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Construindo terras puras, vivendo em Sangha com sustentabilidade
Lama Padma Samten
Palestra no CEBB Abhirati, Juiz de Fora, MG.
27/11/2022 - Manhã
<https://www.youtube.com/watch?v=fUKHcNngsCc&t=5s>
Transcrição: Cláudia Laux (29/03/2023), Eliane Lima Roedel (13 de Março de 2023), Letícia Viégas, (19 de março de 2023),
Revisão: Samira Lima da Costa (julho 2023).
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Tabela de conteúdos
A Sangha e a construção da paisagem mental
Isso aqui é uma terra de muitas bênçãos. De saída. Ainda nem começamos e já têm os óleos essenciais chegando. É impressionante. Que maravilha.
Eu queria falar da minha sensação de milagre. Da última vez que encontrei a sangha do Rio foi ainda em Araras. Eu digo "sangha do Rio" mas na verdade é a sangha de Minas. É uma sangha regional. É uma alegria rever os amigos da sanga depois desse tempo todo. E passaram-se anos, foi mais ou menos isso. É algo meio estranho de se dizer: "passaram-se alguns anos". Isso parece um pouco estranho, mas é a realidade.
Está todo mundo escondido atrás de uma máscara, eu nem sei quem está aqui. Como é que a gente se reconhece, da máscara para cima? É interessante.
Esta sala ficou super linda. Ela me lembra um pouco o Dharmata. Aqui não tem dez metros? Ah, tem 9,80. Aqui tem mais de 15? Tem 22. Então é maior do que o Dharmata. É mais ou menos o mesmo. E a mesma solução arquitetônica. Ficou legal. Ficou bom. Maravilhoso.
Acho que aqui é muito fácil construir, não? Maravilhoso, o milagre da sangha. Esse é o ponto do nosso encontro: "Como construir as terras puras". Eu vim aqui, na verdade, para aprender. Estou vendo a coisa acontecendo, ao vivo. E agora tenho de fazer uma teoria sobre a coisa, mas a prática está aqui.
Eu estava me lembrando das histórias do Buda. Quando o Buda se aproximou do fim de sua vida, as pessoas pensavam: "Quem seria seu sucessor?" E o Buda disse que o sucessor seria o Dharma. O que é uma visão muito interessante. Por exemplo, como é que nós nos encontramos aqui? É porque o Dharma, de algum modo, tocou em nós.
Quando o Dharma tocou, nós nos transformamos. A nossa visão mudou. E, de repente, olhamos para o lado, e vemos outra pessoa a quem aconteceu o mesmo. Aí somos sangha. E a forma como nós nos olhamos uns aos outros estabelece a sangha. É isso essencialmente.
De repente, estamos em um grupo nos olhando meio maravilhados porque, subitamente, há tantas pessoas. Aqui estou vendo também o pessoal, em outros lugares, admirado de haver tantas pessoas, nos vários lugares recitando: "HUNG OR DJEN IUL DJI NUB DJANG TSAM ". Não é que fica tudo parecido? Como é que eles também sabem? Isso é a sangha, é maravilhoso. Aí nós nos encontramos.
Esse é um ponto muito interessante. O que seria o Dharma, o que seria a Sangha? O que seria o Buda? Se nós pensarmos como construir as terras puras, temos de pensar no Buda, Dharma e Sangha. É simplesmente isso.
A mente búdica é a mente que vê além do samsara. Ela consegue ver a realidade que está além das aparências do samsara. Todos imaginam que o mundo, quando estamos dentro do samsara, é aquilo que é sólido, externo e meio hostil. E temos uma sensação completamente sólida disso. Quando temos problemas olhamos para o mundo externo, e justificamos desse modo.
Mesmo a ciência respalda isso de modo geral. Porque estamos ainda dentro dessa visão muito antiga, uma visão que vem ainda dos egípcios, antes dos gregos, na qual se tem a sensação de que o mundo foi feito por leis. Deus não fez o mundo diretamente, fez leis. E as leis servem de base a partir da qual as coisas são construídas.
Vamos olhando as coisas construídas como verdadeiramente construídas através de um processo causal. O Budismo introduz uma variante super importante, que é o fato de que a consciência determina o mundo. Esta é a experiência de mundo, e nós ultrapassamos a noção de mundo como algo fixo, do lado de fora, e passamos a olhá-lo como algo inseparável de nossa experiência.
A nossa experiência é ditada por um mundo interior que, no início, não entendemos bem o que seja. Poderíamos dizer que, essencialmente, o Budismo vai cruzar esse portal, Vamos entrar na contemplação do mundo interior como se fosse um elemento crucial, porque ele vai determinar como também ocorre nossa experiência de mundo externo. E igualmente como a experiência de identidade ocorre.
Entramos assim num ambiente onde o mundo externo é plástico e o mundo de nossas identidades também o é. Esse é um ponto bem interessante: nós nos dedicamos durante um longo tempo a isso, e mais adiante nosso foco muda. Em vez de eu pensar se as coisas são ou não são - ou eu sou ou não sou - passamos a contemplar como surgimos desse modo e como as coisas surgem daquele modo. Descobrimos que há um princípio ativo que vai produzindo as múltiplas manifestações de mundo externo e de mundo interno.
Esse princípio ativo, quando o contemplamos, vemos que é incessante. E nós vemos tal princípio ativo incessante como alguma coisa completamente maravilhosa, o fim do fim. E não é. Depois disso nos damos conta de que há uma natureza que contempla esse princípio ativo. Há, não só o princípio ativo mas, quando eu o vejo, poderia me perguntar: "Quem vê? O que vê? Como isso é visto?". Temos ainda essa consciência primordial, que reconhecemos como algo incessantemente presente.
Quando seguimos contemplando isso, vemos que dentro desse ambiente da consciência primordial e do surgimento das aparências a partir de luminosidade e liberdade, não há localização. Não faz sentido pensar onde está esta consciência. O aspecto espacial não faz sentido. Já percebemos que este também é construído. E assim também o aspecto temporal. Ocorre uma dissolução, o espaço e o tempo se juntam e se dissolvem dentro da natureza livre, luminosa e autoconsciente.
A consciência se torna uma coisa muito extraordinária. Ela não é algo comum. A consciência comum não é comum. É algo muito extraordinário.
Estamos nessa aventura. Desse modo vamos dar sentido a palavras como tathagatagarbha, consciência primordial, natureza búdica, Buda primordial. Todas essas palavras e experiências nos remetem de volta à experiência da liberdade em meio às circunstâncias. Agora percebemos que nossa consciência está operando através das oito consciências.
Aquilo que chamamos de nossa consciência está operando dentro das oito consciências, ou seja, quando olhamos para as coisas, a experiência visual parece uma experiência visual, mas já é uma experiência mental. Se eu não tiver a operação dos olhos, não tenho base para dar sequência aos pensamentos que surgem da citada experiência.
Essa sequência é uma operação: a partir do olho a mente encadeia uma série de construções luminosas, que são experiências internas e externas; se eu não tiver isso, não estarei operando com a consciência visual e também com a sexta consciência. Mas se eu estiver operando desse modo, percebo que a consciência visual não é livre. Nem é apenas visual. Ela é a consciência. Ela é a mente, sendo que essa mente é inseparável da forma como os referenciais se estabelecem.
Eu não consigo dar sentido às coisas sem um conjunto de referenciais, que surge como se fosse nossa própria identidade. E percebo que essa identidade é uma secção de tudo aquilo que eu posso acessar. Podemos nos olhar desde o reino dos deuses, ou dos semideuses, ou do reino dos seres humanos, ou dos animais, ou do reino dos seres famintos ou do reino dos infernos. Do mesmo lugar, eu posso escolher o referencial que vou utilizar.
Porém, de um modo geral não conseguimos escolher. Nós simplesmente experimentamos, carmicamente. Aí vem essa expressão do carma: é aquilo que estabelece o modo pelo qual vamos olhar as realidades.
Eu diria que cada um de nós tem essa experiência clara consigo mesmo e com os outros. Eventualmente, queremos ajudar alguém da sangha ou algum amigo ou amiga, ou filho, mãe, pai, que se encontram em uma situação muito aflitiva. E aí percebemos que estão olhando de dentro de uma perspectiva que é o que estraga tudo.
Se olhassem de outro jeito, tudo estaria resolvido. E tentamos tirá-los de lá e não o conseguimos. Aí entendemos como as pessoas, carmicamente, pelas experiências anteriores, por um padrão, se engajam e, eventualmente, mesmo descrevendo que se sentem presas, não conseguem se livrar daquilo.
Isso é muito comovente. Quando os bodisatvas veem isso, surgem como bodisatvas, porque veem que aquele sofrimento não seria necessário. E, para nós, isso é um tanto mobilizador. Vemos isso e nos engajamos em tentar, de algum modo, ajudar os seres.
Mas isso nos permite entender que vivemos em um âmbito mais amplo do que o que a nossa identidade vê, que é o âmbito de Alayavijnana. Alayavijnana é como se fosse um âmbito onde a vida e os múltiplos seres se manifestam como se fosse um único tecido de condicionamentos. Então podemos copiar os condicionamentos uns dos outros. Vendo alguém operando de um certo modo, é como se pudéssemos nos deslocar para aquela região de referenciais, e começar a atuar ali. Nós copiamos facilmente.
Tokuda San dizia "os filhos copiam as costas dos pais". Não copiam o que os pais falam. Aquilo não vem pela transmissão discursiva. Os filhos olham o que os pais estão fazendo. E passam, quase que sem defesa, a operar num mundo mental como os pais operam. É mais fácil ensinar os filhos pelas costas, ou seja pelo que estamos fazendo, do que pelo raciocínio, pelo aspecto discursivo, ou pelo aspecto cognitivo.
Podemos então nos deslocar para essas regiões. Podemos também copiar o comportamento dos animais. Ver o que estão fazendo e aí descobrimos. Os povos da terra olham muito os animais. E veem como estão se deslocando, onde encontram água, o que estão comendo. E ao ver o que os animais estão comendo, sabem se podem também comer aquilo, ou não. Na medida em que olhamos para uns e outros seres, rapidamente vamos entendendo o que podemos incorporar como referencial em nossa operação.
Isso significa que temos uma vasta região de Alayavijnana, que é uma terra que não pertence a ninguém. Todos nós a podemos acessar. É como chegarmos em uma biblioteca e encontrarmos o conhecimento que não é de alguém. Ele pode ser acessado, e nós o podemos acessar.
Isso é Alayavijnana, Alaya significando depósito, e Vijnana, depósito de impressões mentais. Isso está armazenado. Podemos atingir tais regiões.
Alayavijnana não é a expressão mais profunda da mente do Buda. É a expressão dos condicionamentos que podemos criar a partir da mente luminosa e livre do próprio Buda. Porém, é muito importante para entendermos como a nossa mente está operando, e como surgimos dentro de nossas múltiplas identidades. Surgimos a partir de regiões de Alayavijnana. Se olharmos para trás, em nossa própria vida, veremos que já vivemos em outras regiões de Alayavijnana. Existe como que um caminho, um caminho por dentro de Alayavijnana, que vamos melhorando: os lugares onde estamos.
Ainda assim o Buda vai explicar que, enquanto estivermos nos deslocando por dentro de Alayavijnana, estaremos sempre por dentro de condicionamentos. E estaremos manifestando essas regiões como se fossem definições de nós mesmos. Por exemplo, quando vamos nos descrever, de modo geral o fazemos não pela liberdade da natureza búdica, mas pelos condicionamentos que vemos em nós mesmos.
Vamos supor que vocês conheçam algum astrólogo. De modo geral ele não começa assim: "Vejo em seu mapa a natureza búdica". Ele vai dizer: "Eu vejo... você é...". Aí começam as maldições. O que a pessoa sempre vê: tendências, condicionamentos, direcionamentos, alguma coisa assim. Estamos palmilhando a região que vai definir impulsos, comportamentos. É mais ou menos isso.
Porém, essencialmente percebemos que podemos migrar por essas regiões durante nossa própria vida. Migrar de um lugar para o outro. Então o aspecto mais profundo em nós é que estamos além dos carmas. Acho essa noção interessante, porque quando a pessoa está em crise ela acusa o Buda: "Buda, você disse que eu podia me livrar dos carmas. Mas como, como? Estou preso aqui, só sofro. Não consigo escapar".
Isso é muito interessante, porque ainda que a liberdade exista, e nós percebemos isso porque mudamos com o tempo, eventualmente não conseguimos fazer isso: simplesmente mudar.
Essa dimensão dos sofrimentos que buscamos ultrapassar e, ao ver também os outros em sofrimento, buscamos ajudá-los a ultrapassar, é uma região onde atuam os bodisatvas. Ou seja, quando vemos dentro de nós tal impulso de energia para produzir esse movimento e esse benefício, trata-se do mundo dos bodisatvas. Ele faz nossos olhos brilharem e nós nos movermos.
Eu queria também aqui, passando meio rápido, falar mal dos bodisatvas. Trata-se de algo que me abala também, tenho de dizer, porque os bodisatvas, em princípio, estão no reino de Tushita, reino que pertence ao reino do desejo, pessoal. E está abaixo de Mara. É horrível. Isso significa que, por exemplo, quando queremos liberar os seres, passa Mara com uma placa: "Curso para a liberação dos seres". Nós imediatamente aderimos ao apelo: "Sim!". E todo mundo vai embora ver o curso de Mara. Vocês entendem como é.
Temos desejo, o Tushita pertence ao reino do desejo. Os bodisatvas surgem com a identidade de bodisatva, para produzir benefícios aos seres. Isso é o melhor que podemos fazer dentro do reino do desejo. Mas ali dentro há Mara, um pouco acima de nós, porque ele tem a habilidade de manipular todos os outros seres a partir do desejo.
Aí a pessoa vai atingir a iluminação. Está o Buda com os braços abertos (isso eu vi lá no Cristianismo). Já está o Buda esperando no céu: "Vem, meu filho, pode entrar". Daí passa Mara com uma placa: "Saiba tudo sobre o céu e sobre a iluminação". E nós [nos dizemos]: "Tenho de fazer um curso antes ". Isso é Mara. A pessoa não consegue entrar no céu búdico, ou no céu cristão, com desejo. Se ela tiver desejo, Mara passa e a desvia. Esse é o ponto.
São aspectos sutis das identidades. Estas são cármicas: a sétima consciência. Dentro da oitava consciência, que constitui a vastidão dos estados condicionados que podemos acessar, não há a iluminação, pessoal. Não tem o botão "Iluminação". Só há os estados condicionados, melhores ou piores. A situação é grave! Tudo aquilo é regido por Mara. Aí vem a sexta consciência, que é quem exerce a identidade, e exerce a oitava consciência, os referenciais. Ela imanta, com as identidades e os referenciais, a experiência de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Ela dá significado àquilo.
É maravilhoso quando se começa a penetrar nesses ensinamentos. (Em uma época eu não conseguia dar nenhuma palestra sem falar na Roda da Vida. Agora não consigo falar nada sem as oito consciências. Vocês me desculpem, depois disso eu inicio, enfim).
Há esse ensinamento no Surangama Sutra, maravilhoso. Esse é o tema do Surangama Sutra, gosto de lembrar a situação do Ananda. O Ananda é o principal discípulo do Buda, seu primo, muito ligado ao Buda, e sempre ao seu lado. O que ele faria quando o Buda não estivesse ali? Essa é a pergunta.
O Ananda foi viajar sozinho (os jovens assim às vezes se atrapalham). Voltou. Na viagem foi tudo bem, mas quando voltou viu que faltavam oferendas no altar. Resolveu ir até Sravasti para buscar as oferendas, mendigar e trazê-las. Aquilo era uma instrução: não deixar o altar sem oferendas. Quando ele entrou na cidade havia uma região de luzes vermelhas piscando... Ele pensou: "Este não é um bom lugar para eu ir". Mas lembrou que o Buda tinha dito que todos os lugares deveriam ser visitados pelos bodisatvas, porque todos os seres, de modo equânime, deveriam ser beneficiados pela presença dos bodisatvas. Então ele entrou. Ali havia uma pessoa que era capaz de mudar a mente do outro, inclusive a dos bodisatvas. Assim, o Ananda viu uma moça e ficou perturbado (isso naqueles tempos em que ainda havia isso).
Aí tem uma parte em que, na tradução, não contam o que aconteceu. Há variadas imagens do que poderia ter acontecido, mas se diz que o Buda tinha um cantinho no visor, onde ele sempre via o Ananda. Aquilo apitou e o Buda puxou o mantra do Surangama, recitou-o, e quebrou o encanto. O Ananda, acordando, pensou: "Onde estou? E onde está minha roupa?". Ele acordou em sua frente quem estava? Manjushri, aquele da espada. Aí tem uma parte bonita, porque o Ananda poderia dizer pra moça, que se chamava Pshiti: "Fica aí, esconda-se debaixo da cama, que eu vou descer com a mesma cara". Mas não. Ele desce com ela. Assumiu a moça. O Manjushri [diz]: "Para o Buda". O Buda já estava no templo, com cara de Buda. O Ananda se diz: "Deu ruim. Não foi legal". Ele chega, faz prostrações e o Buda lhe pergunta: "E aí? O que foi?". Ananda responde: "Abençoado, o que foi que falhou em seus ensinamentos, o que não deu certo?".
Essa é a parte que eu mais gosto. A gente culpa o Buda, claro. De quem é o ensinamento? Quem tem lucidez? É o Buda. O Ananda está o tempo todo ao lado do Buda, porque ele não tem a lucidez. Então se os ensinamentos do Buda funcionam, têm de funcionar. "Aí, Abençoado, o que houve?" Eu gostei disso. Se vocês tiverem um aperto, lembrem-se.
O Buda pergunta: "Por que você se tornou um monge?". Aquilo era um bom início de bronca. "Ananda, você é um monge. Porque decidiu sê-lo, para ficar assim tão solto?". Ananda responde: "É porque eu vi o corpo do Abençoado e entendi que precisaria ser monge para ter toda essa pureza, como a manifesta o corpo do Abençoado". E o Buda diz: "Como é que você vê?".
E esse é o tema. Como você vê. O Ananda achou que estava fácil. "Eu vejo com os olhos. Todos os seres têm olhos na face e veem com os olhos". Ainda deu um ensinamento para o Buda.
Aí começa esse aspecto, em que o Buda vai mostrar que não é o olho; ali tem a consciência. Mas não é a consciência, porque há a consciência ligada aos olhos. Vamos supor: temos um desenho, um hexágono, e o vemos como se fosse um cubo. Não sei se já viram essa mágica... Fazemos riscos, como estamos vendo a imagem de Guru Rinpoche, do Buda, da Roda da Vida? Olhamos, e não estamos vendo cores, papel, o branco do fundo, plástico. Não vemos nada disso. Vemos a Roda da Vida, os seres nos vários lugares. Isso é a consciência associada aos olhos. A consciência visual.
Mas o Buda diz :"A consciência é uma". Por exemplo, a consciência auditiva. quando escutamos alguém, e o estamos vendo, a consciência visual vê a pessoa, a auditiva a ouve, mas não dissociamos as duas. Não tenho a pessoa auditiva e a pessoa visual. Vejo as duas como uma. Temos periféricos. Os vários periféricos ajudam a consciência a definir o que está avistando.
Ela não vê com olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Isso é muito explorado nos filmes de Hollywood já há algum tempo. Usam figuras que poderiam produzir repulsa e, de acordo com a posição da mente, estas se transformam de monstros em seres maravilhosos. Isso também pode funcionar com animais. Também fazem o contrário: figuras que seriam inicialmente muito atraentes se tornam muito ameaçadoras. Esse é um ponto interessante, porque eles aprenderam como construir os referenciais na pessoa que está assistindo ao filme ou lendo a história, de tal modo que ela se coloca em outra posição de Alayavijnana, e através de olhos, ouvidos, nariz (nariz não tanto, mais olhos e ouvidos), pois a pessoa está vendo o filme, ela passa a ter uma experiência desagradável com aparências que seriam atraentes.
E passa-se a ter experiências encantadoras com seres que seriam desagradáveis. Isso é um tema antigo. Vejam "O corcunda de Notre Dame" (foi a última vez que fui ao cinema). Mas tem o ratinho, o Ratatouille, aquilo é o contrário; mas está bem. Tem "A Bela e a Fera", todo mundo se comove com a Fera, que vai morrer... Aquilo é horrível. O Shrek é ainda mais legal, porque ele é gozado, não chega a ser assustador mas é desajeitado.
Há então essa transição. O que é isso? São ensinamentos sobre a base da mente. Não vemos com os olhos. Vemos com a mente. Mas a mente que vê, ela não apenas vê. Ela tem uma base. Essa base decide o que vamos ver. Isso são as oito consciências.
As cinco consciências, que são os periféricos (olhos, ouvidos, nariz, língua e tato), operam com a sexta, que une as cinco. Mas esta sexta consciência é inseparável da sétima, que é o conjunto de referenciais que usamos. A sétima funciona como a definição da identidade. O que é um engano, pessoal, um super engano! Porém, nos nos definimos assim: "Eu sou engenheiro, então olho isso desse modo". Fica um pouco atrapalhado. Hoje estamos trabalhando profundamente no desenraizamento dessas identidades. Das identidades racistas, sexistas, homofóbicas etc. Agora homofóbicos, gordofóbicos e várias situações assim. E também essas identidades de destruição da natureza, e insensibilidade social. Todos esses aspectos nós localizamos. Isso é como um amadurecimento da psicologia. Ela acessa essa região, e isso é muito importante. Então estamos também descriminalizando as pessoas, porque começamos a entender as raízes que produzem esse tipo de comportamento.
Houve um tempo em que nós endurecíamos dizendo: "A pessoa é assim". O sistema legal ainda opera desse modo. Pelo menos formalmente, porque ele opera assim: se eu consigo provar que aquela pessoa, ou aquela foto, fez aquilo, ela é aquilo. E ela vai pagar por isso daquele modo, o que é um pouco confuso. É como alguém, por exemplo, que está doente. E aí a gente prova: "Você é um covídico". A pessoa diz: "Não, não sou covídico, eu peguei o Covid." "Não, você é um covídico sim. Olhe, estou vendo tudo. Seu nariz está pingando, está com dor de cabeça... é isso ".
Então grudamos aquilo na identidade. Mas tal identidade é a maldição da qual a pessoa está sofrendo. Sob o ponto de vista do comportamento social, eu acho isso difícil. É uma questão meio assim, porque a pessoa com Covid está contaminando os outros. Está causando problemas. Mas não deveríamos pensar que a pessoa é aquilo. Precisamos encontrar um jeito de ajudá-la a superar sem precisar grudar tal aspecto na pessoa. E aí surgem muitos exemplos de pessoas que mudaram, se transformaram, e que fizeram transições. Está abundante. E também há o contrário: pessoas que manifestavam coisas muito positivas, e começam, de repente, a fazer coisas negativas.
Daí poderíamos pensar: "Bom, aí não é possível, não tem como". Então, esse aspecto é um aspecto um pouco sectário, surge um pouco de rigidez, de julgamento e fixação, não é um ambiente onde o budismo consiga respaldar esse raciocínio, que é um obstáculo. Precisamos entender que dispomos de liberdade; mesmo que esta seja por vezes difícil, ela é a realidade.
Por outro lado, temos também Alayavijnana, que é essa região muito ampla. Todos os seres, isso é dramático e muito comovente dentro do budismo, isso é um ponto crucial. Eventualmente em boas posições, no sentido de estarem usando uma base elevada para filtrar suas experiências, estarem vendo as coisas de uma forma elevada, mas nada os impede de, eventualmente, se não tiverem consciência, escorregarem para situações muito aflitivas.
Também há muitos filmes que tratam dessas coisas. Um deles é "O médico e o monstro", que eu vi quando era criança, não sei se ele ainda existe. Acho que não. Mas trata-se, essencialmente, de uma pessoa que, durante o dia, se comporta super bem, e quando começa a escurecer, começa a sofrer transformações de corpo. Ela vira um monstro, tipo a fera do "A bela e a fera". Ela corre atrás dos outros e os mata, causa o maior problema. Daí o dia começa a raiar, e ela volta. Tipo a maldição do lobisomem, algo assim. Mas isso é um tema que vem da era Vitoriana, era na qual, se as pessoas são oprimidas pelo Estado e forçadas a obedecer regras, elas viram aquilo. É como se estivéssemos vendo que os condicionamentos morais colocados sobre as pessoas não ocultam a fera que possam manifestar.
Na visão budista isso se refere a Alayavijnana. Vamos encontrar as pessoas, literalmente matando e queimando os outros, e escutando música clássica com a família nos intervalos das atividades dos campos de concentração. Pessoas cultas, lidando umas com as outras, porém fazendo atrocidades. Dentro do universo de Alayavijnana, aquilo fazia sentido. Daí quando termina a guerra, para onde vão tantos monstros? Eles deixam de ser monstros, pessoal. Por quê? Porque não eram monstros. Eram seres que estavam em regiões de Alayavijnana. Agora, como, socialmente, carregamos tanta gente para as regiões onde as pessoas fazem atrocidades? Como é isso? Mas é o que acontece. Isso é muito importante para nós nesse tempo agora, para que nós também não olhemos para as pessoas julgando-as, condenando-as, e discriminando-as. No momento em que fazemos isso, nós nos tornamos idênticos. É o mesmo obstáculo.
Entendemos a oitava consciência e a sétima. O maior obstáculo que pode surgir na sétima consciência é nos identificarmos com os próprios condicionamentos. Isso não quer dizer que os condicionamentos não existam. Eles existem. Eles operam. Mas se a gente se identifica, eles ficam congelados. Preciso ganhar a liberdade. Como é que se vê isso? Vemos isso por meio da sexta consciência. Ela é que está seguindo o que estou falando aqui. Então há uma consciência que é capaz de ver essas coisas sem estar operando dos vários modos. Ela tem liberdade com relação a isso.
E aí quando praticamos meditação, estamos nos libertando das oito consciências. Vamos sentar em silêncio, sem operar a partir de olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente. O que significa não operar? Significa que preciso ver o que é uma operação. Essa operação, vamos identificá-la exatamente como originação dependente, ou seja, uma aparência que surge carmicamente.
Ela surge das oito consciências, e, pela identidade, dou significado a partir do periférico de olhos. Minha mente vê aquilo e toma como se fosse o elemento terra. Isso significa considerar real, no sentido em que o tomo por base para fazer o movimento seguinte. Então, olhando-o como um referencial seguro, com a luminosidade da mente construo o elemento seguinte. E a partir do elemento seguinte, construído pela luminosidade da mente, liberdade, construo o outro elemento. A partir deste, construído luminosamente, eu construo mais um, luminosamente.
Então essa cadeia de imagens e realidades é a produção sequencial da originação dependente. Isso, no Surangama é chamado de "outflow" ou "anāsrava" [flutuações de energia]. Esse processo é a essência do samsara, que é tomarmos uma base que parece segura, real, verdadeira, por referencial. Ela é construção, mas eu a tomo e vou seguindo.
Por isso entramos nos vários mundos, por tomarmos aquilo como base real, e tratar-se apenas da porta de entrada do mundo correspondente. Isso fica completamente claro a partir dos filmes, porque neles não há nenhuma realidade. Mas começo a ver as imagens e as tomo como referenciais, e passo a operar minha mente produzindo experiências a partir das imagens vistas, como se fossem experiências reais. Brotam emoções, minha respiração se altera, meu corpo também, enquanto assisto ao filme.
Vocês, provavelmente nesse tempo de pets, já devem ter visto que eles também passam por isso. Descobrimos que há uns filmezinhos bem legais para gatos, uns filmes com águias, e os gatos ficam grudados, e quando a águia vocaliza e voa, o gato [se assusta]. Aquilo é meio que filme de terror para gato. Há outros filmes mais legais, com gatinhos miando, e eles ficam atentos. O gato que nos adotou já fica agora passando a pata na tela. Muito interessante.
Pergunta: Se nós formos construindo imagem por imagem, ainda que consciente, ainda estaremos operando no samsara, mesmo construindo conscientemente?
Lama: Se tivermos uma liberdade, estivermos operando desde uma base livre, reconhecendo as imagens como construídas, aí trata-se de outra coisa. Estaremos praticando lucidez diante das experiências do samsara.
Pergunta: Mas, por exemplo, esse local aqui: cada pedacinho é construído na mente, não existe ainda, mas já está construído aqui nesse mundo imaginário, esse modo de operar. Estaremos no samsara, mesmo sabendo que está construindo na mente, imagem por imagem?
Lama: Eu vou explicar, daqui a um instantinho vai ficar claro o que é ficar livre disso. Aí estamos em meio a esse processo. Acho que ficou mais ou menos claro como operam olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, que convergem para a 6a consciência, e a sexta consciência é tal porque está operando com a 7a e a 8a. Nós temos escolhas, e estas escolhas surgem como se fossem reais. E mesmo que estejamos dentro de um filme, que sabemos ser construído, aquilo opera.
Mas aí vem a prática da libertação disso, que é a prática de shamata. Em shamata repousamos numa condição onde não estamos sendo arrastados por olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Não ser arrastados significa que não damos sequências criativas, luminosas a esse processo. Porém ainda estamos presos à identidade e a Alayavijnana. Em shamata estamos assim. Ou seja, tão pronto eu interrompo isso, tudo está intacto e volta a funcionar normalmente no samsara. Mas estou numa porta que vou cruzar.
Nesse lugar de shamata somos capazes de perceber que estamos em shamata. E isso já é interessante. Porque não só estou em shamata, mas tenho uma consciência que é capaz de ver se estou em Alayavijnana, se estou com identidade, se estou operando com olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Ela está vendo o que estou fazendo. Essa consciência que vê se minha mente está agitada ou calma, se está percorrendo coisas ou está estável, Dudjom Rinpoche a descreverá como Rigpa. É muito importante porque passo a ver, e estou vendo, mas não com olhos, nem com ouvidos, nariz, língua e tato. E nem com as identidades, nem com Alayavijnana. Estou vendo pela autoconsciência; vendo o que a mente, ela mesma, está fazendo.
Ou seja, estou acionando, usando a consciência a partir do aspecto autorreflexivo, autoconsciente dela sobre si mesma. Ela está praticando a visão verdadeira, porque isso é a base da visão, é sua capacidade de ser consciente. Quando a mente é sem (em tibetano é a mente comum), a mente comum não é uma mente comum, ela também é Rigpa, por ser a consciência que vê o que a consciência produziu.
Se eu produzo uma construção luminosa, a mente é consciente dessa construção luminosa. E isso é sem. Aí tomo a construção luminosa por base. Se eu não tiver aquilo, não tenho como ver. Mas existe essa autoconsciência que vê o fenômeno todo desde um lugar livre, que não é uma base condicionada. Quando olho a partir da base condicionada, minha imaginação ganha o significado da historinha que vou então seguir.
E a inteligência que é coerente e produz a sequência das imagens, eu sinto como se fosse minha própria identidade. Aqui não há isso. Aqui estou simplesmente olhando o que a mente está fazendo. Estou em shamata. Aí podemos operar olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas não estamos dando nenhuma sequência. E agora começo a contemplar a própria mente autorreflexiva, autoconsciente.
Então vejo que a mente autoconsciente não está operando por condicionamentos. Ela está simplesmente olhando o que está ali. Consigo perceber que esta mente é vasta, porque pode entrar em qualquer estado. E é luminosa, porque dela podem surgir as construções. Estou apenas contemplando tais aspectos.
Com isso, com a capacidade de penetrar desse modo, ganhamos uma visão que penetra os vários mundos. Aí posso entrar nos mundos que forem vendo as múltiplas experiências. É desse modo que o Buda clarificou as histórias do Jataka, clarificou todas as experiências das vidas anteriores e foi capaz de penetrar nos múltiplos mundos (os três) e nos 31 reinos dos três mundos. Ele entendeu as múltiplas experiências e foi capaz de dizer que tinha atingido a cessação e que estava extinto. Ele cessou. O que significa que ele não retorna a uma condição sem lucidez, na qual se confunde com as identidades e segue por dentro de processos encadeados.
Ele vai descrever sua iluminação, sua liberação, como sendo isso. Ele é o liberto, o Buda. A iluminação do Buda vai se completar quando ele olha todos os seres e os reconhece com a natureza búdica, reconhece Dharmata, Dharmadhatu, como o novo nome para o samsara. Havia o samsara, que é o mundo ilusório, mas este não é mais o nosso mundo. É o mundo de todos os seres: podemos entrar nos múltiplos mundos dos seres que se interligam. Ele vê tais mundos como luminosos, produzidos por suas consciências.
Ele ilumina todas as aparências além de tempo e espaço. Essa é a experiência do Buda. Aí ele vê os múltiplos budas em múltiplos mundos específicos, e vê que suas inteligências são a mesma inteligência. Todos têm a mesma consciência búdica, que é autoconsciente desse processo. Estamos no meio disso. Essa é a base que dá unidade ao Dharma e à sangha, esse conjunto de visões.
Podemos perceber um pouco isso. Um pouco não percebemos. Estamos em algum lugar. Enquanto estamos andando, um pouco tateando, um pouco praticando, precisamos de bons lugares para andar: os lugares mais seguros. Esses são as terras puras. Um exemplo delas é o Abhirati, o lugar onde, por mérito, nós olhamos praticando visões mais elevadas, buscamos nos relacionar melhor. Isso não significa que superamos nossos carmas, mas superamos as identidades e Alayavijnana, e temos a consciência livre. Não estamos nessa condição, mas [já chegamos] a alguma coisa. Um pouco já fizemos.
Um exemplo claro disso é que nos reconhecemos como sangha e temos essa proximidade. As diferenças que as pessoas tenham entre si produzem atritos, que vão nos ajudar a refletir sobre a nossa prática. E ajudam os outros a refletirem sobre sua própria prática. Se tivéssemos isso em outros ambientes, as diferenças produziriam, talvez, conflitos. Nesse ambiente onde estamos, nos encontramos em um bordo. Se o conflito surge, sabemos que não estamos interpretando bem. Tem alguma coisa. Daí nós passamos a olhar todas as aparências como algo que pode impulsionar nossa própria prática: observamos as diferenças das aparências.
E vamos contemplando com cuidado, ficando dentro do mundo condicionado, portanto onde nós gostamos ou não gostamos de coisas, e operamos a partir dos 12 elos da originação dependente. Mesmo que tenhamos visões mais profundas, e mais e mais profundas, sempre há uma desarmonia no movimento.
Não conseguimos fazer movimentos totalmente livres de causar obstáculos para os outros. Então vemos: o próprio Buda passou por isso. Para não deixar isso só no budismo, Jesus Cristo causou muitos problemas, não? Tanto que... vocês sabem o que aconteceu. É uma parte pouco compreensível: como Jesus Cristo foi condenado pelo povo. Ele já estava para ser crucificado, e teve uma chance final. O pessoal liberou o Barrabás, que devia ter um carma muito favorável, comparado com Jesus Cristo, que tinha mais méritos ali (mas não quero introduzir confusão). Foi um momento delicado.
Chagdud Rinpoche ficou meio [estupefato]: "É que o Ocidente é outra coisa. Olha o que fazem com os mestres...".
Esse é um ponto que significa que os mestres podem não ser entendidos. O Bodhidarma, quando sai da Índia e vai para a China, encontra o imperador. O imperador também não entende. O Bodhidarma entra em retiro, onde fica muitos anos, porque sente não ser possível dar os ensinamentos, porque as pessoas não iriam entender. Aquilo seria não compreensível.
Esse é um ponto. Não é a qualidade do ensinamento mas sim a condição. Então é necessário… Acho muito comovente que dentro dos infernos haja um Buda. E o Buda dos infernos não tem uma cara boa. Dentro de cada um dos reinos há um Buda, e ele tem a aparência daquele reino.
No reino dos deuses do desejo o Buda tem a aparência de um artista tocando cítara. No reino dos semideuses ele tem aparência militar. No reino dos humanos ele tem a aparência de Sakyamuni. Em cada âmbito o ensinamento e a aparência são de um tipo, porque os seres não conseguiriam entender.
Nas Terras Puras, a sangha já é o mestre que está nos dando os ensinamentos todo o tempo. O Dharma é nosso desafio, de tal maneira que nosso encontro com a sangha seja o veículo do surgimento do Dharma e que consigamos ver o Dharma além das expressões verbais, além das palavras e além dos raciocínios.
Porque vocês já devem ter percebido que as palavras não garantem o Dharma. É o que acontece com Ananda. E o raciocínio não garante a mudança do nosso próprio comportamento e a compreensão de fato. Precisamos tomar os ensinamentos como a base, mas de modo geral as pessoas não entendem a expressão "base".
Base seriam os vários reinos. Um exemplo de base é quando entramos em nossa casa e dizemos: "É minha casa". Isso significa que a casa é a base. Mas a casa não é as paredes. Ela é um lugar de força sutil. Do mesmo modo, o ninho do pássaro não são as palhas que ele juntou. É um lugar sutil onde ele opera de um jeito especial.
A base, então, está sempre operando. Posso não constatar. De modo geral nossas bases são todas condicionadas, pertencem aos Seis Reinos. E mudam sem a gente decidir. Mudam carmicamente, mas é importante que entendamos essa operação da base.
Se praticamos shamata, e vamos praticando vipassana, entendendo o que está acontecendo, nos tornamos hábeis em operar além das bases condicionadas. Então vamos buscar a base que não muda, a base primordial. A base que não é construída. Ela está sempre presente porque as coisas [surgem] dela, mas ela mesma não é construída, então não muda.
Assim, o caminho budista é o caminho para encontrar aquilo que já temos. Não é o caminho de criar algo, estabilizar e se fixar. Não é esse caminho, que é o caminho dos estados mentais.
No Budismo estudamos com muito cuidado isso, tentando evitar o ideal dos estados mentais, que são como se fosse uma base fake. Eu construo uma coisa e me fixo naquilo.
De modo geral os mestres vão quebrando isso assim. Todos os mestres irados vão se dedicando a quebrar a fixação do aluno a estados elevados, porque esses são descritos como remendos, não têm poder. Você precisa ajudar o outro a se livrar daquilo.
Por vezes eu o descrevo como o caminho da virtude. Nós começamos a criar imagens de virtude e nos fixar a imagens de virtude. Isso é muito favorável, por um tempo; isso produz uma estabilidade, mas não produz segurança, porque essa estabilidade pode ser abalada, então nós precisamos aprender a ir além dos estados virtuosos construídos.
Quase como se fosse o diagnóstico das tradições baseadas em mandamentos e leis. Ainda que as leis e mandamentos sejam muito úteis, eles não constituem uma base verdadeira para a operação, e tudo termina fracassando. Eu lastimo. Mas o Buda explica isso direitinho.
Vamos repousar sobre a base livre, que pode ser assustadora para quem está no caminho da virtude, porque a pessoa diz: -"Bom, agora vale qualquer coisa? Base livre?" .
Não é assim. A pessoa na base livre não está vinculada a nada condicionado. Não é que valha qualquer coisa. A pessoa está livre de qualquer coisa. Ela está livre das múltiplas configurações. Ela se aproxima daquilo que o Buda diz: quando ele atingiu a cessação, atingiu a liberação, ele diz que não vai mais se vincular a estados comuns porque ele tem a lucidez. Ele se define como Buda, o liberto dos estados comuns.
No meio do caminho espiritual, por vezes nós pensamos que, se nos tornarmos muito exatos e cumprirmos tudo muito exatamente, se nos construirmos de um certo jeito, nos construirmos com as virtudes, aí nos tornamos seres resolvidos: o problema cessou. Mas não é assim. Vamos encontrar, não só na tradição budista, como em outras tradições, situações confusas. É como praticantes antigos, graduados e reconhecidos, de repente fazem tudo errado.
E exclamamos: "Como? Como foi isso?".
Ainda assim não conseguimos rejeitar os ensinamentos. Eles estão corretos, mas como surgiu aquele comportamento? Como foi possível? As tradições estão cheias disso. Isso é o caminho da virtude. Então o Buda está no caminho da lucidez. Quando esta se instala, tem uma base sem condicionamentos, portanto ele tem liberdade frente a tudo que possa surgir condicionado. Esse é o ponto.
Estamos dentro desse panorama. Aí surgem as Terras Puras. Elas são como um veículo, como um barco que nos leva de um lado para o outro. Por exemplo, nós podemos chegar confusos às Terras Puras. Enquanto fazemos práticas ali, a confusão se reduz. Nós continuamos naquela Terra Pura, só que ela começa a mudar. E se nós seguirmos as práticas, as Terras Puras se transformam nas mandalas últimas, na visão última do Buda. Então a Terra Pura é um meio hábil maravilhoso!
Seria preciso ainda dizer alguma coisa que às vezes é um pouco perturbadora: no final não há mais budismo. Não tem mais Buda. Porque o Buda se torna a lucidez e, eventualmente, nós olhamos comovidamente o fato de que tantos não-budas surgiram como Budas. Tantos seres surgiram no meio das confusões dos outros, apontando aqueles ensinamentos, e foram reificados como se fossem, eles mesmos, budas enquanto personalidades.
Eles manifestaram aquilo que chamaremos de Nirmanakaya, que é um ser completamente lúcido, se manifestando com uma aparência comum, em meio ao mundo para o benefício dos seres. Nós estamos ainda no meio desse tipo de situação, muito fantástica. Deveríamos evitar a reificação das identidades e olhar além das 8 consciências, ver a natureza lúcida e contemplar.
Eu não acho possível atravessar esse conjunto de circunstâncias sem praticar shamata. Como é que a pessoa vai atravessar isso sem repousar primeiro, livre de todas essas consciências? Só se a pessoa já praticou isso na vida anterior, e está aqui apenas para usufruir disso. Mas se a pessoa não praticou isso, como ela vai fazer?
Ela se encontrará em meio a pensamentos diferentes, para cá e para lá. Isso pode produzir um posicionamento melhor, mas se a pessoa não se dedicar a praticar de forma não verbal, não cognitiva, a liberdade da própria mente, como ela vai atravessar? Se não contemplar internamente, por rigpa, os estados mentais e as aparências mentais, como ela fará?
Agora, quando a pessoa estiver contemplando, ela não precisa estar sentada diante de uma parede. Ela contemplará nas diferentes circunstâncias. Ela também pode estar diante de uma parede, mas não é preciso. Estamos no meio dessa aventura, pessoal, para o bem ou para o mal. Não temos nem como dizer: "Pulo fora”. Nós estamos no meio disso.
Podemos viver de diferentes formas no meio disso. É melhor andar meio rápido, assim meio direto. Até mesmo porque eventualmente as terras puras têm prazo de validade, elas esgotam no final de um tempo. Porque elas vêm por méritos, ou seja, nós fizemos coisas boas em algum lugar e por isso estamos vendo com esse olhar. Porém também aprontamos, e os outros carmas também estão amadurecendo.
De repente eles voltam, e somos arrastados para outro lugar. Não sei se vocês me entendem. É assim. Melhor é fazermos as práticas. Aí nós vamos indo. Porém se formos arrastados e estivermos em outro lugar, tendo perdido a Terra Pura, se estalarmos os dedos, voltamos para a Terra Pura. Isso é muito bonito.
No budismo tibetano se diz: "Nós podemos ter abandonado o mestre, podemos ter gerado oposição a ele". Mas eles têm essas imagens: a pessoa está dentro de um rio revolto (é o samsara), quase morrendo afogado, e pensa: "Meu mestre, por favor! Manifeste sua presença!". Aí aparece um jacaré, e, naquele instante, a pessoa se liberta da experiência de afundamento no samsara. Porque aquela era uma experiência de afundamento, entendem? É como se o pesadelo rompesse, e a pessoa acordasse, e se encontrasse em um lugar seguro; porque todos os lugares inseguros são como filmes: estamos assistindo, e ficamos apavorados, mas se estalássemos os dedos [acordaríamos].
Experimentem: estão assistindo o "Titanic"... "Agora vou rezar para o mestre. Ah! Isso aqui é um filme! É uma construção". É assim. Temos esse poder, porque não tem como pensar no Buda, sem estar numa base elevada. O Buda só aparece como imagem desde uma base elevada. A gente não olha para o Buda pensando: "Bom, eu quero pipoca!", nem "Quero ficar rico". Não é assim.
Não se associa o Buda às coisas condicionadas dentro do mundo. Então se chegamos a pensar no Buda assim: " Valha-me Abençoado! Estou perdidão aqui, como faço?", só de pensar nisso, a mente se coloca desde uma base na qual o Buda faz sentido. Dentro daquela base, todo o samsara perde o poder. Então nós somos socorridos instantaneamente. E mesmo que nós nos percamos, se antes tivermos desenvolvido uma experiência desse tipo, ela volta. Ela retorna.
As Terras Puras são uma coisa maravilhosa. Também acho que Terras Puras como o Abhirati ajudam as pessoas que, eventualmente, nem venham aqui. Elas contam umas às outras: "Olha, tem um local onde as pessoas se juntaram para praticar, meditar coisas da natureza, e fazer coisas boas, e viver de uma forma assim. Um dia eu vou pra lá!". O número de pessoas que nunca virão aqui é muito maior do que das pessoas que estão aqui, mas elas já são beneficiadas, porque aquilo evoca dentro delas uma dimensão elevada.
Portanto, nunca falem mal do Abhirati, não deem a real, vocês botem aquilo: “Ah! Isso, realmente! Telhado dourado!". Uma coisa meio assim.
Eu vejo tudo dourado! É maravilhoso assim! Está tudo dourado. Esse é o ponto. Então o Abhirati tem um aspecto condicionado que estamos vendo, mas tem o aspecto luminoso, tem uma Terra Pura, numa outra dimensão, também. Essa Terra Pura irradia em todas as direções. É óbvio! É certo! Ela produz benefícios. As pessoas pensam: "Eu vou mudar minha vida, vou fazer isso".
Estamos nesse mundo mágico, pessoal. O mundo é mágico! Como é que de uma hora para outra aparecem tantos bloqueios de estrada? [Período pós eleições]. É a natureza búdica. As pessoas constroem realidades. Não é bonito? Achei que a melhor dica é a do pessoal que ficou trancado na estrada, desceu e foi comer churrasco no agronegócio ali na beira. Achei maravilhoso. E quando vocês forem lá, levem kombucha também. Eles vão tomando cerveja, vocês tomando kombucha. E ofereçam, é assim, somos todos irmãos, com certeza!
São mundos que se encontram em cada um. Não são pessoas combatendo, são mundos que se encontram, mundos parecidos com os nossos. Também nos fixamos facilmente em [determinadas] coisas, e puxamos bandeiras.
Porém, acho também importante, quando olhamos os ensinamentos desse modo, que entendamos que o budismo tem o poder de se transformar em uma cultura de paz. E eu prefiro olhar desse modo: não propriamente como uma religião budista, mas como uma cultura de paz que o Buda ensinou para todos os seres. Que a pessoa não precisa se transformar em um ser budista de carteirinha, assim sectariamente budista. ou sectariamente dessa ou daquela linhagem. Ele é um ser que tem a natureza búdica, um ser que vê o samsara desse modo.
Quando nós olhamos as realidades como são, isso é uma boa coisa. Não precisamos ser denominadamente budistas para vermos as realidades como são, para viver. Porque todos os seres, sendo budistas ou não, estão na mesma situação. Então, do mesmo modo que nós aprendemos a usar a máscara sem precisarmos nos transformar em alguma coisa nominada, nós podemos entender como os carmas atuam, como a confusão funciona e como a liberação ocorre.
De modo geral evita-se tomar água contaminada, evita-se comer alimento envenenado ou comer coisas que farão mal à saúde, mas não precisamos nos transformar em alguém que é denominado "alguma coisa". Quando começamos a criar nomenclaturas e a nos definir de certo modo, também somos rapidamente excluídos.
É preferível que olhemos como a própria medicina. Se a pessoa vai para o hospital, quando sai, ela ganha uma carteirinha: "Você agora é filiado a esse hospital"? Não é!
Os cientistas estão trabalhando com a noção de realidade ou realidades, mas eles não necessariamente se colocam, sectariamente, como defendendo alguma coisa. Às vezes eles escorregam, mas, em princípio, os cientistas estão abertos a aprender uns com os outros o tempo todo. Eles não têm a sensação de que o que estão descobrindo é algo que pertença àquela tradição da ciência: aquilo pertence à humanidade, a todos os seres.
Então eu acho importante que olhemos o budismo desse modo aberto, que o vejamos como um movimento, uma cultura e, de preferência, uma cultura popular em que todo mundo é agente da geração das múltiplas sabedorias e dos múltiplos modos. Que o budismo dialogue com os curadores populares. Ele dialoga! Pais e mães são os primeiros curadores, os primeiros seres de cura que a gente encontra. Que ele dialogue diretamente desse modo. As pessoas que receitam chás, receitam também rezas e receitam meditações. Aí estamos juntando isso tudo.
Desse modo nós vamos compreendendo, de forma mais profunda; quando essa compreensão se torna mais clara, tudo melhora. Aí as Terras Puras vão se encorpando. Então a Terra Pura não é só o local onde estamos; vamos transformando todos os espaços em Terra Pura. E assim escapamos dos obstáculos que se levantam quando as denominações sectárias surgem por dentro das tradições religiosas, dos grupos etc., que são também um tipo problema.
Historicamente, Namkhai Norbu Rinpoche estudou isso, ele tem vários livros publicados com esses temas na história do Tibete: como surgiram grupos que literalmente se digladiaram; como eles se combateram buscando poder temporal em meio ao mundo.
É muito comovente ver como o Buda, completamente desprovido, dava ensinamento debaixo de árvores. Quando ele dava ordenação aos outros, que eram também chamados de tutores, ele dizia: "Escolha uma árvore". A pessoa ia morar debaixo de uma árvore e dar ensinamento ali. Não havia ali prédios, o Buda tinha uma forma franciscana de ser, completamente despojado. Os próprios panos que usavam eram panos reciclados, não usavam panos novos. Comiam por generosidade dos outros.
Então como essa posição termina gerando grupos fortes que, eventualmente, estão militarizados, definidos, têm cores, bandeiras, [tomam] decisões e combatem outros? Todos eles com a imagem do Buda. É necessário contemplar isso e ver o que acontece.
Eu acho que nos tempos atuais isso está praticamente diluído, muito diluído. Mas houve um tempo no Tibete em que ocorria assim. Vocês encontrarão também na Índia diferentes tradições religiosas se degladiando. Muito comovente. Examinando o que acontece, constatamos que é quando a tradição religiosa se alia a alguma dimensão de poder temporal. Às vezes, quando a tradição religiosa tem muito prestígio e as pessoas pedem: "Por favor, assuma a direção das coisas temporais", achamos que se trata de um avanço, mas é quando começam os obstáculos.
Então, agora eu considero que nós avançamos um pouco. E vou deixar um espaço para alguma conversa. Vocês estão chegando, e eu conversei sozinho até agora. Vamos ver se está aberto também para o pessoal que está conectado remotamente.
Perguntas e Respostas:
Pergunta: Queria entender sobre a familiarização, eu acho que o senhor a descreveu agora. Então, existem inúmeras técnicas e teorias do que se faz sentado no que se chama meditação. O plus seria sentar em um lugar que não precisasse fazer nada e observar a realidade, que é a impermanência, as coisas surgem e cessam. É importante fazer shamata, mas esta também é um lugar construído, também não conseguiremos ficar nesse lugar parado. E a familiarização então seria isso: descansar num lugar e ver as realidades surgirem, as realidades mentais e as construções que aparecem e cessam?
Lama: Quando a pessoa é capaz de ultrapassar as oito consciências, ela pratica Shamata. Mas se eu estiver dentro das oito consciências, posso ver as coisas surgirem e cessarem. Mas isso é uma operação do samsara. Aí eu percebo a impermanência, e dentro do samsara vou trabalhar com a noção de impermanência. Isso é uma forma de vipassana, de avançar nos ensinamentos. Há os quatro pensamentos que transformam a mente, onde se percebe as qualidades dos seres humanos, tudo que está nas nossas vidas, e vemos que os ensinamentos existem, que o Buda veio, que os ensinamentos se preservaram, eles estão em nossa região, podemos seguir. Percebemos também que temos impermanência na nossa condição de saúde, que é uma condição instável. Da mesma forma, os ensinamentos estão presentes hoje, mas podem desaparecer, e que temos estruturas cármicas que impulsionam nossa mente. Tudo isso está dentro do raciocínio, dentro do samsara. Por exemplo, percebo que se eu seguir impulsionado pelo samsara, pelos carmas, vou colher muitos obstáculos. Tudo isso está dentro do samsara. Aí digo: "Eu deveria tomar refúgio na natureza búdica", mas me sinto como uma identidade tomando refúgio na natureza búdica. Ainda estou dentro do samsara, não cruzei pela porta de shamata. Mas vamos supor que a pessoa sentou, ultrapassou os fluxos de mente brotando de experiências que parecem surgir de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato e as construções mentais. Eu não estou dando sequência, então estou em shamata. Se dentro disso começo a gerar a autoconsciência da mente que vê o que a mente está fazendo, então eu estou começando a desenvolver a prática a partir de rigpa.
Quando essa prática, a partir de rigpa, amadurece nos ensinamentos, como Dudjom Rinpoche explica na "Iluminação da Sabedoria Primordial", onde ele esclarece a realidade das aparências, e nós começamos a contemplar a realidade das coisas, a não-dualidade, a luminosidade, a vacuidade associadas a todas as coisas, aí eu gero o que é chamado visão. Posso então olhar dentro, lúcido, e sou capaz de olhar fora, lúcido. Eu olho todas as impressões de corpo, todas as impressões de mente como elementos, mas não dou sequência a eles. Eu os vejo como vazios e luminosos. Isso é visão. Essa visão avança, progressivamente, até a compreensão de como isso é operado. Como surgem a visão em si mesma e a clarificação das coisas. Nós estamos contemplando isso. Desse ponto em diante eu começo a usar todo tipo de experiência para gerar o que é chamado "familiarização", que é a palavra que tu usastes. A familiarização começa neste lugar: primeiro, preciso gerar visão; em seguida surge a familiarização. Podemos fazer a familiarização um tanto sentados, outro tanto caminhando, outro tanto de vários modos. A familiarização possui alguns elementos muito impactantes. Por exemplo, eu estou aqui falando, mas vocês não estão ouvindo sons, estão ouvindo diretamente significados. Sendo que estou falando em português, então há um centro cármico decodificador do som para os significados. Isso aqui não é uma língua universal, é a língua portuguesa. Mas vocês nem se dão conta de estarem usando um decodificador. Dentro desse decodificador há toda a carga cármica natural, usada para dar os significados aos sons que nem aparecem, surgem os significados automáticos. Eles ficam falando do tradutor Google, mas esse tradutor [é melhor]! Ele produz automaticamente, nós nem vemos. Quando tu mergulhas nisso, vês que todos os sons estão na dependência dos referenciais que surgem como as identidades. Estou em algum lugar cármico, com um conjunto de referenciais complexos, operando de modo automático e produzindo significados para os sons que ouvimos. Então isso é uma situação.
Mesmo que estejamos fazendo práticas, estamos completamente envolvidos carmicamente. Caso contrário, vocês nem ouviriam o que eu estou dizendo. Nós estamos nesse lugar. Isso é gerar familiarização. Vou gerar familiarização com os olhos, com o tato, com o olfato, com todas as impressões interiores. Por exemplo, quando tomamos banho frio, geramos um tipo de familiarização com as sensações de frio. Abre-se uma porta, porque todas as sensações que impulsionam nossa consciência dão um sentido de realidade, e eu começo a olhar para elas. Aí, de vez em quando, vocês verão um praticante levantar um braço, com um olho profundo, depois baixa o braço com um olho profundo: "Levantei o braço, baixei o braço". Aí verão um praticante caminhando devagar. Porque não há nada que não seja completamente mágico. "Como levanto o braço automático, como eu ouço e dou significado? Baixo o braço automático, como? Estou completamente envolvido carmicamente nisso". Trata-se da familiarização, e não é preciso que eu esteja parado. Ela ocorre nas coisas comuns, porque estas não são comuns, elas são extraordinárias. Mas para eu perceber isso preciso ter a mente que vê dentro. Ela está estabilizada, está clara.
E isso é chamado visão: quando essa mente está clara.
Isso é introduzido nos ensinamentos de Vajrasattva, Vajrasattva os vê. E Vajrasattva é Guru Rinpoche. E Vajrasattva emana Garab Dorje, que é o mestre de Manjusrimitra.
Dali e de Vimalamitra se inicia Guru Rinpoche. É a linhagem de Guru Rinpoche, que é Vajrasattva. Acima de Vajrasattva, [está] o Buda primordial.
A linhagem de Guru Rinpoche é a linhagem do Buda primordial, da natureza livre da mente, que é completamente consciente de tudo, que trabalha com a noção da natural grande perfeição, ou seja, ele vê as coisas comuns como completamente mágicas e extraordinárias.
E ver este aspecto mágico e extraordinário das coisas, é ver a perfeição natural. Não é que esteja perfeito, porque é bom ou não é ruim. Porque é tudo bom, mágico, luminoso, extraordinário. Isso é que significa a natural grande perfeição.
Samantabhadra significa que tudo é bom, tudo bom. (Samantabhadra e Kuntuzangpo são o mesmo, Kuntuzangpo em tibetano e Samantabhadra em sânscrito). É o Buda primordial, é a natureza última, lúcida, como se fosse a essência de todos os Budas.
Essa é a prática. Estamos no meio disso, pessoal, entendendo um pedaço, entendendo outro pedaço ou muitos; estamos no meio disso, fazendo esse trajeto ou também não entendendo. Estamos andando, mas se estamos aqui na tela, ou estamos aqui [presencialmente] significa que alguma coisa nos aproximou.
O que nos aproximou é o Darma, e o Darma é o mestre. O Darma cria a sangha. Quando nós dizemos que o Darma é o mestre, é a mesma coisa de dizer, como Düdjom Lingpa diz, que ele ouve o Buda diretamente dentro dele, ele tem o contato direto com o Buda, isso significa a sabedoria natural. Todo caminho é em direção à sabedoria natural. Quando estamos olhando deste modo, a partir de Rigpa, é que estamos praticando Guru Yoga. Essa é a nossa prática, nossa prática é Guru Yoga. Guru Yoga com Vajrasattva, com Kuntuzangpo, com Garab Dorje, com Manjusrimitra, com Vimalamitra, Guru Rinpoche - todos os grandes mestres das linhagens que chegam até nós. Ainda que haja uma sequência temporal, não há uma sequência temporal. Esta é uma aparência. O Buda é sempre o mesmo, e é inseparável de nós. Por isso, é que o Budismo se mantém completamente vivo; mesmo que ele desapareça, ele ressurge porque nossa natureza é uma natureza búdica, ela ressurge. Todos os seres têm natureza búdica.
Pergunta: Queria pedir para o Lama clarear um pouquinho essa transição de Terra Pura para as mandalas.
Lama: É assim: Quando estamos nas Terras Puras podemos reconhecer o aspecto luminoso, vazio, mágico, de tudo. Mas nas mandalas todas as aparências, são completamente purificadas. Então, a diferença entre Terra Pura e mandala é a capacidade que temos de reconhecer os aspectos como completamente puros e inseparáveis do olhar, que por sua vez, é completamente lúcido. Aí, surge a mandala. Já as Terras Puras é [algo] um pouco confuso. Elas surgem inicialmente no samsara, mesmo. Um pouco nós temos uma atração que é cármica, um pouco nós temos uma atração que vem da motivação elevada, mas tudo está um pouco misturado, e nós não sabemos bem distinguir isso. E cada ser dentro das Terras Puras se vê de um modo um pouco diferente.
Nas Terras Puras os seres ainda têm identidades, eles se veem como identidades. Há coisas de que gostam e coisas de que não gostam. Então, as terras puras são a corda que tem um gancho que chega no fundo do poço da experiência cíclica. Somos seres que estamos no poço da experiência cíclica - a experiência cíclica é uma descrição interessante.
Já vimos que todos nós temos capacidade de olhar de forma mais elevada o mundo onde estamos. Mas nós vemos que melhora, depois melhora mais um tanto, depois mais um tanto; não chegamos em algum lugar final, mas melhoramos.
Isso é um poço: estamos subindo num poço. Continua [a haver] muito poço para cima e muito poço para baixo. E vemos perfeitamente que se dermos uma resvaladazinha, a gente afunda no poço. Mas então desce um gancho com uma corda: essa é a Terra Pura. Aí seguramos a Terra Pura e ela se torna um veículo para sair dali, mas enquanto eu estou subindo, estou subindo em parte pelo meu esforço, em parte porque a Terra Pura está me levando. No entanto, sigo dentro do poço até sair.
Quando saímos do poço, não tinha poço. Mas ainda assim, não tinha poço, mas quem estava lá dentro, estava lá dentro. Mas não tinha poço.
É comouma máquina de moer carne dos infernos. Quando nos libertamos dali, não tem mais máquina de moer carne. Porém tem máquina de moer carne, e há seres sendo moídos, ainda que não haja seres sendo moídos. Mas vai dizer para os seres que acham que estão sendo moídos, que não estão sendo moídos! Estão sendo moídos, mas não.
Se vocês estão dentro dos infernos e veem os seres torturadores, e outros ali sendo torturados, vocês espalhem: "Olha aqui, pessoal, eu acho que aqui não é real, pois o pessoal está sendo torturado, cortado, mas não morre. E os guardas, igualmente, vocês veem, os anos passam e os guardas estão iguaizinhos. Isso é tudo guarda fake, não é real".
E é isso, temos aquela experiência. É como, por exemplo, podem se passar os anos e os nossos fantasmas não envelhecem. O que nos assusta não envelhece. E aí… Começamos a desconfiar.
Naquele filme “Uma mente brilhante” há essa parte. O cientista constata que as figuras que ele vê não envelhecem, e aí ele se liberta. Às vezes, isso não basta. Dizemos: "Não envelhece, então isso é um fantasma mesmo, é real".
Eventualmente, podemos estar no ponto de acordar daquilo. As Terras Puras têm esse aspecto completamente mágico - é real, mas não é - porque as nossas situações também são reais e não são, ao mesmo tempo. As Mandalas são a condição natural, livre, a condição verdadeira.
Como nós não temos esse olhar puro, olhamos para as Mandalas e as vemos como Terras Puras. Se tivermos um olhar mais contaminado nós vemos como samsara: vemos como o Reino dos Infernos, como o Reino dos Seres Famintos, ou dos Animais, ou dos Humanos, ou Semideuses ou dos Deuses. Olhar com o olhar dos Semideuses é passar pelos bloqueios com raiva, querendo combater, querendo alguma coisa - são os Semideuses. Se chegar nos bloqueios e estes se abrirem e nós passarmos, é o Reino dos Deuses, o mundo se abre. Ficar trancado nos bloqueios e pegar o celular, "e agora, não sei o que fazer!", esse é o Reino Humano. O Reino dos Infernos é quando a gente tem raivas, ódios, exclusões.
Pergunta:Há mais de uma década participei da criação de um grupo chamado "grupo de abolição do especismo", mas no começo.
Lama: Abolição do quê?
Pergunta: Do especismo, é um grupo vegano, a questão de tratar as outras espécies de uma forma depreciativa, digamos assim. Quero explicar o seguinte: na época, quando o grupo foi criado, o nome era grupo antiespecismo, e com o passar do tempo, vimos que ficava melhor chamá-lo de grupo pela abolição do especismo, e assim foi feito. Deu um olhar mais simpático. Ontem, eu estava na feira orgânica, e uma moça colocava uns cartazes, eu acho que era contra a discriminação racial, machismo, alguma coisa assim, e eu fui conversar com ela, se não teria outro olhar. E ela me explicou que era importante mulheres terem raiva do agressor, porque se não houvesse raiva não vai reagir contra aquilo. E eu queria explicar de uma forma diferente para ela, que mesmo se aquela raiva desse uma energia, com o tempo poderia dar “n” outras complicações, mas me faltou os meios hábeis para falar. É como se houvesse na sociedade um lugar-comum que a violência é uma coisa boa: "Fora esse presidente, fora aquilo, contra aquilo, abaixo". Seria uma forma que ajuda para diminuir aquilo, mas eu tenho minhas dúvidas, não sei se essa abordagem realmente diminui, ou se aquilo continua latente nas pessoas e surge de outra forma. Como realmente pacificar e trazer um olhar mais amoroso, inclusive na sangha, olhando isso, não tomando a raiva como uma coisa natural e benéfica?
Lama: Se as pessoas estão dentro do âmbito da raiva, elas vão começar por dentro do âmbito da raiva, e está bem. Aí, você pode dizer: "Você mais adiante vai se libertar dessa necessidade".
Pode dizer para ela: "Acho que está bem fazer assim, porém mais adiante você vai se libertar disso, porque é assim mesmo. No início, podemos nos manifestar assim". Ela sente a necessidade de fazer desse modo, então está bem, está seguindo um caminho, no entanto mais adiante ela vai se livrar disso.
O perigo é ela estar, simplesmente, se prendendo no âmbito da raiva, com um outro argumento que parece, enfim, justo. Todos os seres que têm raiva consideram, de modo geral, que estão numa condição de justiça e de realidade. Isso é um pouco problemático. É a contradição inevitável desse processo, mas o samsara inteiro é assim. É contraditório.
Pergunta: Lama, quando você falou que os fantasmas não envelhecem, me bateu aqui muito profundo, porque mostrou que as dores, as causas, ou o que quer que nós passemos, é como se a mente não envelhecesse aquelas coisas, como se ela não desse um ritmo. Gostaria que você falasse um pouquinho deste ponto dos fantasmas e a nossa mente, isso pra mim bateu tão fundo que ficou ecoando aqui: como lidar com esses fantasmas que não envelhecem? E você está envelhecendo. Como se pode lidar com uma outra visão?
Lama: É meio aflitivo, a gente envelhece e os fantasmas não. Como? Deveria ser o contrário. É que as marcas mentais seguem. Esse é o ponto. As marcas mentais seguindo, surgem como fantasmas. Então, às vezes vemos os inimigos mudando de endereço, de face, e temos as mesmas sensações com relação a eles.
Eles seguem inimigos terríveis, ou alguma coisa assim. Por outro lado, ainda que eles sigam como inimigos… [não são]. Os fantasmas têm esse aspecto. Vemos essas marcas, que podem ir mudando de feição ao longo do tempo, mas nós mantemos a mesma forma de queimar o peito, a mesma falta de ar, a mesma dificuldade, agora com outras feições.
Por vezes, vamos afundando nos infernos porque vemos que fizemos muito esforços, e não conseguimos derrubar aquilo. E agora não estamos dispostos a perder de novo. Então, vamos ficando mais desesperados.
E há outras pessoas que, ao contrário, dizem: "Fui derrotado aqui e ali, mas enfim, tudo foi mudando. Eu estava fixado e agora como olho de forma um pouco mais ampla, isso não me incomoda. Desse modo, consigo ver como ajudar aquelas pessoas, como posso me relacionar com os outros desse modo".
Às vezes, são situações que não dizem respeito a experiências na rua ou outros lugares, mas [sim] à nossa própria casa, no ambiente onde a gente vive. São, às vezes, experiências com os filhos, pai, mãe, os avós ou maridos, ex-maridos, esposas, ex-esposas.
Mas tudo muda, esses infernos mudam. É a vacuidade disso.
Pergunta: Na realidade, eu não tinha olhado como sendo as marcas, os carmas brotando ali. Você vai lidando e mudando. Eles só mudam a cara, a essência é a mesma. Obrigada Lama.
Lama: Em uma época eu falava muito em relações, e brincava assim: "Se você tiver hostilidade em relação à sua primeira ex-esposa, vai ser perseguido por todas as subsequentes". Porque a pessoa tem um olhar que não dá muito certo, e isso vale para ex-maridos também. E aí a pessoa vai pacificando isso, e no fim fica tudo arrumado. Aí a pessoa se livra do psicólogo, que é a ideia final. (Resolvi espetar um pouquinho).
Pergunta: Foi dado o exemplo dos mandamentos durante a palestra. Qual a diferença daqueles que tentam seguir os mandamentos e dos que fazem os votos? Porque, a meu ver, alguns dos votos são iguais a alguns mandamentos. Essa diferença seria o contexto?
Lama: É que os votos também não adiantam muito. Eles são parecidos mesmo, mas por vezes são como um remendo. Quando examinamos, vemos que existem os votos, os mandamentos, mas existe também o refúgio. [Depende] de como a pessoa define a motivação.
No Budismo há a noção de motivação, que é como se fosse o vento, o voto é como se fosse a engrenagem. Então, temos o vento e sopramos em uma certa direção. Um pouco aquilo dá certo, um pouco não dá certo, e seguimos soprando. Aquilo não é perfeito, mas na “engrenagem” parece que estamos dentro de alguma coisa que tem que dar certo. E não vai dar certo, direito.
No Budismo estudamos direitinho as 10 ações que deveríamos evitar. Os próprios ensinamentos budistas dos mestres subsequentes vão trazendo circunstâncias onde as próprias ações são contraditórias. Por exemplo, não matar. Vamos encontrar experiências da vida do Buda em que o Buda matou para salvar um número muito grande de seres: ele mata um que ia matar 100. Matando aquele, ele evita que os 100 sejam mortos. Fica algo um pouco contraditório. Se ele não matar aquele um é como se ele estivesse matando 100, pois ele viu que aquele um ia matar os 100. E então, se ele evita matar aquele um, ele, na verdade, está permitindo a morte de 100. Ele teria o carma correspondente à morte de 100. Ainda assim, ele vai para os infernos, pois matou esse um.
Aqui não é um julgamento justo, não há julgamento justo. O que acontece é: quando posso ver que [alguém] vai matar 100, e eu não quero aquilo, eu o mato. Mas quando eu o mato, não estou transferindo a consciência dele de modo puro para algum lugar. Eu estou matando, ou seja, tenho raiva, estou nos infernos. Eu o mato dentro da oposição, não vejo sua natureza búdica, não vejo nada. Vejo como um ser horrível, eu o mato e vou junto com ele para os infernos. Porque já estou nos infernos, estou numa posição separada. Não estou vendo nada com sabedoria, eu estou vendo com hostilidade e com raiva: já estou nos infernos. Ele vai para os infernos. Lá, como ele é o Buda, o bodisatva dá uma olhada assim, assopra para os outros seres e vai embora.
Aí, tem que ver a mente da pessoa: ele não fica preso. Porque reconhece o obstáculo, reconhece a falha e aspira o benefício dos seres, livra-se daquilo.
Mas isso são as contradições. Há contradições com a ação sexual, com roubo**.** E essas contradições com o roubo se veem mesmo nos relatos franciscanos. São Francisco roubando frutas para dar para o discípulo que estava doente. Rouba uvas e dá. Então surge o proprietário e bate nele. Ele ri e acha que o proprietário está certo em bater nele. Agradece porque está [apanhando], mas não devolve as frutas. Acha que foi bem feito. Há uma contradição, ele faz aquilo por compaixão, sofre a ação, o carma da ação e a consequência da ação feita, e ele lida com aquela contradição assim.
Em seguida vem a fala sobre não mentir, com suas contradições. Por exemplo: a pessoa mente e salva a vida de alguém. Se a pessoa diz a verdade, o outro está morto; se mente, ela engana a outra pessoa. Mas não matou. Assim, nós vemos que todos os aspectos das regras são imperfeitos. Não temos como evitar uma natural imperfeição disso, porque tudo se dá dentro do samsara.
Nós temos uma motivação, que é a seguinte: não queremos matar, não queremos roubar, não queremos praticar sexo impróprio, nem agredir com palavras, nem mentir, nem criar discórdias. Não queremos gerar confusão nenhuma, e vamos andando como podemos: um pouco nós fazemos, porque nos encontramos no meio do samsara e não conseguimos evitar.
Não conseguimos evitar que a nossa ação tenha várias consequências.
Observando o Buda constatamos que o próprio Buda, fazendo a ação búdica completamente iluminada, não é entendido pelos seres que, eventualmente, se sentem prejudicados.
Essa é a questão.
Alegria pessoal! Aqui está cheio de bodisatvas. (Eu digo isso para que eles fiquem orgulhosos, e depois afundem no samsara, essa é a ideia!).