseguir digeri-las dentro do arcabouço católico. Foram aquisições que se transformaram em colagens, e nós perdemos a unidade de fala.
Esse é um ponto interessante. Eu ouvi uma vez, num encontro inter-religioso na Fundação Peirópolis, um teólogo referindo-se assim, ao grupo todo: "Nós católicos…". Ele me colocou junto. E de repente, eu me senti católico, porque nós vivemos dentro de uma cultura. Observem as datas que nós respeitamos: vamos ter o Natal agora - respeitamos as datas católicas.
Ele colocou assim: "Nós, católicos em crise", e achei isso interessante. Ou seja, ele via a cultura cristã, na forma da Igreja Católica, como a cultura que tinha estabelecido os referenciais da vida no Brasil. Mas ele a via em crise. Essa é uma visão interessante.
Mas os guarani poderiam dizer: "Nós, os guarani...”
Temos invasões e seres que, simplesmente, não entendem as coisas como são. Temos os iorubás e outras tradições muito importantes e profundas, que também tentam entender a realidade, oferecer uma visão. É dentro desse mundo que vamos oferecer algum nível de acolhimento, é onde vamos acolher as pessoas.
Temos os seres brancos desse tempo - essa é uma cultura branca, pessoal, a cultura vigente é branca, é a cultura do invasor. Ultimamente eu ando me sentindo meio estranho, acho que sou o pior deles: sou homem, branco, europeu, e velho. Portanto, estou na parte baixa da situação.
Mas quando observamos esse aspecto, vemos que se trata de algo particular, e a cultura desse tipo é dominada pela economia, pela visão econômica, que vem sendo praticada por meio do saque desde o tempo da invasão ao Império Romano, que era bem mais sofisticado que os invasores nórdicos. Os Vândalos (um bom nome) vinham, destruíam tudo e dominavam, e terminaram invadindo a América.
Os reinos cristãos, como o reino de Castela, que expulsou os islâmicos do sul da Europa, consistiam no reino Visigodo, dos invasores do Império Romano. Quando chegaram nessas regiões, se estabeleceram como nobreza, e as pessoas que viviam ali eram os servos. Desta forma se estabeleceu o sistema social que foi transplantado para a América.
Nessa época, havia os fidalgos, os “filhos de alguém”, nascidos na nobreza, com ligação étnica com os invasores, os Visigodos, e havia o povo, os Morochos, os morenos, que eram os mouros, no sul da Europa. Os Mouros eram os morenos, e viraram os servos.
Então houve um processo de assimilação muito difícil, porque aquelas pessoas, sob o domínio árabe - eram árabes, islâmicos, e naquele tempo não eram servos de ninguém - eles eram donos daquelas regiões, mas passaram a ter uma concessão para poder ficar na terra, prestando serviço aos outros.
Surgiu a mesma situação aqui no Brasil, onde havia os fidalgos e o povo. Naturalmente, o povo foi crescendo e se multiplicando, e virou algo importante.
Houve um episódio que eu considero muito comovente, que é o fato de que a língua geral, que era a língua do povo, ter sido proibida. Acho que o ocorrido não está bem entendido, mas pode-se imaginar a violência disso. Tínhamos uma língua que fundia palavras africanas com palavras indígenas do tupi-guarani, com algumas do português: era uma língua geral.
Essa língua foi proibida e as pessoas foram escolarizadas através do sistema de educação implantado na língua portuguesa, ocorrendo então a consolidação do processo de dominação.
[Os colonizadores] tiveram medo de que a discrepância de língua desse um sentido sólido para uma nacionalidade morena, uma nacionalidade mestiça, que se sentisse como o Brasil e que excluísse os que excluíam. Assim vem essa coisa, que não é fácil. E surge uma cultura branca, que se estabelece dominando os sistemas de educação, e implantando uma mente branca sobre as pessoas de todas as visões.
E aí é natural que haja muitas discrepâncias no sistema de educação, porque as pessoas não se ajustam, uma vez que os sistemas de educação repetem as estruturas sociais, e sua forma de ver. Elas foram progressivamente sendo educadas numa sociedade, em um sistema de educação que privilegia o sistema econômico pelo saque, como o processo que justifica tudo. Chegar numa região derrubando floresta e minerando as montanhas é considerado uma grande vitória, justificada pelo sucesso econômico. Estamos numa sociedade totalmente perdida.
Portanto, nesse tempo, o que surge? Pessoas que se juntam por outro tipo de visão; estamos nos unindo porque entendemos a Primeira Nobre Verdade, a verdade de como as coisas surgem, como acontecem, como aparece o sofrimento, como brotam as identidades.
Aprofundamos o tema da Primeira Nobre Verdade, entendemos Dukkha e que tanto as vitórias quanto as derrotas são sofrimento. Entendemos estes aspectos profundos da realidade (que não vou repetir agora). Entendemos a razão pela qual isso se torna vigente, que é essencialmente os Doze Elos da Originação Dependente. E, num sentido mais amplo, mais profundo, vemos a própria Originação Dependente, algo crucial que precisamos verdadeiramente apreender, e a vemos operando enquanto manifestação de liberdade e luminosidade. A Originação Dependente nos ajuda a compreender porque as coisas estão como estão, e como que, mesmo não sendo, são.
Esse é um ponto essencial. Quando entendemos como as coisas se manifestam, entendemos a natureza luminosa, que vai criando as aparências e nos vinculando, criando as identidades, fazendo tudo operar. Vemos que este aspecto luminoso e amplo, vasto, está sempre presente, não importa qual experiência eu esteja vivendo. Ele está por trás das múltiplas experiências, e me permite escapar do sofrimento correspondente.
Por exemplo, quando estou jogando um jogo, sofro ali dentro. Mas aí vejo que o jogo é construído luminosamente, e a dimensão luminosa que constrói o jogo pode construir qualquer coisa em qualquer direção. Ela não está presa no jogo, é livre. No entanto, a minha mente, operando dentro do jogo, quer que as coisas funcionem de uma certa forma. Surge um nível de estresse, de sofrimento.
O sofrimento não é a base, não é a realidade; a realidade é a natureza livre e luminosa, aquilo fica claro. E quando fica claro, entendemos a Terceira Nobre Verdade.
Se isso ocorre, quando vemos as diferentes pessoas, os diferentes seres presos como quem vê um besouro cascudo com as patinhas pra cima, sem poder se mover numa superfície, sem saber como sair dali, nossa tendência é pegá-lo e virar. Nesse momento, ao vermos os seres numa situação difícil, nossa tendência é intervir e ajudá-los: isso é a Quarta Nobre Verdade. É o surgimento no lótus.
Ou seja, quando encontramos as dificuldades, o sofrimento dos seres, temos o impulso de ajudá-los. Quando esse impulso surge, surge o talo do lótus; quando nós conseguimos meios hábeis, a flor do lótus se abre, e estamos no centro dela tentando fazer as várias coisas.
Tal é a mente Bodhichitta: assim nós nos manifestamos a partir da mente Bodhichitta, onde nos encontramos. Essa é uma comunidade que se move pela Primeira Nobre Verdade, pela Segunda Nobre Verdade, pela Terceira Nobre Verdade, pela Quarta Nobre Verdade.
Evitamos as ações negativas, meditamos, tentamos nos familiarizar com a visão ampla, em meio às múltiplas circunstâncias, e assim nós avançamos no caminho calmamente, sem pressa. Avançamos. Isso é a história da comunidade, que se funde com a história das Quatro Nobres Verdades, do Nobre Caminho Óctuplo.
Nessa situação, aqui se torna um o lugar mais fácil para praticarmos isso. Porque nós temos essa visão, pessoal: é mais fácil. Eu olho para rosto de vocês, que têm um rosto bondoso, bonito e amoroso, e é muito bom: nós nos olhamos uns aos outros. É assim, muito bom. É um bom lugar, isso são méritos!
Poderíamos nos olharmos um ao outro e criticar, hostilizar, e não dar nascimento. Mas a cada pessoa que chega aqui nós dizemos: “Sim! Venha! O banheiro é ali! A comida é aqui! Faça isso, faça aquilo!".
Nós nos alegramos em receber as pessoas, não? Damos nascimento, ficamos felizes. Isso é maravilhoso, e surge, porque há méritos. Os impulsos que brotam em nós são impulsos positivos e não negativos.
Quando surgem impulsos negativos, o que fazemos? Exclamamos: “Olha aí! Isso é um tesouro". Localizamos coisas em nós que precisaríamos superar. E o fazemos com cuidado para gerarmos instrumentos para ajudar outros seres a superar também. E como estamos manifestando isso, ajudamos outros a superar esse mesmo problema que estamos vivendo.
Eventualmente não conseguimos acolher a todos. São todos iguais, mas uns são mais iguais, outros são menos iguais, aquilo é meio assim. Aí nós temos algum nível de escolha.
Com isso, ficamos filtrando, vendo diretamente dentro de nós onde estão os obstáculos. E vemos também comportamentos repetitivos em nós. São comportamentos ligados aos Seis Reinos. Então veremos: uns têm uma ligação com o reino dos deuses, outros com o reino dos semideuses. (O reino dos semideuses está dividido em doze signos, os piores são os virginianos. Aí há os seres humanos: os que mais choram são os cancerianos!).
E aí há o pessoal do reino dos animais: puxam um ronco longo depois do almoço! E os animais noturnos... E constatamos que temos várias tendências, de um certo jeito aquilo brota fácil em nós.
Seguimos localizando isso tudo. Temos carências, todos temos carências em algum lugar: nem que seja de chocolate, café, açúcar ou uma coberta quentinha. Alguma coisa assim. Todo mundo tem uma tendência desse tipo. Vamos olhando.
Temos também os infernos, lá há coisas (Aqui, acho que ninguém tem isso, não?) que, aparecendo, nos tornam furiosos. "Aquilo passou do limite! Eu sou budista, mas não tanto! Sem exagero!". Ficamos um pouco confusos, não temos de ser, de vez em quando, assim? E, felizmente, aprendemos que há a ação irada: "Eu não estava com raiva, estava com impulso de ação irada", é um pouco assim. Mas a ação irada é ação compassiva irada. Nesse ponto a pessoa diz: "Só faltou a parte compassiva. Foi por pouco, eu estava querendo torcer o pescoço".
Vamos transformando tudo isso em trabalho, em meditação, lucidez, vamos vendo. Cada coisa que acontece conosco, quando vemos o outro fazendo igual, pensamos: "Ele não precisa fazer isso, se fizer como eu faço, ou como eu faria… Vai dar confusão, é certo. Ele pode passar muito tempo agindo assim, sem conseguir escapar". Como ajudar o outro a escapar do que levamos muito tempo para conseguir? Como fazer?
Também entendemos, quando os outros se manifestam, e olhamos com muita atenção, porque o outro é nós mesmos em outro lugar. Porque nós temos a consciência búdica, todos nós a temos; mas estamos com referenciais diferentes, e operando desde diferentes lugares.
Então é muito útil, pessoal, nós sabermos isso. É como quando [dizemos ao telefone]; “Vou para o Rio, está quente, aí? Qual a previsão do tempo, vai chover?". Quero saber como está lá, e nesse caso tem que ser alguém de lá. Eu pergunto porque não consigo ver lá. Porém o outro que está lá é a mesma inteligência no outro lugar.
Nós somos isso: a mesma inteligência em diferentes lugares. Quando ouvimos o outro falando desde outro lugar, entendemos que é uma inteligência falando de outros lugares, mesmo que seja uma inteligência condicionada.
É assim que os povos da terra, em todas as partes do mundo, lêem o pensamento dos animais, das árvores. Veem como estão reagindo os vários seres. Observam que agora os pássaros estão cantando mais ou menos agudo, e que, agora, eles estão cruzando assim, e que, antes, andavam de outra maneira. Começam a ver. E que, agora, o vento está desse modo e não daquele. A natureza é toda inteligente! Tudo é inteligente.
Passamos a olhar uns e outros, todos estamos dentro de um mundo de inteligências. É como as partes do nosso corpo, que nos dizem coisas diferentes. Elas nos alertam para coisas diferentes, e nós as ouvimos: mesmo que não falem, as ouvimos.
Do mesmo modo, podemos ouvir de forma mais ampla: nos olhamos uns aos outros. Às vezes, sem nem nos olharmos, sabemos o que está acontecendo. É muito importante que aconteça isso numa comunidade. Vamos nos olhando, e vai funcionando assim.
Porém temos um eixo: as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho de Oito Passos. Quando nós estamos numa área como essa, vemos que só a temos porque houve a proximidade. Temos uma vantagem econômica direta, atravessamos o mundo econômico convencional, porque nele não se consegue estabelecer todo mundo num único lugar. Alguém compraria, dividiria e nos venderia a terra em partes. Depois, pegaria o dinheiro e iria para as Bahamas. Enquanto que, o que acontece nessas comunidades, é que nos juntamos, todo mundo oferece um tanto. A pessoa está dentro da área, e todos os valores são utilizados ali para o benefício de todos.
O dinheiro não vai com alguém para outro lugar, ele fica ali, totalmente transparente para todo mundo, todos estão sabendo que aquele é o movimento.
Desta forma, essas comunidades se tornam poderosas rapidamente porque, pelo esforço conjunto, vamos seguindo e nos potencializando uns aos outros. Financeiramente há uma grande vantagem, porque chegamos numa área rural, que, entretanto, se torna uma área urbana. De modo geral, se conferirmos, os valores das áreas urbanas são muito elevados. Mas não vamos pagar por valores de área urbana: pagaremos pelos de áreas rurais.
Desse modo, nossa capacidade de nos olharmos amorosamente uns aos outros produz um reflexo econômico instantâneo. Isso é muito impressionante, é imediato.
Estamos juntos, nós nos entendemos. Não temos a sensação de que um é ameaça para o outro. Isso é uma raridade nesse mundo, pessoal; uma raridade completa.
Eu, ainda que esteja residindo atualmente no Caminho do Meio, entro e saio de lá o tempo todo! Para nós, que estamos lá, parece sempre surpreendente que aquele lugar possa existir, porque não temos fronteiras sólidas com o ambiente externo. E este é um ambiente perigoso, no sentido de que não convém parar na beira da estrada, ali mesmo, ou defronte ao portão. Porém quando passamos o portão, temos a sensação de segurança. E estatisticamente, aparentemente, também estamos seguros ali.
Essa energia é uma energia favorável, protetora. É super importante entendermos isso. Os méritos que estabelecemos vão se espalhando, nos relacionamos com todo mundo em todas as direções, de outra forma. E isso produz vínculos favoráveis, e igualmente um nível de proteção interna. Porque nós somos favoráveis para eles, e eles são favoráveis para nós! Todas as pessoas, dentro e fora, todo o entorno é beneficiado pela nossa proximidade.
Aqui já está acontecendo isso. As pessoas ficam super-felizes pelo fato de estarmos aqui (eu digo nós, porque já estou me incluindo). Estamos aqui, a estrada melhorou, as relações melhoraram. Eles veem que temos uma visão pacífica em relação à natureza, não estamos dando golpe nenhum, nem armando confusão.
Todos que encontramos são pessoas, assim, com um rosto como o de vocês, amoroso, acolhedor, querido. Eles se sentem bem, acham que está tudo muito bem, parece um milagre que aconteceu para eles também. Então se sentem felizes, e tudo isso estabelece uma nuvem de proteção.
Começamos com méritos, observando as Quatro Nobres Verdades, melhorando a nossa própria vida, nascendo na relação com os ensinamentos. De repente ocorrem esses desdobramentos, que são desdobramentos sociais. Isso é muito maravilhoso! E ao mantermos o refúgio, todos os outros desdobramentos vão acontecer naturalmente, de forma completamente fluida. Então, nesta comunidade, ainda falta um tempo, vai um tempo para termos as casas neste local. Mas já contamos com uma base para acolhimento.
E ocorreu esse retiro. Foi incrível, assim, ainda que não houvesse uma cozinha para todo mundo. (Acho que ninguém pode reclamar da comida, porque cada um trouxe a sua. Reclamar para quem? Ninguém reclama da cama, porque ninguém vai dormir aqui).
Então, um dia… Fizemos o que foi possível, e em breve, quando tiver eletricidade, água, os outros elementos, será possível começar as moradias, e aí chegaremos a outra etapa.
Mais adiante, o que vai acontecer? Teremos famílias aqui! E talvez crianças. Então, mais adiante nós pensamos: "Eu gostaria que os meus pequenos pudessem ser bem cuidados aqui".
Começa nesse momento uma interação em outros níveis da própria comunidade com a comunidade, porque há pessoas na comunidade com habilidades. Elas poderiam, em vez de trabalhar em outro lugar, começar a fazer atividades dentro da própria comunidade. Elas moram aqui e prestam atividades aqui dentro; são apoiadas por todo o movimento.
Nesse momento os pais começam a ficar liberados, podem fazer outras coisas. As crianças em grupo estão muito felizes, porque têm alguém com quem brigar, quer dizer, com quem brincar, não? Isso é muito bom, é muito feliz! Quando vemos os grupinhos de crianças, por aqui, por ali, é pura alegria, e também para os pais.
E o tempo passa rápido. Dez anos passam rápido! Agora, no Caminho do Meio, a primeira turma vai ter sua formatura, dia 8 de dezembro. Quando chegaram, eram crianças pequenas, dormindo uma ao lado da outra. Eram pouco mais que bebês. Vários se conheceram assim. No bercinho eles faziam assim, sorriam um para o outro. E seguem colegas, amigos. É muito incrível.
O Henrique, que foi um dos fundadores, fez 16 anos agora, está maior e mais pesado do que eu. Trabalha menos do que eu, mas... Acho isso muito maravilhoso! Os educadores também vão amadurecendo, descobrindo um jeito melhor, estudando, olhando...
Essencialmente, qual é o eixo da escola? Compaixão, Amor, Alegria, Equanimidade, Generosidade, Moralidade, Paz, Energia Constante, Concentração, Sabedoria,
As Quatro Nobres Verdades, as Cinco Sabedorias: Sabedoria do Espelho, Sabedoria da Igualdade etc. Há as festas das Sabedorias. Maravilhoso, pessoal! Um laboratório vivo, vamos indo. Não está parado. Melhoramos constantemente, e vamos aprofundando, e fazendo as coisas andarem. É muito bom!
Estamos pensando assim: "Nós vamos plantar ou não vamos plantar? Vamos ficar comprando do supermercado?". A primeira coisa é colher café. Com a minha visão transcendente, digo: “Aqui tem muito café, pessoal!” Muito café. Brincadeira. É maravilhoso, eles me contaram que há muitos pés de café aqui. E cacau, também? (Então já estamos fazendo um cappuccino. Precisamos plantar uns cappuccinos aqui!).
Hoje cedo tomamos café daqui. Incrível isso. Colhido, torrado e moído aqui. Maravilhoso. Eu tomei só porque era daqui, porque café está proibido aqui. Não é maravilhoso isso? Começamos a olhar assim, é muito maravilhoso.
Lá em Quatro Barras, no CEBB Sukhavati, montaram uma área de produção e fornecem alimento orgânico para a merenda escolar; é uma fonte de renda da comunidade. Não é maravilhoso? No Bacupari estamos cheios de caixas de abelha, ainda não colhemos mel. Mas estão lá. Aqui tem muitos eucaliptos, muita floresta, tem flores o ano inteiro. É muito favorável. Acho que não há um período seco, não? Ah, tem. Mas sempre tem água em algum lugar, não?
Podemos tomar toda essa parte como uma forma de aprendizado: vamos aprendendo, entendendo os seres, as plantas, percebendo nossas emoções diante destas várias coisas. Vamos trabalhando a estabilidade da nossa mente, nossa capacidade de andarmos dentro disso, e a generosidade de oferecer os alimentos, dentro da comunidade e para outras comunidades. Nós podemos fazer isso.
Esse âmbito da criatividade da relação com o mundo é muito amplo. As comunidades, têm muitas inteligências, muitas habilidades. Uma comunidade como essa pode prestar muitos serviços, fazer muitas coisas nessa conexão.
Lá no Caminho do Meio ainda não o fizemos. Não sei se um dia o faremos. Eu aspiro que um dia adquiramos uma área a mais, que seria um hub de negócios. Nós temos pequenas áreas individualizadas, que podem ser pequenas, retangulares ou quadradas. Quando as pessoas chegam para buscar as crianças na escola, ou deixá-las, elas estacionam, e no local pode haver armazéns de produtos naturais, verduras, produzidas por nós e por outros, lanches, sucos, e também serviços de engenharia, lojas de coisas pequenas. Há uma variedade de possibilidades ali dentro. Tem o pessoal fazendo shiatsu, acupuntura: tem de tudo. É uma startup budista!
Por quê? Porque muitos da sangha gostariam de trabalhar também, e aí não precisam se deslocar já que as pessoas vêm até ali. Aqui, por exemplo, eu acho que haverá muitos visitantes. Artistas que façam thangkas ou esculturas.
É matemático, se fizermos bandeiras, é matemático, aquilo vai andar. Madeiras, malas etc., e qualquer outra coisa. Se a pessoa tiver mel, se tiver café, o que tiver, aqui a economia funciona. Isso imanta para outras regiões. As pessoas levam as coisas e essas levam a energia correspondente à própria comunidade.
Não somos seres isolados e separados do mundo. Nós somos seres que buscam irradiar. Pode-se ter uma publicação do local, é muito fácil publicar. (Aliás, [mostra o livro] “A chave quântica”, de Eliane Xavier, não percam! É um livro muito interessante porque é especialmente para jovens. Maravilhoso. Física quântica de zero a sete).
Vocês podem imaginar as habilidades de cada um nas várias áreas. Eu acho também que consultórios médicos, de dentistas e de qualquer outra habilidade serão super bem-vindos. Nós precisamos disso o tempo todo. Lá no Caminho do Meio temos esses atendimentos, mas sempre de modo completamente informal, não temos os locais apropriados.
Mas seria importante, porque dentro do próprio CEBB, por alguma razão que não sei se é possível contornar, não conseguimos ter isso. Teria que ser fora do CEBB, porque ele é uma associação sem fins lucrativos, sem interesses econômicos. Não se pode individualizar partes ali dentro como se fossem de empresa ou endereços para organizações de fins econômicos. Isso não é possível. Não sei se há um jeito de contornar. Mas se a gente tivesse uma área que pudesse usar assim, seria muito favorável.
Acho que isso ficaria perfeito no Caminho do Meio, porque quando as pessoas vêm, já chegam nesse lugar, onde há sempre quem dê informações, e diga o que está acontecendo, para fazer contato. Ali pode haver também um posto de correio terceirizado para remeter e receber as coisas. Por ora nós recebemos encomendas de um modo um pouco caótico.
Aqui isso também vai acontecer, porque as pessoas estarão morando, e como o Correio vai chegar, quem receberá? Quem encaminhará aqui dentro? Assim, é importante que haja alguma coisa na frente.
Agora, se vamos pagar funcionários para ficarem o tempo todo ali, não fica muito bem. Mas é favorável se já tivermos um lugar desse tipo. Seria necessário que fosse uma terra que não pertencesse ao CEBB, uma terra de associação que permitisse, pelo estatuto, esse tipo de funcionamento.
Vejam, isso é complexo, mas é uma vantagem, nós vamos tendo outras coisas assim. E, naturalmente, pode ser que ali dentro surja um provedor de internet, algum de nós que já cuide da internet geral, de todo mundo da área, e cuide direito. (Por exemplo, o André, ele está fazendo uma coisa assim. As pessoas não reclamam lá para Juiz de Fora ou não sei onde). A pessoa ali dentro tem todos os meios, e faz aquilo acontecer.
Vai-se dando trabalho para quem está em volta, quem está dentro, e tudo vai andando.
Na área de construção de móveis, de construção de prédios, de casas, de arquitetura, planejamento etc, é super útil. Eu acho que um bom brick, um brick de móveis, um bom brechó de roupas, nós estamos resolvidos. A pessoa chega e lá está o brechó. Todo mundo já passou por lá. Temos móveis que precisamos fazer, já estão lá no brick.
Nós vamos nos divertir, pessoal. Uma sorveteria, uma cafeteria... um samsara instalado. Aí o que iremos fazer num shopping? Vamos botar cinema, pãozinho de queijo.
Pois é, essa era a parte grosseira...
Uma área como essa deveria ter uma zona para retiros, onde seria importante haver uma área para os retiros coletivos e uma área para os grandes iogues da floresta, pessoas que vão fazer retiro isolado, com fibra ótica em cada uma das casinhas. (Por que não dá para fazer retiro sem internet... E delivery. A pessoa chama e vem a pizza para o cara que está em retiro. Por drone fica melhor).
Eu diria que o coração vai ficar justamente nas áreas de retiro. Ainda que todo o resto parece que tenha mais energia, e seja mais atraente, as áreas de retiro são o centro efetivo de uma área como essa. Porque todos que ali se encontram estão fazendo alguma coisa e com um olho de poder ir para as áreas de retiro em algum momento.
Dentro disso, nós temos os estudos permanentes, nós temos traduções, publicações. Eu acredito que uma área como essa, do tamanho em que estamos, pode ter um número de pessoas que consiga fazer todos os estudos, de todas as áreas do budismo. Fazer aquilo convergir e manter uma qualidade que apoie a base, para que as pessoas entrem bem em retiro e se mantenham bem em retiro.
Naturalmente, em algum lugar, há um templozinho, Amitayus, Amithaba, e onde nós vamos colocar as cinzas finais dos seres. Isso é importante, que tenhamos esse destino. Que possamos receber as crianças que estão chegando e despachar o pessoal cujo prazo de validade já venceu. E nós vamos olhando.
Quando Chagdud Rinpoche chegou, eu conversei com ele sobre isso. “Rinpoche, vamos fazer isso! E aí vai ter o lugar para os que morreram e um lugar para os que vêm”. Rinpoche fazia “sim, sim, sim” com a cabeça. Aí nós temos uma comunidade, e isso é muito bom. Nós podemos acolher.
Lá em Viamão nós ainda não a temos, mas acho que é por um detalhe. A gente precisaria de uma casa para os mais velhos. Todo mundo tem uma mãe ou um pai que está num bordo. A gente vai cuidando deles durante o dia, mas, eventualmente, eles já não estão bem. Precisam ser cuidados em três turnos de oito horas, ou em quatro turnos de seis horas, porque eles não estão bem. Movimentam-se durante a noite, sofrem, precisam ser apoiados em diferentes horários do dia.
Eu acho que pode haver um bom espaço no qual a própria comunidade também está ali, ganhando apoio para poder cuidar dos mais velhos, que se mantêm próximos da família toda, todo mundo visita, todo mundo é simpático com eles, estão próximos. Estão numa condição em que precisam desse apoio. Mesmo que os filhos e as filhas queiram cuidar, há um momento em que quase não é possível, porque não tem como fazê-lo por 24 horas, e eles precisam ser cuidados 24 horas.
Se você os deixa na cama, [podem] se levantar e cair, como é que se pode fazer?. E eles vão ficando assim, não é? Isso não é um problema, porque foram bem cuidados e chegaram nesse ponto, e estão vivendo longamente. É assim. Eles vão poder ficar menos hábeis e e continuar vivos. Aí as comunidades têm esse poder.
Eu sonho também com o college, [porém] acho mais difícil. Nesse momento, ele é coletivo, não é de algum lugar, estando online. Mas penso que vamos conseguir fazer módulos do college em diferentes comunidades. Acho maravilhoso que possamos receber jovens de diferentes partes do Brasil e do mundo para passar períodos dentro da comunidade, junto com os jovens dali. Não é um luxo maravilhoso isso, pessoal?
Os jovens gostam de se ver. E essa é uma forma de beneficiarmos os jovens de qualquer lugar. Eles precisam sentar em roda, sonhar juntos, precisam olhar o céu juntos. Precisam caminhar e ter a liberdade de se expressar uns com os outros. Então isso é muito maravilhoso. E o college surge como algo que podemos oferecer. O melhor college é um dentro da perspectiva de uma comunidade com visão ampla. E ela mesma já é alguma coisa. Só de estar ali, está bem.
Pode ser que nós consigamos também criar, a partir dos projetos que surjam de dentro do college, um hub em que a própria comunidade apoie as iniciativas que os jovens venham a sonhar e aquilo equivale à etapa seguinte, que é ajudá-los a andar por dentro do mundo. Gerar as habilidades para andar no mundo segundo aptidões de vários tipos.
Eu vejo que o melhor tipo de educação, para onde nós estamos rumando é uma educação por projetos, ou seja, aprendemos dentro de projetos que venhamos a realizar. A educação na qual os jovens são forçados a parar para ver alguém descrever alguma coisa está totalmente condenada, já não funciona. Ela só segue porque as pessoas não sabem fazer uma escola senão assim. Mas ela está falindo totalmente, porque os jovens simplesmente não têm paciência para ficar olhando isso. No entanto, se são desafiados a produzir projetos e fazer coisas, pode ser que desse modo as coisas andem.
A capacidade de sentar em roda e pensar o que está indo bem, como fazer melhor e como é possível andar é muito maravilhosa, porque esse é o processo pelo qual a vida decorre. É o processo pelo qual nós caminhamos. É o processo pelo qual a comunidade também surgiu. Então esse software é super importante. Podemos ir melhorando esse software como quem senta em roda, dá um nascimento a cada um e consegue convergir para visões do grupo. Geramos um projeto e começamos a fazer coisas.
Há muitos projetos maravilhosos. Aqui, por exemplo, como eu vi também em Alto Paraíso, vocês podem começar a procurar os animais selvagens que estão por aqui. Podem instalar câmeras-armadilha que disparam quando há movimento, e começam a surpreender os animais. E, a partir disso, podemos começar a estudar os fluxos, as ocorrências.
Eu acho que, quando começamos a fazer projetos, muitos deles podem ser compartilhados com as universidades. Então, havendo professores orientadores de diferentes lugares que virão fazer projetos aqui dentro, os alunos daqui podem trabalhar junto com outros de outros lugares e começamos a fazer coisas.
Eu acho que projetos internacionais também, porque o college já vai estabelecer ligações, e aí nós teremos professores aqui e ali. É muito bom, pessoal! Quando nós começarmos a trabalhar assim, os jovens de qualquer idade podem se envolver em projetos. Somos os jovens de qualquer idade. Temos as habilidades e vamos fazendo. Não vamos mais querer sair do samsara. Iluminação para quê?
Isso é Terra Pura. Nós temos a possibilidade de nos movimentar desse jeito.
Está certo que, quando falamos assim, não tem o tempo. O estabelecimento das coisas é, muitas vezes, lento. Mas quando apreciamos assim, vemos que é possível, que podemos fazer muitas coisas. Nós já fizemos muitas coisas em diferentes comunidades, e podemos fazer outras. E assim vamos andando.
Comunidades como a nossa têm capacidade de estabelecer vínculos com as escolas da região para receberem crianças ou jovens, para verem o que está acontecendo ou para se envolverem em projetos específicos. É como se fosse uma educação em contraturno; podemos oferecer espaços para atividades de contraturno. Muitos lugares exitosos fazem justamente isso. Eles plantam e convidam outros para virem em épocas de colheita, em épocas de trabalho. Eles fazem coisas assim: as escolas encostam os ônibus, desce todo mundo, e aquilo é muito vantajoso, muito favorável.
Se temos essa visão das Quatro Nobres Verdades, do Nobre Caminho de Oito Passos, se mantemos essa visão afetuosa que brota do Dharma entre nós, os méritos propiciam tudo.
No meio de tudo isso, haverá quem fique na encosta da montanha meditando, estudando e aprofundando, e haverá os que querem estar no hub comercial recebendo as pessoas, e aí nós vamos girando. Por tempos nós estaremos fazendo uma coisa, por tempos estaremos fazendo outras. E vamos indo assim.
Tudo o que fizermos aqui dentro, a partir de projetos e experimentos, daria para publicar como se fossem teses de mestrado e doutoramento em diferentes lugares, para quantificar e arrumar aquilo tudo. São exemplos que podem ser usados em muitas diferentes áreas. Super útil.
Essa é a parte mais aparente da Terra Pura, a mais visível. A parte sutil são os ensinamentos, é o Dharma; a parte secreta é a liberdade natural da nossa mente, que nos permite fazer diferentes coisas.
Quando examinamos como o mundo está desenhado, nós, dentro do samsara, não sabemos o que vai acontecer agora, nos próximos meses, nos próximos anos. Não sabemos se vamos chegar a coisas muito difíceis. Será que vamos conseguir proteger a natureza e proteger isso e aquilo? Proteger as minorias? O que vai acontecer com a economia e com o mundo? Ele está sem rumo, distópico, sem nenhuma visão. Aí, voltamos aqui para dentro, e vemos que tudo é possível. As coisas são possíveis, são benignas, são boas.
O melhor que nós podemos fazer para o mundo é gerar um bom exemplo de como produzir coisas boas. É o melhor também que podemos fazer pelos nossos jovens. Eles entendem, não acreditam que o mundo seja alguma coisa do lado de fora nos pressionando.
Vou considerar que estamos encerrando aqui essa parte mais discursiva. Temos ainda a benção da terra na área da construção do templo.
Mas ainda assim vou deixar alguns minutos para alguma coisa que vocês queiram falar. Nós estamos também quase nos despedindo, não?
Vamos fazer uma procissão em volta da área, fazer a bênção da terra onde vai ser construído o templo. Acho que ainda não tem o projeto, não é? Por enquanto temos o local. (Deve ser um templo maior do que o do Sukhavati. A gente não quer trazer nenhuma tensão, nada. Aí o Bruno já vai aumentar vinte por cento lá). Acho muito maravilhoso!
Essa sangha aqui é uma sangha numerosa, amorosa, inteligente, hábil. Eu estava em outra aldeia, uma sangha numerosa também, maravilhosa, inteligente, afetuosa. É muito milagroso. É o milagre do Dharma do Buda. As pessoas vão entendendo as Quatro Nobres Verdades, entendendo as coisas e tudo vai acontecendo. Isso é incrível, é muito encantador, muito feliz para todo mundo, é muito bom.
Agora tem também essa sangha que não sabemos onde está, eles botam só a carinha deles. Olha lá, (interagindo com o computador) super maravilhoso também. Temos a sangha de Campinas, uma sala linda, super bom. Vamos ali e começamos: " HUNG OR DJEN…". E todo mundo sabe, todo mundo responde. Aquelas caras maravilhosas, inteligentes, amorosas.
Vamos conversar com cada um e tem um mundo profundo por trás de cada olhar, de cada mente. Eles fizeram muitas coisas, sabem, estudaram, entenderam as coisas. Têm um tesouro, como vocês.
Vocês têm um tesouro atrás de cada um. Isso é muito maravilhoso, há um mundo profundo em cada um. Maravilhoso que esse mundo profundo se espalhe e beneficie os seres. É super importante. Que esse potencial maravilhoso possa aflorar de modo completo.
Aliás, eu também queria fazer um convite a vocês. Sei que não é muito fácil, mas vamos ter o evento 108 horas de Paz lá no Sul, agora na virada do ano, o que é um pouco o festival das Terras Puras, esse é o ponto. Nós olhamos de modo mais amplo, como se olhássemos o mundo, o Brasil, as políticas públicas, essas questões. Também vai ter online.
É isso. Vou deixar um espaço, contar até três: se alguém quiser falar... Se não, encerramos.
Perguntas e Respostas:
Pergunta: O clima do Sul não é um bom clima para o senhor… O senhor vem morar aqui?
Lama: Fazer o quê, não é? Eu não vi o projeto da casa ainda. Mas lá no Sukhavati já tem o projeto da casa. (Estou brincando, não tem projeto nenhum). Aqui é muito alto, muito frio também, para meu reumatismo não dá. Acho que eu vou para o CEBB online.
Pergunta: Oi, pessoal. Muita alegria. Eu acompanhei a reunião de todos os coletivos. Estou há pouco tempo frequentando o CEBB, mas acompanhei a reunião em que todos os coletivos do Brasil inteiro apresentaram o trabalho e vejo agora esse momento, que está sendo inaugurada outra Terra Pura, outro núcleo. Eu fiquei muito impressionada, primeiro com o potencial gigante que as pessoas estão relatando nos seus territórios. É impressionante. Acompanho outras organizações como o Fórum Popular da Natureza, os movimentos de moradia, e é muito impressionante ver que todos eles têm em comum essa iniciativa de mobilização, e de levar isso em alguma direção, com muitas dificuldades. Impressionou-me muito ver como aqui as coisas vão acontecendo com parâmetros muitos diferentes. Por exemplo, o pessoal de Recife, que conseguiu fazer uma sede a partir do envolvimento da comunidade. Não precisaram alugar. E sempre a questão do dinheiro vai atravessando... Aí ouvi sobre a ideia do college, uma forma de mobilizar a juventude, que é uma das coisas mais difíceis em todos os movimentos sociais: como trazer a juventude? Só queria falar muito rápido: eu fiz um experimento de três meses numa oficina online com grupos midiáticos de jovens que estavam no Xingu, no Grajaú, periferia de São Paulo, e em Bragança Paulista. E a ideia desses coletivos é fazer um filme online. Queriam fazer "O tráfego das sementes", uma ficção. E eles têm que convencer as lideranças locais para entender o que é o tráfego das sementes, para fundarem os quintais urbanos. Por que eu estou contando isso? Fiquei imaginando, e é a minha pergunta (já que há aqui um pessoal tão variado), se existe um espaço na estrutura da organização do CEBB para que algumas pessoas, que já estão fazendo esses experimentos, pudessem se juntar para pensar um projeto específico para o próprio CEBB, que faça sentido para essas unidades. Não sei se a pergunta ficou clara: como se fossem grupos de tarefas que se organizem em torno de temas. Por exemplo, eu gostaria muito de operar dentro da produção audiovisual, como forma de mobilização, e como forma de explorar temáticas, juntar os meninos, fazer festival do que se produz. É um exemplo. Um grupo de tarefa assim. Outro envolveria arquitetura orgânica, outro não sei... Gostaria de saber se existe isso, ou onde poderia ser buscado na estrutura do CEBB, que é maravilhosa.
Lama: Num primeiro momento, eu não saberia como responder, porque não temos uma estrutura disponível. Temos iniciativas, sonhos, que vão surgindo e decorrendo. Não temos, por exemplo, uma estrutura que possa ser dirigida para lá e para cá. Tudo vai surgindo de modo natural a partir dos sonhos e das atividades. Mas eventualmente isso pode ser feito. Não sei quais são as faixas de idade, mas o projeto pode ser oferecido também para os jovens da escola.
Pergunta: Sim. Pode ser através de grupos de tarefa que se juntam em função dos interesses em comum?
Lama: Esse ano talvez não vá ocorrer, mas estávamos aspirando que o 108 horas tivesse uma edição dos jovens. Não conseguimos articular isso. Acho que os jovens gostam de estar juntos. Mas eles precisariam, eles mesmos, gerar esse movimento, apoiados pelos adultos. Nós estamos perto disso. Quando começar a acontecer, aí vai seguir isso.
Pergunta: De qualquer forma eu me disponibilizo, se vocês quiserem, a poder pensar um projeto piloto para tentar fazer isso. Eu acho que vai ser muito bacana.
Lama: Vamos lembrar disso!
Pergunta: Eu trouxe um quadro que fiz, gostaria de oferecer esse presente ao Lama - é uma pintura de Guru Rinpoche.
(Outra praticante oferece um desenho de uma mão segurando um lótus).
Lama: Obrigado! Vai ficar aqui no Abhirati, muito lindo!
Pergunta: Boa tarde, Lama, boa tarde, sangha. É bom conhecer as pessoas, rever o senhor, o Marcelo. Queria aproveitar esse momento lindo, de artes, e pedir para o Lama um conselho para trazer benefícios aos artistas. O senhor falou que o Buda estava como artista no reino dos deuses, mas eu queria pedir conselhos fora da Roda da Vida - como a arte pode ajudar a nos tirar da Roda da Vida?
Lama: A arte pode, ela pode. Então vocês vêm aqui (mostra o desenho da mão segurando o lótus que acaba de ganhar): não sei se todos conseguem ver a mão e a flor. Vocês vêm a flor, vêm a mão? Pois é, mas não tem mão. Esse é o poder da arte. Nós vemos a luminosidade, vemos o que a luminosidade da mente produz. Quando a identificamos através da arte, vemos a luminosidade da mente. Quando vemos a luminosidade da mente, vemos o Buda. Porque, ainda que as múltiplas aparências mudem, a luminosidade da mente não muda, ela é o aspecto constante. Então, aqui está a natureza búdica. Eu poderia dizer aqui está Arya Tara, a veloz salvadora. Porque se eu descubro o aspecto luminoso da mente, eu me livro das armadilhas que a própria aparência possa produzir. A arte conecta diretamente. (Mostra novamente o desenho). Vocês estão vendo a mão? Essa é a mão que não existe! Estamos vendo o aspecto luminoso da própria mente. Por exemplo, enquanto eu falo, vocês escutam significados, e não o som. Aqui, quando olhamos a flor, não vemos o traço, vemos a flor, vemos a mão. E assim podemos entender a ação incessante da natureza luminosa da nossa própria mente. Essa natureza luminosa é o próprio Buda, e ela é também Arya Tara, aquela que nos livra dos nossos sofrimentos. Quando estivermos nos infernos, afundados em sofrimentos, desespero e incompreensão, entendemos que esse inferno é uma obra de arte. É uma produção luminosa, artística, de nossa própria mente. Nosso próprio corpo, na forma como está, do jeito que está, também é uma construção artística luminosa da nossa própria mente. Quando ele se dissolver, o aspecto luminoso construtor segue. As obras vão mudando, mas a natureza luminosa segue. Assim, o que a arte produz é sempre o espelho que reflete a natureza da nossa própria mente, seja uma arte visual, seja uma novela, seja um poema, seja uma escultura, ela tem sempre esse aspecto. Quando vocês olham uma escultura humana, qualquer [que seja a sua aparência] que ela tenha, ela evoca nossos carmas na relação com os seres humanos. Quando vocês olham um álbum de fotografias, ele evoca diretamente nossas dimensões cármicas. Não há aquilo que estamos vendo, mas ele é um espelho que reflete diretamente essas regiões cármicas. Então nós passeamos pelas regiões cármicas a partir da arte, diretamente. Ela nos treina para podermos ver o aspecto da realidade, que parece completamente real. Então, a arte é muito profunda. Nós poderíamos pensar que a arte é mais profunda do que a ciência. Aparentemente a arte é inútil. Sob o ponto de vista comum, ela é inútil. Ela é útil porque produz valor econômico: se eu vendo coisas de arte, ela é útil. Porém a arte parece ser só entretenimento. Mas não é, ela é muito profunda, sob o ponto de vista do ensinamento da natureza da realidade. Nós pensamos: os ensaios tratam sobre a natureza verdadeira da realidade. Mas não. A arte não é um ensaio, a arte é um ensinamento vivo.
Pergunta (via internet): Lama, com o avanço tecnológico da internet, vemos claramente o conceito de bolha se expandir em escala mundial. Existe um pequeno grupo de pessoas que se utiliza do algoritmo para instigar mais a fixação dessas bolhas de maneira estratégica, para benefício próprio e manutenção do poder. Como o Lama vê essa amplificação e manipulação dessas bolhas em nível mundial através da internet?
Lama: Eu acho que isso existe, de fato. Mas todas as coisas construídas têm um esgotamento. Então o algoritmo também tem um esgotamento. O algoritmo nos oferece sempre nossa mesma face. Ele descobre qual é a face que eu tenho e fica oferecendo a mesma. Mas eu estou cansado da minha face, eu quero ver outras coisas. Aí eu vou procurar alguma coisa que não tem nada a ver com o algoritmo, não me aguento mais. Então o algoritmo vai ter que melhorar, começar a oferecer coisas opostas ou variadas, que não são o algoritmo, não são vindas do que ele viu que eu faço. O fato de eu olhar dez vezes uma certa coisa não quer dizer na décima primeira eu vá querer olhar de novo. Já não aguento mais! O pessoal que mora na praia quer visitar a montanha! O pessoal da montanha quer visitar a praia, é assim. O pessoal do barulho quer silêncio, o pessoal do silêncio quer barulho. Então o samsara tem isso, não sei como o algoritmo vai resolver essa questão. Mas talvez eles resolvam, comecem a migrar gente por vários mundos.
Pergunta: Eu só gostaria de dizer o quanto é mágica essa sua fala das possibilidades da comunidade. Essa mágica que você transmite me deixa muito animada, das várias possibilidades. De fato, a área é muito promissora. Queria também, em público, agradecer ao Marcelo essa força física e mental que vem, desde o começo, segurando aí essa área, que era uma coisa absolutamente deserta e abandonada. Então, Marcelo, muito obrigada, em nome da sangha. E a todas as pessoas que estão mais próximas aí. Muito obrigada.
Lama: Está bom, obrigado também!
Pergunta: Lama, como podemos entender o Abhirati? Estamos em 2022 nesse tempo cronos, e essa terra pura está iniciando, está jovenzinha ainda, enquanto comunidade. Como podemos conectar o Abhirati, esse tempo e os próximos muitos anos que virão?
Lama: Cada etapa precede a seguinte, mas cada uma é, em si mesma, maravilhosa. Nós estamos na etapa maravilhosa do estabelecimento das fundações, então ela já está funcionando, o Abhirati está bem! Eu acho que a melhor coisa que podemos fazer é isso mesmo, porque temos um sonho positivo, e temos alguma autonomia. E nós temos capacidade de fazer coisas que dão algum nível de estabilidade, mesmo no meio do samsara. Eu acho muito estratégico, muito bom que nos movimentemos desse modo. Tudo tem o seu tempo, e vai andando. Está certo que nós estamos a um passo de ligar a eletricidade aqui. Mas nós, no Bacupari, estamos com uma experiência super boa de energia solar. Parece-me mais estável do que o sistema comum. A rede [elétrica] já falhou várias vezes, e nós conseguimos manter. Teve um período em que houve uma grande tempestade, e a eletricidade falhou por uma semana. Porém nós estávamos com energia solar, nós funcionamos normalmente. Funcionamos vários dias ainda com a internet, até esgotar as baterias das torres de transmissão. Aí nós ficamos sem internet. Eu falei lá pro pessoal: "Como vocês têm um provedor e não têm painéis solares para o provedor? Estão dependendo da rede, que é instável?". Aí botaram painéis em todo lado. Hoje estão com muitos painéis. Então a rede tem capacidade de se manter, mesmo em condições difíceis. Eu acho isso bem interessante. Estou esperando para fazer também em Viamão. E podemos aliar facilmente outras iniciativas. Agora há motocicletas elétricas aqui no Brasil. Você pode comprar [uma], e aí tem um meio de transporte que é estável, acionado também por painéis solares. Eu acho que, num certo nível, deveríamos ter minimamente uma certa quantidade de painéis que pudesse garantir a operação das comunicações, carregar celulares etc. Eventualmente, também, que possamos sair numa moto sem barulho para todos os lados, acionada por esse processo. Isso aumenta a nossa estabilidade, a nossa capacidade de funcionamento em várias condições dentro das circunstâncias do mundo, que estão flutuando. Mas ainda assim, eu não acho que vamos ter grandes situações aflitivas. Eu acredito que o mundo todo vai tomar um rumo melhor, a partir de agora. Isso não é apenas pelo fato de que as eleições foram numa certa direção e não em outra, mas eu acho que o pessoal já viu que aquele rumo anterior não é uma boa ideia. Internacionalmente nós estamos no meio de uma grande transformação, não temos bem ideia do tamanho disso. E essas coisas produzem tremores. Acho que as transformações estão ocorrendo com tremores muito limitados, considerando o tamanho das transformações. Não só no nível político internacional, mas do processo econômico, de dominação econômica, de distribuição de poder e alteração das regiões que vão definindo políticas internacionais. E também sob o ponto de vista ambiental e da perspectiva de futuro da humanidade - isso é alguma coisa muito importante. Nós vamos precisar definir, em termos globais, a proteção à natureza e a proteção aos seres humanos, em contraste com o processo descontrolado de tomar os referenciais econômicos como se fossem a única coisa relevante. Vamos ter que fazer essa transformação. Isso não é uma coisa que tenha acontecido previamente, em nenhuma sociedade anterior. Nós sempre tivemos a expansão sobre outras áreas. Então é algo bem complexo, e eu acho que vamos conseguir fazer essas transições. Mas, além da questão ambiental, da questão tecnológica, da questão da visão de mundo, nós ainda temos um outro desafio que ainda não conseguimos entender totalmente, porque nós estamos pensando como europeus. Nós somos eurocêntricos, quando pensamos, não conseguimos escapar disso. Vamos ter que incluir as formas de pensar que não são europeias. Elas são diferentes, e nem imaginamos que tenha gente que não pense como os europeus. Eurocentrismo. O eurocentrismo é capaz de tirar fotografias dos africanos, dos indígenas, dos asiáticos, mas eles não entendem. Simplesmente não entendem! Pensam que os outros são todos insuficientes, ignorantes e que, enfim, se um dia virarem europeus, aquilo será o máximo que podem atingir. Eles pensam: "Como podemos pegar a sociedade europeia e levar pra lá?". Querem implantar a escola europeia, ensinar inglês, alemão, francês… Mas acabou esse tempo. Entendendo ou não, esse tempo acabou. Pode ser que essa transição leve cem anos, duzentos anos. Mas ela está ocorrendo, não tenho a menor dúvida. E o elemento central disso é que a sociedade eurocêntrica não é sustentável, está condenada à destruição em vários níveis, incluindo o demográfico. A ausência de sentido está roída por várias doenças epidêmicas, incluindo ansiedade, depressão, suicídio, drogradição, violência e falta de sentido de vida. Tudo isso são epidemias que brotam da visão eurocêntrica de mundo, totalmente desequilibrada, perdeu a raiz. Mas aí, as comunidades retomam.
Pergunta (via internet): Querido Lama, por favor, estou muito aflita com a depressão e paralisação de um sobrinho. Qual movimento eu poderia fazer, ou oferecer a ele, para ajudá-lo a sair dessa situação?
Lama: É isso. Essas coisas são tratadas como se fosse [de] uma pessoa, mas não é uma pessoa. Isso é uma epidemia, ocasionada pela bolha. É assim: se você tem um tabuleiro e o seu rei está apertado contra um canto, é natural que você fique ansioso. Não é um erro seu estar ansioso, é natural que o esteja. As pessoas que estão passando mal, estão passando mal por quê? Porque estão empurradas contra um canto, sem visão de futuro. A minha sugestão é abraçar o sobrinho, fazer uma comida bem boa pra ele, não cobrar nada a ele e estabelecer uma relação em algum lugar que ele se sinta bem. Se ele gosta de arte, que faça arte. Se ele gosta de música, que toque e escute música. Se ele tem amigos com quem possa conversar… É isso, nós precisamos estabelecer uma base de mundo que faça sentido para ele. Eu lastimo que a ajuda venha na forma de alguém que diz: "Você tem um problema, agora vou treinar você para funcionar bem, dentro de uma uma frigideira de gente". E joga a pessoa de volta. Não vai funcionar: não é ele que está mal. Ele está reagindo à forma como vê o mundo e a bolha onde está operando. Mas não é ele. Nós podemos estar nos aproximando de uma crise muito grande. É como um carreiro de formigas buscando o açúcar que está em cima de uma mesa. O carreiro vai e volta, vai e volta - está forte. Aí nós vamos e retiramos o açúcar. Vejam quanto tempo leva para o carreiro entender que não tem mais açúcar. É isso, não tem mais açúcar, mas as coisas continuam andando como se tivesse. Cada formiga que chega lá e não vê o açúcar, entra em crise. E nós tratamos aquela formiga: "Não, você fique bem, volte para o carreiro e vá lá". Não vai funcionar, ela já viu que não tem aquilo. Só que, não tendo, o que ela faz com a vida dela? Isso é chamado de distopia: não tem o açúcar. Além do mais, ela fica sabendo que o caminho de volta a joga numa frigideira quente, onde ela também não quer entrar. Isso é o que nós estamos vendo hoje, porém estamos fazendo uma cara de normalidade, e seguindo com o carreiro. Nesse sentido, podemos esperar algumas transformações importantes. A sociedade eurocêntrica ofereceu um açúcar que não tem [mais], isso passou. O açúcar da sociedade eurocêntrica veio do saque colonial, que produziu uma afluência baseada na destruição dos povos nativos, na exploração das culturas através de um processo de força. É comovente. O processo colonial terminou e ficou a lembrança, ficou algum resultado disso. Parece uma sociedade afluente, mas eles estão com muita dificuldade. O lugar afluente agora é o Abhirati.
Pergunta: Lama, sou filho de pai que, quando eu dizia: "Vou viajar pelo mundo", ele respondia: "Coloca o chapéu até [onde] sua mão alcança". Foram muitas e muitas situações. Eu me lembrei do meu pai, mas não foi só ele que fazia isso, cortava, castrava, falava para não almejar, e com isso eu não corria, não andava. E o senhor é um pai, nesse momento, que convida todo mundo a andar mais um pouco, e não se abraça com ele logo no primeiro movimento, vai pra trás, querendo que a pessoa caminhe mais. Mostra o que ela quer fazer, mostra o seu desejo, mostra o que é saudável dentro dela e que ela quer desenvolver. O senhor nos convida a resolver essa situação de uma vez por todas. As possibilidades que o senhor colocou aqui fizeram com que meu embornal ficasse vazio. Eu pensei que eu tivesse tantas ideias, mas falta ideia. O senhor nos convida a raspar o tacho e criar novas ideias. Obrigado, muito obrigado.
Lama: Obrigado também!
Pergunta: Lama, eu estava querendo saber o significado de Abhirati.
Lama: É um nome de Terra Pura. tem a terra pura das várias deidades, Abhirati é essa Terra Pura.