Conteúdo
Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Retiro Meditando a Vida (01 e 02 de maio, 2021)
Lama Padma Samten
CEBB Bacopari RS
#01 | Meditando a Vida | 01/05/21 | Sábado Manhã
https://www.youtube.com/watch?v=goSfPNqwtrA&ab_channel=LamaPadmaSamten
Transcrição: <Lílian Miranda de Figueiredo>
Revisão: <Carmita Portela>
Tabela de conteúdos
- Retiro Meditando a Vida (01 e 02 de maio, 2021)
- #01 | Meditando a Vida | 01/05/21 | Sábado Manhã
- Introdução
- Os Seis Reinos e a Originação Dependente (Aspectos: Grosseiro, Sutil e Secreto)
- Perguntas e Respostas:
- #02 | Meditando a Vida | 01/05/21 Sábado Tarde
- Introdução
- Não dualidade
- Impermanência
- Originação dependente
- Natureza búdica
- A estabilidade e a ação de Maharaja
- Sabedoria primordial / Estabilidade meditativa
- O caminho budista
- #03 | Perguntas & Respostas | 01/05/2021
- #04 | Meditando a Vida | 02/05/21 Domingo Manhã
- Introdução
- Aprofundamento da prática: mudança de base
- Atisha e as linhagens do budismo tibetano
- Gampopa e o potencial dos seres
- Contemplação - o caminho para a mudança de base
- Motivação - os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente
- Homenagem ao Guru
- Primeiro Pensamento que Transforma a Mente - Vida Humana Preciosa
- Segundo Pensamento que Transforma a Mente - Impermanência
- Terceiro e Quarto Pensamentos que Transformam a Mente – Carma e Sofrimento
- Tomada de Refúgio
- Purificação da Base
- Introdução ao Roteiro de 21 Itens
- #05 | Meditando a Vida | 02/05/21 Domingo Tarde
- A base da mente e a motivação
- A base da mente e a prática de Mettabhavana
- A base da mente e a Prajnaparamita
- A base da mente e as Terras Puras
- - A compreensão da base através das Quatro Qualidades Incomensuráveis
- - A compreensão da base a partir das Seis Perfeições
- - A compreensão da base através dos Bumis
- - A base da mente e as cinco sabedorias
- Conclusão
- Perguntas e Respostas
- Perguntas & Respostas
Introdução
Bom dia! Estamos iniciando esse retiro de dois dias mais a segunda-feira, que é um dia de prática. A organização coube ao CEBB Rio e adjacências. O CEBB Rio hoje é uma coisa grande. São vários CEBBs e a sanga toda tem conexão com as várias cidades da região até Minas. O título do nosso retiro é “Meditando a Vida”, mas o tema corresponde a como os ensinamentos do Buda podem ser vistos e podem ser aproveitados no tempo que estamos vivendo agora. Então, o nosso tema é “como podemos aproveitar os ensinamentos do Buda nas nossas vidas, nesse tempo que estamos vivendo agora?
Os Seis Reinos e a Originação Dependente (Aspectos: Grosseiro, Sutil e Secreto)
Poderíamos começar com a seguinte pergunta: Esses ensinamentos do Buda, que foram dados há vinte e cinco ou vinte e seis séculos, eles ainda seriam adequados? Para quem vai seguir o caminho, eu acho que essa pergunta é super importante. Ela vem também com uma outra pergunta que eu considero crucial, que é: Como o Buda vê o que vê? Então, quando o Buda fala, ele fala com uma certeza. De onde vem essa certeza? De onde vem essa visão que o Buda tem sobre as coisas? Como ele vê aquilo e como aquilo se refere realmente aos seres? Como aquilo dá certo? Então, como o Buda vê o que vê? E aquilo que o Buda vê, está ou não está manchado ou perturbado por esses vinte e cinco ou vinte e seis séculos que nos separam do tempo que ele se manifestou em corpo físico (o Buda histórico).
Então, agora nós temos ciência, temos psicologia, temos biologia, conhecimentos que não havia na época do próprio Buda. E será que esses conhecimentos não envelhecem o Budismo? Será que esses conhecimentos não transformam o Budismo em algo limitado, como se fosse uma crença de um tempo anterior? Então, essa é uma pergunta importante e precisaríamos examinar isso. Sob o ponto de vista prático, veríamos se, enfim, os ensinamentos do Buda podem ou não ser úteis para nós no tempo em que estamos vivendo.
Eu vejo assim, por exemplo, quando surgem os jovens, por vezes, eles acham que a experiência dos pais é uma experiência ultrapassada que pertence a um outro tempo. Então, se isso acontece em uma geração o que dizer desses vinte e cinco ou vinte e seis séculos? Então, podemos pensar que o Buda é muito antigo. Já rejeitamos a idade média inteira. A idade média é recente. Quinhentos anos atrás nós tínhamos a idade média. Se olharmos com cuidado, encontramos aspectos notáveis da idade média nesse tempo que estamos vivendo agora. Então, isso é muito recente, mas o tempo do Buda é muito anterior.
Podemos considerar também os tibetanos. O Guru Rinpoche, veio no século VIII, no século IX. Então, isso é muito antigo. Ele veio dentro de uma cultura selvagem, uma cultura de raiz. Então, é muito admirável se esses tipos de ensinamentos servirem para nós. Esse é um tema.
Então, começaríamos perguntando: O que o Buda vê quando vê? Como ele descreve a vida dos seres? E isso funcionaria para nós? O Buda descreve a impermanência. A impermanência era daquele tempo. Hoje não tem mais [risos]; mas descobrimos que a impermanência está completamente aí. Bom, essa parte está valendo. A seguir, o Buda descreve os vários reinos. Essa é outra parte superinteressante, porque está certo: o Buda descreve os seis reinos. Vamos dizer assim: “Bom, mas isso não existe”. Tudo o que é falado tem o aspecto grosseiro, o aspecto sutil e o aspecto secreto. De modo geral, na nossa cultura, nós descrevemos o que vemos. Não nos damos conta de que, na maior parte das vezes, o que vemos é o aspecto grosseiro; não chegamos a notar o aspecto sutil. Com o surgimento da Psicologia, nós passamos a notar o aspecto sutil, mas não nomeamos assim. E, aparentemente, na perspectiva budista, a Psicologia fica no aspecto sutil; ela não chega no aspecto secreto. Então, ela não chega a investigar a mente. A Psicologia não investiga como a mente produz as várias experiências e como ela funciona. Mas esse é um ponto interessante. A compreensão das realidades, a partir, do aspecto sutil, do aspecto grosseiro e do aspecto secreto produz uma grande riqueza na forma pela qual nós vamos perceber.
Por exemplo, quando o Buda descreve os seis reinos, podemos perguntar: “Bom! Será que o Buda quer dizer que os infernos efetivamente existem? Os seres famintos efetivamente existem? Em que lugar eles estariam? Será que os asuras (os semi-deuses) efetivamente existem? Em que lugar eles existiriam? E os deuses?” Hoje, os satélites fotografam tudo, o Google Street anda por todos os lugares. Ele não localizou os infernos, nem os seres famintos, nem os deuses. Ele não localizou isso, mas está tudo fotografado”. Vamos colocar no Google: Reino dos Deuses. Aquilo não vai aparecer, pessoal!
Então, temos uma dificuldade de localizar isso no aspecto grosseiro. Porém, no aspecto sutil, nós vamos encontrar claramente. É importante entendermos esses aspectos. Que consigamos reconhecer essa complexidade pela qual o mundo surge. Quando o Buda descreve os seis reinos e entendemos isso, nós encontramos uma porta para desenvolver uma compreensão super complexa da realidade. Por quê? Porque nós vamos percebendo que existem grupos de seres que percebem de forma semelhante. Quando nós vemos isso, terminamos entendendo esse exemplo que é trazido pelo Budismo de que, no mesmo local, os seres podem ter diferentes experiências dos vários reinos. No mesmo local físico, onde as pessoas estejam, elas podem ver isso como seu funcionamento usual, normal. Elas não acham que tenham qualquer problema. Elas acham que aquilo é assim mesmo. Esse é o primeiro ponto.
Agora, o que são as várias experiências de “isso é isso mesmo”? Os seres que têm, no aspecto sutil, o reino dos infernos, no lugar onde eles estiverem, eles estão intranquilos, eles têm uma violência potencial, eles têm uma capacidade de produzir sofrimentos, eles pensam que o mundo é regido por sofrimento e por agressão. E, eles estão constantemente imaginando que estão numa condição frágil, que eles podem ser atacados, que eles podem ser violentados ou que eles podem ser abusados. Então, eles têm que estar sempre de guarda. Esse é o aspecto sutil do reino dos Infernos.
Então, por exemplo, quem estiver ouvindo o que eu estou falando pode, como nós aqui, também pensar: “Será que eu estou seguro? Será que eu não posso ser assaltado? Será que não pode acontecer alguma coisa muito grave aqui, agora?” Se pensarmos desse modo nós transferimos a nossa consciência sutil para o reino dos infernos. É muito provável que, rapidamente, nos demos conta: “Sim, pode acontecer coisas muito graves. Porque essa é a realidade. Nós não temos efetivamente proteção diante das circunstâncias que podem surgir sobre nós. Não temos nenhum tipo de proteção.” Percebemos essa fragilidade. Quando essa fragilidade gera em nós um impulso de agressão (impulso de defesa por agressão) isso corresponde ao reino dos infernos. Mas, nós estamos olhando em volta e as paredes são as mesmas, é tudo igual. O que mudou foi a posição interna da mente, o referencial, a base da mente. Essa base é uma contribuição superimportante do Budismo. Devemos entender que a nossa consciência opera sempre referenciada a uma base. E, de modo geral, quando a nossa consciência está operando (a nossa mente está operando, o foco dela está operando) e nós estamos pensando, imaginando e nos movendo, nós não questionamos a base. A base está estabelecida. Então, esse é um ponto superimportante: o reconhecimento da existência dessa base e dessa operação incessante da base junto com o foco da mente.
Isso, o Buda descreve como originação dependente, ou seja, a operação da nossa mente se dá na dependência constante de uma base. Quando nós tomamos por base os referenciais dos infernos a ação da mente (tudo que nós vemos e pensamos) surge conectado com os infernos. Então, a descrição da mente, todas as aparências, os impulsos, os raciocínios, todos eles brotam desse modo. Por outro lado, se deslocarmos o aspecto sutil da nossa mente em direção ao reino dos seres famintos, nós também vamos perceber essa mudança. O conteúdo da nossa mente começa a se deslocar para uma outra direção. E nós percebemos, também, as regiões intermediárias entre os infernos e os seres famintos. Por exemplo, poderíamos pensar, o mundo está numa situação difícil. Será que não faltaria comida? Não faltaria coisas essenciais para nós? Nós podemos rapidamente desenvolver uma sensação de carência. Eu lembro, muitos anos atrás, como surgiram as fake News. É uma coisa interessante. Aquilo não era pela internet, mas também surgiam coisas assim. Eles falavam dos dias escuros; falava-se muito disso. Volta e meia surgia alguma coisa. Os dias escuros eram assim: haveria um tempo em que o sol não nasceria. Então, esses seriam os dias escuros. Faltaria água, faltaria comida, faltaria tudo. Naquele tempo, essas coisas vinham por alguém que surgia como um mestre, que tinha visões, e aí eles começavam a falar aquilo e outras pessoas tinham as mesmas visões e aquilo se ampliava. Às vezes, havia conexões mediúnicas: Isso é um mestre de um outro plano que está comunicando. Então, tinha os dias escuros. E as pessoas compravam quantidade de alimentos, compravam coisas, estocavam tudo, estocavam água, estocavam coisas, por um longo tempo, imaginando esses dias escuros.
Esse é um ponto interessante. Como os seres famintos surgem? Surge uma aflição. É como se houvesse um surto psicótico coletivo e todo mundo começa a ver um outro tipo de realidade e ela se relaciona daquele modo. Eu lembro que, numa outra vez, surgiu uma fake News ligada não ao reino dos seres famintos, mas aos seres dos infernos. Surgiu uma imagem que passaria um astro perto da terra e que esse astro iria puxar todos os seres elevados; iria abduzir a mente dos seres elevados e eles passariam para um outro plano. E, na terra restariam os seres inferiores. Então, as pessoas eram convidadas a irem para lugares elevados e se manterem em oração porque eles tinham que estar prontos para aquilo. E volta e meia aparecia um dentro da sala de meditação e eu tinha que lidar com aquilo; Como resolver isso? “Então, o senhor acredita que agora está vindo um astro que vai...” E eu dizia: “Olha! Se eu quisesse retirar os piores, o que que eu iria fazer? Eu iria dizer: Agora pessoal! Vocês vão para o topo das montanhas porque vocês são os eleitos. (Eu iria chamá-los de eleitos, é claro!). Aí, todos eles, autocentrados, superimportantes, iriam para lá e aí eu retirava aquilo e dava uma limpada no planeta Terra.” (risos). Então, eu acho que pode ser o contrário. “Se cuidem!” (risos). Porque se vai haver uma catástrofe aqui, os bodisatvas vão ficar. Eles não estão pensando “Eu vou ter problemas”. Porque, enfim, os bodisatvas têm uma visão mais ampla. Agora, há as pessoas que estão autocentradas, que querem salvar o pelo, que querem alguma coisa em detrimento dos outros. Como vou chamá-las? Não vou dizer: “Vocês que são autocentrados...” Não vai funcionar. Vou dizer: “Vocês que são grandes mestres, que são super elevados, então, venham!” Mas era assim, volta e meia tinha alguma coisa desse tipo, tinha alguma coisa psicótica assim e nós tínhamos que lidar.
Então, vocês vejam que fake news não é uma coisa recente. Mas aí vocês vejam: Isso pertence ao reino dos seres da aflição, dos seres em sofrimento. Eles acreditam que vai acontecer uma grande coisa horrível que vai pegar todo mundo. Eu também percebi que as tragédias aconteciam mesmo sem ser anunciadas, como agora veio o corona vírus. Em dezembro de 2019, o pessoal estava fazendo planejamentos para 2020, para 2021. Agora, na próxima década – isso, nos próximos cinco anos – isso, investimentos disso, daquilo. E eu fico observando o que os grandes especialistas estão olhando. Aí eles não veem. Eu também não quero aqui instigar os astrólogos, mas... Está certo: o Ricardo Lindermann esteve lá no 108 Horas de Paz e disse “Olha, esse ano vai ser horrível”. Isso eu lembro. Mas de modo geral, é uma coisa assim. Então, é como se fosse difícil ver além da nossa própria bolha. Então, os seres dos infernos veem os infernos, os seres famintos veem os âmbitos famintos. Ai, o Buda diz: Os animais veem o reino dos animais. Então, eles têm dificuldade de penetrar nos outros mundos. Cada ser, olhando esses mundos, tem dificuldades. Então, aqui olhamos a [cadelinha] Dudu. A Dudu vem nos visitar aqui. Quando eu venho, ela vem junto. Mas quando ela olha esse prédio, ela, com certeza, não olha do jeito que estamos olhando. Eu lastimo isso. Ela poderia estar aqui, sentada, ouvindo os ensinamentos, mas ela tem dificuldades. Os outros seres, que pertencem a outros âmbitos dos reinos dos animais, também têm dificuldades, eles não conseguem penetrar no reino humano. E nós também temos dificuldade de penetrar no reino deles, ainda que nós vejamos seus corpos. No Budismo se diz que não vemos o corpo físico dos seres dos infernos, nem dos seres famintos. Mas, vemos o corpo físico dos animais O reino dos animais tem uma grande proximidade conosco; mas ainda assim, eles têm um reino específico e nós temos outro reino específico.
Então, tem o reino dos seres humanos. Os seres humanos, propriamente ditos, operam por desejo e apego e eles também têm compaixão. Mas, às vezes, as pessoas duvidam disso dizendo: Essa pessoa aí não tem compaixão. Por isso, Chagdud Rinpoche sempre dizia: “Não tem como nascer no Reino Humano sem ter compaixão. Aquilo pode estar escondido, mas tem. Está em algum lugar.” Nós podemos perceber esse aspecto. O Reino Humano tem compaixão, tem desejo e tem apego. Se olharmos nosso funcionamento, nós vamos perceber isso. Por exemplo: a [cadelinha] Dudu pode estar por aqui, mas é difícil imaginarmos que ela tenha desejo e apego pelo prédio, pela organização das coisas, pela limpeza das coisas etc. Ela não tem isso. Mas nós seres humanos estamos constantemente cuidando e arrumando. Se alguém vier aqui e for mexer nisso aqui, vamos dizer: “Não, isso não. Isso tem que falar com o Lama. Aqui não é possível mexer. Não pode.” O Lama é desapegado, com certeza; mas se mexer, vai dar problema. Eu não tenho apego, mas vai dar problema. Então, surge o apego, surge com clareza: aquilo é de um certo jeito. Ai, tem desejo, tem uma aspiração que aquilo seja assim, seja assado. Tem uma fixação. Então, isso corresponde ao Reino Humano. Tem um interesse. Os seres humanos cuidam uns dos outros. Eles têm interesse uns pelos outros. Tem interesse pelos outros seres também. Então, esse nível de compaixão está presente.
Se formos olhar para o Reino dos Infernos, eles não estão olhando com compaixão. Eles não estão olhando mesmo. Um dos filmes que relata isso, cuidadosamente, chama-se “Túmulo dos Vagalumes”. É um mangá. Olha! É impactante! Como um desenho pode impactar? É super impactante. Não sei bem como eles fazem... Provavelmente quem desenha não é quem concebe etc. mas é muito impactante porque é, assim, paulatinamente, você vê como a compaixão vai desaparecendo dentro de situações aflitivas dos infernos e das condições dos seres famintos. Essencialmente, é um período de guerra no Japão, quando o Japão está sendo dizimado pelos ataques americanos. Como duas crianças, que são irmãos, sobrevivem e morrem no meio daquilo? E, mais especialmente, como a mente vai mudando. Como a mente deles e dos outros em volta, vai mudando. Como antes tem uma proteção e a proteção vai paulatinamente se limitando e como eles vão escorregando por um âmbito até que eles morrem. Não devia ter dito, né? (risos). Até que eles então, encontrem a solução. O mais velho morre, eu acho, numa estação de trem, de fome. E o menor também morre de fome num abrigo que eles estão. Mas aquilo é muito impactante pelo aspecto da visão compassiva entre os dois, que vai sendo corroída pelas circunstâncias, das dificuldades dos seres famintos e dos infernos. E a mente deles não se altera. Eles seguem com essa mente compassiva, mas eles vão encontrando obstáculos. Na parte final, quando encontram o corpo daquele jovem que morreu, na estação, vem alguém e comenta: “São uns vagabundos que estão por ai!” Então, tem a mente humana olhando de um outro jeito, ainda, segundo seu próprio mundo. Aquilo é um mangá, pessoal! Aquilo é um desenho, um rabisco numa folha de papel. Um rabisco subsequente a outro e vira um filme. Então, quando olhamos esse aspecto, vemos que aquilo produz uma emoção. Por quê? Porque a nossa mente é capaz de penetrar nas regiões sutis e experimentar isso. Esse é um aspecto muito interessante; mas a pessoa que gera o tema, ela é milimétrica, ela vai aos poucos produzindo o desdobramento dos vários mundos correspondentes. Então, eu acho isso bem interessante, porque é um aprofundamento claro sobre como as aparências surgem aos nossos olhos e como os nossos olhos estão operando a partir de uma base. Essa base, o Buda descreve como esses seis mundos. Na medida em que estamos operando a partir de uma base, quando nós olhamos, vemos mundos específicos. Isso também acontece com os animais. Os animais, cada um deles, está operando segundo uma base que produz significados.
Isso é muito interessante. Aqui, nesse momento, estamos descrevendo os mundos, mas poderíamos dizer que isso já nos traz a compreensão da vacuidade. Direto, assim. Porque esses mundos como surgem, são mundos reais e, ao mesmo tempo, vazios. Vazios no sentido que eles têm a liberdade de ser outras coisas. Isso é absolutamente claro porque os seres dos infernos veem de um jeito, os seres famintos veem de outro jeito, os animais veem de outro jeito e os seres humanos veem de outro jeito. E essas visões podem ir mudando sutilmente. O corpo não muda, mas a visão vai mudando. Então, esse é um ponto superimportante. É uma compreensão da vacuidade. É uma compreensão completamente prática desse âmbito da vacuidade.
No reino dos semi-deuses, o Buda descreve os seres que se organizam e exercem poder sobre os outros. Eles têm visões amplas e manipulativas. Eles manipulam pela força e pela capacidade deles de ver as coisas.
Então, eu acho isso muito interessante nesse tempo agora, especificamente, em que nós estamos vivendo. Ontem eu vi o Henry Kissinger, que foi um assessor superimportante do governo americano (especialmente dos republicanos). Ele foi uma das pessoas que conduziu a aproximação dos Estados Unidos com a China, em tempos anteriores. Uma pessoa super hábil e, ao mesmo tempo, do partido republicano (dos falcões); mas ele produziu aproximação com a China, que era uma coisa impensável naquele tempo. Isso aconteceu na época do Nixon. E ele disse: “Nesse momento, a disputa entre a China e os Estados Unidos está escorregando para a área dos supercomputadores. É importante que em lugar de haver uma disputa, haja uma colaboração, ainda que os Estados Unidos aspirem ter preponderância sobre isso. Os Estados Unidos deveriam entender que os outros precisam existir, precisam se desenvolver e precisam também andar.” Então, essa conversa é uma conversa do reino dos semi-deuses, pessoal! Vocês pensem assim: Nós, no reino humano, estamos comprando comida, estamos olhando o céu, olhando isso, olhando aquilo. Eles estão raciocinando como os processos de dominação se exercem, num nível sutil. Eles vão se exercer através da supercomputação (computação quântica). Eles sabem que isso vai produzir um desenvolvimento tecnológico acelerado e que o desenvolvimento produz inovação e a inovação produz o domínio econômico, essencialmente. E vai produzir o domínio militar também. Então, tudo vai ser definido pela computação quântica, pelos supercomputadores. Eles estão lá adiante no processo de dominação. Nós estamos aqui, pessoal, pensando se vai passar o Corona vírus, se a pessoa vai namorar não sei quem, se vai casar, se vai ter filho ou não vai ter filho, se as escolas voltam. Eles estão lá adiante. Então isso é o reino dos semi-deuses. Não sabemos nem como palpitar, nem como chegar perto. Nós não entendemos bem o problema. É um outro mundo. Esse é o mundo dos semi-deuses. Enquanto eles se movem, eles definem as possibilidades de vida dos outros reinos todos, incluindo o reino dos animais. Eles são os semi-deuses.
Os semi-deuses pensam que podem dominar o mundo, do mesmo modo que os seres humanos pensam que podem. Mas o mundo é regido pelos deuses e não pelo semi-deuses. Então, o Buda descreve os deuses. Os semi-deuses aspiram controle. Vamos olhar esse aspecto do controle. As pessoas enfim, aspiram a felicidade e aspiram se livrar do sofrimento. Todos os seres, de todos os reinos, aspiram a felicidade e aspiram se livrar do sofrimento. Eles podem pensar que a felicidade é mais remota e eles tentam se livrar do sofrimento causando danos para os outros. Isso é super comum. Eles tentam encontrar a felicidade e superar o sofrimento pela ganância, pela acumulação e pela carência. Eles tentam obter a felicidade e escapar do sofrimento através dos processos comuns de andar em meio a natureza como os animais andam. Eles pensam que podem obter a felicidade e escapar do sofrimento construindo as suas casas, trabalhando, produzindo o que eles precisam, tendo uma atividade econômica, mandando os filhos para a escola, cuidando da saúde, como seres humanos. Eles podem pensar que eles vão encontrar a felicidade e ultrapassar o sofrimento dominando tudo e então, obtendo o poder sob todos os âmbitos, sobre todas as coisas. Isso são os semi-deuses.
Agora, os deuses, têm uma natural capacidade de produzir os estados de felicidade na ausência da necessidade de aspectos condicionados ao redor. Então, essa condição é superior a condição dos semi-deuses que ainda dependem de configurações específicas que eles lutam, organizadamente, para obter. Para então, a partir da dependência que eles têm das aparências, eles encontrarem a felicidade. Já os deuses têm a capacidade de transformar as aparências, por uma habilidade de proximidade com a compreensão de como a mente sutil opera. Então, os deuses têm a capacidade de se colocar em estados de felicidade. Eles não precisam de condições externas específicas grosseiras para os estados de felicidade. Eles acessam de um modo direto. Então, eles naturalmente pairam acima do reino dos semi-deuses. Assim, o Buda descreve isso. Nós olhamos e vemos que está valendo!
Nos vários âmbitos em que nós estamos atuando, vinte e cinco ou vinte e seis séculos depois, é como se nada tivesse mudado. As aparências mudam um pouco, mas nada não muda de fato. Então, vamos encontrar naquele tempo os semi-deuses eram os reis. Eles mesmos não tinham a capacidade de se colocar na condição de felicidade por si mesmos. Então, eles não eram os deuses, eles eram semi-deuses. Aí, vocês veem as pessoas trabalhando, os seres humanos trabalhando, cultivando os campos, cuidando das famílias e os exércitos chegando, destruindo tudo e dominando; trocando as línguas; as famílias sendo cooptadas ou sendo destruídas. As cidades sendo dizimadas e o ambiente mental mudando totalmente. O número de vezes que exércitos varreram os reinos humanos é incontável. Simplesmente, incontável. Desde os tempos passados até os tempos presentes. Volta e meia, levanta-se um exército de semi-deuses e dizima alguma coisa. É muito interessante isso.
Agora, os Estados Unidos estão se retirando do Afeganistão. Afeganistão, uma região que já passou por várias invasões. Os gregos passaram por ali em direção à Índia. Os gregos se estabeleceram por lá. Essas histórias incríveis são muito interessantes. Muito depois, passaram os islâmicos e ficaram. Os budistas estiveram ali. Então, aquele povo aprendeu a sobreviver às invasões porque volta e meia tem alguma coisa por ali. Isso porque é uma região superimportante estrategicamente, pois ela conecta mundos. É uma região de passagem. Eles aprenderam a sobreviver. Eles sobreviveram também aos russos que tiveram lá, por dez anos. Sobreviveram aos americanos agora. Os americanos estão se retirando sem condições. Pior do que quando saíram do Vietnã. Simplesmente estão se levantando e indo embora. E o governo atual que é sustentado pela OTAN, pelos países ocidentais, não vai durar seis meses. Ele vai ser atacado pelos talibãs,que vão simplesmente dominar aquilo. Então, eles voltam ao poder. É muito interessante. Quem viu a invasão do Afeganistão pelas forças de múltiplas nações (Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Austrália) vai reconhecer isso. Então, esse é o ambiente dos semi-deuses – eles mudam a história dos locais, mudam tudo.
Os ambientes dos semi-deuses, são ambientes de guerras constantes. Os semi-deuses são descritos como militares ou como exércitos. Eles se juntam e vencem. Os seres humanos não têm poder para enfrentar isso; não têm como. Do mesmo modo, o reino dos animais não tem poder para sustentar o embate dos seres humanos. Esses reinos predam-se uns aos outros. Os seres dos infernos, por mais agressivos que pareçam, não têm poder, porque eles não são capazes de gerar méritos; eles não são capazes de gerar poder. Eles têm aflições e muitos sofrimentos. É isso, o que eles têm. Os seres famintos não têm poder. Eles estão completamente carentes. Comparados com o reino dos infernos e com o reino dos seres famintos, os animais vivem num reino de felicidade completa. No entanto, a visão deles é estreita. Os seres humanos, produzindo e andando, parecem que estão felizes também, no entanto, a visão deles é estreita. Os seis reinos têm visões estreitas. Assim, o Buda descreve os seis reinos.
Quando olhamos para o nosso mundo hoje, acho que deveríamos contemplar cuidadosamente os seis reinos. Por quê? Porque a contemplação dos seis reinos nos ajuda a compreender, em primeiro lugar, o aspecto sutil da realidade. Se conseguimos entender isso, conseguimos penetrar e ganhar um instrumento de contemplação das aparências. As aparências, ainda que pareçam grosseiras, elas dependem da base segundo a qual nós olhamos. Então, esse ambiente é um ambiente onde nós vamos fazer nossas práticas até atingir a liberação. Essa é a compreensão. Nós vamos avançar por dentro disso. Não há nenhuma visão externa que não dependa dessa base que nós estamos operando. Se nós não elucidarmos essa base, nós vamos ter problemas. Então, a compreensão dessa base é completamente crucial. Se não entendemos essa base, no mínimo, deveríamos entender que trocando de base as aparências grosseiras mudam. E isso nos introduz a própria noção da vacuidade, de um modo totalmente prático e totalmente claro. Se nós desenvolvemos essa clareza, essa visão sobre a vacuidade das aparências, como surgem nos vários reinos, isso nos ajuda a conversar com a ciência, por exemplo. Isso porque a nossa cultura, nesse momento, ainda está presa à visão hermética. Ela ainda está presa numa visão muito antiga, segundo a qual, as aparências são reais, são algo sólido, externo. Como Einstein dizia, eu posso até me enganar sobre o que estou vendo, mas o que estou vendo ... Existe algo ali atrás que é o que é. Já Niels Bohr, trazia a compreensão de que aquilo que nós olhamos é completamente inseparável das estruturas. Então, não há essa indexação a alguma coisa que existe por si mesmo do lado de fora. Aquilo que nós lidamos, que nós operamos na nossa mente, é sempre uma construção. Então, essa é uma compreensão essencialmente budista. Nós lidamos como a mente vê a mente.
Quando começamos a aprofundar o que acontece com os seis reinos, o que acontece com os seres dentro do mesmo lugar e vendo seis mundos diferentes? O que acontece? Algum deles está correto e os demais estão equivocados? Como é isso? Na perspectiva budista, os seis seres estão equivocados porque eles veem realidades como se fossem sólidas e externas; E, eles descrevem a sua própria realidade como a realidade verdadeira, excluindo as outras. Esse ponto só vai ser resolvido através da compreensão da vacuidade. Essa compreensão da vacuidade vai convergir em direção à visão da não-dualidade. Ou seja, todas as aparências são não duais com a própria mente. As aparências são a mente se manifestando. Esse processo não necessita um raciocínio. De um modo geral, quando nos referimos à mente, sempre pensamos que são pensamentos, mas para o budismo - e essa é outra grande contribuição do budismo para esses tempos -, a mente não é apenas pensamento. A mente é muito mais complexa do que apenas a expressão dos pensamentos. Então, os seis reinos podem nos ajudar a ser um ponto crucial para o desenvolvimento das contemplações sobre a natureza da realidade em várias direções. É muito útil.
Quando nós pensamos sobre meditar a vida, a essência do meditar a vida é, justamente, nós sermos capazes de contemplar as nossas experiências a partir desses aspectos. Claro que aqui nós temos ainda o retorno a essa pergunta: Como o Buda vê o que vê? Como ele chegou a essa visão dos seis reinos? Como é possível isso? Enquanto nós estamos dentro destas questões, todas essas perguntas são cruciais, porque elas vão abrindo avenidas de reflexão e de aprofundamento em várias direções. Acho que essa argumentação que eu trouxe até agora, nos ajuda a entender que a visão do Buda é útil nos tempos de hoje. Ainda que vinte e cinco, vinte e seis séculos tenham se passado, com certeza, a visão segue. Por quê? Porque o aspecto sutil da operação da mente segue igual. Então, podemos ver que o nosso mundo externo, as configurações grosseiras, mudaram e seguem mudando, mas o aspecto sutil nós vemos que é, essencialmente, o mesmo; ainda que possa mudar também e vai mudando. Os aspectos sutis vão mudando também, mas as configurações sutis se movem muito mais devagar. Então podemos reconhecer isso, perfeitamente, desde aquele tempo.
Quando nós olhamos o aspecto grosseiro e olhamos o aspecto sutil, logo nós nos tornamos capazes de adivinhar o outro nível do ensinamento que o Buda também traz que é o aspecto secreto. Então, por exemplo, o que seria o aspecto secreto? Para alguém no reino dos deuses, se a pessoa conseguir parar um instante e se ela seguir os ensinamentos de Amitaba... Amitaba é representado na posição meditativa. Se a pessoa conseguir parar um instante e olhar sua própria experiência como quem olha um objeto e não como quem vive a experiência, mas quem olha um objeto, surge um espaço entre a experiência e a mente que olha essa experiência. Então, nesse momento, a mente dos infernos deixa de operar e está livre das próprias experiências. As experiências se tornam um objeto dessa mente que, então, surge. Se essa mente realmente consegue contemplar as aparências de um modo livre e se a base dela, agora, é o espaço livre sem condicionantes, essa já é a própria mente do Buda, que vê as aparências como os seres veem, porém ela vê de uma base totalmente livre. Então, ela reconhece todas as aparências como construções. Essa mente pode passear pelos vários reinos sem se fixar. Ela vê os objetos dos vários reinos, mas não está fixada. Ela vê como uma manifestação sutil e grosseira da própria mente dos seres. Ela vê isso.
O aspecto secreto vai surgir como? Vai surgir assim: a mente grosseira dos infernos, que descreve as aparências horríveis, ela se vê descrevendo assim, mas podendo descrever de outro modo, de outro modo e de outro modo, como os outros reinos. Então, ela vê que as aparências dos infernos surgem em decorrência do aspecto sutil correspondente. [Aquilo surge no aspecto grosseiro, dependendo do aspecto sutil]. Se a mente estiver posicionada com os referenciais sutis do reino dos seres famintos, ela vê os seres famintos. E ela vê as regiões intermediárias, por exemplo. Ela adivinha, claramente, que os seres famintos podem ser levados pela sua aflição a achar que, causando danos aos outros, eles levam vantagem. Então, nesse momento, eles não são apenas seres famintos, eles são seres famintos aproximando-se dos infernos, porque eles começam a ter esse aspecto predatório sobre os outros. Então, essas são regiões intermediárias entre esses reinos. Nós vamos encontrar, também, os animais se aproximando da região dos seres famintos. Aí, nós vemos o aspecto sutil operando e produzindo aquelas experiências específicas. Nós vemos os aspectos sutis dos animais surgindo e produzindo a própria experiência deles. Nós vamos olhando cada um dos reinos surgindo e propiciando a própria experiência. E aí vem o aspecto secreto. Portanto, a mente de cada um dos reinos é uma mente que surge desde um espaço amplo onde ela não é nem reino dos infernos, nem reino humano, nem reino dos seres famintos, nem nenhum dos reinos. Ela é uma mente que pode criar os referenciais que surgem como a base e então se manifestar e ter aquelas experiências todas.
Então, o aspecto secreto é a natural liberdade, sem forma, sem nenhum aspecto que se possa designar. É uma base limpa de significados, mas é como uma terra muito fértil, em que muitos diferentes significados e referenciais podem surgir; mas eles não estão operando ali. Então, a característica essencial do aspecto secreto é a grande abertura que é usada como método de contemplação do próprio Buda. Quando o Buda chega nos locais, ele chega sempre com essa abertura. E ele vai descrever o aspecto sutil e vai descrever, então, o aspecto grosseiro que aparece na mente dos seres. O processo de liberação, de libertação dos seres se remete ao aspecto secreto. Não há a possibilidade de nós termos uma liberação no aspecto sutil. Isso, também, se torna uma forma do budismo dialogar com diferentes tradições religiosas ou dialogar com suas próprias crenças. Dialogar com as crenças que os praticantes vão desenvolvendo. E também dialogar com a ciência e com outras áreas do conhecimento. Por quê? Porque as várias formas de posicionamento da mente e de bases construídas, se referem ao aspecto sutil e elas vão produzindo visões de realidade. Essas visões de realidade não se sustentam. Elas existem por um tempo e são substituídas por outras. Então, nenhum aspecto construído é, senão, um surgimento a partir desse grande espaço livre. A consciência operando pelo grande espaço está livre dos aspectos particulares. Quando os aspectos particulares surgem, por exemplo, nós podemos estar numa tradição espiritual que nos convida a colocar a mente num lugar específico, que é um lugar de felicidade ampla. E nós treinamos e obtemos esse resultado. Isso, na visão do Buda, corresponde a algum dos reinos dos deuses, onde há uma felicidade auto-surgida através da própria habilidade da mente. Então, a mente produz um estado desse tipo. O Buda conduzia seus alunos a diferentes âmbitos do reino dos deuses para eles contemplarem aquilo. E eles tinham a experiência e eles contemplavam. Aí, o Buda os deslocava para a região, por exemplo, dos infernos correspondente ao reino dos deuses. Isso porque todos os reinos dos deuses têm os infernos correspondentes. Uma vez que nós temos felicidades sob condições, nós temos a sombra da perda daquilo e da transformação daquilo em condições inauspiciosas. O Buda conduzia os seres e os seres entendiam aquilo. Por quê? Como é que ele conduzia? Ele descrevia a base de operação da mente e os seres automaticamente começavam a operar daquele modo. Eles sentiam e tinham as sensações todas correspondentes. Então, esses são os reinos sutis. Nenhum reino sutil é algo sustentável. Nem mesmo o reino da não-forma. Ou seja, nós vamos substituindo o grande espaço livre por um lugar onde tem a ausência completa de qualquer coisa. E nós nos construímos, nós viramos uma identidade que sustenta uma ausência de experiência, rejeitando todas as aparências. Isso corresponde ao reino dos deuses da não-forma. Esse é um dos três mundos. Então, esse aspecto é o aspecto mais sutil dentro do próprio samsara. Dentro do mundo condicionado, do mundo criado, dentro das construções da mente. Mas mesmo essa construção não é sustentável. Então, surge o tempo onde o mundo retorna. É como se, por exemplo, vocês meditassem um longo tempo até o ponto em que o mundo perde totalmente o interesse. Aí, quando vocês têm essa confiança completa, vocês se levantam e saem. Quando vocês saem, porque as raízes cármicas não foram emancipadas, o contato cármico se faz novamente com as raízes cármicas. Quando esse contato se faz, a energia dentro do corpo e da mente flutua de modo completamente natural. Como isso não foi trabalhado, porque foi simplesmente suprimido por um estado particular de mente, todo esse significado volta. Quando esse significado volta, a pessoa olha para aquilo e diz: Que interessante! Como é isso? Nesse momento, ela retornou ao mundo. E aí começa a operação usual que pode levar a pessoa a vários reinos de sofrimento como qualquer outro. O tempo no reino da ausência de forma é um tempo de amortecimento. Não há uma possibilidade de estabilizar de forma definitiva alguma coisa. Então, é inevitável: tem um momento em que o retorno à forma se dá. Aí nós retornamos ao reino do desejo e do apego, se não trabalhamos isso. Nós vamos retomar essas dificuldades no ponto onde elas ficaram.
Aqui é superimportante entender que nenhum estado particular construído resolve. Isso são comentários que descrevem, que melhoram a compreensão do aspecto secreto; ou seja, a mente pode produzir muitas configurações grosseiras que dependem das configurações sutis, que por sua vez, surgem desse aspecto livre. Na visão da mente do Buda, já a partir do Satipatthana Sutta, nós estamos trabalhando com a grande abertura, nós estamos diante dessa grande abertura. Nós procuramos olhar as várias coisas desde essa grande abertura. O caminho da liberação é o caminho de nós tomarmos aquilo que nos perturba centralmente; aquilo que brota dentro de nós e move a nossa energia e nos agita, aquilo que surge dentro dos sonhos. Nós tomarmos aquilo como base para contemplar da forma como Satipatthana faz. Se nós nos fixarmos às aparências, nós perdemos a prática. Se rejeitarmos as aparências, nós perdemos a prática. Então, o Buda vai descrever a contemplação do corpo, da mente, dos estados mentais, das emoções e das energias. Nós vamos contemplar tudo isso contemplando a base de operação da mente. Nós vamos olhando todo esse processo.
O que o Buda traz para nós? O Buda traz o treinamento da lucidez. Esse é o caminho do Buda. Aqui, nós olhamos, especialmente, os ensinamentos de Dudjom Lingpa, trazidos por Dudjom Rinpoche. A base do Roteiro dos Vinte e Um Itens são os ensinamentos sobre a Iluminação da Sabedoria Primordial. Esse é o ponto central. Esse é o trajeto. Então, nós estamos indo em direção à lucidez. Por quê? Porque temos o aspecto grosseiro, o aspecto sutil e o aspecto secreto. O aspecto mais profundo do aspecto secreto não é a ausência, mas é a lucidez correspondente. Os ensinamentos de Guru Rinpoche, de Prahevajra e do próprio Buda, apontam diretamente para a capacidade lúcida que brota dentro dessa abertura. Quando nós começamos o treinamento dos bhikkhus através do Satipatthana Sutta, nós estamos inspirando e expirando e ganhando lucidez com relação às experiências, frente às disposições de corpo, às disposições de mente, às emoções. Então, nós ganhamos a capacidade de contemplar esses aspectos. O Buda, ali, não está descrevendo como brota dentro da mente da própria pessoa a lucidez correspondente. Ele não está descrevendo isso. Isso não é o foco naquele momento. Mas isso é o que ele nos conduz diretamente. Isso é a sabedoria primordial. Então, quando nós estamos parados contemplando. Nós estamos seguindo esse caminho em direção a essa lucidez interna. Essa lucidez é o final do caminho da Iluminação da Sabedoria Primordial. Ela corresponde a rigpa, corresponde a ultrapassar avydia, a ignorância. Corresponde a não dualidade natural, incessantemente presente. Então, nós vamos percebendo como a mente opera. A mente primordial gera as bases condicionadas. Essas bases condicionadas são geradas apenas pela luminosidade; elas não são raciocínios; não são algo com esforço. Elas são a apresentação luminosa desses referenciais. Temos [Existe] a mente primordial e temos [existe] a mente fundamental. Então, essa mente fundamental, por sua vez, vai produzir o referencial para o surgimento das aparências. As aparências surgem junto com os sentidos físicos e com a mente. Elas [as aparências] aparecem como objetos. Elas aparecem de forma completamente natural. Como nós estamos olhando aqui, assim. Elas aparecem assim. Elas têm uma naturalidade completa. Essa naturalidade faz com que a própria aparência física das coisas se torne visível diante de nós, sem que tenhamos uma sensação de que estejamos fazendo alguma coisa. Como nessa imagem [o Lama mostra a figura do cubo, que está na nossa sadana, na página 34] nós olhamos e vemos seis triângulos. Vemos o hexágono como seis triângulos. Nós não fazemos nenhum esforço para reconhecer os seis triângulos. Do mesmo modo, nós podemos ver um cubo ou dois cubos. Quando vemos o cubo, não parece que tem um esforço. O cubo parece surgir naturalmente. Então, essa naturalidade dá uma sensação de realidade para aquilo que nós estamos experimentando através dos sentidos físicos; mas e quando percebemos que os objetos mudam? Nós estávamos olhando seis triângulos e agora nós vemos um cubo. Quando percebemos isso, nos damos conta de que alguma coisa mudou. O que foi essa coisa que mudou? Mudou a base da mente. Mudou a configuração da mente fundamental e assim, mudou o aspecto que vejo como grosseiro, como externo. E essa passagem da mente fundamental, de uma configuração para outra, ela se valeu do quê? Ela se vale da liberdade natural da mente que existe, que se manifesta como a mente primordial, livre dos condicionantes. Ela é livre dos condicionantes, portanto ela pode oferecer condicionantes de um tipo ou de outro. Ela não está presa. Ela pode mudar. Então a mente primordial tem essa capacidade. E não só isso. A mente primordial tem a capacidade de ver isso que estou descrevendo. Ela vê essa operação toda. Então, a lucidez corresponde a clareza que a mente primordial tem com respeito aos aspectos fundamentais e aos aspectos grosseiros.
Isso nos permite entender que a clareza, a lucidez, a libertação da confusão e das aparências não vem pela nossa fixação a algum estado particular de mente, nem mesmo a um estado vazio, um estado com ausência de conteúdo. Toda fixação pressupõe uma oposição. A fixação ao produzir oposição, ela produz, imediatamente, o reino dos infernos. Por quê? Porque aquilo que nós estamos rejeitando pode surgir de novo e de novo, e de novo. Então, nós temos a raiva e a exclusão. Isso pode produzir também, incessantemente, a aspiração por repetir a experiência profunda. Isso é upadana. Isso é carência. E pode produzir a sensação da habilidade em encontrar os resultados e aquilo que aspiramos. E isso é a ignorância. Nós estamos fixados a aspectos específicos e nós geramos, então, habilidades que indexamos como se fossem a própria identidade. Isso gera os três animais, que são os três venenos da mente. Isso gera, também, os reinos inferiores. Gera os seis reinos, na forma da ignorância. Gera a carência e gera a raiva. A fixação a qualquer estado mental produz essas dificuldades.
Nós vamos contemplando e vamos percebendo esse processo. E o que é a contemplação? A contemplação é olhar desde um lugar livre. Quando nós olhamos, surge isso que o Buda vai nos a ajudar a exercitar. Quando nós inspiramos e expiramos, contemplamos o corpo. Quando nós inspiramos, nós sabemos se inspiramos longo ou se inspiramos curto. O Buda está nos convidando a contemplar. O Buda está nos convidando a ver. Ele está treinando o aspecto interno que vê. Ele está contemplando, ele está dando origem direto ao aspecto da lucidez interna. Então, esse aspecto da lucidez interna é o caminho do Buda. Isso é o que ele descreve. Isso é o processo que ele traz. Isso é o que o Buda traz para nós. A libertação está ligada a clarificação desse processo. A libertação não é, por exemplo, o estreitamento em algum estado particular.
Então, agora eu vou deixar aberto para alguma pergunta.
Perguntas e Respostas:
Pergunta 1: <2:32:27 inaudível> Seria o reino dos desejos?
Resposta: O reino da não forma tem uma construção. Essa construção é a rejeição à forma. Então, num certo momento, há a percepção de que a forma é alguma coisa que não é possível escapar, ou seja, que a forma fica esperando e ele não consegue ultrapassar a forma. Isso é o sofrimento correspondente, porque tem a frustração correspondente. E quando entrar no reino da forma pode aparecer muitas configurações; mas pode ser que ele venha para o reino da forma e não venha para o reino do desejo, que é um pouco diferente.
Pergunta 2: Se eu estiver ouvindo esses ensinamentos pela primeira vez e eu estiver interessado a começar a praticar a lucidez como o Lama descreveu. Como é que poderia <2:34:04 inaudível>
Resposta: <2:34:04 inaudível> direto; mas depende. Por exemplo, se a pessoa vai seguir pelo roteiro dos vinte e um itens, ela vai treinar habilidades. No Satipatthana, ela pode surgir já mais adiante. Então, pode ser que a pessoa não consiga fazer isso. Então, é necessário que a pessoa desenvolva motivação [O 1o dos 21 itens]; que ela olhe a vida de um certo jeito; que ela consiga pacificar a relação com as outras pessoas ao seu redor, de tal maneira que as outras pessoas não interfiram no processo [retiro] dela. A pessoa precisaria praticar Methabhavana [O 4o dos 21 itens], de tal modo que, no retiro onde ela está, ela tenha a sensação de que ela está produzindo benefícios para os outros seres. E, especialmente, ela consiga pacificar as perturbações que não vem no nível grosseiro, mas vem no nível sutil, como posições de mente que vão invadir se a pessoa não praticar Methabavana. Então, ela precisa fazer isso. Por exemplo, para os seres ameaçadores, a pessoa pratica Methabavana até o ponto que ela supera a rejeição. Para os seres atraentes, a pessoa pratica Methabavana até o ponto que ela supera a atração. Ela reduz isso de tal maneira que, ao focar aquilo que é atraente ou aquilo que é repulsivo, ela consegue ter lucidez. Porque se aquilo que é atraente ou repulsivo é muito intenso, a pessoa, simplesmente, é arrastada.
Pergunta 3: O que corresponde ao reino dos deuses nesse mundo? Já ouvi o Lama comentando do sistema financeiro pairando sobre reis e impérios.
Resposta: Olhando de um modo caricato, o reino dos deuses, dentro da experiência atual, corresponderia às pessoas que estão acima da lei, que estão acima de qualquer aflição material, que não estão sob uma condição de fragilidade de segurança e que elas definem o destino dos outros pela sua própria mente. Seriam as pessoas que pairam acima dos exércitos. Quando tem as grandes disputas, elas não se envolvem nas grandes disputas, porque se um ganha ou outro ganha, elas já ganharam. Porque todos os que disputam são súditos delas. É um pouco assim.
Pergunta 4: E dentro disso como distinguimos os deuses do desejo, da forma e da não-forma?
Resposta: O que que acontece no reino do desejo? No reino do desejo, os seres têm a felicidade, mas a felicidade está na dependência de aparências. Só que eles são capazes de produzir as aparências. Então, eles produzem as aparências que estão associadas ao aspecto grosseiro. Os deuses da forma, não necessariamente, operam com desejo, mas eles têm uma clareza sobre como as coisas deveriam ser. É quando, por exemplo, vamos supor que nós estamos arrumando as coisas em casa. Colocamos isso aqui assim, aquilo assim, não é que eu tenho um desejo e apego por isso, mas aquilo tem que estar, mais ou menos, de um certo jeito. Então, isso é um pequeno reflexo do que seria o reino da forma. Então, por exemplo, numa condição sutil, esses seres não estão na dependência das aparências, mas eles constroem as aparências com a própria mente e quando eles constroem, eles se referenciam a elas e arrumam aquilo. Eles não estão nessa dependência do aspecto grosseiro. Eles não têm uma dependência sensorial. É um mundo mental. Eu diria assim: um mundo próximo ao dos filósofos e matemáticos. Eu acho que, especialmente, os matemáticos, que olham o aspecto abstrato. E os deuses da não-forma são capazes de criticar o reino do desejo e o reino da forma. E quando eles criticam o reino da forma e o reino do desejo, eles colocam isso como totalmente inútil e [por isso] eles se retiram para a não-forma. Eles têm uma exclusão. Os seres que estão, por exemplo, no reino da forma, eles têm uma exclusão pelo reino dos desejos. É como, por exemplo, um matemático olhando as emoções das pessoas em meio ao mundo [pensa]: mas que coisa sem substância, sem matemática! É muito estranho as pessoas com emoções. Primeiro retiro totalmente as emoções e agora sim. Agora eu consigo olhar e ver esse mundo. Esse mundo, às vezes, é o mundo acadêmico que você retira a emoção e penetra naquilo, porque aquele saber não pode ser perturbado por nenhum tipo de emoção. Isso é o reino da forma. Agora, o reino da não-forma é assim: Eu cansei, cansei de ter muitas e muitas, e diferentes formas e de buscar formas finais. Eu cansei disso. Agora entendi: é a não-forma. Só que essa não-forma é também um aspecto. Aí, o Buda vem correndo por fora [O Lama descreve, com gestos e som, os passos de um cavalo correndo ou de uma pessoa correndo]. O Buda vem por fora, ou seja, ele vem iluminando o desejo e o apego, ilumina a forma e ilumina a não-forma. Ele está além das construções. O Buda é o cavalo ou é o corredor que traz o aspecto secreto. Ele não é nem desejo e apego, nem forma e nem não-forma. Ele é o aspecto secreto que está inerente em todas essas construções. Isso é o que o Buda traz. Se nós chamarmos isso de vacuidade, está bem. Mas aquilo está mais ou menos, porque a vacuidade pode parecer que se opõe a aparência, mas ela não se opõe a aparência. Ela elucida a aparência. Agora se eu disser que a vacuidade e luminosidade, aquilo fica mais ou menos, assim, também. Então é importante entender esse espaço. Se disser espaço também fica mais ou menos. Mas esse espaço é visto como a liberdade criativa de onde brotam os vários aspectos que são escolhas e as escolhas estão sempre ligadas a Roda da Vida, elas estão ligadas aos três venenos, inevitavelmente. Os vários reinos estão ligados a isso. O Buda elucida essa questão. E isso é assim, está além do tempo, portanto vinte e cinco, vinte e seis séculos. Isso nem existe.
Pergunta 5: Lama, lembro de uma orientação do mestre Dogen, onde orienta para abandonarmos a <2:42:50 inaudível>, o sentimento e a consciência pois além deles há algo misteriosamente radiante, atemporal e firme; me ajuda a entender “Onde” repousar no silêncio e na vida cotidiana; Porque entendi que se me fixar a algum estado iniciarei um novo movimento dos Doze Elos.
Resposta: Mas ai, se você pedir onde?! (risos). Qual seria o estado que não é um estado? Então, é importante entender essa liberdade. Entender cada manifestação como esse estado livre, isso é, que samsara e nirvana são o mesmo. Cada manifestação é o exercício dessa liberdade. E as manifestações não estreitam essa liberdade. Quando a manifestação surge, a liberdade segue. Eu acho que esse é o ponto mais importante. É entender que quando surgem as aparências, as aparências não estreitam a grande abertura, Zantal, No Dzogchen vamos chamar isso de zantal, essa grande abertura. Mesmo que estejamos num lugar estreito, esse lugar estreito, quando olharmos com clareza, vemos que toda liberdade existe. Ela está ali. Então, essa seria a prática. Se formos procurar um estado que garanta isso, esse estado rejeitaria outras coisas. Então, precisamos entender que a liberdade se dá no meio das formas ou na ausência das formas. Então, esse é o nosso treinamento. O Buda nos conduz a um treinamento no meio das formas, dentro do próprio Satipatthana, Anapanasati e no Surangama também.
#02 | Meditando a Vida | 01/05/21 Sábado Tarde
https://www.youtube.com/watch?v=M7NqLEc8DgY&ab_channel=LamaPadmaSamten
Transcrição: <Maurizete Barroso Winter >
Revisão: <Maurizete Barroso Winter e Samira Lima da Costa>
Introdução
Boa tarde! Nós estamos seguindo essa linha assim, dos ensinamentos do Buda, que não tinha ciência, não tinha psicologia, não tinha astronáutica, não tinha viagens a Marte, nem a lua, não tinha engenharia genética. Será que esses ensinamentos não estão ultrapassados, assim? Então, nós estamos olhando isso.
Não dualidade
Aqui, um ponto completamente crucial é nós entendermos que a visão budista vem sempre dentro da inseparatividade ou não dualidade – esse é o aspecto, é o núcleo de todo o pensamento budista. Naturalmente esse pensamento budista vai se apresentar de muitas diferentes formas, quando ele estiver dialogando com diferentes pessoas, diferentes culturas, diferentes momentos. Porque as pessoas vão compreendendo esse aspecto da não dualidade, que é um aspecto nuclear e profundo, alguma coisa tem que ser dito para elas. Então, quando os ensinamentos, ou as reflexões, ou os diálogos surgem, eles, por vezes, ficam um pouco difíceis de convergir para um único ponto, porque os Mestres não vão conseguir explicar direito na linguagem comum do mundo esse aspecto das outras visões que surgem dentro do mundo, desde a perspectiva da não dualidade.
Então, essa perspectiva da não dualidade é uma perspectiva clara, na qual não há uma separação entre o que é visto e a mente que vê. Então, aquilo que é visto é uma manifestação direta da própria mente. Esse é um aspecto radical, ele é muito importante e precisaria ser longamente trabalhado para que ele se torne um elemento central na forma como as pessoas raciocinam. Isso não sendo compreendido direito, surgem várias explicações que são aspectos que podem ser vistos dentro do aspecto comum, dentro da visão comum de realidade. Por exemplo, vai surgir a noção da impermanência.
Impermanência
O aspecto mais profundo no budismo não é a impermanência. A impermanência é uma descrição da experiência dos seres quando estão dentro da visão limitada. Aí eles encontram a impermanência porque os Budas vão apontar justamente aquilo que não flutua, aquilo que está além do tempo, incessantemente presente sem nenhum controle, sem a necessidade de desenvolver algum controle. É paradoxal, porque eles estão apontando alguma coisa que não flutua e não se move, mas quando eles falam, eles falam da impermanência. Como é isso?
Por quê? Porque os seres não veem esse aspecto que na verdade é o único que não se move. Então, eles veem os aspectos que se movem, mas, quando os seres dentro do mundo olham para aquilo que é a fonte de apego deles, não se dão conta de que aquilo vai se mover e vão ficar sem aquilo. Eles não se dão conta. Por isso é que se fala em impermanência, por exemplo. A Impermanência é a manifestação do espaço dentro da perspectiva limitada, porque na perspectiva limitada nós construimos algo parcial, que pode ser... Quando é muito sutil, é um estado mental. Quando é grosseiro, nós operamos com coisas, objetos.
Então, nós aspiramos a permanência dos objetos. Nós construímos em pedra. Acho isso muito interessante consrtuirmos em pedra, porque, por exemplo, a pedra é o magma que esfriou. O cosmos é mais volátil do que o magma, o magma já é alguma coisa muito mais densa, mas nada disso tem qualquer segurança diante do movimento do cosmos. As pedras, para as vidas humanas, elas são alguma coisa de longa duração, talvez eternas. Mas qualquer pessoa que for analisar, dar um corte na pedra e começar a examinar, vai ver partículas de todos os tipos ali. Aquela pedra é uma junção de coisas que não tinham a mesma origem e se juntaram. As pedras, por exemplo, que chegam dos meteoros e meteoritos, quando eles abrem, cortam aquilo - ou as pedras lunares, como as pedras antigas daqui do próprio planeta - vão encontrar muitas diferentes partículas ali dentro. Aquilo é um aglomerado. As rochas são móveis, elas são assim, por um momento fugaz surge o resfriamento do magma e surgem as rochas. E nós olhamos aquilo como o aspecto último da permanência. Nós pisamos sobre o solo como a solidez da terra completamente frágil, totalmente frágil. Não só totalmente frágil, mas que já passou por muitas coisas realmente extraordinárias, destrutivas, que manifestavam essa fragilidade, que é a impermanência natural.
O planeta como um todo é frágil, a vida como um todo é frágil. Mesmo na perspectiva, quando nós estudamos as estrelas e os ciclos das estrelas, nós sabemos que nós nascemos juntos com o sol, a terra nasce junto com o sol e ela vai se extinguir junto com o sol e o sol tem um tempo de duração, ele se esgota. Esse processo é extraordinário, ainda mais que todas as galáxias têm um núcleo central que é um buraco negro que devora a galáxia inteira lentamente. Elas são espirais porque elas são ralos girando em direção… Elas têm um ralo no meio, girando como a água gira num ralo em direção a esse buraco que absorve. E não há como conter, porque é do mesmo modo que a terra foi construída pela agregação de matéria, justo porque ela foi atraindo. E quanto mais pesada ela é, mais ela atrai as outras partículas que estavam em volta. E ela foi limpando, os outros planetas foram limpando a nuvem de matéria que circundava o sol na sua origem. Os planetas surgem como pontos que atraem a matéria gravitacionalmente e quanto mais eles agregam matéria mais eles atraem a matéria. É natural que nesse momento tenha muito menos matéria livre dentro do sistema solar do que havia na origem.
Esse é o mesmo processo que faz com que os buracos negros atraiam completamente toda a matéria que circunda e quando nós olhamos as galáxias as vemos espiralando em torno do buraco negro central. Ou seja, nós pisamos no chão, tum tum, essa é a solidez, aham. É assim. Estamos em um ambiente que em nossa escala de vida, isso é longo, mas na escala do universo isso tudo é muito curto. Estamos nessa circunstância, assim, extraordinária. As próprias galáxias, elas se interpenetram e inter devoram. Então, a impermanência é completa nesse âmbito; e as forças nesse âmbito, nenhum ser biológico pode pretender qualquer coisa. Nem os átomos, nem os núcleos dos átomos. Aquilo tudo está, nesse âmbito, os processos se dão ao nível nuclear. Eles não se dão a nível químico nem a nível atômico. Muito menos no nível dos radicais químicos ou das combinações das substâncias químicas e muito menos ainda no âmbito das células. Isso é um padrão de energia em outro nível, completamente diferente. São samsaras de outra ordem. Estamos imersos na impermanência, pessoal, completamente, assim. Não tem nenhum nível de construção do samsara que não tenha a impermanência como base. Nós estamos efetivamente no meio disso e esse é o aspecto grosseiro.
No aspecto sutil, os mundos sutis estão submetidos à impermanência. É muito fácil perceber porque os estados mentais, seja de qualquer ser que se apresentar, são mutáveis. Todos os estados mentais são mutáveis. Nada está parado. Tudo se move constantemente.
Já o aspecto secreto é o aspecto constante. O aspecto secreto é aquilo que é constante, ou seja, a liberdade natural. Quando nós falamos de impermanência, nós estamos falando da impermanência com respeito a um padrão. Nós estamos em uma construção e aí nós olhamos para essa construção para ver se essa construção é móvel ou ela pode se pensar como algo estável e nós percebemos que a lei fundamental com respeito às construções é que elas se movem porque elas manifestam o aspecto fixo. O aspecto fixo do budismo é a abertura, curiosamente, ou seja, poderíamos dizer, a lei universal é a impermanência, mas não é impermanência. O aspecto universal do budismo é o fato de que qualquer configuração tem um espaço infinito de produzir outra e produzir outra. Então, as configurações são construções, mas aquilo que constrói está incessantemente livre para construir de novo e de novo.
Originação dependente
A visão budista é a visão que nós poderíamos descrever assim, como a mente universal. É aquela que é livre – ela constrói, mas ela segue livre para construir. Não importa o que tenha construído, ela pode construir mais e pode construir mais. Ela pode construir livre ou ela pode construir a partir do que foi construído. Esse é um ponto interessante. Isso aqui vai produzir a complexidade porque nós podemos construir de forma livre e nós construímos a partir daquilo que já é existente. Mesmo quando nós vamos construir um prédio, por exemplo, nós vamos construir a partir do que já é existente, ou seja, nós vamos utilizar tijolos que já existem. Então, nós temos configurações – sabemos quais são as aberturas que vamos utilizar, qual é o tipo de telha que vamos utilizar. Quando nós raciocinamos, nós raciocinamos assim. Isso é uma construção por dentro de referenciais previamente existentes e também nós temos expectativas. Nós precisamos definir coisas. Quando vamos construir, pensamos (como estamos pensando no Centro de Retiro): quantas pessoas viriam para isso? O que vai acontecer no futuro? Eu preciso criar alguns referenciais, e esses referenciais não são verdadeiros, eles são criados.
A partir dos referenciais criados se dá a origem daquilo. Quando eu digo a partir dos referenciais criados, eu diria: na dependência de como foram criados, quais são os referenciais? E então surgem as aparências. Esse é o processo condicionado. Dentro do mundo condicionado nós vamos construindo camadas e essas camadas servem de referência para outras construções, e elas se tornam referências para construções subsequentes. Isso é Originação Dependente. Para compreender isso nós precisamos compreender que os referenciais que utilizamos são construídos, e aquilo que construímos a partir dos referenciais também é manifestação da nossa própria mente.
Nós encontramos os outros seres interagindo com aquilo que construimos, no sentido grosseiro. Aqui no Bacupari nós vemos muito assim, os pássaros procurando o menor espaço para poder construir suas casas. Eles não tentam entender o que nós estamos pensando. Eles tratam de construir na dependência do que está presente; eles constroem suas casas, constroem suas soluções. As abelhas procuram a menor fresta e tratam de fazer as suas vidas e assim nós vamos encontrando os seres construindo as suas soluções sempre através da origem dependente – eles criam na dependência.
Todos os seres têm natureza búdica. Todos os seres são capazes de olhar para alguma coisa e converter aquilo para o seu próprio mundo. Isso é algo super profundo, como que nós olhamos para as coisas e construímos aquilo como uma expressão dos nossos próprios referenciais, do nosso mundo interno. Nesse sentido o universo inteiro é consciente. Aí vem essa visão extraordinária do Buda, que é uma visão que eu não acho que é muito fácil de compreender. Também não acho difícil, mas ela se afasta da visão convencional que nós operamos, que é muito diferente da visão que nós operamos. Daí nós olhamos os seres humanos, eles têm uma inteligência relacional. Sabemos perfeitamente, por exemplo, aqui na nossa sala, quando precisamos limpar. Isso não significa que precisa limpar, mas que sabemos quando precisa limpar, sabemos que a porta precisa consertar e sabemos uma série de coisas, e isso é perfeitamente operacional. Se a porta range, sabemos que se colocar um pouquinho de óleo aquilo se resolve, e seguimos andando. Tem um tipo de inteligência que é desse modo. É uma inteligência causal. Ela opera desse modo.
Tem um outro tipo de inteligência que é mais difícil de localizar, que é a inteligência através da qual nós damos outro sentido às coisas. E tem uma inteligência natural, que é sustentar os sentidos ordinários que já foram atribuídos às coisas, como por exemplo, nós andamos por dentro da sala e podemos pensar o que poderíamos fazer, mas não questionamos o fato de que aqui é uma sala de meditação. Mas mesmo que não questionemos, tem uma operação mental de sustentação e construção desse lugar como a sala de meditação. Então, nós olhamos para essa sala com esse olhar, mas esse olhar não é óbvio, ele é uma construção. Nós precisaríamos entender que tem um aspecto luminoso de realidade, nisso. Nós construímos o lugar com a mente. Se formos nesse espaço onde construímos isso como uma sala de meditação, e nós resolvermos olhar para isso e perguntar: “por que eu construo isso como sala de meditação? Não seria melhor isso ou aquilo?” Então, repentinamente nós vemos que temos essa liberdade. Nós chegamos naquele lugar e agora repentinamente nós podemos redefinir isso. Mas quando nós estamos caminhando aqui por dentro, nós não achamos que seria possível redefinir nada. E não pensamos que estamos construindo, enquanto pensamos em como limpar, como arrumar, como melhorar. E quando nós olhamos assim, não vemos que a sala está construída, que ela se tornou algo fixo e que nós mantemos essa construção como uma base na nossa mente. Nós não entendemos isso. O fato de nós tomarmos referenciais desse tipo, onde nós não abrimos o referencial e operamos a partir do referencial sempre, é a essência de avidya – estreitamento da visão. A visão se estreita. A dor humana, ela vem disso. Ela vem do estreitamento da visão.
Natureza búdica
Se nós mantivermos a visão ampla diante dos referenciais todos, significa que nós estamos no âmbito da liberdade ilimitada. Esse é o olhar do Prajnaparamita. Esse é o espaço, é a abertura da mente. Nós não estamos operando pela construção luminosa de referenciais que servem de base para outras construções e etc. Aí nós estamos fora disso. Vamos poder operar dentro disso, mas não estamos fixados nisso. Isso é a mente do Buda, mas as nossas mentes não. As nossas mentes precisam da segurança da terra. Nós temos um conjunto de elementos que procuramos não mover, sempre. E as construções das nossas vidas vêm a partir desses elementos. Enquanto as nossas vidas decorrem, nós vamos aprendendo que certas áreas que deixamos paradas por muito tempo, enfim, aquilo também se move, mas não questionamos o que está por baixo daquilo. Super difícil – não questionamos o que está por baixo do que está por baixo, nós não vemos. Isso é um poço de experiência cíclica muito profunda. Especialmente, não temos métodos. Não vemos a construção que é feita na base. Não vemos a base como algo que está sendo construído e sustentado incessantemente.
Então, como a natureza búdica pode ser reconhecida, justo por isso? Como? A natureza búdica, ela constrói as realidades porque as realidades são sem base, ela constrói luminosamente e sustenta. Então, diferentes seres olham para as mesmas coisas, constroem de um certo jeito e sustentam; eles construíram sem base e a sustentam. Acho isso completamente maravilhoso. Por exemplo, o ninho de beija-flor na ponta de uma folha de capim elefante é alguma coisa completamente búdica - é um conezinho aproveitando a ponta do capim elefante que cai; ele aproveita a ponta e faz um cone e o vento faz assim com o ninho o tempo todo. Ali está a mãe beija-flor chocando os ovinhos, que afinal, ela é magrinha. Quando chove ela põe o bico para cima e abre as penas. Ela construiu com o bico um guarda-chuva, assim ela tapa o ninho. E aí não tem problema. Se aquilo sacode, aquilo não tem problema. Os beija-flores sacodem. Aquilo é a impermanência da impermanência da impermanência. É a fragilidade, é a poesia da fragilidade.
Enquanto nós vemos isso, nós vemos a natureza luminosa da mente sendo capaz de tomar a folha de um capim elefante ou de uma cana de açúcar e transformar aquilo numa coisa super improvável, que é um ninho para chocar ovos – tem uma luminosidade da mente. Quando a mãe beija-flor sai, ela tem apego àquela ponta do capim elefante. Ela volta chispando e senta ali de novo. Quando os filhos eclodem ela corre e depois ela vai alimentar os filhos na ponta do capim elefante. É assim! Aquele lugar, ele passa a existir. Aquele lugar é a base de segurança daqueles bebês beija-flores que vão eclodir dali. Aquilo é o local de segurança. Se o bebê beija-flor se sente inseguro, ele corre para a ponta da folha. Aquilo é a terra deles, pessoal. É isso!
Esse aspecto da terra eu acho muito interessante. É óbvio que essa terra é a mente que constrói, ou seja, a partir daquele lugar nós vamos construindo as realidades. Também acho interessante a pessoa andar de avião e tocar o chão do avião a dez mil metros. Ela toca o chão do avião: “aqui é um lugar seguro. Essa é a minha terra”. As asas estão assim. Se vocês verem acidentes que ocorreram por alterações atmosféricas é muito comum, causam eventualmente turbulências muito fortes. Enfim, aquela é a terra, e quando nós caminhamos dentro do avião, em voo, nós caminhamos como se estivéssemos caminhando no chão. Nós construímos aquilo como estável tanto que nós somos capazes de nos mover como se estivéssemos seguros. Aí as crianças correm no corredor. É sempre assim, é simples, é seguro. Não tem problema. Nós construímos a estabilidade, nós construímos essa estabilidade. É como o planeta. Nós estamos nos movimentando a uma velocidade gigantesca em volta do sol e o sistema solar todo se colocando dentro da galáxia. Todo mundo parado aqui, calmo, tranquilo. Não tem nada para acontecer.
Então, o aspecto terra é o fato de que nós temos uma base a partir da qual nós construímos a nossa ação. Nós temos uma base comum aqui que todos os seres olham e tomam por segura, e isso faz com que eles construam as suas realidades a partir desse aspecto. Mas é muito importante que entendamos que essa segurança é o surgimento luminoso da nossa própria mente. A nossa mente vê a segurança. Vamos pensar no chão do avião, a nossa mente vê a segurança ali; ou no chão do navio. A nossa mente vê a segurança, a estabilidade. Se nós analisamos, vemos que não tem estabilidade. Mas vemos estabilidade e vivemos a partir daquilo. Então, a pessoa dentro do avião é capaz de dormir; ela relaxa, dorme. O avião está lá, a novecentos quilômetros por hora, dez mil metros, e a pessoa tranquila. Ela constrói luminosamente essa segurança. Essa construção é uma construção que não é um raciocínio. Se a pessoa começar a pensar muito, ela se intranquiliza porque ela não pensa, mas ela vê isso. Isso é ação da mente. Isso é ação luminosa da mente.
Então, temos uma ação que é o foco, e nós temos uma ação luminosa que define a base. Define a terra a partir da qual o foco vai operar. Só que esse aspecto, ele praticamente não é considerado. Ele não é reconhecido como tal. Nós não vemos isso, não entendemos bem essa ação da mente, mas nós percebemos que os seres todos são capazes disso. Eles são capazes de manifestar diretamente a liberdade natural da mente que surge como um conjunto de elementos que são considerados estáveis e fixos para a construção que a pessoa venha a fazer com o foco. A pessoa tem o foco, ela tem a causalidade que ela constrói. Aqui nós precisaríamos entender isso - essa ação é ação da mente búdica. Ela constrói realidades. Todos os elementos que apontarmos e descrevermos, seja qual for a forma pela qual estivermos descrevendo, nós estamos sempre nos referindo a uma base, a um conjunto de pressupostos, conjunto de realidades que serve como base para isso. E essa base, ela é construída. Na medida que ela é uma base construída, de tanto em tanto é desconstruída. Ela muda e temos percepções diferentes. Como por exemplo, quando olhamos a história da ciência, vemos as realidades do mundo. Elas foram vistas de outros modos, em outras épocas, e agora vemos desse modo; provavelmente vamos ver de outros modos no futuro e isso vai constantemente mudando. Acho especialmente interessante essas mudanças, assim, quando tem essas crises econômicas: aquilo é repentino, de repente explode a bolsa, explode a bolha econômica e aquilo tudo afunda e o dólar sobe e desce e as ações afundam. É uma coisa desse tipo.
Então, quando deu creck da bolsa, acho que faz agora um pouco mais de dez anos, nós tivemos isso também. Fico olhando assim. Tem as pessoas, antes elas ficam fazendo análises do que vai acontecer, como é que vai, como é que não é. Pura manifestação luminosa da mente. Aí no dia seguinte, na semana seguinte aquilo tudo afundou, assim! E aí as pessoas explicam tudo, explicam tudo como se elas já soubessem daquilo há cinco anos, há dez anos. Elas encontram todos os referenciais e mostram como aquilo era totalmente claro quando aconteceu, mas ninguém tinha dito antes. Esse é um ponto interessante. A base inteira, ela se quebra e nós olhamos. Agora estamos vivendo um tempo mais interessante ainda, porque não podemos substituir a base anterior por nenhuma outra, nesse momento. Estamos agora descortinando a eventualidade de uma outra base. Por quê? Porque quando veio a COVID nós levamos alguns meses para nos dar conta do tamanho daquilo e nós não tínhamos ideia do que aconteceria na sequência. Nesse momento tem muitas diferentes visões sobre os rumos que isso pode ter e qualquer visão de solução, no sentido de nós nos aproximarmos para situações anteriores, pressupõe que ela não tenha uma piora acentuada, que o bicho se comporte e, enfim, tome juízo, que as variantes variem numa direção favorável. É assim. E isso, não tem segurança nenhuma quanto a isso.
Então, nós não estamos nem conseguindo delimitar direito os fatores. Nós não conseguimos nem dizer que os fatores que atuam nesse problema são tais. Por quê? Porque toda semana ou a cada dia tem uma novidade. Tem alguma coisa acontecendo que altera a forma de raciocinar. Então, nós estamos com um problema na base a partir da qual nós construímos as realidades. A base foi afetada diretamente, foi diretamente afetada. Não é como num jogo de futebol onde, enfim, eles estão jogando e um vai ganhar ou aquilo vai dar empate, já sabemos o que pode acontecer. Na pior das hipóteses perdemos o campeonato e ficamos para outra série, já sabemos. Mas aqui, nós não sabemos. Nós não temos ideia de quais são as opções, quais são as janelas, que direção as coisas podem ir. Então, estamos em uma crise continuada, e isso afeta todo o planejamento futuro, afeta o sistema de educação, afeta todas as áreas. Naturalmente as áreas de investimento e áreas da economia. Esse é um ponto interessante, que nós encontramos nessa base. Então, nós olhamos as bases no meio dessa situação que estamos vivendo e percebemos que qualquer construção de realidade, por exemplo, nós estamos agora ampliando a vacinação. Os países que atingirem um padrão de vacinação, as pessoas já vão se sentir mais livres e de repente elas estão com tudo aquilo resolvido e voltam a vida como em um período anterior - isso não quer dizer que seja uma grande coisa, esse aspecto tem uma insegurança. Não sabemos se isso é ou não é. Precisaríamos entender que cada uma dessas perspectivas é uma construção luminosa. Quando sentirmos que isso se estabeleceu, não pensaremos mais sobre isso, tomaremos isso como real. Mas quando tomamos isso como real, segue uma construção luminosa da mente. A mente opera desse modo, pessoal. Tem uma construção luminosa que serve de referencial complexo e esse referencial complexo é a base para todo o desdobramento luminoso adiante. Depois nós construímos outras bases que vão adiante.
Nós temos hoje uma noção de civilização ocidental. Não posso deixar de dizer que me surge um sorriso interno por chamar de civilização, uma vez que ela simplesmente devora a si mesma. A civilização ocidental, se deixar funcionar como ela está funcionando, ela se devora totalmente. Então, ela não é propriamente uma civilização no sentido de uma solução sustentável e construída. Ela tem uma fragilidade intrínseca e tenho muitas dúvidas se nós conseguimos alterar esses rumos antes de colher resultados catastróficos desse próprio funcionamento da nossa ‘civilização’, vamos chamar assim.
Ainda assim, todos os aspectos que nos levam ao abismo são construídos pela mente. Faz parte daquilo que nós vamos chamar de avidya ou ignorância, a sensação de que isso é determinado externamente. Isso é assim e não há como mexer. Essa visão é descrita no budismo como avidya. Na época do Buda já tinha isso. Então, isso é super atual, assim. Na nossa cultura nós não temos nem palavras para isso. É como se isso não tivesse chegado ao nosso âmbito, aqui. Esse encontro da cultura budista com a cultura contemporânea aqui do ocidente especialmente, a cultura contemporânea do planeta, é muito enriquecedor porque o budismo traz uma linguagem através da qual nós começamos a dar conta de muitos fenômenos que ocorrem e que não tínhamos a capacidade de observar, e nem palavras para designar. Na nossa língua não tem um número muito grande de palavras que está descrito dentro do budismo que vem da compreensão cuidadosa, da contemplação cuidadosa da realidade interna e externa. Aqui, voltando ao ponto, vamos dizer que os seres todos têm a natureza búdica não porque eles estejam fazendo tudo certo, mas porque eles são capazes de construir absurdos, irrealidades, loucuras completas. Olhar para aquilo e achar que aquilo tudo é verdadeiro e operar por dentro daquilo – são realidade psicóticas. É como as realidades de sonho. Se nós olhamos, analisamos as nossas experiências de sonho, olhamos o conteúdo do sonho, nós vamos perceber também que tem o elemento terra, tem algo que é fixo que não queremos recuar, tem os desdobramentos lógicos, têm os raciocínios e nós nos deslocamos buscando alguma coisa e fugindo de outras coisas, que é inerente ao reino dos desejos. Essa é a construção, esses são os elementos das construções.
Se vocês olharem qualquer filme, qualquer novela, vocês vão perceber, também tem uma base que é um referencial. De modo geral, no início de todo filme, ele descreve essa parte porque não há como atribuir sentido para o que vai decorrer, se primeiro não estabelecer a base. É sempre assim, é como uma novela também, escrita. Começa a escrever a paisagem, descreve a estrada, descreve a cidade e descreve as pessoas que vivem, descreve a pessoa que está andando, o que ela pensa, onde ela gostaria de ir, porque cada base serve de base para a construção da parte seguinte e aí tem um drama e tem opções que se remetem ao movimento de energia, mas eles já estão em outro nível. Não tem o questionamento nem da paisagem, nem da estrada, nem da vida – não tem nada daquilo, é aberto. Tudo aquilo é fixo e a partir daquilo, então, surgem esses outros elementos.
Nas histórias policiais, o que acontece é que o autor se guarda para alterar a base, então, ele descreve toda a base, mas o assassino está sempre escondido dentro da base. A base não era aquela, era uma outra. Ele pensava que era assim, mas não era. Então, o autor está mais próximo da realidade como ela é, porque ele abre a base. Ele abre o engano. O teatro é interessante porque ele também tem essa clareza de como construir. Tem o cenário, seja ele do jeito que for, mais elaborado ou menos elaborado, tem um cenário e as roupas dizem respeito ao cenário, dizem respeito à situação, e quando olhamos nós vemos: aquilo tem isso, tem isso, tem isso, entendi! Aí nós tomamos aquilo por base - o discurso, a fala e o comportamento dizem respeito a essa base. Então, esse é o processo da operação da mente de todos os seres.
A Regina estava com uma armadilha para a abelha Jataí. Aquela garrafa escura com entradinha, canudinho. É super bonito isso. Como é que a jataí vai querer morar dentro de uma garrafa pet? É assim, porque ela olha para a garrafa pet e vê um tronco. Ela vê uma outra coisa e constrói com a mente dela e ela vai morar ali dentro. Isso é maravilhoso! Como é que nós induzimos isso? Nós colocamos um pouco de própolis lambuzado no próprio mel de Jataí e colocamos na porta. Aí ela sente aquilo e “ops! Aqui tem alguma coisa”. Então, ela tem uma familiaridade. Daí ela tem a tendência de investigar lá dentro – esse é um bom lugar. Os seres humanos viram que as jataís moram sempre em um lugar escuro. O ponto principal é ter um espaço desse tipo, escuro. Ele pode ser escuro com uma lona preta. Não tem problema. Passa uma lona preta, uns adesivos e prende aquilo em um tronco e as jataís terminam localizando aquilo. Se elas estão em outro lugar, eventualmente elas se transferem, ou se tem um outro enxame, ele se transfere e vai morar ali dentro. Elas precisam muito desses espaços. Elas eventualmente vão habitar dentro de rachas das paredes. Pequenos lugares assim, elas habitam. Elas precisam. Elas olham para aquilo e veem. Elas estabelecem a base da sua mente naquele lugar e fazem todas as outras operações. É assim. Isso é muito interessante. Então, podemos dizer que esses seres têm a natureza búdica também, porque eles constroem as realidades. Eles são capazes de sustentar luminosamente isso.
Por que nós vamos dizer que isso é a mente búdica? Porque os mestres vão olhando, como o próprio Buda. Os mestres subsequentes todos, eles sentam - sentam para não cair - e vão mergulhando. Vão abandonando esses referenciais e vão olhando a operação da mente. Eles descobrem que eles vão olhando aquilo que é limitado e eles recuam daquela limitação e seguem com a mente parada. Seguem contemplando, aí eles ganham, acessam a outra aparência mais sutil. E quando eles olham para essa aparência mais sutil, descobrem que ela também é construída. Daí eles repousam na aparência que deu origem àquilo, que serviu de base para aquilo. Assim eles vão recuando. Tem um certo momento que não tem nada construído, então, eles repousam no espaço aberto. Aí vem esse aspecto extraordinário, esse reconhecimento de que o repouso no espaço aberto, tem uma capacidade cognitiva que nós vamos chamar de rigpa. Isso aqui é a investigação da própria mente, ou seja, a mente olha para dentro dela, mas a mente que reconhece rigpa e que está nesse espaço, ela não pode mais ser chamada de uma mente humana, porque ela não está operando a partir dos referenciais humanos. Ela está operando livre. A mente humana é uma mente construída por referenciais. Ela opera daquele modo. Do mesmo modo que a mente dos outros seres, eles surgem, é a própria mente livre operando com outros condicionantes, mas o aspecto central dela é que ela é cognitiva, ela tem uma capacidade luminosa capaz de comunicar energias às coisas. Por exemplo, as jataís, elas olham para aquele própolis, sentem o cheiro daquilo e em um certo momento elas decidem. Então, o conjunto, o enxame vem e se instala dentro do tubo, dentro da isca, e elas vão morar ali dentro. Naquele momento elas desenvolvem apego ao lugar. Elas quando saem, elas voltam, não precisam mais nem raciocinar, saem e voltam; saem e voltam.
Então, nós vamos dizer que existe uma energia que conduz ela de volta porque ela está lá, a mente dela gira e ela volta. Ela tem total liberdade. As jataís não andam em dupla para cada uma vigiar a outra. Elas andam e depois voltam. Elas constroem com a mente o aspecto luminoso da sua casa, mas elas têm um nível de energia que mantém conectadas àquele lugar; então, elas vão e voltam. É muito interessante de ver como elas são territoriais, no sentido de que se nós tirarmos a caixa e colocarmos em um outro lugar, elas se perdem porque elas se localizam naquele lugar. Elas não sabem se são daquela casa que está ao lado porque a casa ao lado não está aqui, ela está ali. Então é outra. É como aconteceu aqui, que nós vimos. A maioria das abelhas vê, mas um punhado de abelhas segue insistindo até a morte. Literalmente, até a morte elas seguem insistindo no lugar anterior, mesmo que fisicamente os lugares estejam a dois palmos, três palmos, com uma parede no meio. Aquilo está de um lado da parede e do outro lado. Aí elas não vem. Tem uma teimosia, assim, cármica. Essa teimosia cármica está ligada à construção da realidade, aquela realidade que é construída, acontecendo aqui no caso das abelhas, uma semana que elas estavam ali. Então, nesse tempo elas designaram o movimento delas a um movimento de energia. Ela vai para ali. Não questiona mais; ela vai para ali. Agora, se aquilo mudou, ela se perde. Os apicultores quando vão fazer mudanças de um lugar para outro lugar que é perto, eles prendem as abelhas, prendem tudo por um tempo. Por exemplo, quando eu fiz da outra vez ali. Eu prendi elas até o meio dia do dia seguinte, aí quando abre elas se reorganizam. Elas sabem que aconteceu alguma coisa grave. Então, tem que produzir um tipo de estresse nelas – aí elas sabem que aconteceu alguma coisa. Então, elas se reorganizam e voltam sempre para o mesmo lugar. Elas não voltam para o lugar antigo. Aqui, quando nós levamos para a outra região, elas não voltaram. Quando elas foram tiradas do telhado, colocamos a caixa, mas várias voltavam para baixo do telhado. Ficava assim, algumas nós perdemos nesse movimento. Elas não têm essa flexibilidade. Algumas têm e outras não têm. Mas é interessante esse aspecto. Elas estabelecem uma base, essa base opera junto com os órgãos dos sentidos delas e movimenta a energia, mas isso não são as abelhas, isso são todos os seres. Nós temos isso também.
A estabilidade e a ação de Maharaja
É muito interessante quando alugamos um apartamento. A pessoa vai morar ali dentro e no final de uma semana a pessoa pensa: “isso aqui é minha casa. Ah, que bom estou em casa, fecha a porta, estou aqui”. A pessoa começa a sentir que ali é o seu lugar. Leva um tempo e daqui a pouco aquilo tudo está automatizado desse modo. Está tudo funcionando daquele modo. Quando está automatizado, Maharaja se alegra. Ele vai produzir confusão. Então, Maharaja tem muito para fazer. Por quê? Porque todos os seres sempre se fixam em alguma coisa e desenvolvem uma familiaridade, uma estabilidade, e Maharaja vem para sacudir aquilo. É sempre assim. Essa sacudida é o inevitável sofrimento associado à vida dos seres. Os seres não têm como evitar isso. Não há a possibilidade de nós atingirmos a felicidade e a superação das frustrações dentro da Roda da Vida e dos Doze Elos, dentro da Originação dependente. É assim. Não quero ser pessimista, mas aparentemente não tem solução. Se vocês encontrarem solução, por favor, avisem. A pessoa vai ganhar o prêmio nobel budista: “descobriram um jeito de ultrapassar o sofrimento”. Esse é o que vamos chamar de sofrimento estrutural. Acho assim, super comovente, e super importante entendermos isso, porque não é uma coisa de 20 ou 26 séculos atrás, pessoal. Isso é uma coisa de como a mente opera. É assim, é muito comovente.
Volta e meia vem um desses relatos. Tem um relato do CEBB, a cachorrinha procurando pelos filhotes pelo CEBB inteiro, por quê? Porque nasceram os filhotes, pegaram os filhotes inteiros e doaram, aí a mãe fica desesperada e começa a procurar por todo lado. Aquilo é comovente! É comovente! Esse é o sofrimento. Alguns meses antes, ela não estava nem grávida. Aí ela engravidou, eles cresceram e aí, eles pegaram os filhotes e deram e ai a mãe se desesperou e começou a procurar por todo o lugar. Isso é comovente! Isso é sofrimento! É assim, pessoal, nós nos fixamos e temos o sofrimento correspondente. Agora vocês imaginem isso com seres humanos. Os seres humanos, para nós, é um ponto mais sensível, muito mais sensível. Nós pensamos: bom a pessoa teve vários filhos e de repente alguém chegou e levou os filhos. A pessoa pensa: “onde estão meus filhos? Será que estão passando bem hoje? Será que comeram? Será que estão indo à escola? O que aconteceu? Onde eles estão?” É alguma coisa insuportável, simplesmente. Mas dez anos antes a pessoa não tinha nenhum filho, agora ela tem um super sofrimento. Então, isso é muito comovente. Esse é o aspecto estrutural, seja o que for, nós temos isso.
Então, nós desenvolvemos essa fixação, essa fixação tem um aspecto de construção, um aspecto luminoso e um aspecto de energia. Acho muito interessante nós contemplarmos o sofrimento de sonho, ou seja, nós durante a noite podemos ter pesadelos. Os budistas depois que começam a praticar meditação não têm mais pesadelos. Aquilo desaparece tudo. Aí fica sem graça, não tem filme de noite, nenhum pesadelo. Mas se vocês ainda têm pesadelos, é super bom, aproveitem! Os pesadelos são, nós temos regiões de apego que aparecem; nós temos o ambiente; nós temos identidades; nós temos outras identidades; nós temos regiões de apegos. Essas regiões de apegos estão agredidas, elas estão ameaçadas, mas é um sonho, pessoal. O sono se funde com a realidade e eles têm o mesmo teor. Quando nós estamos em uma realidade concreta, nós também estamos vivendo um sonho. É como um estado psicótico. Construímos realidades, construímos identidades, construímos situações e nos assustamos ali dentro. É a mesma coisa. Ninguém precisa tomar nenhuma substância. Nós já estamos em um estado alterado de consciência, não tenham a menor dúvida disso.
No budismo é super importante entender esse ponto. Quando nós temos sofrimentos surgindo, com certeza nós temos regiões que nós não queremos que sejam mexidas. temos tem opções. Essa opção, ela pode ser uma opção discursiva que então conseguimos mover. Ela pode ser uma construção cognitiva que nós movemos, mas se ela for uma construção de energia é muito mais difícil, muito mais difícil. Ainda assim, a nossa natureza é livre, ela é totalmente livre. Ela é cognitiva, ela é capaz de ver tudo isso, ela é capaz de reconhecer isso. Quando encontramos a visão budista tentando enriquecer a nossa cultura contemporânea, esses elementos são muito importantes, muito importantes. Nós precisaríamos entender isso com cuidado e transformando a nossa própria experiência e aproveitando a nossa própria experiência.
Sabedoria primordial / Estabilidade meditativa
O que o Buda recomenda? O que o Buda sugere para fazermos como treinamento, para desenvolvermos a visão dele mesmo? O Buda tem uma super habilidade. Ele poderia começar com muitas palavras, mas o Buda começa com Satipaṭṭhana: você senta e observa. Observa o corpo, observa a mente, as emoções, as energias. Esse observar já é o exercício da sabedoria primordial. Ele pode não ser bem isso, porque está misturado com alguns aspectos, mas o exercício é esse, fazer surgir essa sabedoria original. Então, quando nós sentamos para observar o nosso corpo, as disposições de corpo, isso é super importante. Por quê? Porque até começarmos a fazer essa prática todas as disposições de corpo eram nós mesmos. Ou seja, aquilo aparecia e nós deveríamos simplesmente seguir, porque aquilo era a coisa óbvia. Mas agora ganhamos o que o Buda vai chamar de afastamento. Descobrimos que certas disposições de corpo, configurações de corpo e sensações, elas estão presentes, mas elas são surgidas separadas dessa consciência que agora observa. Como a consciência agora observa, ela tem um afastamento em relação a esses fenômenos. Até então, nas infinitas vidas anteriores nós simplesmente considerávamos que aquilo que surge como uma disposição mental, uma disposição de corpo, aquilo é uma realidade em si mesma. Nós nem descrevemos isso como corpo ou como disposição mental, disposição de energia, disposição do próprio corpo. Nós simplesmente vemos aquilo como realidade. Do mesmo modo, todas as operações de sentidos: olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente. Quando olhamos, estamos vendo, é óbvio, está lá. Em todos esses aspectos, primeiro ganhamos distância em relação a eles. Nós dizemos: “agora eu vejo isso, agora aparece isso”. Quando dizemos “agora aparece isso”, podemos nos perguntar, “mas como que isso aparece?” Poderia aparecer outra coisa ou não. Aí nós descobrimos que podemos fazer aparecer outras coisas no mesmo fenômeno visual.
Aí, nós começamos a estudar como as coisas aparecem. Isso nós só conseguimos fazer porque ganhamos espaço com relação àquilo que aparece. E nós vamos ganhar esse espaço simplesmente sentando calmos, imóveis, e observando seja o que for, com algum distanciamento. Dentro do Satipattana Sati é isso, o Caminho de Sati, o Caminho da lucidez. É como o caminho de Manjushri, clareza sobre as coisas. Então, nós vemos como elas aparecem. Não tenho como vê-las se eu simplesmente passo apenas a responder a partir do que surge. A estabilidade meditativa que nós possamos ganhar, como shamata, por exemplo, ela vai andar em direção à prática de Sati. Então, eu aprendo a estabilizar a mente apenas, para depois poder contemplar diferentes coisas com sabedoria. Então, os três últimos passos do Nobre Caminho Óctuplo são Diana, Sati e Samasamadi. Seria Diana, Samasati e Samasamadi. Sati é essa capacidade de parar diante das coisas. Como nós paramos diante das coisas calmos, as coisas se revelam. Agora tem o aspecto de Samasamadi que está ligado a esse aspecto extraordinário que está além de Sati, portanto, que é quando, depois de surgir a clareza progressiva sobre como as coisas aparecem, nós vamos virar essa mente que está dizendo como as que coisas aparecem e vamos perguntar para ela, “de onde você vê isso? Como você vê isso? Mostre você, se revele você mesma”. É como se essa mente agora, essa mente lúcida se virasse sobre ela mesma e olhasse para dentro dela. E o que ela vai encontrar? Então, nenhum estado meditativo que venha por Sati é o estado final, é a condição final. A condição final, ela é a clareza incessantemente presente que tem a fonte da sabedoria. Na linguagem de outras abordagens, ela é essencialmente o Guru porque o Guru em nós é aquele que fala, a lucidez. Rigpa é o Guru, é a manifestação do Guru. Por isso que Dudjon Lingpa vai dizer que ele segue diretamente Prahevajra e Guru Rinpoche porque ele chama de Prahevajra e Guru Rinpoche a mente lúcida que fala dentro dele. Esse é o sentido da fusão do aluno com a mente do Guru. O aluno vai manifestar a mente do Guru. Por quê? Porque ele abandona a mente comum. Ele vai operar a partir da mente primordial.
Então, todo o caminho, ele pode ser descrito como Guru Ioga, como a submissão da mente comum, e ultrapassar a mente comum pela mente primordial. A mente primordial é a mente de sabedoria que fala dentro de nós. Essa mente de sabedoria nós terminamos vendo como sendo, desde o início do início, a mente que falava por dentro dos mundos condicionados. É a própria mente de sabedoria falando a partir das bases condicionadas dos mundos condicionados. Sempre foi o Guru; sempre foi o Guru em cada momento protegendo, aconselhando dentro dos mundos condicionados e se apresentando até que nós possamos olhar o aspecto primordial do Guru. E tomar refúgio significa extinção. O Buda Shakyamuni vai chamar de extinção, por quê? Porque a sensação das identidades, da existência real como nós temos, ela é extinta, ela desaparece. Então, a operação da mente passa a ver desse modo. Quando nós usamos a mente de sabedoria para olhar o que está sendo extinto, o que está se extinguindo, nós vemos que as seis emoções perturbadoras estão se extinguindo. Ou seja, os nossos orgulhos, inveja, desejo e apego, a ignorância, a carência, a raiva, rancor, ódio, o medo, elas se extinguem. As mentes que criam isso, que são essencialmente os três venenos - a ignorância, a aquisitividade, a raiva - elas se extinguem.
Nós nos movimentamos sempre a partir das energias que brotam a partir dos três venenos, das seis emoções perturbadoras e operando por dentro de Upadana. O que nos dá a sensação de existência é Upadana, ou seja, a busca de uma outra coisa desejável, uma outra coisa desejável, uma outra coisa desejável. Nós vamos percorrendo os caminhos das energias que já estão estabelecidas, as energias que fazem as abelhas voltarem para o mesmo lugar, que fazem os animais irem e virem. Nós vamos ultrapassar essa forma de operar. Enquanto nós operamos dessa forma, temos uma sensação de identidade, uma sensação de existência. Aí, nós retornamos e olhamos para essa mente e buscamos elucidá-la. Quando vemos esse aspecto limitado todo brotando desde a natureza primordial, nós tomamos refúgio nessa compreensão a partir dessa natureza primordial. Os aspectos comuns, eles movimentam energias comuns. O aspecto primordial movimenta uma energia muito mais intensa. Então as condições parciais, particulares, flutuantes do samsara são menos atraentes porque a energia que brota é de modo direto. Essa é a forma pela qual a liberação, então, ela ocorre de fato.
Até então, nós vemos coisas de forma condicionada porque a nossa energia brilha. Nós estamos sempre buscando, é como se nós tivéssemos entrado no mundo condicionado, mas nós guardamos a lembrança da natureza livre. Essa lembrança vem pela energia e a energia vai ficando mais fraca, porque dentro do samsara as energias estão mais curtas e mais fracas. Quando nós retornamos ao aspecto primordial, a energia brilha livre, então, ela é muito mais forte. Ela é como se, por exemplo, as crianças vêem desenhos na tv e elas acham aquilo interessante, elas têm emoções ali. Mas os adultos quando olham para aquilo, não precisam pensar, “ah, preciso me libertar dos desenhos”. Eles olham para aquilo e não têm nenhuma atração por aquilo. As crianças pegam um brinquedo e são capazes de brincar com aquilo e achar interessante. Quando nós olhamos para aquilo e até entendemos como aquilo é, mas aquilo não atrai, porque nós estamos operando dentro de um outro padrão de energia. Dentro do nosso padrão de energia aquilo não faz sentido. A energia é sempre a energia, só que ela está operando dentro de padrões de condicionamento; ela está fluindo por dentro de vários tipos de condicionamentos, por exemplo, dentro do nosso corpo nós temos várias coisas que nos atraem. Elas nos atraem porque elas produzem um brilho, produzem um movimento de energia por dentro do corpo, então, elas nos atraem.
Se nós estamos com a energia conectada com o aspecto primordial, as flutuações de energia que nos atraíram a partir das experiências de corpo são menos atraentes ou não atraentes. Esse é um aspecto super importante de entender. Então, a liberação não é um condicionamento para a liberação. Não é alguma coisa que as pessoas tenham uma sensação de que elas, então,elas vão insistir, elas vão se acostumar, vão se fixar em alguma coisa. Não é isso. A liberação inclui a capacidade de penetrar os vários âmbitos e a energia opera livre desde a natureza primordial e a compreensão se dá nos vários âmbitos e não é algo que esteja preso a alguma coisa. É como o Buda vai descrever a mente dele. Ele vê a infinidade de mundos em todas as direções, ele vê Budas nos vários lugares. Ele vê que do topo da coroa de cada Buda, as luzes se irradiam em direção a todos os outros Budas e outros Budas, e outros seres naquele mesmo momento, naquele mesmo lugar. Existe uma inseparatividade nisso.
Então a mente búdica, quando nós vamos falar sobre isso, ela é um pouco difícil de falar porque nós vamos falar desde a perspectiva dual separativa como nós estamos operando. Nós vamos descrever a mente búdica como objeto, o que não é, mas do ponto de vista condicionado, a mente búdica abarca todas as coisas. Ela não é apenas aquilo que reflete sobre as coisas, ela manifesta as coisas e ainda que as coisas pareçam separadas, elas não são separadas. A mente búdica pode ter muitas manifestações sem perder a unidade, mas isso é uma descrição dentro do mundo separativo, dentro das palavras comuns. O que mais se aproxima dessa visão, sem ser uma descrição, é a expressão ‘não dualidade’. Não dualidade seria também uma forma de falar de unidade – se é não dual, é uno, mas se eu disse que é uno, aí eu crio um objeto.
O caminho budista
Agora, no meio de tudo isso, nós podemos simplesmente entrar no caminho do ouvinte, o que é uma grande coisa. No meio disso nós podemos estar no mundo, que é onde nós consideramos solidez a tudo, nós podemos estar ouvindo isso desde do samsara. O mundo é uma aparência e eu me movimento dentro das aparências. Nós podemos estar ouvindo essas coisas dentro da perspectiva de qualquer um dos reinos também, enfim. E nós podemos está ouvindo desde da perspectiva do ouvinte, ou seja, é alguém que ouve, pensa sobre isso, mas isso não surge como a sua própria visão.
O caminho budista é transformar. Quando o Buda fala e dá as indicações de como fazer as práticas, é transformar o que o Buda fala em uma experiência e utilizar as instruções do Buda sobre como alterar a visão comum para a visão extraordinária através da meditação e a instrução é muito simples, é praticar Satti. Se não conseguimos praticar Satti, praticamos Dhiana, meditação; se não conseguimos praticar meditação, praticamos boas ações; se não conseguimos praticar boas ações, evitamos as ações negativas; se não conseguimos evitar as ações negativas, no mínimo geramos a motivação para ultrapassar as ações negativas e trazer benefícios aos seres; se não conseguimos isso, entendemos que o sofrimento existe e as causas do sofrimento são a origem dependente, e que, portanto, a liberação é possível. Então, reformatamos a nossa motivação; reformatando a motivação, nós evitamos trazer sofrimento aos seres; evitando trazer sofrimento aos seres, nós chegamos a trazer benefícios aos seres e, isso estando organizado, nós temos a mente tranquila para repousar, lúcidos; repousando lúcidos nós somos capazes de praticar Satti; praticando Satti nós podemos praticar a mente de sabedoria, que é a própria mente não dual, que abarca todas as coisas, portanto, de modo não dual todas as coisas que parecem separadas - Esse é o caminho budista.
Acho interessante esse diálogo dessas descrições com a forma pela qual a nossa cultura contemporânea se estabelece. Nossa cultura pode ser muito enriquecida por isso.Então, é uma grande oportunidade trazida por um número incontável de Mestres e tradutores que transformaram esses textos em alguma coisa que podemos acessar na nossa própria língua. É muito extraordinário que tomemos as nossas vidas, tomemos o tempo e a energia que temos para poder aprofundar nas próprias experiências que vivemos enquanto estamos vivendo, porque o campo do progresso no caminho é aquilo que está na nossa frente. Isso mesmo, a experiência que temos, as dimensões cármicas que brotam dentro de nós, todas elas são a própria substância que nós vamos utilizar para nutrir o nosso caminho.
Dedicação
Não dualidade; Impermanência; Originação dependente; Natureza búdica; A estabilidade e a ação de Maharaja; Sabedoria primordial / Estabilidade meditativa; O caminho budista
#03 | Perguntas & Respostas | 01/05/2021
https://www.youtube.com/watch?v=yFIMKxJfj3Q&ab_channel=LamaPadmaSamten
Transcrição: <Luciana Pitombo>
Revisão: <Eliane Xavier e Carmen Navas Zamora>
Pergunta: A passagem pela forma e não forma são fases pelas quais temos que passar para reconhecer o aspecto secreto? Este último pode ser perdido, mesmo não sendo um estágio construído?
Lama: Não é necessário passar pela forma e não forma. Nós podemos sair diretamente de onde nós estamos no reino de desejo, e na verdade nós podemos sair de qualquer um dos seis reinos em direção a liberação. O reino humano é mais fácil, tem menos obstáculo, mas podemos sair de qualquer reino. Porque na verdade o aspecto secreto, o aspecto último, ele está incessantemente presente, incessantemente operando. Então, para aqueles que têm uma capacidade de prática, eles deveriam simplesmente observar o aspecto último, o aspecto secreto, presente dentro da atividade que estiver sendo realizada. Até o ponto em que eles percebem que o aspecto primordial está incessantemente presente em qualquer experiência. Então essa seria a prática.
Pergunta: Na posição livre da mente, na perspectiva do conhecimento sobre os seis reinos e vacuidade, que compreensão e atitudes se fazem necessárias nesse momento pelo qual passamos?
Lama: O primeiro aspecto que deveríamos sempre considerar é o aspecto de sabedoria. Então quando a gente diz “o que eu deveria fazer na presente situação que nós estamos vivendo”, a gente teria que ter o cuidado de não passar para dentro das bolhas correspondentes, se quisermos utilizar a sabedoria. Aí nós olharmos as bolhas que nós estamos vivendo nesse momento como aspectos construídos. Dentro disso se nós manifestarmos as seis perfeições, ou seja, manifestarmos a generosidade, moralidade, paz, energia constante e sabedoria; praticarmos as quatro qualidades incomensuráveis, compaixão, amor, alegria e equanimidade; praticarmos as cinco sabedorias, as sabedorias dos cinco Diane budas; isso seria o mais adequado. Na verdade, em qualquer circunstância, mesmo que não seja a presente situação de crise, nós deveríamos praticar exatamente isso. Não deveríamos alterar a nossa prática de compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria, e as cinco sabedorias, não deveríamos alterar isso de acordo com as circunstâncias, nós deveríamos simplesmente praticar isso. Agora, na medida que praticamos isso nós precisamos de meios hábeis, os meios hábeis que nós tivermos a nossa disposição nós praticamos. Mas deveríamos manter a sabedoria do espelho, a sabedoria da igualdade, manter as cinco sabedorias claras, enquanto nós estivermos operando, então amanhã eu vou descrever melhor isso, como fazer isso. E os meios hábeis são a forma de inserção atual que nós temos no mundo. Então nós procuramos fazer melhor, procurando entender as pessoas, ajudá-las, e isso é ao mesmo tempo uma prática de compaixão e uma prática de lucidez na medida que conseguimos entender os seres dentro de seus mundos.
Pergunta: Como sair do reino dos infernos ou dos seres famintos se não se tem mérito ou consciência para sair dele?
Lama: Aí já é um pouco difícil. Mas, por exemplo, se a pessoa não consegue sair diretamente pode ser que ela consiga fazer algumas práticas que sejam favoráveis. Vamos supor que a pessoa consiga fazer mettabhavana, ou seja a distância, apenas com pensamento, a pessoa aspira que todos as pessoas com quem ela se relaciona fiquem melhor. Na medida que as pessoas, mesmo que estejam nos infernos, pensam que quando as pessoas ficarem melhor será melhor para todo mundo, a pessoa já está saindo dos infernos. Temos graus dos infernos, e há pessoas que sofrem nos infernos devido ao seu mal carma, mas eventualmente a pessoa aspira a felicidade em algum nível, a pessoa tem essa aspiração de felicidade. Se a pessoa tiver em algum nível aspiração de felicidade, ela deveria praticar mettabhavana, onde ela aspira também a felicidade dos outros seres, a liberação do sofrimento. Quando isso ocorre, a pessoa começa a sair velozmente dos infernos. Então a prática mesmo é a prática de mettabhavana. Agora, na medida em que temos uma relação com as pessoas que estão nos infernos, nós podemos manifestar uma paciência infinita, manifestar as quatro formas de ação, uma ação de poder, no sentido de nós não nos perturbarmos na relação com as pessoas que estão nos infernos. Não nos perturbarmos com a ação agressiva, ou ação maldosa, ação mal-intencionada que as pessoas exercem, isso seria a ação de poder. Depois temos a ação pacificadora que nós podemos exercer eventualmente apenas com mettabhavana, se nós não conseguirmos chegar. Mas se conseguimos chegar perto nós apoiamos essa pessoa em seu sofrimento, porque as pessoas nos infernos, mesmo sendo os agressores, elas estão em sofrimento intenso. Nós procuramos, de um modo estável e continuado, ajudar sempre que acharmos que é necessário e útil ajudar. Isso tem um grande efeito sobre os seres dos infernos, especialmente porque os seres dos infernos não têm um único amigo verdadeiro. Se vocês se colocarem como um bodisatva, alguém que vai ajudar efetivamente um ser dos infernos, então a pequena ajuda que vocês possam fazer é, de modo geral, muito apreciada por esses seres. Isso tem um poder mobilizador, um poder transformador muito grande sobre o outro. Porque não é apenas uma ajuda, é uma ajuda de alguém completamente raro, porque dentro dos infernos ninguém ajuda. Ninguém ajuda os seres dos infernos. Isso é uma forma de exercer a ação pacificadora. Aí nós temos a ação incrementadora. Aquilo que achamos que tem mérito, é favorável, é verdadeiro nós apoiamos, o que não é nós não apoiamos. Nós apoiamos, implementamos e empoderamos aquilo que é favorável para a pessoa e para os outros ao redor. Mas aquilo que não é favorável a gente não ajuda. E ainda nós temos a quarta ação, que é a ação irada, ou seja, nós pontuamos aquilo que é negativo que o outro esteja fazendo. Isso é uma ação compassiva. Os seres dos infernos têm inimigos, eles não têm pessoas que pontuem de um modo crítico e que os ajudem a funcionar melhor. Eles não têm isso. É muito útil se ajudamos desse modo também. Essas são formas de ajudar os seres dos infernos. Mas nem sempre nós temos os meios hábeis, nem sempre nós temos as condições cármicas favoráveis para que isso aconteça. É frequente que o reino dos infernos sejam reinos de longa duração, onde os seres vão acumulando ações negativas e vão afundando verdadeiramente. Por vezes eles vão primeiro passar por uma experiência muito negativa até que a mente deles comece a mudar, se disponha a mudar. Precisamos manter essa continuidade, essa boa disposição, exercer essas quatro formas de ação, então assim podemos exercer benefícios. Quando as pessoas têm um carma muito pesado, elas têm habilidade de transformar qualquer forma de ajuda ou qualquer proximidade, elas têm a capacidade de tomar aquilo de modo negativo e exercer mais ações negativas a partir dessa ação. Então nesses casos temos que aumentar a distância para que a pessoa não seja capaz de exercer ações negativas a partir da energia positiva que está sendo colocada para ela. As regiões dos infernos são bem difíceis, mas a continuidade da ação positiva produz resultados verdadeiros e certos.
Pergunta: Tenho observado que em minha prática, em shamata e em geral, a mente está muito movimentada e tendo a vaguear. No entanto, ao praticar mettabhavana e buscar contemplar a vacuidade e a não dualidade através dos seis selos surge uma estabilidade, foco claro e presente. Devo buscar algo ou seguir na prática sem julgar ou avaliar esses processos?
Lama: Se essa prática dos seis selos é uma prática possível que tem foco e clareza, então com certeza essa é sua prática. Segue desse modo. Porque a prática de shamata seria uma prática preparatória para ganhar foco para poder desenvolver por exemplo, a clareza com respeito aos seis selos. Mas se você já obtém isso, isso está claro. Agora, acho que é importante a partir dos seis selos retomar a prática do calmo sentar. Como essa experiência tranquila, ela seria um obstáculo? Ela não é um obstáculo. Então você experimenta fazer a prática dos seis selos e depois repousar nessa experiência silenciosa de Darmata, usa isso como foco de sua prática de meditação.
Pergunta: Como começar? Sem a sanga nesse momento estou sempre recomeçando a meditar, mas parece que não avanço.
Lama: Eu vi sua Santidade Dalai Lama dizer você deveria ter continuidade, não se preocupar se você está avançando ou não, porque isso não é uma coisa de uma vida, é uma coisa de muitas vidas. Eu não gostei de ouvir isso, eu prefiro que aquilo seja numa vida, vamos andar rápido. Então eu entendo o que você quer dizer... Mas acho que a paciência é importante. Espero que você seguindo a sua prática, consiga ver que há então um progresso, que aquilo continua. Então os ensinamentos são importantes, eu acredito que você devia estudar um pouco os ensinamentos, ouvir um pouco os ensinamentos e então meditar. Quando a mente se agita, aí você escuta de novo, ou uma parte adiante dos ensinamentos, aí quando você sente que aquilo foi entendido você interrompe a gravação, ou interrompe a leitura e medita, no sentido de aproveitar a energia de darma, da alegria que vem da compreensão, e senta silenciosa dentro dessa alegria. Quando você sentir que a mente vagueou, volta para leitura ou volta para a audição, aí vai indo.
Pergunta: Algumas terapias ocidentais dizem que recriar traumas da infância na vida adulta pode ser uma forma de liberação, porque nos conectamos com os sentimentos perturbadores novamente. Poderia comentar a visão budista para a visão terapêutica tradicional?
Lama: Eu não estudei psicologia, não sei como é que é. Quando eu li algumas coisas e vi que não tem cura dentro da psicologia, então eu achei aquilo meio problemático. Eu até neguei aquilo. Não posso acreditar porque o Freud, enfim, ele se manteve cuidando das pessoas. Então ele tinha alguma crença de que alguma coisa era possível fazer. Então ele manifestou compaixão pelos seres, eu acho < 46:15 a 46:26 > Na perspectiva budista, acessar os traumas é uma expressão que deveríamos ter cuidado. O que significaria acessar os traumas? Nós deveríamos desenvolver < 46:55> de sofrimento, de nosso próprios sofrimentos e elucidar, dissipar isso, mas o processo budista de fazer isso está ligado ao reconhecimento da vacuidade, ao reconhecimento dos seis reinos, a como que a nossa mente constrói as realidades e fica presa dentro dessas realidades. Ela está ligada a esta percepção. Mas da psicologia eu realmente não sei qual é o princípio da cura, não entendo, porque até mesmo a condição da normalidade das pessoas, na perspectiva budista, isso não é uma normalidade, isso é um estado fixado aos doze elos da originação dependente. Eu acredito que a normalidade dentro da perspectiva da psicologia é um funcionamento sem sofrimento, ou com um sofrimento em um certo nível tolerável e aceitável, a operação dos doze elos da originação dependente. O Buda é muito mais exigente, ele vai nos convidar a abandonar esse tipo de operação. Então eu não sei bem como inserir esse processo de cura da psicologia propriamente, mas na perspectiva budista nós deveríamos acessar tudo aquilo que é perturbador para nós, mas não precisaríamos ir atrás. Quando as coisas acontecem nós vamos elucidando, elas estão todas interligadas. Então a gente não entra pelo sofrimento propriamente, pela característica do sofrimento, a gente entra pela compreensão do sofrimento estrutural de todos os seres, ao ponto de nós percebermos o nosso sofrimento estrutural. Quando percebemos o nosso sofrimento estrutural, percebemos que ele é chamado de sofrimento estrutural porque ele potencializa todo o sofrimento conjuntural, ou seja as circunstâncias múltiplas de sofrimento que temos vêm do sofrimento estrutural. E ele é muito mais amplo do que as perspectivas aflitivas que vivemos, ou pequenos traumas ou grandes traumas que vivemos em diferentes momentos. Precisaríamos acessar os pequenos traumas ou grandes traumas ligados à própria identidade, associar isso ao sofrimento estrutural de todos os seres, que está ligado à ignorância e à operação dos doze elos da originação dependente. Se é que o budismo tem uma psicologia, esse seria o processo. E quando compreendemos isso, então vamos compreender que a liberação é possível, não só a nossa como a de todos os seres. Isso dá origem a Bodhicitta. Na perspectiva budista, quando Bodhicitta surge em nós, quando fazemos contato com os vários sofrimentos conjunturais, estruturais, e entendemos isso de uma forma ampla, não centrada apenas em nossa identidade, mas vemos isso em todas as direções, aí brota Bodhicitta. Quando brota Bodhicitta pelo contato com o sofrimento, se quiséssemos falar em uma psicologia budista, isso seria a cura. Então nós estamos curados enquanto uma pessoa, mas o caminho é longo, o que vai acontecer depois ainda é longo, é como se nesse momento ainda estivéssemos no início do caminho, estamos no primeiro dos oito passos do nobre caminho do treinamento em meditação e treinamento da lucidez. Esse é o processo preparatório que nos leva até esse início. Resumindo, nós deveríamos entender, estudar a primeira nobre verdade, entender o sofrimento estrutural das pessoas, que inclui a aspiração por uma transmigração constante, a busca por um lugar tranquilo, favorável para nós, com pessoas favoráveis. E quando nós entendemos o sofrimento estrutural, vamos entender que ele é chamado de sofrimento estrutural porque potencializa as múltiplas pequenas circunstâncias ou grandes circunstâncias de sofrimento, que a gente tem um sofrimento associado aos próprios órgãos do sentido e à própria mente. Quando o sofrimento é claro, ele surge dependente de circunstâncias. Quando conseguimos associar isso ao sofrimento estrutural, esse ponto é superimportante. Na sequência, precisaríamos entender isso como uma natural manifestação dos doze elos da originação dependente, sendo então a originação dependente a base para todo o sofrimento. Se pudermos acessar os nossos sofrimentos passados de infância com esse olhar, isso é uma boa coisa, que isso gere depois a compreensão de que a liberação do sofrimento é possível. Aí surge a Bodhicitta, a compaixão por todos os seres que estão presos a essas circunstâncias e não conseguem sair. Então a gente aspira ajudá-los. Aspira sair disso e ajudar os seres que estão presos a esse modo. Isso é a Bodhicitta.
Pergunta: Qual seria a prática mais adequada para sair do reino dos humanos quando se há muito desejo e apego?
Lama: Eu acho que transmigrar de um reino, de um lugar para outro, é inútil. O que precisaríamos era nos manter no reino humano ajudando as outras pessoas. Então o que precisamos de fato é de lucidez. Essa lucidez vai começar pelo estudo da primeira nobre verdade, então nós vamos precisar <54:06 corta a resposta e passa para próxima pergunta>
Pergunta: Qual a relação entre os seis reinos e os doze elos da originação interdependente? Os seis reinos já estão presentes no primeiro elo, Avidya, na forma de Loka, ou surgem como desdobramento dos doze elos?
Lama: Eles surgem no desdobramento.
Pergunta: No diagrama da roda da vida, qual é a relação entre si dos aros que a compõem? A leitura é feita do centro para a parte mais externa, sendo que o círculo mais externo toma o mais interno como base, ou cada círculo é uma categoria diferente de ensinamento completo?
Lama: O centro da roda ele manifesta os três venenos, eles são geradores, todas as outras manifestações estão ligadas aos três venenos. O aro seguinte é a impermanência, tudo está manifesto também de alguma forma associado a impermanência. Aí nós temos os seis reinos e os doze elos. Eu diria que todas essas partes clarificam uma ideia principal, a nossa existência, são aspectos da nossa existência. Eu não diria que há uma precedência entre as partes. Se pensarmos em uma precedência, eu colocaria os doze elos como a base de todo o resto que surge.
Pergunta: Na grande vacuidade a presença lúcida também é continua? Ou por ser não dual há uma espécie de adormecimento?
Lama: A natureza lúcida não dual, ela é incessantemente presente. Ela se manifesta por dentro dos aspectos comuns da realidade. Os aspectos comuns da realidade ganham vida a partir da vida do aspecto primordial.
Pergunta: Como seria a manifestação de Marpa em sua vida comum e extraordinária ao mesmo tempo, neste momento planetário? Em relação a aspirar ter uma vida comum e com ela desenvolver a mente mais lucida.
Lama: Esse é a ponto da Tatá (que fez a pergunta), ela quer o samsara (risos)! Aí logo o Marpa, ele era um fazendeiro, tinha uma vida de família, ele funcionava assim. Então, eu acho que ela devia copiar o Marpa (risos), mas não basta o samsara para ser um Marpa, precisa da lucidez. Então o que o Marpa tinha? Ele tinha o aspecto primordial, tinha a capacidade de reconhecer a característica secreta em todas as aparências e o aspecto sutil também. Então a prática é essa, samsara a gente já tem, então a gente pega o aspecto sutil e secreto, é fácil! (risos)
Pergunta: A pessoa que se vê vítima de Maharaja, onde ele certeiramente atacou seu ponto de fixação, como o senhor falou no retiro a tarde, como agir daí em diante? Que ensinamentos contemplar e que práticas fazer de modo mais objetivo?
Lama: Maharaja de modo geral é bem-vindo. Quando os praticantes são poderosos eles fazem uma prece que eu nunca achei muito boa (risos), “que meu carma seja rápido”. Ou seja, quando eu faço uma coisa equivocada, que meu retorno cármico venha rápido, para não seguir muito longo por um engano, porque essa perda de tempo é um problema. Eu acho que encontrando Maharaja, e ele podendo nos levar a pegar algum ponto de fragilidade, se conseguirmos transformar isso em sabedoria, isso é uma grande coisa. Isso é superimportante. Eventualmente nós lastimamos Maharaja, porque quando ele pega não é bom, a gente não quer aquilo, ele não é legal, não tem uma boa intenção. Mas precisamos entender Maharaja como Buda, ou seja, eu tinha uma construção frágil, Maharaja foi lá e pá! foi na fragilidade. Isso é um problema de fato, mas isso nos faz sair daquele lugar. Aquele mundo eventualmente cessa e nós vamos nos construir de um outro modo em um outro lugar. E esse é o nosso desafio. Retomar. Maharaja não consegue atingir o aspecto secreto, esse é um ponto. Então se a gente tem refúgio no aspecto secreto nós estamos a salvo. No aspecto sutil Maharaja nos pega. No aspecto grosseiro ele nos pega. O aspecto sutil é como que a gente se constrói, os nossos referenciais, o que que nós estamos tomando assim. Então Maharaja pega o aspecto grosseiro, pega o aspecto sutil, então nós precisamos nos jogar no aspecto secreto. Muitas pessoas que foram atingidas por Maharaja, morreram no aspecto grosseiro, morreram no aspecto sutil e isso permitiu um ressurgimento em um outro padrão, posterior a essa destruição. A melhor coisa que pode acontecer para nós é sermos capazes de nos reinventar desse modo. Esse é o ponto. Se reinventar junto com o Darma, essa é uma boa coisa.
1:01:25
Pergunta: Eu tenho dúvida sobre a meditação em deambulação. É uma prática de shamata impura? O fato de ter que se cuidar onde pisa não é um obstáculo? Por favor comente alguma coisa sobre esse tipo de prática.
Lama: Essa prática pode ser uma prática superinteressante, mesmo no aspecto profundo. Porque quando nós estamos caminhando nós temos um fluxo inevitável sensorial. Então se a gente conseguir olhar esse fluxo sensorial de uma forma profunda, eu acho isso superinteressante. Temos o aspecto grosseiro, temos o aspecto sutil, que é onde nós vamos colocar os nossos referenciais, a nossa mente, e vamos reconhecendo este lugar onde colocamos a nossa mente como inseparável da grande amplidão que nos permite então escolher este lugar. Podemos não só caminhar, como podemos correr em estados sutis específicos. Podemos andar de bicicleta nesse lugar. Podemos fazer exercício e caminhar calmamente focando um estado particular, essa é uma boa prática.
Pergunta: Quando sentimos muitos remorsos de erros cometidos no passado isso pode trazer culpa, aflição e tristeza. Como lidar com esse sentimento?
Lama: A culpa não é uma boa ideia, porque é melhor a gente pensar que aquele que fez aquilo não sou eu, eram os referenciais daquele tempo e agora eu não sou aquele ser, estou fazendo de um outro jeito. Agora, se a gente for ainda aquele ser, é bom aprender então. Se fizemos coisas negativas, é bom que a gente não reedite aquilo, é melhor não fazer. Agora, por causa das bolhas de realidade, a gente olha com cuidado. Eu acho importante despessoalizar as ações negativas. Aquilo era a bolha, estávamos dentro daquilo, e aquilo parecia completamente natural, então a gente exerceu, mas agora olhamos e vemos que não era uma boa ideia, que não tinha inteligência nenhuma, não foi legal. Mas o arrependimento, o remorso, esta aflição está ligada a uma noção de uma identidade. A identidade sente que ela perdeu alguma coisa porque ela fez tal coisa, o currículo dela sujou, aquilo não foi legal. O remorso está frequentemente ligado a própria identidade, não propriamente ao sofrimento que causamos no outro. Mas se causamos o sofrimento e isso é o problema podemos tentar reparar na conexão com o outro. Se não for mais possível reparar na conexão com outro, praticamos mettabhavana, não só para o outro, na relação com o outro, na conexão com o outro, mas para todos os seres. Começamos com mettabhavana para aquele ser e logo em seguida nos damos conta que fizemos muitas atrocidades, muitas coisas negativas, inadequadas para muitos outros seres. Esses seres não tinham a capacidade de se defender propriamente e eles sofreram com aquilo que nós manifestamos, não só nessa vida como em outras vidas. Então conseguimos ver facilmente os nossos referenciais como aspectos sutis que estão presentes hoje, que causaram problemas para alguns seres. Eles são os mesmos que estamos carregando há muito tempo, devemos ter causado sofrimento a um número muito grande de seres em outros lugares também. Mas aí não tomamos isso como uma identidade, tomamos isso como uma ignorância, a gente entende isso como uma ignorância (o aspecto negativo) e refaz os votos de ultrapassar a ignorância, de ultrapassar os impulsos e as aflições negativas, e entendemos que fazemos isso porque não temos a compreensão adequada, não compreendemos, e não entendemos de uma forma ampla, e por isso fazemos o voto de irmos até o fim do caminho e conseguir liberar e ajudar os outros seres a liberarem também seu sofrimento.
Pergunta: Em uma das preces nós dizemos: “que eu possa perceber todas as experiências como sendo tão insubstanciais quanto o tecido do sonho durante a noite e imediatamente perceber a manifestação da sabedoria pura no surgir de cada fenômeno”. Paralelo a isso, percebo que em histórias sobre como algumas reencarnações são localizadas, as indicações chegam para os próximos através dos sonhos. Poderia falar um pouco sobre isso?
Lama: Precisaríamos olhar como a mente de sabedoria encontra formas de se manifestar. Como estamos constantemente ocupados com o cotidiano, dentro de bolhas de realidade, operando a través de identidades, não temos muita oportunidade dessa mente operar de um modo a não ser a partir dessas demandas práticas a que estamos ligados. Mas quando nos sentamos para meditar, e a mente vai se abrindo, eventualmente também surgem imagens. Quando vamos nos deitar, vamos dormir, aí eventualmente temos os sonhos. Esses sonhos num primeiro momento eles se referem a coisas do próprio cotidiano que vivemos e precisam ser resolvidas, mas por vezes surgem situações em que temos sonhos mais profundos que se referem a marcas mentais que foram produzidas em tempos anteriores. Isso é interessante, às vezes a pessoa tem uma sensação de que ela sonhou coisas que ela não viveu nessa vida, ela não sabe por que ela teve aquele tipo de sonho, por que aquele ambiente, as pessoas, aquelas situações, elas não dizem respeito a coisas que a pessoa está lidando. Isso se refere às regiões de Alaya Vijinana onde a pessoa nasce. Por exemplo, uma criança pequena tem naturais lembranças ou tendências, que vieram das experiências de vidas anteriores, que são manifestas a partir da base onde a mente está operando, a base condicionada, Alaya Vijinana, a região de Alaya Vijinana que a pessoa estava operando. Ela surge desse modo, na medida que a criança vai sendo educada e tendo que se ajustar às várias circunstâncias, esses aspectos vão ficando vestidos por outras manifestações que as pessoas vão introduzindo no processo de convívio, que é um processo de educação também. E no final de um tempo a pessoa está escolarizada, fabricada pelo entorno, aí nós geramos as identidades. Depois que essas identidades elas se manifestam, tem um período aonde a pessoa pára um pouco e diz: “Mas isso? Eu não quero seguir sendo isso”. Aí a pessoa pensa o que ela poderia ser. É um momento interessante aonde ela vai acessar as tendências que efetivamente traz de outras vidas, e na medida que ela busca acessar isso, podem surgir em meditações em meio ao sonho, surgir lembranças de fato. O Buda ensina como produzir essas lembranças, lembrar tudo para trás, como fazer isso através da prática meditativa. Mas a lembrança das vidas passadas não é uma coisa crucial, o que realmente nós precisamos é nos libertar dos condicionantes, nós precisamos gerar esse reconhecimento do aspecto secreto, que é amplo, e manter com clareza o treinamento de que todo o aspecto grosseiro ele está associado a um aspecto sutil e todo o aspecto sutil e grosseiro são manifestações do aspecto secreto. Isso é superimportante, manter essa unidade de avaliação de cada experiência. Nós também não somos as nossas identidades das vidas anteriores. O fato de haver essas regiões que influenciam a nossa mente, a gente não precisaria pensar que nós somos isso, não precisaria nos associar a este tipo de referencial. Nós somos a liberdade, nós somos a natureza livre da mente, nós somos o aspecto secreto, o aspecto livre. Esse aspecto livre se permite surgir de muitos diferentes modos, é por isso que temos lembranças de outras coisas que já fizemos, mas nós não somos nem o que somos hoje, nem o que fomos no passado, isso são passagens, é a própria ignorância imaginando e criando as identidades e as conexões com as identidades. Nós não somos isso.
#04 | Meditando a Vida | 02/05/21 Domingo Manhã
https://www.youtube.com/watch?v=GvvQMuKK3g8&ab_channel=LamaPadmaSamten
Transcrição: <Samira Lima da Costa>
Revisão: <Maurizete Barroso Winter e Samira Lima da Costa>
Introdução
Então, ontem nós olhamos esse tema, se os ensinamentos do Buda seriam úteis nesse tempo de agora. Os ensinamentos vêm de 26 séculos, e nesse tempo de agora nós temos muitos outros elementos. Será que esses ensinamentos do Buda são úteis? Nós estávamos olhando, e vimos que os ensinamentos do Buda realmente nos ajudam a aprofundar a nossa própria experiência. Ainda que o aspecto grosseiro possa ter outras configurações hoje, o aspecto sutil e o aspecto secreto são os mesmos. Então, nós estamos vivendo essencialmente do mesmo mundo, como sempre vivemos.
Aprofundamento da prática: mudança de base
Aí vem uma pergunta: como poderíamos então aprofundar a prática e fazer a nossa vida mais significativa? O primeiro passo seria olharmos a nossa própria vida sob o ponto de vista budista - que nós mais ou menos fizemos, examinando a roda da vida. Na sequência, nós perguntaríamos como poderíamos viver e, enfim, praticar e avançar no caminho, considerando esses aspectos todos que examinamos.
Tradicionalmente, tem um ensinamento que é aquele que vai colocar a nossa motivação na posição correta. A motivação inicialmente pode surgir como o foco da mente. Quando a motivação é o foco da mente, ela não funciona muito bem. Ela não opera, porque se eu estou olhando com aquele foco, eu entendo. Quando eu desloco para o lado e começo a raciocinar outras coisas, aquilo se perdeu. É simples!
Então, o foco da mente é útil para acessar as coisas, mas ele não me dá garantia nenhuma, porque a mente ora se coloca numa posição, ora se coloca em outra. É necessário que haja o que se chama de amadurecimento. Só que essa expressão ‘amadurecimento’ é uma expressão vaga, é totalmente vaga. Mas essencialmente o amadurecimento é a substituição da base de operação da mente para uma outra base de operação. Não se trata do foco. Aí vem a expressão ‘contemplação’. Eu tenho o foco, eu tenho a contemplação, e aí surge o amadurecimento. Por quê? Porque nós olhamos uma vez, olhamos duas vezes, olhamos três vezes, olhamos quatro vezes… E olhamos em muitas diferentes direções. Aí, progressivamente a base da mente se altera. Nesse momento, nós não temos nem muito claro o que seria a base da mente. Tá certo que esses ensinamentos têm sido contemplados em diferentes momentos, então muitas pessoas, eu acredito, já entendem esse aspecto da base da mente. Mas, para quem está começando, nós podemos examinar essa questão da base da mente a partir dos seis reinos. Poderíamos dizer que as pessoas que estão nos infernos, a base da mente delas está no reino dos infernos. Por exemplo, se oferecermos um foco favorável para a pessoa que está nos infernos, a pessoa olha aquilo e, se ela conseguir não olhar sob a perspectiva dos infernos, aquilo mesmo que é considerado favorável. A pessoa entende: “ah, isso é…”. Então nós explicamos: é o reino dos deuses, isso é possível, a felicidade é possível. A pessoa entende. Mas no momento seguinte ela olha numa outra direção e, quando ela olhar, vai olhar a partir da base dos infernos, e retoma a atividade dos infernos. Por quê? Porque ela se constrói; ela se estabiliza a partir de um conjunto de elementos que pertencem a alayavijnana. Enquanto não houver o deslocamento dessa base para uma outra base, não há uma mudança efetiva. O caminho espiritual é, na verdade, a mudança da base, não é a mudança do foco. O foco pode passear pelos reinos todos, pelos ensinamentos todos, pode acessar, pode ler tudo, mas a base da mente é difícil de arrastar, difícil de transitar. A base da mente, ao longo das múltiplas vidas, atravessa os seis reinos transmigrando; nós vamos transmigrando. Então, se diz que os seres que estão nos infernos cansam. Eles cansam de causar mal e de serem perseguidos. Num certo momento eles têm uma outra base que começa a surgir e dizem: “não importa se estão me perseguindo, não importa como eu fui afetado aqui dentro e nem o quanto eu já fiz de atrocidade. Eu vou tentar ajudar as pessoas que estão aqui. Nesse momento espantoso, é como alguém que ficou na prisão por longo tempo e continua na prisão, e num certo momento ela olha para os outros com compaixão. Olha para os carcereiros, para a estrutura toda e para os outros em volta. O ponto da sua dor e da sua privação não é mais o foco. Espantosamente pode surgir uma compaixão pelo carcereiro, pela pessoa que está ali, aquela que exerce e torna possível o sofrimento da própria pessoa. Nesse momento, os infernos cessam, nenhuma pessoa com sentimento compassivo é capaz de se manter nos infernos. Os infernos são pequenos para uma pessoa dessas, a pessoa é expulsa dos infernos, automaticamente.
Quando alguém ouve isso, e a pessoa está nos infernos, ela entende, mas diz: “mas isso não é pra mim. Eu quero é sangue, eu quero é morte, eu quero é vingança”. Isso é a base da mente. Com o foco, ela vê, mas com a base não é capaz de mudar. A pessoa não é capaz de mudar. É muito comum esse tipo de limitação que nós encontramos. Nós vemos uma pessoa fazendo tudo errado, aquilo não está dando certo. Explicamos para a pessoa: “olha, assim não vai dar”. E a pessoa: “tá, eu entendo, mas eu sou isso. Eu vou prosseguir, isso aqui é a minha vida. Vou embora e pronto, tchau, não quero mais ouvir nada disso, entendeu?”. Então tá… Aí nós olhamos. Mas, e se for um filho? Se for um marido? Se for a esposa, se for o pai, se for a mãe? Pessoas próximas, assim, nós fazemos o quê? Nós estamos nos defrontando com essa limitação. A base da mente do outro está nesse ambiente. Então, surgem essas práticas para mudar a base. A prática espiritual, se nós recebemos ensinamentos e vamos segui-los, se torna totalmente inútil se nós estamos ouvindo os ensinamentos desde uma base dos infernos, ou qualquer um dos reinos. Se torna inútil, porque nós acessamos aquilo, mas a base não muda. Então nós não mudamos. Essencialmente não mudamos. Para que aquilo tenha um efeito, é necessário que nós tenhamos uma base um pouco melhor. Essa mudança é algo crucial.
Atisha e as linhagens do budismo tibetano
Esses ensinamentos começam a ser oferecidos por Atisha. Tá certo que esses ensinamentos sempre existiram, são ensinamentos do próprio Buda. Mas quando Atisha chega no Tibete, ele encontra uma base budista no país, mas uma dissolução completa das instituições budistas por um período de aproximadamente cem anos, que começou com o rei Langdharma. Tá certo que o rei Langdharma é considerado um grande problema do budismo, para os tibetanos, mas têm várias versões, eu vejo que isso tem várias nuances. Entre elas, o fato de que houve o surgimento no período anterior ao rei Langdharma. Justamente pelo budismo ter se mostrado tão eficaz, tão útil, e ter sido absorvido de fato, surgiu uma casta monástica que era muito privilegiada. No desconforto, no descompasso entre uma classe monástica e o povo em geral, surge um tipo de descontentamento que termina trazendo a ascensão do rei Langdharma, que resolve perseguir e destruir todas as estruturas budistas. É o que ele faz. Na visão mais favorável à ação do rei Langdharma, se diz que ele não rejeitou totalmente o budismo. Ele seguiu um pensamento budista, também. Ele não perseguiu todos os mestres, teve vários mestres que não foram perseguidos, porque ele respeitou. Nesse momento, nesse processo de destruição, os mestres foram forçados a viver vidas comuns. Eles constituíram família, foram viver as vidas e mantiveram a mente ligada ao Dharma.
Esse ponto foi muito interessante, porque forçou para uma situação cármica, na qual surgiu essa situação dos mestres vivendo vidas comuns. Diferentemente da época do Buda, em que eram todos monges, eles tiveram que enfrentar as circunstâncias do mundo. Especialmente na linhagem Nyingma vai surgir essa noção. Por que surge a noção Nyingma? Vai surgir por causa de Atisha. Quando passou esse período de aproximadamente cem anos, não só o rei Langdharma já tinha morrido, mas também os sucessores dele. Aí veio um outro rei, que resolveu recolocar o budismo, e ele convidou Atisha para vir. Atisha era um mestre muito renomado, era talvez o principal mestre de Nalanda e o pessoal de Nalanda não queria que ele saísse. Mas Atisha entendeu o que estava acontecendo, e terminou simulando que ele ia sair para uma viagem pequena, depois voltava. E foi fazendo viagens pequenas, e depois voltava. Daqui a pouco ele se mandou! Aí ele foi subindo e dando ensinamentos. Passou pelo Nepal, foi subindo até o Tibete. Quando ele chega no Tibete, é um ponto interessante na história do budismo. Porque ele vai encontrar pessoas praticando em meio ao mundo, e vai reinstalar a tradição monástica. Ele vai criar o Lamrim. O Lamrim é um processo no qual ele conta, de forma compacta, o budismo. Então é um caminho gradual. Ele organiza isso. Ele aproveita que tem uma base e - ao invés dele começar com as Quatro Nobres Verdades e ir assim, como o Buda fez - ele começa por uma outra estrutura, na qual as pessoas já teriam uma certa compreensão. Ele não começa pelas Quatro Nobres Verdades, Nobre Caminho de Oito Passos, os Doze Elos da Originação Dependente… Ele não usa esse método, não começa com o Satipatthana, o Anapanasati, ele não vem por aí. Ele vem de um outro jeito. Ele está aproveitando essa base.
Eu acho interessante entender essa base. Daí vêm os nomes. Quando ele vem, ele vai reinstalar o budismo. Mas o budismo, quando ele reinstala, num tempo posterior vão surgir as linhagens que são chamadas de Sarma, que são as novas linhagens, porque não tinha mais uma estrutura monástica. Então ele vem e estabelece aqueles ensinamentos. Aqueles ensinamentos amadurecem na forma de três linhagens, que são a linhagem Gelugpa, a linhagem Kagyu e a linhagem Sakya. Todas essas linhagens terminam sendo constituídas de algum modo, ou beneficiadas de algum modo, pelos ensinamentos anteriores, que são os ensinamentos de Guru Rinpoche e dos mestres que sucederam Guru Rinpoche até a vinda do rei Langdharma, que destruiu aquela estrutura - mas o ensinamento estava ali. E assim, porque surgiram as novas linhagens, tudo aquilo que não era das novas linhagens se chamou de Antiga Tradução. A Antiga Tradução é a linhagem Nyingma - a linhagem da Antiga Tradução. É curioso, porque foram as novas linhagens que fundaram a tradição Nyingma, elas é que nomearam. Nós poderíamos dizer: “bom, os gelugpa vieram antes do nyingma”. Por quê? Porque quando eles surgem, é o contraste deles com aquilo que existia que vai nomear os antigos. É desse modo.
Então a tradição nyingma é diferente das outras tradições, porque ela tem as bênçãos daquele período extraordinário de destruição. Ela surge com esse encontro; ela traz esse sabor do encontro do budismo com a vida mesmo, assim, sem estrutura, sem proteção, sem nada. O budismo nyingma dialoga com muita facilidade com os mahasiddhas, que viviam totalmente desprotegidos, também. É uma abordagem na qual o aspecto exposto da vida é um dos elementos centrais. Então vocês vão ver que, no budismo nyingma, porque ele surge assim, o aspecto monástico não é o aspecto mais evidente, nem o aspecto preponderante, nem considerado o mais elevado.
Essa visão, por exemplo, ainda que Marpha não seja um nyingma, ele representa bem essa visão, também. Porque o Marpha vem pelos mahasiddhas, então eles também não viviam de modo monástico. Esse é um ponto interessante: como os praticantes, em meio à natureza, tendo o Dharma como proteção, eram capazes de viver nos vários ambientes humanos? Esse é o ponto.
Dentro desses ensinamentos que começam com Atisha, depois esses diálogos vão nutrindo também a estrutura dos nyingma. Porque os nyingma funcionam de um modo anárquico, não hierárquico, não tem estrutura de poder de onde aquilo tudo emana, como especialmente as tradições novas. Elas são tradições mais piramidais, especialmente a Gelugpa, que está em torno da figura dos Dalai Lama. A linhagem nyingma, curiosamente, passou a ter um regente depois da invasão chinesa e anexação do Tibete pela China. É recente! Até então não tinha um regente, era um sistema auto-organizado - ou auto-desorganizado, alguma coisa assim (risos). Um processo que lembra as colméias de abelha: sai um enxame para cá e… pooom, começa alguma coisa; e tchuuum, sai outro enxame pra lá. Até hoje funciona assim, esse é o processo. Eu me sinto super confortável nessa forma. Esse é um ponto interessante.
Nesse diálogo constante entre as várias tradições, umas aprendiam das outras, e vão se nutrindo. Então vocês vão encontrar nos ensinamentos de Patrul Rinpoche - que foi um grande mestre também, um andarilho pelo mundo, - isso posto. Patrul Rinpoche vai trazer isso, em Palavras do Meu Professor Perfeito. Essa expressão eu acho muito feliz, e também muito desafiadora. Porque ele podia olhar “palavras do meu professor”, ou seja, o mestre humano que ele teve, os vários mestres humanos que ele teve. O que os mestres humanos que ele teve, disseram? eles disseram isso (e ele coloca). E ele também pode pensar: o “professor perfeito” é Guru Rinpoche, é o Buda, é Samanthabadra - então aquelas são palavras que vêm de Samanthabadra. Na verdade são as duas coisas, porque a linhagem dos mestres vivos é a linhagem de Samanthabadra, de Kuntuzangpo, do Buda Primordial, de Prahevajra, de Garab Dorje, de Manjushrimitra, Vimalamitra, Guru Rinpoche. Mas todos eles são essencialmente Prahevajra, eles são Vajrasattva, eles são a mente lúcida, sem nome, sem posição, sem surgir nem cessar, sem tempo, olhando os mundos construídos.
Então, dentro dessa expressão “palavras do meu professor perfeito”, vêm os ensinamentos que trazem, por exemplo, as quatro contemplações - os quatro pensamentos que transformam a mente. Os quatro pensamentos são seis, porque - essa matemática tibetana é complicada - eles são quatro, mas tem um antes, e um depois. Esses aspectos são voltados a produzir uma transformação na visão da pessoa. Então, vamos supor que as pessoas já ouviram sobre o Buda, já ouviram sobre as Quatro Nobres Verdades, sobre o Nobre Caminho Óctuplo, já praticaram um pouco de Satipatthana e mais ou menos entendem o que seria o caminho, mas elas estão no mundo. Se elas seguirem no mundo, seguirem no samsara, mesmo que elas ouçam os ensinamentos, não vai mudar muito, porque elas estão com uma base com uma limitação cármica essencial.
Gampopa e o potencial dos seres
Quando nós olhamos os ensinamentos que vêm, por exemplo, por Tilopa, Naropa, Marpha, Milarepa, Gampopa, nós vamos encontrando os ensinamentos correspondentes a Palavras do Meu Professor Perfeito.
O Potencial Cortado
No Ornamento da Preciosa Liberação, nós vamos ver essa expressão: que todos os seres têm a natureza búdica. Porém, tem os seres que têm o potencial cortado. Os seres que têm o potencial cortado, eles essencialmente estão presos ao mundo, no sentido de que, quando eles olham em volta, eles vêm a coisa óbvia: “esse aí é o mundo, pessoal! Hoje é domingo, amanhã é segunda-feira. E agora são dez horas da manhã, nós temos que fazer coisas, tem o almoço para andar, tem as coisas para comprar e a vida segue. Essa é a realidade”. Então, quem olha desse modo está dentro do mundo. Quem ouvir os ensinamentos mais elevados mantendo o mundo como a base, não consegue avançar.
Por outro lado, tem aqueles que estão no samsara, ou seja, eles até entendem que o mundo é ilusório, dão uma risadinha, e seguem no mundo. Entendem que ele é ilusório, mas seguem. Isso corresponderia aos seres que estão no samsara. Tanto uns quanto outros, têm uma agenda. eles não manifestam a compaixão como ponto principal. Eles manifestam os três venenos, os três animais como ponto principal. Eles estão fixados numa visão de identidade, que é inseparável da visão de mundo que eles têm; eles têm uma incessante demanda por fazer coisas e sustentar coisas, e isso é crucial na vida deles; e eles se defrontam e se defendem com raiva e com aversão. Então eles operam de uma forma estruturada pelos animais, pelos três venenos, que são o centro da Roda da Vida. Eles colhem as impermanências, mas as impermanências os fazem ficar mais cautelosos e mais defensivos, para avançarem na estrutura do mundo e do samsara.
Isso é a descrição dos seres que têm o potencial cortado: eles não avançam, não têm como andar. Eles não se importam em causar prejuízo aos outros seres para benefício próprio. Eles não têm nenhum problema com isso. Isso corresponde aos seres que têm a natureza búdica, são capazes de construir coisas, manifestam a natureza búdica. Os mundos que eles vivem são mundos construídos; são mundos luminosos, construídos artificialmente, como todos os mundos. As identidades também são luminosas; elas são capazes de construir outras, em outros ambientes. Eles são também como os pássaros, as minhocas, os seres todos da natureza, que constroem suas realidades e vivem dentro daquilo. Eles têm a natureza búdica, está lá; portanto, eles têm o potencial de atingir a iluminação. Só que o potencial deles está cortado. Cortado porque eles não têm como ultrapassar essa circunstância, essa visão que eles desenvolveram é a visão que inviabiliza a capacidade de olhar a realidade como ela é. É como se eles estivessem dentro de um jogo. Eles estão dentro de uma bolha, e aquela bolha aparece completamente sólida. Isto está descrito por Gampopa. Ele descreve isso. E assim podemos entender progressivamente a importância da motivação. A motivação não é o foco da mente, mas a base da mente. Nós podemos explicar para as pessoas sobre a impermanência, sobre as várias circunstâncias, mas elas estão entrincheiradas nessa posição. É difícil retirá-las disso, elas estão imersas nesses aspectos.
Shravakas e Pratyekabuddhas - Nós vamos encontrar também, como Gampopa vai descrever, os Shravakas. Os Shravakas, eu não gosto nunca de denegrir - não gosto realmente. Os Shravakas, eu prefiro olhar num sentido elevado. Os Shravakas perceberam o samsara. Eles entendem o mundo, entendem o samsara, e entendem que aquilo não é interessante. Eles buscam e se amparam em Manjusri para eliminar a ignorância, eliminar o engano diante da experiência que eles têm. Então eles focam diretamente isso. A crítica que se faz aos Shravakas é que eles ficam presos a uma visão autocentrada, então o caminho deles é muito longo. É um caminho difícil e longo. Eu, quando olho essa crítica aos Shravakas, eu também olho assim: “está bem, se eles ficarem presos a um autocentramento, isso pode acontecer. Então, se eu definir os Shravakas como autocentramento, está bem. Mas se eles são aqueles que estão eliminando a ignorância e estão ultrapassando o samsara, eles ultrapassam também o autocentramento. E isso não é problema nenhum. Eu não preciso prendê-los a alguma coisa deste tipo. Então, nós temos os Shravakas. Nesses ensinamentos de Gampopa, esse é um aspecto que é considerado menor.
Nós vamos encontrar também os Pratyekabuddhas. Os Pratyekabuddhas têm uma tendência a olhar as próprias experiências que vieram de outras vidas, que brotam intuitivamente neles, como o ponto central dos ensinamentos. Eles têm dificuldade de ouvir os ensinamentos, têm dificuldade de ver outras coisas, porque eles estão centrados em imagens anteriores. Tá certo que os Pratyekabuddhas têm essas limitações. Por outro lado, eu também não gostaria de criticá-los. Porque eu vejo os Pratyekabuddhas como aqueles que podem tomar essa base anterior, mas não preciso limitá-los a isso. Eles mesmos percebem as limitações que eles podem ter, e eles têm realmente condições de ir adiante. Então eu não vejo uma necessidade de nós considerarmos isso alguma coisa efetivamente equivocada, mas podemos entender que essa fixação a tendências anteriores do próprio caminho, pode ser problemática, no sentido de que nos impede de ver adiante do que nós já tínhamos acessado. Se nós perguntarmos por que não atingimos a iluminação ainda em outra vida, isso vem justamente porque seguimos esses ensinamentos, dos quais agora temos uma memória, e seguimos também. então os Pratyekabuddhas teriam essa dificuldade.
Isso - tanto os Shravakas quanto os Pratyekabuddhas - pode se dar como características do caminho do ouvinte. Então, por exemplo, é como o Buda descreve, e como o Buda critica o Ananda. O Ananda ouve os ensinamentos, mas ele não é capaz de fazer esses ensinamentos brotarem de dentro; ele não é capaz de copiar a própria mente búdica; ele não é capaz de acessar a mente búdica a partir do exemplo do próprio Buda, na frente dele. Ele não consegue fazer isso, então ele pega as palavras e guarda aquilo. Por exemplo, se as pessoas têm um cozinheiro hábil que ensina para alguém: “agora você vai lá, faz isso, faz aquilo, mexe assim…”, eu acho interessante que a pessoa guarde aquilo com cuidado, faça exatamente isso. Mas na cozinha é perfeitamente natural que, no dia seguinte, a pessoa já tenha colocado mais uma pitada de não sei o quê, já mexeu na outra direção e já deixou um pouquinho mais de tempo, ou um pouquinho menos, e foi vendo o que acontece. Então, os Pratyekabuddhas e os Shravakas são ouvintes, mas com o tempo eles vão ultrapassando esse aspecto, vão ouvindo de dentro, também. Eles vão olhando e acessando essa mente. Como um espelho da mente do Buda, eles vão conseguindo acessar essas regiões e vão trazendo essa dimensão de uma sabedoria própria, de dentro.
[conversa com praticante presente na sala]: Eu acho que em Recife não tem um único praticante no caminho do ouvinte, todos são cheios de grandes criações, vão criando caminhos. Eles ouvem uma coisa, já criam muitas outras coisas. Aquilo é maravilhoso! Maravilhoso no sentido de ser expansivo, luminoso. Estou dizendo isso porque você está voltando pra lá, tem que dizer isso pra eles, que eu mandei esse recado . Lá não tem perigo. Não tem Shravakas, Pratyekabuddhas, lá não tem isso. São seres luminosos, sempre.
Potencial flutuante
Aí tem o que Gampopa vai chamar de potencial flutuante. O potencial flutuante - não é que eu esteja achando, assim… (risos) - tem para todo lado. O potencial flutuante é assim: a pessoa pratica um pouco; daqui a pouco ela vira pro lado e vai, anda pelo mundo, pelo samsara alegremente, sem nenhum problema. Esse é o aspecto do potencial flutuante. Um pouco a pessoa anda, e um pouco ela desanda, seria mais ou menos isso, assim. O Gampopa vai apontar isso como um problema. A pessoa, de repente, se lembra: “oh, eu era um praticante! Deixa eu ver quando é que foi isso…”. A pessoa já está morando na Austrália, foi embora. Daí a pessoa: “bah, o que é que o Buda dizia mesmo?”. Aí a pessoa de repente se lembra. Ou a pessoa está assim: ela pratica e dispersa, pratica e dispersa, pratica e dispersa - que é o mais comum. Então, isso é o potencial flutuante.
Potencial Mahayana
Aí o Gampopa vai dizer: HO! Mas tem o potencial mahayana, o potencial do Bodisatva. Esse é o ponto - o potencial mahayana. Vem esse ensinamento: se nós tivermos a aspiração de ultrapassar verdadeiramente nossos obstáculos, e nós entendermos o sofrimento estrutural dos seres e o nosso próprio, nós não conseguiremos mais ficar parados. Por quê? Porque não tem graça nós ficarmos dentro dos seis reinos, girando dentro do sofrimento estrutural, e não indo a lugar nenhum. Então não é uma coisa apenas conosco; é alguma coisa que envolve todos os seres. Por quê? Porque é um sofrimento estrutural, e uma base. Essa base de engano está aí, e nós precisamos superar essa base de engano. Se diz que essa perspectiva é diferente da perspectiva dos Shravakas e Pratyekabuddhas. Porque os Shravakas, é como se eles estivessem… Os Shravakas são uma construção Mahayana, eu acho, com essa visão, para produzir um processo de instinto. Eu não vejo desse modo, mas se diz que os shravakas têm um auto-interesse. Ou seja, eles estão incomodados porque eles estão presos dentro de um sofrimento, mas é como se não tivesse um sofrimento estrutural claro, que abarca todos os seres. É como se não tivessem a Grande Compaixão. Eles até veem o sofrimento, mas eles dizem: “bom, eu estou no sofrimento. Se eu resolver meu sofrimento, de repente eu ajudo os outros seres”. Mas eu acho que os Shravakas e os Pratyekabuddhas têm uma compreensão total do sofrimento estrutural. Porque eles estudaram, eles aprenderam a primeira Nobre Verdade, a segunda Nobre Verdade, eles entendem como as coisas se dão. Eles entendem que a liberação é possível - terceira Nobre Verdade. E eles entendem que é um caminho que começa com a motivação, ali está claro. As Quatro Nobres Verdades estão claras para eles. Mas os Shravakas, eventualmente ficam presos a uma estrutura que os impede de ter essa sensibilidade ampla por todos os seres e a compreensão da mente de cada um dos seres, é como se isso não fosse o foco. Então, eles vão operando a partir da própria experiência, mas não levam em princípio esse objetivo de entender a mente dos outros seres e reconhecer a natureza búdica em todas as direções, é como se isso não fosse o foco. Os Pratyekabuddhas também. Mas os Bodhisattvas têm essa mente ampla, essa mente maravilhosa de olhar todos os seres e compreender a natureza búdica de todos eles. Esse seria o melhor potencial para nós podermos avançar. Isso em si mesmo é considerado a motivação adequada. Aí nós precisaríamos conseguir transitar em direção a essa motivação. Esse é o ponto central. Porque se nós estamos ouvindo os ensinamentos e temos essa sensibilidade, nós já vimos a questão estrutural dos seres todos e a nossa, e vimos que realmente estamos presos dentro de uma circunstância difícil, mas que a liberação é possível.
Se nós estamos ouvindo isso, e isso faz sentido, esse é o lugar a partir do qual nós brotamos, então nós não estamos no mundo no sentido comum. Eu não estou aqui pra ficar mais feliz ou menos feliz, construir isso e ganhar aquilo, fazer isso e perder aquilo. Eu não estou dentro disso. Eu estou dentro dessa compreensão, essa é a base que permite o movimento. Eu também não estou aqui agora, recolhido, para pesquisar imagens internas, não estou fazendo isso. Eu estou olhando este fenômeno extraordinário da manifestação em todas as direções. Esse é o caminho do Bodhisattva. Se nós tivermos isso, quando ouvimos os ensinamentos, imediatamente nos conectamos com essas estruturas, e isso permite que tudo cresça. Mas se eu ouvir os ensinamentos dentro do mundo, eu vou dizer: “bom, mas isso daí, o que quer dizer, com o fato de que eu estou no meio [da pandemia] do covid, e estou agora desempregado? O que isso diz? Eu tenho que resolver meus problemas. O caminho espiritual é uma outra coisa. Quando eu estiver melhor eu volto pro caminho espiritual”. Então existe uma discrepância. Aqui não, nós olhamos todos os problemas, todas as coisas que estamos vivendo, dentro dessa grande base de compreensão de como surgem as realidades e como é que isso tudo se dá. É desse ponto que a prática pode produzir resultados.
Contemplação - o caminho para a mudança de base
As pessoas, nesse tempo, no ocidente, quando surge esse encontro com muitas diferentes linhagens, às vezes as pessoas viajam e recebem ensinamentos, e ouvem muitos diferentes mestres, de diferentes lugares. Elas recebem bênçãos, recebem transmissões, recebem iniciações de diferentes lugares, recebem mantras, sadhanas e práticas variadas. Eu acho isso uma grande riqueza. Mas se a pessoa não tiver a base onde essas sementes poderosas podem ser acolhidas, então a pessoa não consegue aproveitar. Existe um tipo de frustração também, de pessoas que ouviram muitos ensinamentos, andaram para muitos lugares, e não conseguiram avançar. E elas também não sabem por quê. A razão pela qual elas não avançaram, e não avançam, é a base.
Nós também, por exemplo, dentro do mundo, podemos considerar que o caminho espiritual, as bênçãos, as sadhanas, os mantras, as iniciações, são ornamentos da nossa vida, ornamentos da nossa identidade no mundo. Essa é a pior base para nós andarmos no caminho, nós não vamos conseguir andar. Se simplesmente entendermos o samsara, mas andarmos pelos vários lugares colecionando os ensinamentos como ornamentos da nossa vida no samsara, isso não vai resultar. Nós precisaríamos ter uma clareza muito grande da primeira e da segunda Nobres Verdades, entender o sofrimento estrutural, entender os seres, entender como eles constroem os mundos, entender as bolhas, as identidades, entender com profundidade a originação dependente. Isso nos propicia uma base mahayana de interesse por todos os fenômenos, em todas as direções como aspectos maravilhosos da mente primordial. E aí, ouvindo os ensinamentos, nós avançamos dentro desta perspectiva. Esse é o ponto.
Então, aqui eu resumidamente expliquei a importância de fazer essa transição de base para poder andar. Essa transição de base não é um foco. As pessoas inteligentes têm a capacidade de foco. Se nós explicarmos alguma coisa, a pessoa diz: “sim, sim, sim, é isso. Sim, entendi, isso é o que o Buda falou, entendi. Então está bem”. Mas a base dela segue a mesma. Aí, no dia seguinte elas estão fazendo as mesmas coisas porque elas estão operando naquela mesma base. Então, essa mudança de base é que é o ponto. Daí vêm essas expressões, por exemplo, “contemplar os ensinamentos”, ou “amadurecer os ensinamentos”. São palavras que ficam, por vezes, difíceis de dar sentido. O que significa amadurecer um ensinamento? Amadurecer o ensinamento é mudar a base. Mas como é que eu mudo a base? Eu mudo a base contemplando. Então, nós precisamos retornar. Chagdud Rinpoche insistiu muito nesse ponto, “Pensar, Contemplar, Repousar”, que é o processo de amadurecimento. Nós tomamos o ensinamento, por exemplo, a primeira Nobre Verdade. eu imagino que, na medida em que nós vamos andando, cada um de vocês vai fazendo isso sem precisar produzir um aspecto formal, mas podemos começar dentro de um aspecto formal. Então nós acessamos a primeira Nobre Verdade e lembramos sobre o sofrimento; lembramos a segunda Nobre Verdade, as causas do sofrimento… Aí nós começamos a olhar em volta e encontrar exemplos. Isso é contemplar. Dessa capacidade de encontrar exemplos do ensinamento, que é a contemplação, brota uma mente rápida que, tão pronto olha, está vendo as coisas como são. Ela está vendo a primeira Nobre Verdade e a segunda Nobre Verdade claramente, rápido. Quando isso está operando rápido deste modo, isso começa a constituir uma base a partir da qual nós vamos construindo, ouvindo os ensinamentos, e aquilo vai indo adiante. Esse amadurecimento está ligado à rapidez que aquela clareza brota. Nós podemos olhar o campo aqui com variados olhos. Entre eles, o olho do Dharma. Se nós olharmos o campo sempre com o mesmo olho do samsara e do mundo, nós não conseguimos levar o Dharma a todas as direções. O caminho mahayana leva o Dharma a todas as direções. Mas para fazer isso, é necessário que a base amadureça deste modo. Então nós partimos, e quando os olhos pousam sobre as coisas, o Dharma aparece. É essa base mahayana que é a base fértil, na qual os ensinamentos, vindo, progridem. Esse é o ponto.
Então, a contemplação é o ponto essencial. Só que essa contemplação, se nós tivermos méritos, eventualmente desta vida ou de outra vida, essa contemplação é apaixonada, é uma contemplação que tem energia dentro. Por vezes, ela é simbolizada por casais. Vocês já viram isso, tem o Buda e tem a consorte. A consorte é o mundo. Tem uma relação apaixonada entre as aparências e a mente do praticante. O praticante olha, e as aparências não são como o mundo, não são aparências do mundo. Elas são o Dharma, o interesse em entender profundamente a visão do Dharma nas aparências todas. Isso dialoga perfeitamente com a noção do Buda de ir contemplando as aparências, e não há um livro outro que não as próprias aparências. É nas aparências que o Dharma está escrito diretamente. Quando esse olhar aparece, esse é um olhar apaixonado. Eu acho que esse olhar é parecido também com o olhar do cientista. O cientista também tem um interesse extraordinário nas aparências. Só que ele está olhando sempre dentro da perspectiva hermética - ele procura leis. Ele não está olhando pela perspectiva do Dharma. Mas é muito parecido. O cientista pode cruzar facilmente esses bordos.
Estou aqui descrevendo o potencial mahayana, dos Bodhisattvas, e por que ele é tão importante para que o caminho possa efetivamente ocorrer. E por que, mesmo os ensinamentos muito profundos, podem ter dificuldade de prosperar, quando não há uma base adequada. Esse é o ponto. Quando há essa base adequada, quando existe paixão junto, existe essa energia junto; quando essa energia acontece, as pessoas se movem, elas andam porque a energia está presente. Se nós olharmos o potencial Shravaka como ele é apresentado, ele não teria nenhum tipo de obstáculo para o praticante desenvolver essa visão. Ele pode começar com as suas próprias dores, mas ele rapidamente percebe, pela primeira e segunda Nobres Verdades, a amplidão disso. Ele pode desenvolver essa parte apaixonante também, sem nenhum problema, ele já está no potencial mahayana. Mas se nós vamos nomear alguma coisa que é estreita, eu acho interessante que nós descrevamos o que seria essa estreiteza. Essa estreiteza seria o desconforto em relação ao mundo, em relação ao samsara, e nós, tentando cortar esses aspectos que prejudicam a nossa própria operação. Mas quando nós estamos cortando coisas, não estamos iluminando, não estamos olhando de forma ampla; a energia é baixa. Então, é como se os Shravakas - que eu acho que não existem - não tivessem a paixão, no caminho, então o caminho é muito mais lento.
Motivação - os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente
Aí vem Atisha, vêm esses diálogos com a tradição da Antiga Tradução. A Antiga Tradução também vê aqueles argumentos, e absorve os argumentos. Dali vai surgir essa noção dos Quatro pensamentos que Transformam a Mente, que é algo que se conta para as pessoas que vão começar o caminho, e elas vão começar a definir a motivação. Os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente é um esforço para permitir o primeiro movimento do mundo em direção ao Dharma. Primeiro movimento. Ele inclui o caminho mahayana, mas ele é essencialmente uma postura dos Shravakas e Pratyekabuddhas, porque vai definir uma primeira motivação a partir de uma experiência pessoal. Essa abordagem foi absorvida pela visão Vajrayana também. Então o caminho que reconhece o aspecto luminoso da realidade também pode absorver isso como primeiro passo, primeiro movimento. Esse movimento vai começar com esses Quatro Pensamentos.
Homenagem ao Guru
Então vocês vejam: em primeiro lugar, nós temos o Guru. Tem os Quatro [Pensamentos], mas esse é o que vem antes - Homenagem ao Guru. Está certo, dentro da perspectiva Vajrayana, nós vamos começar com o Guru. Por quê? Porque o Guru já simboliza a natureza primordial. Mas a palavra Guru é interessante, porque ela permite desde a primeira percepção, o Guru na forma como surge no caminho do próprio Buda. Quando o Buda vai descrever isso, ele vai nomear dentro da sangha vários tutores - a palavra é tutor - e esses tutores, eles são bons amigos, é descrito deste modo. Então o Buda estabelece como as relações devem ser, as relações entre os praticantes e os tutores, no sentido de que os tutores introduzem e ajudam os praticantes, e os praticantes corrigem os tutores. Esse é um ponto interessante, é um processo de aprendizagem mútua. A primeira noção de professor é “o bom amigo”, é aquele que vai nos ajudar. Na perspectiva Vajrayana, o Guru ganhou uma outra perspectiva, porque naturalmente a realidade é muito diferente. Se nós estamos olhando a realidade luminosa, as coisas surgindo luminosas, nós não vamos dar um sentido comum a nada, incluindo ao bom amigo. O primeiro aspecto que vamos perceber é o bom amigo. Mas na sequência, quando estamos na compreensão não apenas do aspecto grosseiro, mas nós temos o aspecto sutil e o aspecto secreto, olhamos para o bom amigo e perguntamos: “e o aspecto sutil? e o aspecto secreto?”. O Guru deveria ter, e deveria apresentar, o aspecto grosseiro, o aspecto sutil e o aspecto secreto. Por quê? Porque todos os seres têm essa natureza, têm o aspecto grosseiro, o aspecto sutil e o aspecto secreto. Todas as manifestações têm isso. O universo inteiro é inteligente. A natureza búdica está em todos os lados, em todas as manifestações. Então, se o bom amigo está ali para ajudar, ele deveria ter essa capacidade de mostrar isso. Não só mostrar discursivamente, mas ele deveria manifestar isso de modo claro, como um exemplo. Então, isso é o Guru. O Guru vai deslizando de uma aparência comum para um aspecto sutil, e do aspecto sutil para o aspecto secreto. Mas isso não quer dizer que ele seja isso; todos os seres são isso. Mas ele deveria ser a pessoa consciente disso, sem o quê ele não vai conseguir ajudar. Ele teria que ter essa consciência e a capacidade de trazer isso para os outros. Então nós começamos o caminho dizendo: “homenagem ao Guru, aquele que sabe”, é tão simples quanto isso. Só isso. No início, as pessoas não têm ideia do que pode significar isso - homenagem ao Guru, aquele que sabe. Não entendem. NAMO GURU. Tão simples quanto isso. Progressivamente elas vão entender isso como o outro. Mais adiante elas vão perceber isso nelas. Por quê? Porque o Guru está ali como um espelho, para refletir e ajudar o outro a entender esse potencial e essa realidade que é dele. No caminho Vajrayana isso é muito importante, é superimportante. A motivação Mahayana inclui isso. O caminho vajrayana é o caminho que vai até o Dzogchen. Não quer dizer que seja o caminho que necessariamente vai fazer mantras ou vai fazer visualizações de deidades. Não é isso. É o caminho que reconhece o aspecto vajra da realidade, o aspecto luminoso da realidade - a não dualidade. Nesse ponto, surge a visão do Guru desse modo. No caminho Vajrayana isso é considerado uma grande vantagem, porque se nós acessarmos os ensinamentos, mas não temos a proximidade da instrução que vai ao ponto, nós podemos levar muito tempo. Isso é visível, porque nós olhamos o que nós avançamos, e então vemos que conseguimos compreender algumas coisas cruciais. Mas se olharmos o tempo que nós levamos para compreender aquelas coisas cruciais, às vezes aquilo é desanimador. Porque nós avançamos um trecho, mas se passaram dez anos. Aí, se tem mais uns duzentos trechos para andar, dez anos para cada um, vai dar dois mil anos, pessoal! Aí eu entendo o que o Buda quer dizer, que a coisa é meio lenta. O Dalai Lama diz: não é uma vida, são várias. Então o Guru, se a pessoa vê o Guru, isso significa que a pessoa desenvolveu a mente do Guru. Esse é o ponto. A mente que vê aquilo. Ela começou a ver de forma mágica. Ela começou a ver de forma luminosa, esse é o ponto. Se a pessoa não vê de forma luminosa, então ela não consegue ver. Ela também não consegue ver o Guru. A expressão ‘Guru’ é super útil, porque ela serve em qualquer âmbito. Então começamos dizendo NAMO GURU. Tudo bem, isso não é nada. Mas já temos uma estrutura de base que permite que nós vamos ancorando, nessa expressão, significados mais e mais profundos. Daí a importância. Então tudo começa com NAMO GURU. Na sequência, vêm os Quatro pensamentos.
Primeiro Pensamento que Transforma a Mente - Vida Humana Preciosa
O primeiro pensamento vai dar conta do potencial que nós temos. Então, por exemplo, nós temos tempo, temos saúde, temos liberdades, não estamos dominados por outros seres, não estamos dominados pelo patrão, não estamos dominados pelo emprego, não estamos dominados pela dependência de filhos, família ou várias circunstâncias. Então nós podemos ouvir os ensinamentos do Buda. É muito raro, no meio desse “samsarão” todo, é muito raro que o Buda tenha aparecido. O Buda também poderia ter vindo, dado uma olhada e dito: “bah, isso está pesado, eu fora!”. O Buda até tentou. Mas enfim, ele deu os ensinamentos. Passou lá, aqueles anos todos, dos 36 aos 80 anos, ele passou esse tempo todo viajando a pé por todos os lados, morando debaixo de árvores, pegando chuva, se alimentando uma vez por dia, dando ensinamentos o tempo todo, ajudando as pessoas o tempo todo. Ele fez isso, muito raro. Se diz que em milhares e milhões de ciclos universais, é muito raro o Dharma aparecer. É muito raro surgir a consciência clara sobre as aparências e sobre o Dharma; a consciência que é capaz de filtrar as aparências e vê-las luminosas, como elas são. É muito raro isso. Então o Buda veio e deu os ensinamentos, mas os ensinamentos poderiam ter desaparecido. Milagrosamente, espantosamente, os ensinamentos perduraram, mesmo dentro do samsara, dentro do mundo comum. Isso é porque havia necessariamente um número de pessoas, havia uma base na qual as pessoas tinham purificado as suas mentes e podiam ouvir os ensinamentos e aquilo fazia sentido. Eu acho maravilhoso que o Buda vem e fala dentro da cultura védica. Então, todo o caminho anterior, os cinco mil anos de cultura védica - que a cultura védica me perdoe se não forem cinco mil, mas forem quinze mil, ou cinquenta mil anos… Não tem nenhum problema - essa profundidade, esse legado de gerações e gerações de pessoas que sentaram em silêncio e contemplaram as estrelas, contemplaram o mundo, isso chegou. Isso é o caldo onde o Buda surge. O Buda vai para a floresta e encontra esses seres, e é para esses seres que ele fala. Então, havia essa base. Estes seres acabam sustentando esses ensinamentos e seguem falando para os seres do mundo, que têm dificuldade de compreender. Por exemplo, só para [ilustrar], de passagem: na própria família do Buda, o Buda começou a ordenar os primos, e os tios reclamaram, “como é que você está ordenando, eles? Nós precisamos deles aqui no mundo, para serem aqueles que vão sustentar o próprio reino. Se você ordenar todo mundo, acabou o reino!”. Então, eles colocam o mundo em primeiro lugar. Isso é o mundo, esse é o mundo. E o Buda respeitou isso. Também ocorria de o Buda ordenar alguém que tinha deixado uma esposa e filhos para trás. Depois aparecia a esposa lá: “Abençoado, o Senhor me dê ele de volta, eu preciso dele lá em casa. Agora está aí, com essa cara que eu nem reconheço, ele escapou!”. Aí o Buda: “Ih, isso não vai dar certo…”. Então ele começou: “Eu só ordeno os jovens, desde que os pais permitam”. Ele só ordena os maridos desde que as esposas concordem por escrito. Esse é o encontro dos ensinamentos com o mundo. O mundo cobra. Mas o Buda vem para beneficiar o mundo, então o Buda respeita. Ele ajusta os ensinamentos e acopla aquilo. Mas o ponto central é que não são as pessoas do mundo que sustentam os ensinamentos, são aqueles que já tinham uma base anterior. Então o Buda vem dentro de uma cultura maravilhosa, essa cultura que permite que os ensinamentos sejam ouvidos. Essa cultura é que dá significado para isso que eu estou descrevendo aqui, que é muito raro. Em milhares e milhões de ciclos universais, é muito raro o surgimento de um Buda. O Buda aparece. Os ensinamentos poderiam ter desaparecido. Os ensinamentos estão todos escritos nas aparências, mas ainda assim se tornam totalmente obscuros e fechados, porque as pessoas veem a névoa. Elas não olham as coisas como são, elas olham a névoa, então elas se misturam. É como as aranhas, as cobras, como os vários seres todos - eles fitam a névoa. Na névoa, eles caçam uns aos outros e aquilo funciona e parece que aquilo é a vida. Mas o Buda vem e descreve de forma profunda, isso. Então nós temos esses ensinamentos, isso aconteceu. Esses ensinamentos se preservaram a partir dessa base de méritos anteriores. Nesse momento nós estamos ouvindo isso porque nós temos os méritos para dar atenção a esse tipo de ensinamento. Quando olhamos isso, essa compreensão de que há essa base profunda que nos permite a sensibilidade é que nos leva a, quando nós fazemos as prostrações, agente tomar refúgio no Buda, até atingir a liberação - isso é interessante. Eu tomo refúgio no Buda, e quando tomo refúgio no Guru até atingir a liberação, até atingir a iluminação. O que significa isso? Quando atinge a iluminação eu descubro que nunca houve essa diferença. então eu não tenho porquê eleger uma figura separada, para tomar refúgio. Por isso que é até a iluminação: porque na iluminação isso cessa. Cessa por quê? Não é porque eu atingi, é porque eu vi que nunca houve essa diferença. Mas a palavra GURU, ela nos ajuda até a iluminação. E quando nos levantamos, nos levantamos para trazer benefício, felicidade, iluminação, para ajudar a todos os seres, reconhecendo que eles foram nossos pais e mães. Isso, nós olhamos assim, e aquilo parece que é meio forçado. Mas essas palavras significam isso - nesse momento nós temos essa sensibilidade porque todos os seres, em todas as direções, trouxeram as influências cármicas e méritos que nos permitem ter esses méritos neste momento, para nos movimentarmos. Não apenas nossos pais e mães humanos, mas todas as manifestações, em todas as direções. Nós somos completamente inseparáveis de todas as manifestações, em todas as direções, que eu aqui vou chamar de “todos os seres foram meus pais”, porque não tenho outras palavras para explicar melhor. Do mesmo modo eu uso a palavra GURU porque não tenho outra palavra para explicar isso melhor. Mas essas palavras me permitem andar. Então, nesse momento, nós lembramos de todos os seres que foram nossos pais e mães e que, então, surgem aqui como os méritos que eu tenho para estar diante do Buda e ouvir os ensinamentos. Não é só o Buda que aparece, e não é só o fato de eu ter liberdade. Espantosamente nós temos sensibilidade e capacidade de ouvir isso que o Buda está dizendo. Isso não é uma coisa comum, também. Então, isso é o primeiro dos Quatro Pensamentos que Transformam a Mente. Nos damos conta disso. Esse é o único pensamento bom, os outros… rrrrrgh [risos].
Segundo Pensamento que Transforma a Mente - Impermanência
Aí já vem assim: “pois é você tem isso, porém a impermanência está na espreita”. A qualquer momento, de manhã, de tarde ou de noite, em qualquer dia, simplesmente pode haver uma interrupção, porque nós não só temos méritos, mas nós também temos carmas. Os carmas nos pegam direitinho, no lugar onde nós estamos e tchum, nos tiram dali. Pronto, deu. O que significa a impermanência nesse âmbito? A impermanência significa o fato de que quando nós estamos nos movimentando por dentro do Dharma, ouvindo os ensinamentos, nós separamos a região onde há os ensinamentos da própria experiência do mundo. Então, de repente, deste lugar que eu excluí, vem um movimento que nos arrasta de volta. E aí eu volto para regiões onde eu imagino que o Dharma não é possível, onde não parece que tenha clareza possível. E é onde nós vamos fazer um movimento comum, como nós vimos fazendo desde sempre, como todos os seres fazem. Movimentos comuns. Então surge esse aspecto, que é a impermanência. A qualquer momento nós podemos ser acessados pelas estruturas cármicas que reinstalam o mundo, reinstalam o samsara, e seguimos dentro disso. Isso é o segundo Pensamento que Transforma a Mente. Eu preciso contemplar isso para transformar, aí a base vai mudando. então não basta uma mente inteligente entender isso. “Ah tá, entendi”, e a pessoa é capaz de repetir para os outros isso. A pessoa precisaria fazer o processo de amadurecimento, em que isso se torna uma coisa clara.
Terceiro e Quarto Pensamentos que Transformam a Mente – Carma e Sofrimento
Aí vem o Terceiro Pensamento. O Terceiro Pensamento diz respeito ao [carma. O quarto é o] (2:35:17) sofrimento inevitável, associado aos impulsos cármicos. Não tem solução, pessoal. Isso equivaleria à primeira Nobre Verdade. É assim: nós escapamos da lucidez, deu. Se você se alegra porque o seu time venceu, você vai estar preocupado. Porque hoje joga o Inter, joga o Grêmio, hoje é semifinal do campeonato gaúcho. Então a situação é grave, é muito grave. O resultado é incerto. É assim: “Eu não queria estar na pele do Inter, enfrentando o Juventude. Também tremo em pensar que o Grêmio vai enfrentar o Caxias, isso vai ser horrível!”. É assim, isso é o mundo, entende? Isso não para, isso não cessa. Nem com o COVID, não pararam os campeonatos, aquilo seguiu. É assim. O mundo tem esse poder cármico de nos conectar. Se nós não somos capazes de ver o Dharma nos aspectos cármicos do mundo, nós temos uma dicotomia. Por isso nós podemos repentinamente enfrentar a impermanência no que diz respeito à nossa prática.
E se nós então entramos no mundo sem o olhar do Dharma, pinçado pelo carma, o sofrimento descrito pela primeira Nobre Verdade e segunda Nobre Verdade vai ocorrer. Então, entrar no mundo é simplesmente operar pelos Doze Elos da Originação Dependente sem conseguir reconhecer o Dharma dentro dessa operação. Isso é o mundo. Aí nós entramos, e o sofrimento é inevitável.
Tomada de Refúgio
[Esse é] o quarto Pensamento, que está ligado ao refúgio. Aí eu tomo refúgio no Buda, e vou seguir o caminho. E o potencial que nós temos é o Buda; é a impermanência; é o carma; o sofrimento; e, enfim, o refúgio. Os seis Pensamentos, começando com o Guru. Então é o Guru, o Buda, a impermanência, o carma que nós temos e pode nos arrastar, o sofrimento inevitável, associado ao carma e, então, eu tomo refúgio, que é o sexto Pensamento. Tomo refúgio no Guru, no Buda. Tomo refúgio no Buda, tomo refúgio no Guru, o Buda da Medicina, aquele que une as Três Jóias, e gero bodicita. É isso.
Se eu entender isso, está bem. Mas eu posso entender isso e seguir direto dentro do mundo. Então é necessário que contemplemos; contemple muitas vezes isso. Isso é a base para o nosso funcionamento, para o estabelecimento de um tecido fértil que nos permita ir adiante. Na sequência, olhando isso e desenvolvendo esse aspecto com cuidado é que vamos poder ouvir os ensinamentos de algum modo. Se nós não desenvolvermos esse terreno fértil, ouvir isso por dentro do mundo não vai adiantar, não vai ser útil, não vamos conseguir avançar.
Purificação da Base
Quando começamos a andar, nós poderíamos tentar andar pela purificação dos obstáculos. Eu acho interessante assim: quando olhamos as estruturas dos ensinamentos, essa consolidação para que nós estabeleçamos esse terreno. Nós precisaríamos, por exemplo, ainda, ressignificar nossas experiências todas. Considero que esse processo é feito a partir da prática de Mettabhavana. Quando nós olhamos para todos os seres, para todos os seres que já encontramos nessa vida, olhamos em todas as direções, seres de outras vidas, nós olhamos e dizemos: “que eles sejam felizes, que eles encontrem as causas da felicidade; que eles superem o sofrimento e as causas do sofrimento”. E olhamos também para as nossas próprias experiências em diferentes partes desta vida e das outras vidas. Então, nós olhamos e nos reconhecemos nesse ser luminoso, esse ser ilusório, esse ser de sonho que surgiu e segue surgindo de diferentes modos. Nós, praticando Mettabhavana em relação a esses seres que nós fomos, nós vamos estabelecendo uma base mais ampla de liberdade com relação às estruturas cármicas que guardamos até agora. Porque essas estruturas cármicas que nós guardamos estão ligadas a experiências e identidades que vivemos. Elas surgem como elementos que estão presentes de um modo não-consciente, ou seja, isso surge como uma base. Nós não precisamos pensar que são traumas, que são coisas assim. Mas se a pessoa tem traumas, fica mais fácil de ver. Se a pessoa teve um trauma na infância, um trauma na juventude, aquilo está lá, então a pessoa ficou responsiva para algumas coisas. Por que a pessoa é tão responsiva para essas coisas? Porque de algum modo aquilo está presente. Na linguagem budista, aquilo está presente na base cármica que nós estamos olhando. Como é que nós vamos liberar essa base cármica que faz o mundo surgir assim? Nós vamos eliminar essa base cármica por Mettabhavana, olhando para um por um dos seres e para nós mesmos nos vários ambientes, e purificando isso. Só que isso, nós podemos entender, mas se não fizermos, não fizemos! Então a base continua igual, mesmo que eu tenha compreensão. Eu posso pegar uma base cármica e adicionar um fator: “eu deveria praticar Mettabhavana”. Esse é um fator que agora eu introduzo na base cármica. Eu não tendo praticado, a base cármica não mudou. Então eu preciso fazer isso. Eu pratico os Quatro Pensamentos, que me ajudam a entender isso, e agora eu vou praticar a purificação da base cármica. Se eu purificar a base cármica, surge uma mandala. O mundo vai surgir como uma mandala, começa a ter esse terreno.
Eu precisaria também purificar a mim mesmo, ou seja, enquanto nós purificamos a base cármica, nós olhamos também as nossas múltiplas identidades e nós reconhecemos o aspecto luminoso que nos faz construir essas várias identidades. Nós reconhecemos que somos essencialmente esse aspecto luminoso, esse aspecto puro. E nós precisaríamos ir até o ponto em que isso - que começa com o raciocínio - se transforma numa base natural. Abandonamos a noção [de ser alguém]. Vão dizer que Jesus Cristo disse para a mãe dele: “eu não sou teu filho”. Sri Ramana Maharshi disse para a mãe dele: “eu não sou teu filho”. Quando uma mãe ouve isso, ela tem que ficar feliz, porque significa que aquele filho se reconhece como uma natureza ilimitada, então a mãe teve a grande felicidade de ter um filho que se reconhece como a natureza ilimitada. Isso é grandioso. A Virgem Maria é abençoada extraordinariamente, porque o filho dela, que nasceu do ventre dela, viu o aspecto ilimitado. O Buda é a mesma coisa. O Buda já não teve essa oportunidade porque a mãe dele morreu no sétimo dia, ele já… O Freud vai dizer: “ele não teve alguns problemas, na relação com a mãe”. Então isso foi uma vantagem do Buda. (Mas na verdade ele teve uma mãe. A mãe era a tia dele).
É super importante nós entendermos isso, esse é um ponto crucial. Se nós nos olharmos como alguém do mundo, não vamos conseguir andar direito. Nós precisamos entender, pelo menos intelectualmente - aos poucos nós vamos compreender isso - nós vamos precisar entender que a nossa natureza é luminosa, ela constrói as múltiplas identidades, nos vários mundos, mas ela não é essa identidade. Então a purificação que vem por Mettabhavana, ela chegando às nossas múltiplas identidades em diferentes momentos, ela permite isso, ela permite essa compreensão e nós precisaríamos guardar isso com cuidado. Nós não somos atingíveis pelo mundo, propriamente, porque o que é atingível pelo mundo são as identidades comuns - essas são atingíveis. Mas essa natureza ilimitada é capaz de entrar no [reino dos] seres famintos, entrar nos vários lugares, e não ser atingida. Se nós conseguirmos desenvolver essa habilidade, isso é muito extraordinário, muito maravilhoso.
Nós precisaríamos novamente entender essa conexão com o Guru. Nós começamos com o Guru e seguimos com o Guru. E o Guru, ele é o quê? E o Buda é o quê? Eles repentinamente surgem à nossa frente. Nós, olhando para eles - olhando para o Buda, olhando para o Guru - vemos as qualidades que estão presentes em nós. Esse é o ponto. Eles se tornam espelho. Quando nós vamos olhando para esse espelho, vamos encontrando as qualidades verdadeiras em nós mesmos. Isso é o nosso caminho. Isso permite um tecido, permite um terreno. Um terreno fértil, no qual os ensinamentos que nós vamos ouvir, caem e progridem. Mas isso não é um raciocínio, não é um pensamento, não é uma descrição. Isso precisaria ter um amadurecimento. Esse amadurecimento vem pela contemplação. Quando isso aparece, os ensinamentos subsequentes se tornam fluidos.
Introdução ao Roteiro de 21 Itens
O que nós faríamos na sequência? Aí nós temos a estrutura dos vinte e um itens, que converge em direção à Iluminação da Sabedoria Primordial - converge em direção à sabedoria que passa a brotar do Guru, inseparável diante de nós e em nós. Isso é descrito perfeitamente por Dujom Lingpa. maravilhoso! Ele diz que ele não ouviu o Dharma de alguém, ele ouve o Dharma. Ele tem a transmissão patrilineal do Dharma. Ele ouve o Dharma de dentro. Isso não quer dizer que ele não ouviu de fora. Mas quando ele ouviu de fora, ele ouviu de dentro. Isso é a perfeição da prática de Guru Ioga. Ele não tem a sensação de que ele ouve de fora. Ele não ouve de fora, ele ouve de dentro. Ele tem a transmissão patrilineal - maravilhoso, isso!
Para nós, eu estou aqui falando como se fosse uma coisa introdutória ao caminho. Eu não vou aqui aprofundar os ensinamentos de Dujom Lingpa, de Dujom Rinpoche - não vou comentar isso. Vou trazer um método que nos permite andar dentro da perspectiva luminosa, andar em meio ao mundo, já agora, mesmo que não tenhamos uma realização maior, que é tomando as terras puras como caminho. Esse é o ponto. As terras puras se tornam o barco pelo qual nós vamos andando.
Esse é essencialmente o caminho Mahayana, o caminho de bodicita. Aqui estou descrevendo como terras puras, porque, enfim, os bodisatvas, quando olham - como se diz no Sutra do Diamante - o bodisatva olha em volta e diz: “eu vou produzir a liberação de todos os seres. Não vou descansar enquanto todos os seres não estejam libertos”. E naquele instante, todos os seres estão libertos. Por quê? Porque o bodisatva, quando vê, vê a natureza búdica dos seres. Então ele vê que os seres estão libertos! Só que os seres estão libertos, mas fazendo alguma coisa meio limitada. Mas eles têm o potencial completo da liberação, eles já estão libertos. É isso! Esse é o ponto, isso é o que nos permite essa noção de terra pura. O bodisatva olha, ele vê: tudo isso é a manifestação da mente búdica, direta, em tudo.
Se isso é uma descrição, mas não há ainda uma realização disso, então essa parte vai surgir como uma motivação. Ela vai surgir como uma motivação no sentido de que eu me coloco em marcha e me engajo em ações meritórias. Eu vou desenvolver ações para benefício dos seres de tal maneira que o sofrimento deles se reduza. Então eu vou usar esse tipo de abordagem.
Se eu tiver uma compreensão luminosa da realidade, eu posso entrar diretamente para a noção de Dharmata e daí, às Cinco Sabedorias. Se nós tivermos essa capacidade do Prajnaparamita de compreender as realidades como elas aparecem, nós podemos também entrar por Dharmata e os Seis Selos.
Se nós tivermos uma compreensão compassiva, mas não temos ainda uma compreensão luminosa, clara, estabelecida, nós entramos por bodhicitta e vamos praticar as Quatro Qualidades Incomensuráveis, as Seis Perfeições, e o Sutra do Diamante como um processo pelo qual nós vamos acessar as terras puras. Essa parte eu vou descrever hoje à tarde - nós vamos abordar isso hoje à tarde. É uma parte mais prática, no meio do mundo. E vai ser o final do retiro.
Seja como for, é preciso entender que o caminho que nós estivermos seguindo, vai culminar com a extinção do próprio caminho, e a extinção do praticante que percorre ou percorreu o caminho. Então o caminho, mesmo o caminho das terras puras, ele é algo que é construído luminosamente, ele vai sendo percorrido e, no meio deste caminho, o caminhante é extinto. Se extingue, no sentido de que ele vai atingir a culminância de Guru Ioga, ou seja, ele vai ultrapassar todas as formas construídas, ele se torna o aspecto luminoso da realidade livre, que pode se manifestar em qualquer âmbito. Ele deixa de ser um conjunto de características que responde automaticamente a alguma coisa. Isso é a extinção do praticante, e a extinção do caminho. Por quê? Porque não há agora algo a seguir, para chegar a alguma coisa. O caminho se extingue junto com o próprio praticante. O caminho é visto também como um aspecto luminoso, e assim ele se libera.
mudança de base, Atisha e as linhagens do budismo tibetano, Gampopa e o potencial dos seres, Contemplação - o caminho para a mudança de base, Motivação - os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, Introdução ao Roteiro de 21 Itens
https://www.youtube.com/watch?v=KJAiId5BDBo&ab_channel=LamaPadmaSamten
Transcrição: <Luciana Pitombo e Lílian Miranda>
Revisão: <Samira Lima da Costa>
#05 | Meditando a Vida | 02/05/21 Domingo Tarde
A base da mente: motivação, Mettabhavana, Prajnaparamita, Terras Puras (Quatro Qualidades, Seis perfeições, Dez Bumis, Seis Selos, Cinco Sabedorias)
A base da mente e a motivação
Olhamos inicialmente os ensinamentos de Buda, se eles tinham algum sentido nos dias de hoje. E quando percebemos que os ensinamentos revelam estes aspectos sutil e secreto, então naturalmente os ensinamentos se tornam atemporais, eles escapam das culturas. Eles escapam também do tipo de samsara, eles escapam do reino humano, do ambiente humano, eles esvoaçam em direção à compreensão dos vários mundos e de como que as coisas surgem individualmente e socialmente para os seres nos vários âmbitos. Então é muito extraordinário!
Hoje nós olhamos um pouco a questão que, por vezes, é colocada como motivação. Mas quando isso é colocado como motivação eu acho que essa tradução é insuficiente, essa expressão é insuficiente para dar conta disso. Porque a motivação de um modo geral trata do foco, como a mente se dirige, num foco. Aqui a motivação seria uma coisa muito mais ampla, ela diz respeito à base a partir da qual o foco da mente vem a operar. Então, isso inclui a compreensão de que a ação da mente não é apenas aquilo que aparece como foco quando estamos jogando alguma coisa, mas especialmente a ação mais importante, mais difícil e mais essencial para que possamos fazer o nosso caminho é justamente a base a partir da qual a mente opera. Para lembrar isso, eu trabalhei um pouco o aspecto dos seis reinos e aí é fácil compreender que num mesmo ambiente físico nós temos diferentes seres que têm uma percepção diferente daquele mesmo ambiente. Não só seres com corpos distintos dos corpos humanos, mas também os próprios seres humanos, de acordo com a posição de sua mente, têm percepções e pensamentos diferentes. Então todo o dia estamos vendo alguma coisa aberrante ou nova, extraordinária que, brotando na mente das pessoas, não brotou na mente de ninguém. Agora, bem recentemente eu vi dois adolescentes que entraram num shopping, botaram fogo em duas caixas de papelão e saíram correndo. Ainda que eles estejam fazendo algo que não deve ser feito, eles não estão fazendo alguma coisa que não faça sentido dentro da base deles. Se formos olhar o foco deles, vamos achar que aquilo é um absurdo, mas dentro da base em que eles estão operando as ações foram bem-feitas, bem executadas e deram resultado. Então esse é um ponto interessante, nós precisamos incluir a operação da base como uma coisa essencial.
Quando olhamos desse modo é quando incluímos o mundo sutil na questão, não apenas o que estamos experimentando com sentidos, ou experimentando de modo lógico, mas a base segundo a qual nós estamos raciocinando. Nos ensinamentos é crucial esse ponto da base, precisamos purificar essa base, melhorar essa base, porque é ela que vai ser o que vai permitir que os ensinamentos sejam entendidos e a gente possa seguir. Então se diz que, se nós não tivermos um mérito apropriado, nós não conseguimos nem sequer ver os ensinamentos, nem sequer encontrar fisicamente. Por quê? Porque podemos olhar, os ensinamentos estão ali, mas nós não vemos! Simplesmente não vemos. Não vemos por que passamos os olhos, vemos outras coisas, mas aquilo nós não vemos. Eu, por exemplo, passo os olhos aqui e não vejo as mesinhas lá no fundo; estão lá, mas eu nem vejo, não estou olhando para isso. E assim os adolescentes olham para o quarto deles e veem tudo arrumado. Mas precisa ter um olho de mãe, um olho perturbado, que entra naquele quarto e diz: “tá tudo uma bagunça! E você trocou de roupa?” Ela pergunta. “E quantos dias você não troca de roupa?”. “Está tudo bem”, o filho responde cheirando a roupa, “não tem nada, só porque eu não tomo banho faz uma semana, isso não é nada…”. É assim, é a base da mente. A base da mente olhando, vê uma coisa ou vê outra. Então a base da mente é crucial, é essencial. Chagdud Rinpoche enfatizava muito isso, ele trazia esse ponto como a motivação. Isso era traduzido pelas pessoas que falavam inglês perto dele por motivação. Isso é o ponto essencial. Chagdud Rinpoche, pouco adiante na vida dele, foi entrevistado longamente para um livro maravilhoso sobre diferentes mestres budistas da linhagem nyingma. Cada um trazia um ponto essencial e ele trouxe o ponto da motivação. Então eu acho isso muito interessante. Por exemplo, se estamos dentro do âmbito do reino dos infernos, eventualmente, se estamos procurando “como podemos causar mal às pessoas, o que estes ensinamentos do Buda me permitiram usar para causar problema?” A pessoa vai abrir aquilo e vai descobrir, vai inventar como causar problemas a partir disso. Esse é um ponto.
Se a pessoa estiver no reino humano, ela pode olhar aquilo de muitos diferentes modos. Então só quem tem mérito é capaz de olhar os ensinamentos, ver os ensinamentos, olhar de uma forma apropriada, de tal forma que aquilo se torne útil para sua própria vida. É uma coisa interessante. Se entramos em uma farmácia, tem aquele monte de remédios, um monte de coisas, nós nem vemos muita coisa, temos que ter uma lista para nos auxiliar na compra, e o vendedor vai em busca por entre aquele monte de coisas. A pessoa não vê aquilo mas ela tem uma dimensão de mérito e carma que permite entender o que é uma farmácia, ela chega lá e pede aquilo. Nós também, nós olhamos os ensinamentos, nós temos uma vastidão dos ensinamentos. Os seres humanos olham aquilo, “queria entender, não sei o que tem aqui, o que eu podia aproveitar disso?”. Aí a pessoa tenta aproveitar segundo a base da sua mente. Essa base da mente produz o movimento dela, produz motivação em direção àquilo. Mesmo que a pessoa encontre ensinamentos muito sofisticados, muito úteis, muito profundos. A pessoa precisaria ter uma base de mente adequada, ou seja, uma motivação. Uma base de mente adequada que, quando o movimento vem, aquilo faz sentido. Esse é o ponto essencial.
Eu não acho muito fácil explicar esse ponto porque no lugar, na cultura que nós estamos, parece que o foco é tudo. O foco da mente, a memória com respeito ao foco, parece que aquilo é tudo. Aqui nós estamos trazendo esse ponto. Também o desenvolvimento do caminho vem pela ampliação dessa base. À medida que essa base se amplia, nós podemos ver mais mundos, podemos ver as coisas de uma forma mais ampla. Então o caminho é mais abrangente. Quando nós encontramos essa descrição do Buda como a descrição do espaço, essa descrição do espaço é uma fusão do aspecto da base com o aspecto do foco. Para nós realmente compreendermos essa amplidão nós não podemos estar em um lugar limitado olhando a vastidão. Para entender essa vastidão precisamos estar na própria vastidão que se vê a si própria. Esse é um ponto que não é muito fácil, porque nós precisamos deslocar essa base para além da operação da mente fundamental, da mente condicionada. O aspecto da amplidão nós só podemos verdadeiramente entender no foco quando nós estamos além da base condicionada. Esse é o ponto. Nosso andar no caminho vai nessa direção. Só que quando estamos além da base condicionada, nós não temos a sensação de existência com identidades, propriamente. As identidades existem por dentro das escolhas, e as escolhas são sempre uma expressão da base contaminada, Alayavijnana. Estamos dentro desse processo. Uma vez que conseguimos ouvir os ensinamentos e entender um pouco, e entender que nós deveríamos fazer práticas, que deveríamos contemplar, deveríamos estudar e fazer esforços, quando entendemos isso, isso é porque nós temos méritos. Então nós praticamos, tivemos alguns resultados, tomando isso por base. Quando escutamos outros ensinamentos, parece efetivamente muito útil nós seguirmos adiante. Essa é a razão pela qual algumas pessoas vão praticar e outras não vão praticar, porque elas não têm os méritos, mesmo que elas ouçam os mesmos ensinamentos. Essencialmente elas não têm a base que permite dar significado aquilo e fazer aquilo efetivamente funcionar.
Aqui estou trazendo essa questão da base. Então como podemos construir um veículo que é uma base que nos permite andar numa direção favorável? Se estudamos, por exemplo, se começamos esse caminho da Iluminação da Sabedoria Primordial, ele começou definindo motivação, começou acalmando a mente praticando shamata e definindo nossa motivação bodhicitta através do nascimento no lótus. Nós estudamos dentro disso as Quatro Nobres Verdades, o Nobre Caminho de Oito Passos, estudamos toda essa estrutura. Na sequência, entendendo o sofrimento e tendo sentido a base, que é a compreensão da Primeira e Segunda Nobre Verdade, faz surgir naturalmente a Terceira. Dessa brota então bodhicitta, quando entendemos o sofrimento estrutural dos seres em todas as direções. Nós estamos entendendo agora o aspecto sutil, como ele está operando. Mas estamos bem no início do caminho. Aí surge essa motivação. Então, desse ponto nós precisamos começar alterando a base onde nós existimos.
A base da mente e a prática de Mettabhavana
A alteração da base aqui nessa estrutura de pontos que eu vou recomendar com os 21 itens é feita a partir de mettabhavana. Então nós olhamos para todas as direções. Não precisamos fazer isso de modo sistemático como uma prática formal, ainda que possamos fazer assim, é muito útil. Mas isso não é suficiente, nós devíamos andar pelos vários lugares sempre olhando para os seres com esse olhar, olhar de mettabhavana. Reconhecendo a limitação dele, reconhecendo que ele pode se libertar daquilo, aspirando isso, olhando desse modo. Assim nós progressivamente, ao olhar em todas as direções, progressivamente por esse olhar, o mundo começa a mudar na forma pela qual nós atribuímos significados. Isso seria a contemplação. Enquanto nós contemplamos desse modo em meio a nossas atividades, nosso movimento, nossa prática formal, a base da mente ela se consolida em uma outra dimensão. Isso seria como fazer surgir bodhicitta, nós damos origem a bodhicitta. Porque quando a mente se amplia desse modo, a partir das Quatro Nobres Verdades, das três primeiras Nobres Verdades, quando a mente se amplia desse modo, então naturalmente surge a dimensão de bodhicitta. A melhor forma é essa. Não temos uma bodhicitta mais ou menos estável se não tivermos uma base segundo a qual bodhicitta simplesmente surja. Se eu tiver a descrição de bodhicitta e eu tentar prender a mente em alguma coisa eu perco, porque quando a mente se desvia para uma outra coisa, bodhicitta desapareceu. Então eu preciso ter isso na base de tal forma que minha mente vai para um lugar, ou vai para um outro, ou um outro; na base, eu tenho bodhicitta. Eu tenho essa compreensão que gera bodhicitta. Então eu posso deslocar a mente para vários lugares sem perder a base. Até onde o olhar surgir, ela surge. E a proliferação mental - seja o raciocínio, as construções luminosas da própria mente - elas vão se constituindo a partir dessa base, que também gera bodhicitta.
Esse é o ponto. Nós precisamos disso, caso contrário é muito difícil avançar. Muito, muito difícil. Se não tivermos isso estamos na etapa de criação disso. Mas não temos como avançar sem isso. Sem essa visão mais ampla, não há como, porque a visão mais ampla é o próprio avanço. Então, não há como. E nós não temos como manter uma visão ampla se a visão de base que gera nossas visões é uma visão estreita. Se eu tiver uma visão estreita na base, as visões que vou produzir, mesmo que eu tenha uma descrição de algo muito amplo, com o tempo eu considero aquilo inadequado. Por quê? Porque as visões estreitas, elas seguem surgindo e elas terminam se estabelecendo a partir de uma base estreita. Esse é o ponto. Então as terras puras, elas são bases mais amplas que vão se ampliando, se ampliando em direção às mandalas até o ponto final que é a mandala de Samantabhadra.
A base da mente e a Prajnaparamita
Então quando nós estamos treinando os 21 itens, nós praticamos isso, depois nós vamos penetrar no prajnaparamita. Ai vamos até o prajnaparamita em oito pontos e vemos como as realidades todas aparecem a partir das bolhas. Então o estudo das bolhas é um estudo mais detalhado sobre os seis reinos. É como se estivéssemos usando a mesma visão a partir da qual surgem os seis reinos, nós vemos sub-reinos dentro dos reinos, terminamos vendo a capacidade que os seres têm de constituir visões específicas que são detalhamentos da própria condição de onde eles estão vivendo mais ampla, como reino humano, por exemplo, ou qualquer um dos seis reinos. Eles constituem realidades específicas, e eles surgem a partir daqueles elementos que estão vendo. Aquilo impulsiona o fluxo mental, a energia e todos os movimentos. Então a identidade dela está completamente inseparável da visão de mundo correspondente. Essa visão de mundo correspondente vem dessa base, essa base é construída por experiências anteriores e ela aparece na forma de carmas e méritos. Esses carmas e méritos aparecem como a bolha. A bolha é uma expressão que pertence, ela é intermediária, ela abrange o mundo grosseiro e o mundo sutil. A bolha, ela começa assim: no aspecto grosseiro, a gente olha em volta, tudo que eu vejo é a própria bolha. Mas, como é que o mundo sutil entra nisso? Tudo que eu vejo é a própria bolha e isso, assim como está, aparece porque a base sutil da minha mente é tal que isso aparece desse modo. Se eu trocar a base sutil das aparências elas se mostram de outro modo. Nesse momento em que entendemos esse aspecto da bolha, entendemos as várias nuances de pensamento que operamos, incluindo visões de futuro, visões de passado, visões de futuro que passaram sem existir, sem se consolidar - quando o futuro passa do futuro para o passado sem se consolidar. Por exemplo, eu aspirei ser jogador de futebol, então eu tenho essa frustração, eu não fui jogador de futebol. Esse é um futuro que não aconteceu, é um futuro que passou.
Tudo isso pertence às bolhas de realidades, tudo que brota por dentro da mente pertence às bolhas. Então nós vemos aquilo surgindo e cessando, mas aquilo não aparece assim, aparece a partir da estrutura onde nós estamos nos deslocando. Na medida que temos uma outra visão de mundo, outros desdobramentos mentais acontecem. Então, nós estamos dentro disso. Quando entendemos este aspecto das bolhas, entendemos a substância mesmo sutil do mundo. Qual é a substância sutil do mundo? Do mundo grosseiro, ainda? É a luminosidade da mente. Então nós entendemos esse aspecto da luminosidade da mente. Entendemos que o aspecto secreto sopra um vento através do filtro do aspecto sutil e produz as aparências grosseiras como elas se dão. Os tibetanos usam uns cristais pendurados porque quando a luz atravessa, a luz corresponderia ao aspecto secreto, a luz atravessa o aspecto sutil, que é o que está dentro do cristal, aparecem cores. O aspecto secreto atravessa o aspecto sutil e produz cores. Maravilhoso! O aspecto secreto atravessa essa base e produz aparências. Essas aparências são a bolha. Elas produzem não só a bolha como a pessoa que olha aquela bolha, que é inseparável da própria bolha. Aquela bolha é uma ação da mente da própria pessoa que está vendo a própria bolha.
Então este aspecto nos permite entender a luminosidade da mente, o aspecto luminoso. Quando entendemos esse aspecto, é inseparável do prajnaparamita. Isso também é inseparável do satipatthana. Nós vamos estudando o satipatthana e aí nós passamos a contemplar. O próprio Buda vai descrever esse aspecto luminoso que ocorre no primeiro, segundo, terceiro e quarto janas. Quando a pessoa segue praticando, ela vai ver esse aspecto de luminosidade, ela vai reconhecer essa luminosidade natural. Quando surge essa luminosidade nós temos então uma clareza sobre isso. Não que a luminosidade não estivesse ali desde sempre, ela estava ali, só que eu não via. Agora a base se ampliou, ela se consolidou, de tal maneira que, mesmo que tivesse luminosidade desde sempre, agora eu vejo a luminosidade.
A base da mente e as Terras Puras
Aí, quando nós vemos a luminosidade, podemos entender que podemos construir mundos melhores, esses mundos melhores se tornam veículos para que a gente ande melhor, porque a base se torna melhor, nós andamos melhor. Então isso é o processo das Terras Puras.
A primeira recomendação dentro das terras puras como caminho é o engajamento em ações meritórias. Esse seria o ponto. Se eu me engajo com o foco da mente em ações meritórias tendo gerado bodhicitta antes... Então o primeiro ponto é gerar bodhicitta; que são a Primeira, Segunda e Terceira Nobres Verdades que vão produzir a compreensão de como as coisas surgem e podem ser dissolvidos os sofrimentos. A partir disso eu então me engajo em ações meritórias. Quais são essas ações meritórias?
- A compreensão da base através das Quatro Qualidades Incomensuráveis
Eu vou começar desenvolvendo na base, localizando isso, aí vem esses ensinamentos: eu faço o quê, se quero trazer benefícios? Você atua com compaixão, amor, alegria e equanimidade. Porque nós já temos essa base, então compaixão, amor, alegria e equanimidade fazem sentido. Como é isso? Nós, olhando os seres, brota a compreensão do aspecto do que é chamado de Grande Compaixão, que é a compreensão do sofrimento estrutural. Ao entendermos dukkha, que é este sofrimento estrutural, tomando dukkha por base, nós olhamos os seres e praticamos as ações que brotam a partir dessa compreensão. Então com essa compreensão, quando nós olhamos para os seres, nós vamos tentar fazer o melhor para eles. Então isso é a ação de compaixão.
A segunda das Quatro Incomensuráveis é amor. Sua Santidade o Dalai Lama vai nos dizer que não é o que nós sentimos porque alguém nos fez um agrado, e quando a pessoa não produz agrado não tem amor. Não é isso. O amor corresponde ao reconhecimento da natureza do aspecto ilimitado, no outro. É o reconhecimento das qualidades, daquilo que é mais elevado no outro. Então, se não temos a capacidade de reconhecer a natureza búdica dentro do outro, reconhecemos qualidades, buscamos reconhecer qualidades. Isso é super importante na nossa vida prática. As Quatro Qualidades Incomensuráveis, elas se aplicam diretamente em nosso mundo prático. Experimentem olhar os próprios filhos. Meus filhos eu amo naturalmente... Aí olhamos com compaixão, procuramos ver dukkha na vida do outro, aquilo é fácil de ver, porque eles estão presos em estruturas, aquelas estruturas têm uma boa chance de moê-los, para não dizer cem por cento de certeza. Eles não têm chance nenhuma, nenhuma chance. Mas, talvez tenham... Eles só têm uma nuance de dúvida. Se eles encontrarem o Dharma pode ser que eles andem, se não eles não têm chance nenhuma, eles vão passar por dukkha de modo completo. Vão se defrontar com a Primeira Nobre Verdade sem entender, é justo tudo aquilo, tudo funcionando por conta da Segunda, que são as causas, e eles chegam à Terceira Nobre Verdade, que é a liberação do sofrimento. Ainda que haja essa possibilidade, eles não têm os méritos, não têm as estruturas cármicas, eles não vão ultrapassar aquilo, não tem como. Então, nós olhando, isso é compaixão. Pensamos, “como eu poderia de algum modo ampliar um pouco a base e jogar uma semente nessa base um pouco ampliada? Pode ser que em um outro tempo aquilo ande”. Essa aspiração, esse movimento, esse giro na mente nessa direção, isso é o exercício da compaixão. E o amor vem como? Aí nós olhamos aqueles seres – que fofo, nariz do papai, a orelha da mamãe, o dedo do avô – não é nada disso! Nós estamos olhando e vendo a natureza búdica, estamos vendo a mente do vovô Buda, está ali dentro! Como é isso? É assim, ele é capaz de criar qualquer coisa, ele cria outras realidades. Então nós vemos esse aspecto de que os seres têm capacidade de construir outras realidades. Isso é muito importante, isso é amor, nós vemos a natureza búdica. Se não reconhecemos a natureza búdica, dizemos: ele tem um bom coração, ele gosta dos animais, gosta das pessoas, ele se comunica, ele estuda, ele tem interesse em coisas. Algumas coisas a gente encontra, mas se encontramos a natureza búdica, e esse é o ponto, esse é o ponto do amor, nós estamos procurando qualidades favoráveis.
Então nós temos compaixão e amor. Quando praticamos compaixão e vemos alguma forma positiva, que nós podemos, eventualmente, estar criando alguma coisa boa, produzindo alguma coisa boa, temos essa apreciação de amor. Aí nós nos alegramos. Então, se não somos pai nem mãe, mas somos professores de escola, por exemplo, é a mesma coisa. Nós nos alegramos que o outro avance, que o outro aprenda, que o outro se desenvolva. Então, esse aspecto de compaixão, amor, ele é seguido de alegria. É natural isso. Aí vem a equanimidade. Eu, de modo geral, falo nessa ordem. Às vezes as pessoas falam em outra ordem, por exemplo, primeiro equanimidade, depois compaixão. Mas está bem. Então a equanimidade é, essencialmente, nós olharmos para os seres todos com esse olhar. Nós olhamos com que olhar? Com olhar de compaixão, amor e alegria. Então, em todas as direções em que olhar, nós temos esse posicionamento. Se estamos atravessando os infernos, nós estamos olhando com esse olho. Se estamos atravessando os âmbitos dos seres famintos, nós olhamos com esses olhos. E assim nós vamos.
Então quando isso acontece, nós precisaríamos amadurecer. Nós precisaríamos olhar. Ver porquê que brota isso e não brota, por exemplo, amargor, não brota crítica, não brota hostilidade. Por quê? Porque nós estamos operando dentro de uma base que há uma compreensão da Primeira Nobre Verdade, da Segunda Nobre Verdade. Não tem ninguém culpado, não tem problema. Nós não temos nada definitivo, fixo. Não há seres com mentes definitivas e fixas que eu vou apontar como inimigo. Não tem nada disso, então nós relaxamos. Nós abandonamos a operação comum e passamos a operar a partir das qualidades incomensuráveis. Isso só é possível porque a base da mente agora é outra. É uma base construída a partir das três primeiras e início da Quarta Nobre Verdade. Essa parte, por exemplo, de como trazer benefícios aos seres, ela já pertence ao quinto passo do nobre caminho. Como exercer a nossa operação em meio ao mundo. Seria assim, a forma correta de viver. A forma correta de viver para um Bodisatva é praticando as quatro qualidades incomensuráveis e as seis perfeições.
- A compreensão da base a partir das Seis Perfeições
E aí vem as seis perfeições. Como é que é isso? Então, se a pessoa pratica compaixão, amor, alegria e equanimidade como está descrito aqui, a pessoa vai naturalmente praticar generosidade. Por quê? Porque quando ela está olhando o outro ser que ela olha com compaixão, e ela olha com amor, e ela tem alegria e ela olha os seres, em geral, com equanimidade, quando ela se defrontar com os seres em geral, ela vai tender a trazer dela o melhor que ela tem, constantemente. Então ela vai transformar isso na sua forma de viver, que é produzir esse movimento de generosidade, ou seja, enriquecer a vida dos outros. Esse enriquecimento pode ser de várias formas. Mas essencialmente os Bodisatvas vão operar desse modo. Aí tem um ponto como é descrito no Sutra do Diamante, onde essas Seis [Perfeições] são trabalhadas. Elas são chamadas Qualidades Incomensuráveis e Perfeições: tem as Quatro Qualidades Incomensuráveis e tem as Seis Perfeições. Elas são chamadas de Perfeições. Não é apenas a generosidade, é a perfeição da generosidade. Então, a Perfeição da Generosidade é a ausência da generosidade, quando a generosidade é praticada. Isso é paradoxal assim, isso nunca é dito assim, mas é isso. Porque é quando a generosidade é tão natural, que não há a sensação de ser generoso. Não tem a sensação de que tem alguém generoso, alguma coisa sendo oferecida e um outro recebendo. Então, isso faz parte de cada uma das Perfeições. Não tem aquele que é o agente, não tem o que é passado e não tem o outro que recebe. Então, já tem a noção da não-separatividade. Quando nós estamos em meio ao mundo com essa visão que vem das Quatro Nobres Verdades e de bodhichitta, e nós praticamos já as Quatro Qualidades Incomensuráveis, aí quando vem a primeira das Seis Perfeições, que é generosidade, a pessoa quando pratica isso, é como uma mãe cuidando de um filho. Se a mãe pensar: “Eu estou sendo generosa com meu filho.” Tem alguma coisa equivocada, com certeza. Porque a mãe está cuidando, mas ela não pensa: “Eu sou uma mãe generosa com esse pobre coitado aqui. Ele vai ficar me devendo. Portanto, essa é minha generosidade.” Então se ela tiver essa sensação de alguém separado, aí tem um problema. De modo geral, os pais não cobram dos filhos, o que eles fizeram pelos filhos. Não cobram. Então isso é a generosidade. Não tem uma sensação de débito. Não tem isso.
Então, essa ausência de separação também é visível no sentido de que quando o outro que é o alvo da generosidade ele recebe aquilo, e aquilo é bom para ele e é bom para quem exerceu. A pessoa que exerceu não se vê separada: “está sendo bom para ele, mas para mim foi horrível”. A pessoa não pensa assim, a pessoa se alegra. Que bom que foi isso! Que maravilha! Ela se alegra. Esse é o aspecto, então não há algo em alguém separado do outro e não há algo que então a pessoa pensa: “Olha eu te dou isso!”. Não tem essa sensação. Não tem esse olhar. Então, isso é a Perfeição da Generosidade. Então a generosidade seria o caminho para os infernos. Mas a perfeição da generosidade é o caminho para a iluminação. Porque a generosidade, quando é cobrada, tem uma separação, tem uma cobrança sutil que a pessoa vai terminar se frustrando. Quando ela se frustra, ela andou em direção aos infernos, porque tem uma expectativa. A pessoa não vai ser generosa se não tiver uma expectativa. Mas a perfeição da generosidade não tem expectativa nenhuma. Essa é a primeira das Seis Perfeições. Mas isso nós podemos naturalmente praticar.
Se nós tivermos esse olhar e praticando isso é como se nós já tivéssemos numa Terra Pura. Terra Pura de Tcherezing. Terra Pura do Buda da Compaixão ou Terra Pura de Arya Tara. Nós já estamos nesse ambiente. Mas esse ambiente não é um ambiente que praticamos isso desde a base contaminada do Samsara. Se não tivermos uma compreensão efetiva da Primeira, da Segunda e da Terceira Nobres Verdades, nós não vamos conseguir praticar isso direito. Nós não vamos conseguir fazer isso de modo adequado. Nós precisamos dessa base que seria a motivação. Mas isso não é a motivação. Isso não é o que motiva o meu movimento. Isso é a base que faz tudo surgir e naturalmente, então, as Quatro Qualidades e as Seis Perfeições se exercem. Por isso surgem as Perfeições.
Então eu tenho generosidade e tenho moralidade. Se nós estivermos na base do Samsara, a moralidade é uma coisa super complicada. Porque a pessoa está em algum dos seis reinos, ela tem as prioridades correspondentes ao que ela vê como base. Mas se a pessoa está na base de bodichhitta, ela entendeu a Primeira, a Segunda e a Terceira Nobres Verdades. Ela tem bodichhitta. Ela olha de forma ampla o que está acontecendo, entende o sofrimento estrutural e tem esse impulso para produzir benefício para as pessoas, compreende o aspecto luminoso da realidade, compreende como tudo é construído. A pessoa vai praticar as Quatro Qualidades Incomensuráveis. E vai praticar generosidade e moralidade, é óbvio. Porque, como que a pessoa vai, em meio a tudo isso, se levantar para pensar que vai ganhar alguma vantagem para si em detrimento do outro? Toda a vantagem para si, a pessoa já entende perfeitamente: “É porque eu gosto ou não gosto, isso é Upadana, não vai levar a lugar nenhum. Só produz aflição. Isso não é nada”. A pessoa não vai prejudicar o outro. Não tem a sensação de separação. Então a moralidade é natural. É um processo natural, não é um exercício da mente, não é uma forma de ela se construir compassiva e amorosa. Ela não tem uma identidade dentro disso, tem a moralidade.
Tem generosidade, moralidade, aí tem paz. Aí vocês pensem: compaixão, amor, alegria, equanimidade, generosidade, moralidade... paz, como decorrência. Completamente natural. Tem um pacificação. A pessoa é capaz de olhar os seres com compaixão, amor, alegria e equanimidade, pratica generosidade e moralidade. Se ela tiver uma quebra de moralidade, significa que ela incorreu numa ação cármica. Incorrendo numa ação cármica, ela tem expectativas e medos, acabou a paz. Se ela opera por generosidade e moralidade, tem paz. Ela, tendo paz, tem energia estável. Se a pessoa não tem paz, a energia dela flutua em todas as direções. Então ela tem paz; se ela tem paz, ela tem concentração da mente – dhyana. Se ela tem dhyana, ela persevera em dhyana, ela tem prajna. Então brota a estabilidade da mente, que corresponderia a sati. Então, a pessoa tem dhyana e tem sati. Então, desse ponto, que é o quinto passo do nobre caminho, ela entra num sexto passo que é justamente dhyana. Então ela pratica isso em meio ao mundo. Ela agora vai perseverar nas outras práticas do Nobre Caminho, que correspondem à estabilização da mente e à prática da lucidez, que converge em direção à Prajna e, depois, na parte final do caminho, é a natural não-dualidade. Que é a mente que está além de qualquer aparência, em meio às próprias aparências.
- A compreensão da base através dos Bumis
Então surge esse caminho. Então nós vamos praticando isso. Só que praticamos aqui e perdemos ali. Pratica melhor, pratica pior. A mente flutua, flutua a base. E aí nós vamos avançando e vamos estabelecendo esse funcionamento de um modo melhor. E nós vamos percebendo também que a base vai mudando. Essa descrição é interessante, porque aí surgem os bumis. O caminho dos Bodisatvas é dividido em bumis, em estágios.
Então, o primeiro estágio vem da primeira Perfeição, a Perfeição da Generosidade - aí produz uma condição de alegria. Se a pessoa pratica a perfeição da generosidade, ela está no primeiro bumi. Se ela praticar, na sequência, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria, ela vai até o sexto bumi, que é prajna, a partir de prajna. Eu não gosto muito dessa descrição.
Eu estou trazendo porque ela está nos textos, ela está nos ensinamentos. Mas eu lembro do próprio Tokuda Sam, meu primeiro mestre, Tokuda Sam, que foi meu primeiro mestre, dizendo que no Zen tem também um progresso, uma gradação, tem a régua também, só que a régua não está marcada (risos). O Zen é sempre assim, é muito bom isso. Qual é o problema de marcar a régua? Nós marcamos a régua, aí surge uma identidade lá dentro. Qual é o teu bumi? (risos). Pronto, já estragou tudo. A pessoa... “Bom, meu mestre disse que eu estou no segundo bumi. Eu acho que já estou no oitavo, mas tudo bem, o documento que eu tenho é que estou no segundo bumi, mas eu quero chegar no décimo” (risos). É muito triste isso, porque é como se o Samsara voltasse. Se quisermos ter uma noção como as mentes operam, então a gente pode pensar assim: a pessoa está numa etapa vestibular das Quatro Incomensuráveis (risos) Melhor não pensar assim. De qualquer maneira eu acho interessante ver como esse processo vai se tornando mais e mais sutil, especialmente no sexto bumi. Adiante, essa é uma experiência interessante que é descrita. Então se diz, no sexto bumi chegou a prajna. Mas, a pessoa chegou, mas perde fácil. É como nós olharmos para lá, o pico do pinheiro e eu somos um, isso é completamente inseparável... ai olha para cá e quer matar as abelhas. Aquilo a gente perde assim, o Prajna. Aquela visão é maravilhosa, nós temos lembranças daquilo mas agora não sei. Então, tem essa perda.
Ai se diz, no sétimo bumi, ela perdeu, ela diz: “Valha-me super prajna!”, aí o prajna volta, aí recupera a visão. Sempre que ela precisa, a visão volta. Melhor que isso, o que é? É o oitavo bumi, onde a pessoa não perde. Ela olha e vê com prajna. Eu acho que é uma forma interessante de descrever esse aspecto. Seja prajna ou não seja prajna, temos compreensões de algum tipo, que temos e daqui a pouco perdemos. Aí tem um tempo que não perdemos mais. Então, isso é interessante. Ai tem um tempo que não perdemos desde que não andemos por aqui, por ali. Porque se eu andar por ali, aí perde tudo.
Aí vem o nono bumi, o nono bumi é o Tatágata. O Tatágata pode andar por qualquer lugar. Ele anda nos infernos, anda nos seres famintos, onde for ele anda com olho de Prajna, ele não perde aquilo. Mas aquilo não é construído, nem uma uma teimosia dele. Aquilo é a Terra Pura, é a base onde ele está. Então aquela base permite que ele veja com aquele olho sem esforço. Isso é como se fosse a culminância do caminho do Bodisatva. Porque ele pode dar benefício aos seres onde ele andar, a visão dele não se altera. Ele tem como, efetivamente, trazer benefícios. Então, o Tatágata é o nono bumi.
E aí terminou? Aí tem o décimo. O décimo é o quê? O décimo é o Darmamega. O Darmamega é quando não há mais um deslocamento em um corpo físico. Então o Darmamega opera num nível sutil. É onde o Buda anda. Onde é que anda o Buda? Num nível sutil. Então, o Buda está super ativo. Como vamos reconhecer isso? O aspecto sutil é que permite que as pessoas construam estupas, construam templos, pintem imagens, façam estátuas e construam centros Budistas, centros de práticas e grupos de estudos, e retiros. O aspecto sutil é que cria isso. O Darma Mega não está em um lugar. Ele atua num espaço sutil. Além de localização física. Isso significa que o Buda está fundido com o Buda Primordial e nós não reconhecemos isso a não ser que nós estejamos em uma Terra Pura. Se a pessoa está dentro do Samsara, isso são palavras sem sentido nenhum.
Essa é uma descrição das Seis Perfeições e dos Dez Bumis do caminho do Bodisatva. E nós estamos no meio disso. Entendendo ou não, nós estamos no meio disso. Nós podemos esquecer disso, mas de vez em quando, de alguma maneira, nós vamos relembrar e nós estamos andando.
Eu acho importante entender que se essas palavras fazem sentido de algum modo, é porque a base da mente permite que isso faça sentido. Então essa base da mente é alguma coisa muito preciosa que já está instalada. Então, a base dessa mente operando desse modo, ela produz as compreensões. Essas compreensões já são o próprio Buda falando dentro de nós. Isso é super importante para nós reconhecermos. Se seguirmos isso, seguirmos essas Terras Puras, a voz interna vai nos aconselhando e vamos seguindo o caminho, naturalmente. E nós vamos entendendo os ensinamentos a partir e junto com essa compreensão interna, com essa voz interna. Aí nós temos, então, essa parte que eu descrevi, que são as Qualidades Incomensuráveis e as Seis Perfeições, mas sempre associadas a uma base. Não é apenas o foco que é a descrição, Essa base é o ponto crucial.
- A base da mente e as cinco sabedorias
Agora, naturalmente, associado a isso, nós temos as cinco sabedorias. Nós temos o Buda Primordial; aí, do Buda Primordial brotam as cinco sabedorias na forma de cinco cores.
Sabedoria de Darmata e os Seis Selos
Nós temos Darmata. A sabedoria de Darmata corresponde ao Buda Vairochana. O Buda Vairochana, Samantabhadra ou Kuntuzangpo ou Buda Primordial é a mesma coisa.
Só que Darmata é uma sabedoria que atua dentro das pessoas, ou seja, as pessoas podem acessar diretamente Darmata e elas reconhecem o Buda Primordial. É como se fosse a última porta diante do Buda Primordial. É Darmata. Assim, é muito precioso que nós comecemos as cinco sabedorias por Darmata. De um modo geral, eu começo descrevendo pela Sabedoria do Espelho, Darmata é a culminância. Mas aqui, como nós estamos olhando esses ensinamentos tem algum tempo, eu acho que podemos olhar diretamente: do espaço surge Darmata.
Mas aqui, Darmata aparece como o foco dos ensinamentos sobre os Seis Selos. Então ele descreve Darmata a partir da vacuidade, a partir da contemplação das formas. Eu acho isso também super precioso. Como que nós, olhando as aparências comuns... (Mas é necessário que estejamos dentro dessa Terra Pura, como foi descrito, né? Terra Pura que começa com a Primeira Nobre Verdade, Segunda Nobre Verdade, Terceira, Bodhichitta. Aí nós temos as Qualidades Incomensuráveis, a purificação do ambiente, aí desse lugar então nós ouvimos isso). Dê às aparências o selo da vacuidade. É óbvio, incrível, claro! Porque eu posso olhar com o olho dos deuses, dos semi-deuses, dos humanos, dos animais, dos seres famintos, dos infernos, posso olhar com olho de Bodichita. Então as realidades são luminosas. Elas surgem de acordo com a base que eu estou olhando. E assim surgem as bolhas e assim surge eu, surge a sensação de eu, das identidades dos seres, surge tudo. Óbvio. Então isso é a descrição da vacuidade. Aquilo que eu olho agora tem essa experiência assim, como se fosse uma experiência causal. Isso é vazio, isso é a vacuidade, ela é uma experiência luminosa. Ela é construída junto com esses aspectos todos. Se eu mudar algumas coisas nesses aspectos de base aquilo muda totalmente. Então, eu tomo as aparências e dou o selo da Vacuidade.
Aí eu vejo: a própria vacuidade, o que eu vou chamar de vacuidade, está na dependência das aparências. A vacuidade não existe em si. Ela é uma característica das aparências. Então sele a vacuidade com as aparências, eu não estou construindo um objeto agora que eu estou chamando de vacuidade. As aparências tem a característica da vacuidade. A vacuidade e as aparências estão juntas, elas são a mesma coisa. Essa propriedade que as aparências têm de surgir luminosamente e se transformar, é a vacuidade.
Aí vem o terceiro Selo: sele ambas com a não-dualidade de aparência e vacuidade. Então, é isso. Quando eu olho a forma, eu estou vendo a vacuidade. Eu entendo a vacuidade porque aquilo é a forma. Não é dois fenômenos – o fenômeno da forma se manifesta junto com a bolha, com a mente, com o observador. Tudo isso é a vacuidade. Então, sele ambas, a não-dualidade de aparência e vacuidade, sele ambas com a não-dualidade de aparências e vacuidade. Agora, sele essa não dualidade - esse aspecto abismal, nós precisaríamos contemplar. É parar, assim, e contemplar. Sele ambas – esse aspecto extraordinário de aparência e vacuidade inseparáveis, não-duais - sele isso com a grande bem aventurança. Tem um “Ohh! Que incrível! Isso é assim, que incrível!”. Essa grande bem aventurança não é discursiva. Então podemos ter uma análise discursiva no primeiro selo: dê as aparências o selo da vacuidade; pode ter uma análise discursiva em: sele a vacuidade com as aparências. Mas aí já não tem muito, nós já estamos começando a ultrapassar, nós estamos substituindo isso por visão. Visão começa a surgir. Nós começamos a ver. Aí, sele ambas com a não dualidade de aparência e vacuidade. Isso não é possível discursivamente. Nós estamos ali: Uau! Não é uma ação mental comum. Isso já é rigpa. Aí nós estamos olhando, assim. Sele essa não dualidade com a grande bem aventurança. Se nós formos olhar, tem uma manifestação de energia que não é uma energia condicionada. Ela não vem porque as aparências são agradáveis ou desagradáveis, atraentes ou repulsivas, não é nada desse âmbito. Isso vem desse lugar amplo, onde o rigpa se manifesta. Então, sele essa não dualidade com a grande bem aventurança. Aí surge essa grande bem aventurança. Sele essa grande bem aventurança com a ausência de pensamentos. Então, essa grande bem aventurança aparece, ela é visão, mas não há pensamento discursivo, não há pensamento causal, não há causalidade, não há nada. Apenas essa compreensão espantosa dessa inseparatividade de aparência e vacuidade. Então, sele a grande bem aventurança com a ausência de pensamentos, dê a ausência de pensamentos o selo do imutável Darmata. Como agora, depois que nós olhamos isso, aí nós voltamos para ver quem está dizendo: “Uau!”. De onde está brotando esse “Uau?” Que mente é essa? Tem uma mente livre contemplando a sua própria ação. Isso é rigpa. E ela brota desse lugar não condicionado, ele está livre. É uma base ampla, que permite ver os condicionamentos, mas ela mesmo não tem o condicionamento. Então ela está nessa condição. Isso é Darmata. Essa condição lúcida, cognitiva, cognoscente, aberta, não discursiva e não causal é Darmata, que é uma manifestação da mente não dual, primordial do Buda Samantabhadra ou Kuntuzangpo. Darmata é uma mente intermediária, no sentido de que ela está conectada com a forma pela qual os seres operam no mundo. Então, os seres do mundo vão nomear Darmata, mas Darmata seria não nomeável. Quando Darmata é não nomeável é o Buda Primordial. É como Darmata olhando o próprio Darmata vê o Buda. Mas os seres olhando esse trajeto, de olhar as aparências e ver vacuidade, etc, esses seres é que vêm Darmata. Darmata, quando olha a si mesma, vê o Buda Primordial. Vê o espaço. Então aqui nós temos Darmata. De Darmata, nós reconhecemos as outras quatro sabedorias.
Sabedoria do Espelho
Aí quando nós vamos praticar a Sabedoria do Espelho, a sabedoria do Espelho é inseparável de Darmata. Porque a sabedoria do espelho nos permite ver como que o outro ser está olhando, a partir de que base ele está vendo qual realidade. É como o Buda descrevendo os seis reinos. Ele não está em nenhum dos seis reinos, mas ele é capaz de entrar e ver como os seres estão criando aquelas experiências. Então, isso é sabedoria do Espelho. Ele vê como o ser surge, como se fosse na frente de um espelho. Ou seja, se olha no espelho e vê o mundo. Porque é um espelho mágico, é um espelho que reflete o conjunto de estruturas cármicas e méritos que ele tem, as estruturas fixas. Reflete, portanto, o mundo da própria pessoa. É como nós estamos aqui, nós olhamos para frente, nós vemos o nosso mundo interno. É isso que aparece como se fosse o mundo grosseiro externo. Então, isso é experiência da sabedoria do Espelho. Aí nós nos damos conta que os seres fazem isso. Todos os seres. Os pássaros cantando nesse momento, esvoaçando, eles estão olhando o seu próprio mundo. É super importante que nós entendamos isso. É uma chave quando nós começamos a nos movimentar em meio ao mundo. Como os Bodisatvas se movimentando em meio ao mundo, eles precisam dessa chave. Nós olhamos o mundo e tentamos entender o que as pessoas experimentam, porque elas experimentam dentro dos seus mundos. Quando nós julgamos as pessoas, a partir do nosso mundo, nós não conseguimos acessar o mundo delas e nem temos efetividade em trazer benefício. Nós precisamos acessar a partir dos mundos delas. Então, essa é a Sabedoria do Espelho.
Sabedoria da Igualdade
Aí tem a sabedoria da igualdade. Dentro da sabedoria da igualdade é parecido com a Perfeição da Generosidade, ou seja, não há separação entre os seres. Por isso há a sabedoria da igualdade. Não há separação. Então as mentes pertencentes ao Samsara são a própria mente búdica. Não há outra, é a própria mente primordial. É Samantabhadra se manifestando a partir de condicionamentos específicos. Então tem um encantamento associado a isso. Tem uma igualdade, num sentido operativo no mundo. Nós podemos perceber que somos seres diferentes apenas no sentido de que nós somos a mente primordial atuando a partir de bolhas mentais um pouco diferentes uma das outras. Então, em vez de nos incomodarmos e olharmos porque um vê de um jeito e o outro vê de outro, “nós não queremos isso, nós queremos aquilo”, em vez de nós olharmos assim, nós entendemos melhor, entendendo o que cada um vê a partir do seu mundo. Esse é o princípio básico da complementariedade. Não há um ponto que seja o ponto perfeito, a não ser o ponto onde não há referenciais, que é rigpa. Mas dentro de um mundo condicionado cada um vê de algum jeito. Então, nós vemos melhor quando nós vemos a partir dos olhos das várias pessoas. Tem uma vantagem o andamento no mundo, quando nós somos capazes de acessar as próprias visões que cada um tem: nós não temos hostilidade, nós temos enriquecimento pelas visões diferentes de cada um. Isso é sabedoria do espelho, mas isso também se torna sabedoria da igualdade. Os seres são nós mesmos em outros lugares. Então eles vêem diferente, assim. Por exemplo, se tomarmos as fotografias da estação orbital, nós não dizemos: “Ah! Eles são uns chatos que estão lá em cima e estão vendo aquilo. Eu não consigo ver aquilo”. Não. Quando nós vemos as fotografias é como se estivéssemos lá, é a mesma coisa. Então nós nos sentimos enriquecidos por poder olhar isso. Quando vemos as fotografias do telescópio hubble, nós não temos nenhum tipo de observação assim: “Quem tirou a foto? Como é que foi? Esse cara está se achando. Como que é?” Não faz sentido isso. Nós simplesmente dizemos: Que incrível! Então isso é igualdade. A inteligência que se manifesta em um lugar enriquece em todos os lugares. Esse é o ponto, assim. Não há propriedade sobre as inteligências, não há identidade sobre as inteligências. Existem as inteligências dentro de um âmbito de igualdade. Se nós no meio do mundo, mesmo no início das Terras Puras, nós pudermos olhar com igualdade, isso é uma grande coisa. É como um educador e suas crianças, ele se alegra porque as crianças entendem. Ele não vai pensar: “Ele agora está concorrendo comigo!”. Não, ele olha assim, e aquilo não tem identidade nenhuma ali dentro. E a criança entendendo, ela se sente enriquecida mas também ela não diz isso: “Agora é meu!”. Não, há uma igualdade no meio daquilo. Tem uma alegria no meio disso. E quando nós nos movimentamos, no início das Terras Puras, desse veículo das Terras Puras, nos movimentamos em meio ao mundo, o que trazemos de benefícios ao outro, já não é visto como o outro. Nós olhamos com o olho da sabedoria da igualdade. Nós nos movemos assim. Eu acho muito bonito também os mestres. Eles, eventualmente, operam evitando qualquer tipo de identificação dos benefícios que eles estão trazendo. Então, não sabemos como surgem. Tem textos que não sabemos de onde é que surgiram, propriamente. Eles vem vindo, aí de repente eclodem na forma de alguém que codificou aquilo, arrumou aquilo e apresenta. E essa pessoa termina com o seu nome divulgado. Mas aquilo não veio dela. É como o texto Palavras do Meu Professor Perfeito – aquilo não é Patrul Rinpoche. Aquilo é uma vastidão de mestres que deram ensinamentos. É como muitas histórias vão sendo contadas. Surge o Budismo no meio das histórias, das coisas e alguém pega aquilo e anota tudo. Mas são muitas experiências lúcidas de diferentes seres em diferentes lugares. Tem alguns mestres que têm essas habilidades, assim. Eles passam incógnitos produzindo benefícios. Aí quando você vai olhar para eles, eles já não estão ali. Você não sabe bem se tinha mesmo ou se não tinha, se alguma coisa já aconteceu. Então, tem essa beleza, assim. Eventualmente perguntam, “mas o seu nome como é?”. Aí vem um nome estranho, assim, que não é nome de coisa nenhuma. Isso é muito bonito, porque é um processo, uma sabedoria da igualdade. Tem uma não identidade no meio desse fluir.
Sabedoria Discriminativa
Aí nós temos a sabedoria discriminativa que, de modo geral, é a que mais nos atrai. Sabedoria discriminativa, que corresponde ao Buda Amitaba. Então, é o Buda Amitaba sentado em meditação, sabedoria discriminativa, pessoal. Primeiro ponto, porque se nós simplesmente pararmos e praticarmos Satipatthana está tudo resolvido. Então qual é a instrução do Buda Amitaba: Satipatthana. Você pára. Se você realmente parar, você vai começar a observar de modo profundo o que aparece desde uma mente que está livre. Quando pára, a mente se livra das aparências. Aí, quando as aparências surgem, elas são contempladas por essa mente, essa mente tem um afastamento das aparências. Por isso as aparências começam a se revelar. Elas vão surgindo como Dharma, como lucidez. As aparências só surgem como lucidez quando nós paramos e acalmamos, estabilizamos a mente. Dentro desse espaço livre, as aparências começam a surgir como objetos em si mesmas. Quando elas são vistas como objetos em si mesmas e não mais elementos dentro dos Doze Elos, aí começa a surgir o Dharma das aparências. Das próprias aparências brotam ensinamentos com respeito a elas mesmas. Então o sentar, o calmo sentar lúcido, a prática de Sati, ela tem o poder de nos retirar dos Doze Elos da Originação Dependente. Quando a nossa mente opera fora dos Doze Elos - mas é operação mesmo, não é uma coisa conceitual – a operação mesmo, fora dos Doze Elos, nos permite re-gerar a sabedoria correspondente, que é a sabedoria discriminativa. Então a base da sabedoria discriminativa é o calmo sentar. Essa é a instrução do Buda Amitaba.
Sabedoria da Causalidade
Ai tem o Buda Amoghasiddhi. (Vairochana é a sabedoria de Darmata. Ai tem Akshobya, sabedoria do espelho. Tem o Buda Amitabha, aí tem o Amoghasiddhi, que é a sabedoria da Causalidade, o que nós vamos ver agora. E Ratnasambhava – sabedoria da Igualdade).
Agora é a sabedoria da Causalidade – Buda Amoghasiddhi. Então, a causalidade é um ponto super importante, porque ela rege tanto os méritos quanto os carmas. Então, o Buda Amoghasiddhi vai nos ajudar a compreender como que ações de um certo tipo vão dar resultados de um certo tipo, e como ações de outro tipo dão resultados de outro tipo. Quando eu faço ações negativas, eu posso pensar que o ponto central da ação é o que foi feito, mas não é o que foi feito. O ponto central da ação é a base que me permitiu produzir o impulso que resultou na ação. Esse é o problema maior, não é propriamente a ação, mas é a base que permite que essa ação seja legitimada. Porque essa base vai produzir de novo, de novo, de novo... Então quando uma ação negativa é criada, o ponto crucial, que a nossa cultura não vê, é localizar como aquilo passou a fazer sentido para os seres. No Budismo, o ponto da educação é o que pode nos ajudar, efetivamente, a interromper as ações negativas e não a punição propriamente. O ponto da compreensão nos leva a deslocar a base, a ajudar o outro a deslocar a sua base, porque é a sua base que está produzindo aquilo. Nós não entendemos isso e transformamos tudo num sistema punitivo. O sistema punitivo como vemos, não funciona. Então as pessoas são aprisionadas, são punidas, mas não adianta, elas não mudam porque elas têm a base. É aquela base que as está vitimando. Na verdade, elas são vítimas de um processo, e não propriamente agentes de um processo. A sabedoria da causalidade nos permite entender como isso está operando. Como que as ações são produzidas. Como que podemos dirigir a nossa energia em direção a ações positivas e não ações negativas. E daí brotam também as quatro formas de ação. Ou seja, a ação de poder, que é não se perturbar diante das aparências; a ação pacificadora, que é pacificar os vários agentes; ação incrementadora, que é propiciar coisas favoráveis para os seres; e ação irada, que é interromper com energia aquilo que precisa ser interrompido para evitar sofrimentos subsequentes. Então, assim é a Sabedoria da Causalidade do Buda Amoghasiddhi - cor verde.
A sabedoria do espelho é cor azul. Ratnasambhava – sabedoria da igualdade – cor amarela. Buda Amitaba, Sabedoria Discriminativa, cor vermelha. Buda Amoghasiddhi, sabedoria da causalidade, cor verde. E Buda Vairochana, cor branca, sabedoria de Darmata.
Então, nós vamos perceber claramente que a sabedoria do espelho é uma manifestação da sabedoria de Darmata. Aí nós vamos perceber que a sabedoria da causalidade também é inseparável de Darmata. Sabedoria discriminativa idem e sabedoria da igualdade também.
Nós precisaríamos contemplar essas várias sabedorias e suas conexões.
Conclusão
Esses pontos são cruciais. Tudo isso é uma emanação que brota do Buda Primordial sobre os seres do Samsara, para beneficiar os seres do Samsara. Então, essa é uma manifestação compassiva. Todos os ensinamentos do Buda, desde o surgimento das cinco sabedorias, são um conjunto inseparável de lucidez e compaixão, que gera todos os caminhos e todas as manifestações do caminho. E isso, em qualquer âmbito que nós estejamos, nós podemos praticar um reflexo, uma fração, alguma coisa disso. Nós podemos praticar. Enquanto nós praticamos, nós construímos uma base melhor. Essa base melhor nos permite praticar melhor e avançar. Assim é o veículo da luminosidade da mente, que vai construindo mundos melhores e vai se deslocando. Então, tem sabedoria, tem luminosidade, tem vacuidade e tem compaixão, dentro disso. Assim vamos finalizando nosso tema, que era “meditando dentro das circunstâncias da vida”. Meditar dentro das circunstâncias da vida, enfim, é tomar as aparências como caminho e ver de uma forma progressivamente mais profunda. Esse processo não é uma sabedoria comum. Ele culmina em visão e aqui nós enfatizamos, especialmente, o aspecto da base que é de onde a visão brota. Esse tema da elucidação da base que é de onde a visão brota, é o tema central do Surangama, que eu pretendo também seguir estudando com o grupo.
Perguntas e Respostas
Pergunta 1: Hoje pela manhã o senhor falou sobre a motivação Mahayana e também, antes disso, falou sobre meditação e ansiedade. Quando a pessoa se vê nessa condição, não é uma escolha dela, é uma operação de base. Como ela pode se ajudar?
Resposta: Contemplando a Primeira Nobre Verdade e a Segunda. Porque a flutuação vem pelo movimento da energia por dentro dos Doze Elos. A pessoa tem uma ligação, “gosto não gosto; quero isso, não quero isso; vejo isso”. Ela é fisgada pela aparência, como ela vem. Então, esse é o aspecto flutuante. Também o potencial cortado vem por aí. Aí a pessoa amadurece. Ela olha para cá, ela olha para lá, e diz “não tem diferença, não tem como. Como é que eu vou reeditar isso? Já sei como é que é”. Então, nessa parte a energia começa a desaparecer. Essa forma de movimento, ela começa desaparecendo pela maturidade do processo dele. Se a pessoa compreender verdadeiramente o sofrimento estrutural, a pessoa se retira do ... o potencial dela aflora, o potencial cortado cessa e o potencial flutuante também. Era o potencial flutuante, então. Todo mundo tem o potencial flutuante. Mas é a Primeira Nobre Verdade. Nós precisamos contemplar os Doze Elos da originação dependente, e ver realmente como é que aquilo funciona, como os seres todos são fisgados. E quando aquilo começa a ficar claro, aí tem uma base e a partir dessa base o potencial aflora. Agora, o Samsara contra-ataca. Então aquilo fica claro, assim. Mas isso é uma outra coisa que vou explicar uma outra hora (risos). O Samsara contra-ataca significa o quê? Significa que, se nós gerarmos uma aversão ao Samsara, aí vai dar problema. Mesmo que essa expressão, em alguns ensinamentos venha: Você deveria ter aversão ao Samsara. Quando isso vier assim, considere isso um ensinamento preliminar, ainda. Porque o Samsara não é para ser rejeitado, é para ser iluminado. O samsara em si mesmo, é a manifestação maravilhosa da mente búdica. Se nós não chegarmos a esse ponto, não vai adiantar, porque a rejeição ao samsara não é uma coisa possível. O samsara é a manifestação luminosa da mente, não tem como rejeitar. A gente não vai criar um bordo e ter um mundo puro. Na verdade, o mundo puro invade o Samsara inteiro. Aí o samsara deixa de ser Samsara. Ele vai virar uma mandala. Então esse é o ponto. Mas neste momento, nós não conseguimos ver. Então, no início, a rejeição ao Samsara é considerada alguma coisa assim, “ok”, para os Bodsativas.
Pergunta 2: Tem uma associação de quatro estilos de vida de mestres realizados: o monástico, o leigo, o iogue da montanha e o nômade. O próprio Buda foi meio nômade, estabelecia um lugar por mais tempo, mas ele foi nômade. A pergunta mesmo é sobre o conceito da transmigração, porque alguém pode imaginar, como eu, que no nível grosseiro a transmigração seria o impulso de estar sempre se mudando de algum lugar ou posição, ou emprego. No nível sutil, talvez aquela pessoa que, quando está em algum lugar, está com a mente sempre em outro. Como seria o método do budismo, de análise do aspecto secreto, sutil interno da transmigração?
Resposta: A transmigração tem um nível de insatisfatoriedade por um lado, e tem uma idealização de algo favorável em outra. Então, quando as pessoas estão no Samsara transmigrando, esse é o processo. Isso lembra, assim, os povos nômades mesmo. “O pasto aqui escasseou, os animais... agora está vindo o inverno, eu preciso ir em direção ao norte. Aqui a água está diminuindo, eu preciso ir para um lugar que tenha mais água, mais pasto, mais sol. E lá eu também vou encontrar outras árvores que estão com frutos, eu vou encontrar os peixes e multiplicar, vou encontrar outros animais e multiplicar, eu vou caçar”. Então, eu estou agora me deslocando. Nesse tempo, nós olhamos em volta, “as plantas já não estão crescendo muito. O frio vai chegar”. Então é esse o olhar. Nós estamos vivendo nesse lugar agora. Porém, eu vejo que tem algumas coisas negativas e aquilo que eu queria colher eu já colhi. Eu acho que tem coisas positivas em outro lugar, eu estou indo. Mais ou menos isso.
Pergunta 3: Como é possível migrar sem transmigrar?
Resposta: A transmigração é a idealização num nível sutil. Num nível sutil tem uma transmigração. Então, eu vou de uma bolha para outra. Então a transmigração é sair de uma bolha para outra. É a concepção, a pessoa está num lugar e concebe um outro lugar melhor. Mas ela concebe num aspecto sutil. Isso propicia um movimento grosseiro. Então surge uma energia que se torna, repentinamente, num certo momento, uma energia de grupo, também. O grupo todo começa a se deslocar. Mas num nível secreto, a transmigração corresponde à liberdade natural. Eu construo realidades aqui, eu construo outras realidades e vou indo. Só que a operação mental que leva à transmigração, de um modo geral, ela é o samsara, ela é os Doze Elos. Então a transmigração é infinita. Nós nunca vamos encontrar um lugar que seja efetivamente adequado. Eu acho que talvez alguns mestres das tradições nômades, de povos ancestrais, de culturas ancestrais, eles possam perceber que a transmigração se dá sempre dentro de Tupambaé, ou seja, do mundo de Deus, das coisas de Deus. Então, eles se movimentam, mudando, mas sempre dentro de algo que não muda. Então essa é uma percepção melhor. Aí tudo muda, enquanto tem um mundo de Deus que não muda. Eu acredito que muitos acessam o aspecto secreto, também.
https://www.youtube.com/watch?v=kNtkTRkis90
Transcrição: <Liliane Iten Chaves>
Revisão: <Maurizete Barroso Winter e Samira Lima da Costa>
Perguntas & Respostas
Pergunta: É bom quando o praticante contempla o samsara com paixão, pois essa admiração gera energia e mais interesse em aprender o funcionamento dos fenômenos. Mas o que podemos fazer se a gente se apaixonar pelo samsara e ficar com medo de perdê-lo e, talvez por isso, deixar de desejar a iluminação completa? Obrigada por tudo.
Resposta: Esse aspecto da paixão, ele não era completamente neste sentido. Ele diz respeito a quando a visão se estabelece, quando a visão clara com respeito às aparências se estabelece, neste momento tem uma energia que acompanha. Essa energia é que por vezes é descrita como paixão e não o aspecto comum da realidade como ele está operando. Não é esta a paixão que eu estava me referindo. Essa paixão do samsara, de modo geral, ela dá problema. Quando a paixão do samsara está presente, é muito difícil. é possível com a paixão do samsara localizar a paixão que eu estou me referindo, que vem na visão. É possível. Porque não tem nenhuma experiência dual. A paixão do samsara, por exemplo, é uma experiência dual. Não tem nenhuma experiência dual que resista à visão do Dharma. Então, seja o que for que nós tivermos, se nós olharmos com esse olho de sabedoria, aí surge a paixão como eu tinha descrito, que corresponde à energia brotando da natureza primordial.
Pergunta: Para aqueles que estão com o potencial da natureza búdica cortado, o que se pode fazer para reestabelecê-lo?
Resposta: O Buda não conseguiu resolver isto com todos os seres, não é uma coisa assim que seja fácil. Mas o que é que o Buda fazia? O Buda explicava as Quatro Nobres Verdades. Acho que este é um método muito bom. O samsara é vasto. Quando as pessoas vão ouvir sobre As Quatro Nobres Verdades pode ser que elas simplesmente nunca tenham percebido o sofrimento, e que aquilo não faça sentido para elas. Tem sistemas mais introdutórios, eu vejo assim. Por exemplo, para a pessoa poder entender o sofrimento ela tem que olhar um pouco para si. Existem muitas pessoas que simplesmente não olham para si, elas não olham. Elas não têm este olho que permite que elas reconheçam as suas emoções, as suas tendências, as suas visões. Elas também não localizam as suas energias, não veem isto. Nunca foram convidadas para fazer isto. Talvez, neste tempo, as pessoas estejam muito ocupadas nas telas. Essencialmente estão sendo bombardeadas por uma oferta que passeia por dentro das regiões cármicas delas. Elas têm as regiões cármicas e sempre tem alguma coisa que atrai as regiões cármicas. Tem uma vastidão de possibilidades. A pessoa escorrega para dentro disso, que é muito mais fácil, porque o movimento da energia segue por dentro das aparências. As aparências são variadas, são múltiplas, e outras e outras aparências conectam com as regiões cármicas da própria pessoa. Ainda mais com o serviço de busca e com a inteligência de oferecer justamente aquilo nos algoritmos que vão analisando o que que a pessoa está pedindo. Os algoritmos vão localizando as regiões cármicas. Vão oferecendo justamente o que está na cara da região cármica, o que a pessoa revelou. O algoritmo tem esta habilidade. Ele vai oferecendo o que ele tem a tendência a acreditar que seja o lugar que a pessoa tem interesse. A pessoa começa a ficar sempre respondendo a coisas que são as coisas cármicas dela. Ela não faz esforço nenhum de olhar para dentro. Ela não tem este esforço. Esse processo de olhar para dentro, tem algumas tradições espirituais, por exemplo, a Shafiu, começavam por duas coisas: começavam com astrologia e a pessoa aprendia a fazer o seu mapa. Eu acho isto interessante. Eu nunca andei nesta direção, mas eu acho interessante, porque quando a pessoa começa, todo mundo tem um auto interesse. A pessoa é fisgada pelo auto interesse. Vamos ver o que os astros revelam para você. “Para mim? Sim, para você. Como é que você é? Que horas que você nasceu? Onde você nasceu? Bom, isto eu tenho interesse!” Isso é um gancho cármico. Aí a pessoa começa a olhar. Aí vem uma descrição: você tem isso, tem aquilo, você tem esta tendência. Você tem o ascendente. Você tem os planetas; você tem as casas; você tem as quadraturas; tem os trígonos; tem o meio do céu; tem uma porção de aspectos e cada um deles tem um significado que a pessoa pode ver. Ela não tem como olhar para aquela descrição sem olhar para dentro de si, para ver. Este é um ponto interessante. Na sequência, a pessoa é convidada a entender que aquilo é o céu natal, que ela pode mudar totalmente esta estrutura. Que aquilo é o carma dela, aquilo pode mudar, ela não precisa ficar presa. Ela foi apresentada de algum modo. Ela vasculhou o seu carma e localizou mais ou menos isto. Claro que é necessário este viés, porque se a pessoa olhar aquilo como um designo externo, ela sucumbe àquilo. Mas se ela entender que aquilo é um carma e que ela pode mudar, isto é uma boa coisa. A Shafiu começava deste modo. Eu vi muitos jovens fazendo isto. Eu acho interessante. Claro que eles vão ter que fazer outras coisas depois. Eles vão ter que entender que todos os seres, com todos os mapas, os doze signos, com todas as luas e todos os planetas, trígonos e quadraturas, estão todos encaixados na Primeira Nobre Verdade.
Eles vão trocando uma coisa por outra. Isto pode ser interessante. Também acho interessante as pessoas fazerem alguma disciplina física e dali fazerem yoga, por exemplo. Eu acho interessante, porque não tem como a pessoa levantar um braço sem acionar energia. De algum modo a pessoa vai terminar localizando a energia. Toda a disciplina de yoga converge para Padmasana. Padmasana ensina muito, porque nós estamos sentados, se a gente não tiver uma capacidade de manter a energia enquanto nós estamos sentados, a pessoa não fica naquela posição. A pessoa inevitavelmente é seduzida pela posição grosseira, mas ela vai trabalhar o aspecto sutil, entendendo ou não entendendo. Esta compreensão do aspecto sutil é o ponto realmente. Ela vai descobrir que a chave de cada posição é a energia da posição. E a posição da mente também. Ela vai descobrir este aspecto sutil. Mais adiante ela pode ser apresentada para o aspecto secreto, se ela vier deste modo. São disciplinas muito interessantes. A yoga atrai muitas vezes os jovens pelo aspecto ligado à cura, por exemplo, a pessoa tem alguma afecção, tem alguma perturbação. Tem o corpo com algum tipo de flutuação. Ela pode pretender melhorar o seu corpo, o que é uma coisa completamente natural para quem é autocentrado. Esta disciplina pode ser muito útil, porque ela pega a pessoa onde ela está, com os obstáculos que ela está. Com nenhum tipo de conexão com o caminho espiritual. A pessoa não quer ouvir coisa nenhuma, mas de repente ela começa, vai desenvolver uma aptidão que ela não tinha e começa a ver o que ela não via. Ela começa a ver sem aspirar, ela começa a ver. Não tem como evitar. Estas coisas são interessantes, neste sentido. Estas práticas, elas são práticas introdutórias. As Yanas são muitas, então nós podemos começar deste ponto.
Tem tradições que começam justamente com a causalidade. O primeiro ponto é falar sobre o carma. Acho interessante isso, também. Porque a pessoa está no bloco zero, ou menos um. Ela tem o potencial cortado, mas ela se interessaria em saber sobre o carma. Especialmente para ver para onde ela vai, que é que pode acontecer. Todo mundo tem um nível de auto interesse. Este ponto do carma, eu acho interessante. Ele é equivalente ao aspecto da astrologia, só que o carma dá um direcionamento. A compreensão do carma, a compreensão da causalidade dá o direcionamento, enquanto que a astrologia não necessariamente. A astrologia é mais livre sob este ponto de vista ético e moral, e o carma tem uma posição. Eu acho que estas formas dialogam. Acho também que às vezes as pessoas têm uma sensibilidade para histórias de pessoas importantes. Às vezes a leitura da história dos mestres pode fazer sentido, pode ser interessante. Tem alguns caminhos para acessar quem está com o potencial cortado. Naturalmente todos os seres têm a natureza búdica. A pessoa está com o potencial cortado, mas o potencial está lá; cortado, mas está lá.
Pergunta: Lama querido, é comum começar a se dedicar aos estudos e sentir um certo desânimo frente às resistências para alcançar a iluminação? O samsara tem mesmo fim?
Resposta: O samsara é uma experiência. Nós estamos no meio do mundo iluminado e isso é a realidade. E o samsara é uma experiência limitada desta mandala extraordinária. Nós desanimamos quando tentamos seguir o caminho espiritual a partir de uma disciplina externa, então desanimamos. Mas se seguimos elucidando as áreas que temos uma tendência natural, isto é interessante. Quem sentar em meditação e puder descobrir que a energia aparece naquela posição, quando a pessoa está ali, a pessoa deu um grande passo. E ela não vai se sentir mais desanimada. Ela vai ter esta energia. A energia autônoma, a energia auto surgida é muito importante, muito importante. Quando nós sentamos, se conseguirmos, nós podemos começar a olhar o elemento terra. Se a pessoa consegue localizar isto, é uma boa coisa. A pessoa começa a olhar cada um dos elementos. Se ela consegue ver cada um dos elementos e vê o elemento éter, isso é uma boa coisa, porque a pessoa domina a sua energia. Ela começa a dominar a sua energia. E neste sentido ela não sucumbe mais. Ela não tem mais o desânimo. O desânimo vai desaparecer.
Pergunta: Olá querido Lama! Gratidão por essa possibilidade de mantermos contato. Como alguém ligado às práticas artísticas, tenho pesquisado muito o tema da presença na relação com o Dharma. Após algum tempo buscando conhecer mais sobre os ensinamentos do mestre Dogen, encontrei um site que faz referência a uma tradução do texto sobre o termo japonês Uji - Existência-tempo de mestre Dogen. No site a tradução do inglês está atribuída a Gehrard Kahner e Alfredo Aveline. Buscando na Web não encontrei esta tradução. Por favor Lama, o CEBB tem este texto traduzido em seus arquivos para acesso? O senhor poderia falar um pouco sobre este ensinamento de mestre Dogen e a relação dele com o que o senhor tem chamado de quarto tempo?
Resposta: Isto é uma pergunta complexa. Este texto, de fato quem fez a tradução foi o Kahner Sam. Ele fez a tradução do inglês e do chinês. E eu o ajudei a encontrar as palavras para a língua portuguesa, porque ele não dominava bem a língua portuguesa. Então eu o ajudei nisso. É um texto muito enigmático, mas quando a gente olha com um certo olhar ele é um texto completamente maravilhoso. Ele é um texto que influenciou vários filósofos, vários pensadores.
Neste momento este texto está sendo traduzido para a língua portuguesa, por uma outra tradução. E as pessoas estão olhando também a minha tradução, mas estão fazendo a sua própria tradução a partir do japonês, direto. Aliás o Kahner Sam traduziu do japonês e não do chinês. Então o Kaz Sensei está ajudando isso. Mas este Ser-Tempo, Uji, ele seria essencialmente o que nós falamos sobre não dualidade. A não dualidade, o texto todo ele vai falando sobre diferentes coisas, aparentemente desconectas. Ele vai sempre dizendo que Uji, o Ser-Tempo é isto; e o Ser-Tempo é aquilo; o Ser-Tempo é a coluna do tempo; e o Ser-Tempo é o telhado; e o Ser-Tempo é o grito do pássaro; e o Ser-Tempo é a serenidade do lago. Ele vai olhando coisas assim. Eu que estou trazendo estes exemplos. E aí ele vai, e o Ser-Tempo é o Buda; e o Ser-Tempo é o Maharaja. Como isso? Todas as aparências são o Ser-Tempo. Ele chama de Ser-Tempo as aparências no sentido absoluto. O aspecto absoluto. O aspecto secreto das aparências, que incluem também o aspecto sutil e como que as coisas aparecem. Ele vai chamar isto do Ser-Tempo. Tem uma razão, porque o tempo é o tempo e o ser. Tu sentas em meditação e procura localizar o tempo. O tempo é algo que pode ser ligado ao próprio espaço. Ao invés de eu falar espaço, eu falo tempo. Mas este é um tempo sem duração. É simplesmente quando tu paras no tempo, procura o tempo, vai para dentro do tempo. O tempo parece que decorre, mas também não decorre. Isto é a presença não condicionada e isto é inseparável das manifestações. As manifestações são inseparáveis do aspecto absoluto. Porque o aspecto absoluto produz as manifestações. O ser, a existência e o tempo é como, no budismo tibetano nós vamos falar mais sobre espaço. A compreensão clara de como cada aparência comum, cada experiência aparentemente comum tem o absoluto dentro, isto é a prática do ensinamento do mestre Dogen, neste aspecto. Isto é uma prática extraordinária. É a prática que nós deveríamos fazer. É a prática que a gente descreve aqui. Ou seja, olhar cada experiência não é tirar a aparência do samsara, não é isto; é olhar dentro de cada aparência e reconhecer Dharmata. Reconhecer o aspecto absoluto dentro de cada aparência. Mestre Dogen tinha essa qualidade, ele tinha isto. Ele era capaz de gerar uma linguagem específica. Ele gera uma linguagem própria. Ele não copia a linguagem do Buda, ele gera uma linguagem que vem da realização dele. Vem da própria capacidade dele de acessar estes aspectos todos. Mestre Dogen é um mestre totalmente iluminado, porque ele gera uma linhagem. Ele gera uma forma de transmitir a própria experiência da iluminação.
_ Pergunta: Lama, a base seria como um alaya vijnana individual?_
Resposta: É isto, mas o alaya vijnana nunca é individual. A gente seleciona uma parte do alaya vijnana e ali, então, surge a base. Quando surge a base, surge o ser. Surge uma sensação de existência ali dentro. Nós somos isto, essa sensação de existência a partir de uma base.
Pergunta: Como fazemos para não sermos tocados energeticamente?
Resposta: Se a pessoa estiver com a energia auto gerada, auto gerida, se a pessoa estiver focada na origem da energia, ela não é tocada. Mesmo dentro do samsara. Por exemplo, uma pessoa determinada em se mover em uma certa direção, quando coisas aparecem de outro lado, a pessoa não precisa responder. Porque ela está focada numa coisa, ela não acessa outra. Se ela mantiver o foco, ela não é perturbada pelos outros aspectos. Mas se carmicamente ela tiver esta questão, isto pode ser transformado em prática, porque a pessoa se vê arrastada, depois ela pode retornar. Ela pode, por exemplo, praticar os cinco lungs. Ela pratica shamata com o foco na energia, então ela estabiliza. Mesmo que ela pratique só o elemento terra, isto já é extraordinário. Ela senta em silêncio e se sente estável: esta energia é auto surgida. Quando ela pratica deste modo, se surgirem coisas ao redor, ela não precisa responder a isso. Ela intensifica o foco na energia e se livra das perturbações ao redor. Mas nem sempre é o caso de nós nos isolarmos das perturbações, o ponto é que a gente precisaria iluminar as perturbações. Uma forma de nós acessarmos as perturbações de um modo mais autônomo, é purificando estas perturbações com Mettabhavana. Estas perturbações, quando tentamos nos isolar, elas seguem como os fantasmas que nos perseguem. O isolamento não é a forma de nós nos libertarmos. A forma de nós nos libertarmos é nós olharmos para aquilo e purificarmos com Mettabhavana. É com a compreensão das Quatro Nobres Verdades e Mettabavana.
Pergunta: Querido Lama, um dos meus desafios como praticante é superar o meu potencial flutuante. Como o senhor descreveu mais cedo eu já recebi ensinamentos em templos diferentes. Havia, inclusive, me programado para morar em um templo por um período, mas não aconteceu. Tenho a sensação de que eu só vou avançar no caminho se eu me isolar por um bom tempo em um local de paz. O senhor poderia fazer um comentário sobre o efeito de retiros longos na liberação do sofrimento, por favor? Buda também se afastou da vida antiga. Gratidão por todos os ensinamentos.
Resposta: Acho que nós, como é que eu vou dizer, idealizamos um pouco o isolamento. Está certo que todos os mestres aconselham, mesmo Dudjon Rinpoche, aconselha que nós deveríamos nos afastar dos locais onde nascemos, dos locais onde vivemos. Eu prefiro pensar isso como um afastamento no nível sutil, sabe. Não propriamente no aspecto grosseiro, porque nós podemos nos afastar no aspecto grosseiro, mas se, no aspecto sutil, não houve esta liberação, nós carregamos as cargas cármicas todas e ficamos enganchados, sem a menor dúvida. Acredito que o ponto pelo qual nós ganhamos este distanciamento é, também, com Mettabhavana. A compreensão das Quatro Nobres Verdades e a prática de Mettabhavana. Isto é que permitiu o Buda, que buscou este afastamento. Ele buscou este afastamento e ele também se frustrou. Ele quase morreu. Mas ele atingiu a liberação. Por quê? Porque ele compreendeu esse aspecto do sofrimento. Ele compreendeu a natureza da realidade. A compreensão da natureza da realidade, a compreensão da dimensão do sofrimento e a compreensão do Prajnaparamita é o que realmente vai propiciar uma liberação deste aspecto sutil. Este aspecto sutil se liberando, o afastamento ocorre; e quando nós vamos olhar, este afastamento não é um afastamento físico, ou necessariamente físico. O afastamento físico é interessante no sentido de nós evitarmos compromissos. Evitarmos incluir as exigências cármicas dentro da nossa rotina, porque isto obriga, também, a um deslocamento para um nível sutil. Mas se nós não temos esta liberação, não adianta nos afastarmos. Inevitavelmente o samsara vai atrás de nós, porque o samsara vive dentro de nós. Ele vive dentro dos nossos olhos, dentro dos nossos sentidos físicos e dentro da nossa mente; é na forma pela qual nós atribuímos significados. Então não basta o afastamento, não é suficiente. Mas, enfim, nós avançamos como podemos. Se tu puderes viver este afastamento, esse retiro longo, isto é uma boa coisa, com certeza. Mas não que isto vai resolver. Nós sofremos no cotidiano, nós sofremos nos retiros. E é isto. Este é o ponto.
Pergunta: Em todos os éons já houve algum período em que, ao invés do samsara, a realidade plena dos seres era terra pura?
Resposta: Acho que tivemos tempos melhores e tempos piores, assim. Mas o samsara surge da própria ação da mente. A melhor forma de entender, é que o samsara é inseparável do mundo luminoso. A gente não vai conseguir cortar o samsara num sentido grosseiro. Não é por ali que a gente vai resolver. Nós vamos resolver no aspecto sutil, reconhecendo o aspecto sutil e secreto, o aspecto luminoso de todas as manifestações. Nós vamos iluminar o samsara. Este é o ponto. Mas eu não sei se socialmente isto teria ocorrido em algum momento. Eu pensaria que não.
Pergunta: Querido Lama, sobre este aspecto que o senhor comentou à tarde, da pessoa se conectar com os ensinamentos se ela tiver méritos, se ela não tem os méritos e não se conecta, como ela sai disso? Como ela poderá acumular méritos para se conectar algum dia?
Resposta: Seria, por exemplo, se a pessoa tiver este mérito de acumular méritos, porque ela pode não ter méritos para acumular méritos. Daí fica mais difícil. Mas se a pessoa tiver esta aspiração de acumular méritos, então ela já tem méritos para acumular méritos. Esta aspiração poderia originar o interesse para contemplar as Quatro Nobres Verdades. Eventualmente a pessoa poderia começar contemplando os Quatro Pensamentos que Transformam a Mente, como eu descrevi hoje. E na sequência a pessoa vai contemplar as Quatro Nobres Verdades, que eu acho crucial. Se a pessoa tiver, a partir disto ela conseguir avançar, ela poderia também, como eu descrevi hoje, contemplar Dharmata, contemplar as cinco sabedorias, contemplar as Quatro Qualidades Incomensuráveis, Seis Perfeições. Neste momento a pessoa vai gerando méritos aos poucos e consegue, a partir dos méritos gerados, gerar mais méritos, e aquilo vai indo. A primeira coisa é ela ter esta aspiração.
Pergunta: Lama, o que dizer para aqueles que sentem medo da própria possibilidade de iluminação? Não se acham merecedores até mesmo de fazer Mettabavana para si. Como ajudar?
Resposta: A pessoa tem uma estrutura cármica que impede. Mas o fato da pessoa estar neste ambiente de eventualmente pensar que isto existe, mas não tem esta capacidade, a pessoa já tem algum mérito, porque ela está ali. Ela fez contato. Ela pode ter uma posição negativa, mas ela fez contato. Isto já é uma coisa favorável. Acredito que estas pessoas possam se beneficiar se nós conseguirmos mostrar como os seres da natureza, não apenas os seres humanos, mas os seres da natureza têm a natureza búdica também, como todos os seres têm a natureza búdica. Esta contemplação é muito interessante, muito especial. Se a pessoa puder acessar estes ensinamentos e entender como que a realidade é construída e como que os seres da natureza, sem nenhum treinamento, constroem suas realidades, isto é a natureza búdica em ação. A natureza luminosa búdica em ação. Como eles geram uma cognição dentro dos mundos onde eles habitam, e esta cognição é uma manifestação de rigpa dentro do mundo condicionado. Isto é muito extraordinário. Se nós entendemos isto, vemos que os seres todos podem manifestar totalmente a liberação.
Pergunta: É muito difícil colocar limites na bolha profissional, que acaba quase adquirindo totalidade na vida cotidiana. Há responsabilidades no trabalho que parecem até boas oportunidades de prática, de trazer benefício aos outros, mas há visíveis excessos: tarefas a serem executadas que sugam a nossa energia. O ambiente profissional e a nossa cultura estimulam estes excessos. Há um sentimento de sobrecarga, medo de perder o emprego. Como encontrar este equilíbrio? Dependendo da situação seria melhor sair de um emprego que não favorece o seu caminho?
Resposta: Este ponto é um ponto muito delicado, porque a insatisfatoriedade não tem solução. Não tem solução. Enquanto nós estivermos no samsara, enquanto nós estivermos operando pelos Doze Elos, é inevitável que o lugar onde nós estejamos tenha um conjunto de aflições, tenha um problema assim. Se nós estamos no reino dos deuses, sofremos no reino dos deuses, se estamos no reino dos infernos, sofremos no reino dos infernos, onde estivermos. As pessoas sofrem porque estão sozinhas, depois sofrem porque namoram, depois sofrem porque casam, depois sofrem porque separam. Mas a gente também poderia pensar: “bom, a pessoa podia estar feliz sozinha, podia estar feliz namorando, podia estar feliz casando e podia estar feliz separada”. Mas não. Em qualquer uma destas circunstâncias, quando a pessoa passa de uma condição para outra, a pessoa está buscando alguma coisa melhor. Mas quando a outra condição se instala, a pessoa sofre. A pessoa pode sofrer porque não tem emprego. Aí depois que tem emprego, a pessoa sofre dentro do emprego e ela imagina que poderia ter uma outra possibilidade. Mas seja quais forem as possibilidades que imaginemos, todas elas têm dificuldades, isto é a compreensão da Primeira Nobre Verdade. Este é o ponto. Acho que isto não deveria impedir o esforço para melhorar as circunstâncias. Se a pessoa consegue ter um trabalho onde ela consegue mais espaço de tempo para praticar, isto é uma boa coisa. Mas é preciso entender que mesmo as pessoas em retiro, elas eventualmente não querem praticar. Isto pode acontecer, em algum tipo de retiro. É uma coisa curiosa, a pessoa tem o tempo, mas a mente vagueia. Acho sempre que o desafio maior é a pessoa poder aproveitar o lugar onde está, porque ela está ali, porque carmicamente ela chegou ali. Ela está no lugar, enquanto ela não esgotar aquele carma, aquele é um bom lugar para elucidar a prática e ampliar a visão, dentro deste lugar. Ali mesmo nós tentamos olhar os outros seres que estão ao redor e entender o mundo deles. Praticar as cinco sabedorias: Sabedoria do Espelho com relação a quem está em volta, Sabedoria da Igualdade se alegrando em propiciar coisas favoráveis para quem está envolta, Sabedoria Discriminativa no sentido que nada vai a lugar nenhum dentro do samsara, Sabedoria da Causalidade de fazer ações melhores e evitar ações piores. Não se perturbar com as aparências. Pacificar os lugares. Produzir benefícios em todas as direções e trancar o que for negativo, sempre compreendendo que há uma natureza ilimitada presente na própria pessoa, presente em cada um. Isto é uma prática que pode ser feita em qualquer lugar que nós estejamos, entendendo que não há a possibilidade de eliminar o sofrimento sem a iluminação completa. Sempre vai haver um desconforto, seja qual for. É muito comum as pessoas, por exemplo, em retiro, passarem por situações difíceis. Os nossos retiros são super facilitados, não há a menor dúvida. Mas quando as pessoas faziam retiro em caverna e vinha o inverno e não tinha mais como ir e vir e a pessoa está num lugar que não tem como ir e vir, que é um lugar frio, habitado por outros seres, a pessoa olha a comida que tem e é pouca comida. E aí? Como é que faz? A comida que tinha que vir não veio antes de começar o inverno. E aí? Estes relatos são comuns. Aí os praticantes vão seguindo. Aí surge um dilema: eu faço oferenda para os outros seres no altar ou não faço? Eu vou comer comida dos outros seres, as minhas células são outros seres e elas precisam comer. Então não faço oferenda nenhuma. Faço todas as oferendas para dentro. Como é que é isto? Aí começa um tipo de sofrimento, também. Eu lembro, Chagdud Rinpoche comentou isto. Ele estava nesta situação. Nós vamos seguir fazendo as oferendas. Aí milagrosamente a comida veio. A pessoa está em retiro, a pessoa está no Tibet, está numa caverna iluminada pelo próprio Guru Rinpoche. Aquilo é o topo do topo, mas pode faltar comida. Todo lugar tem alguma coisa. Todo lugar tem alguma coisa. Lembro destes versos, mas eu não lembro o nome do mestre zen… Ele morando também sozinho num lugar assim. Ele compondo os poemas: “Quando você vier… Agora o inverno chegou e você não veio. Quando você vier na primavera, talvez você encontre as raposas morando aqui dentro e eu já tenha desaparecido”. Muito bonito isto! Mas tem um sofrimento no meio disso. São mestres assim, todos eles têm medo de sofrimento. Não é o nosso caso! A melhor forma é praticar dentro do que estamos fazendo. Praticar aqui dentro mesmo. Vocês vão ver os poemas do VI Dalai Lama também. O VI Dalai Lama, engasgado com a situação de ser Dalai Lama. Ele não estava gostando desta coisa de ser Dalai Lama. O V Dalai Lama, quando morreu, era uma pessoa de grande, grande importância. Então, esconderam a morte dele, portanto, não podiam treinar o outro. Anos depois, eles contaram. Eles sempre diziam que o V Dalai Lama estava em retiro. Quando então eles anunciaram a morte, eles escolheram o VI Dalai Lama, que em princípio seria a reencarnação do V Dalai Lama, mas eu acho que deu algum problema. Eu não tenho nada que ver com isto, mas o VI Dalai Lama era bem diferente do V Dalai Lama. Bonito de ver o sofrimento dele por se sentir isolado, por sentir esta vontade de um jovem de estar em contato com as pessoas. Bonito isto. Vocês imaginem, no Potala, o próprio Dalai Lama, ele está lá e ele tem um tipo de sofrimento. Eu acho importante nós entendermos isso. Se a pessoa está empregada, tem os filhos esperando em casa, a coisa é completamente natural que tenha um sofrimento, que se sinta sobrecarregado, também. O próprio XIV Dalai Lama, ele está lá, escolhido, ele reclamando. Ele é um pouco inseguro. Ele vê os ratos andando no altar. Felizmente nós não temos ratos. O Dalai Lama via uns ratões passando no altar e ele era uma criança e achava meio assustador e sentia falta da família dele. Mas o que ele era? Ele era o Dalai Lama. Pense! Eu estou aqui trazendo estes exemplos para a gente não pensar que os seres menores é que têm problemas. Todos os seres têm problemas.
Pergunta: Percebo a tendência de lastimar quando vejo a fragilidade desta mente humana e os enganos que levam a sofrimentos, exatamente como o Lama disse. É como ver uma criança sofrer por coisas bobas. Penso que se apenas sorrir, após ver a construção e liberdade, poderei cair nos mesmos enganos como se estivesse com descaso, parece que existe esta tendência em martírio.
Resposta: Ponto! Para quem está seguindo os ensinamentos, eu sempre acho que o melhor (eu ia dizer sorrir) é, justamente, a pessoa perceber a situação mesmo que ela está, porque ela não precisa escolher outra. É ruim quando a pessoa está numa situação e tem que escolher uma outra para entrar para fazer a prática. Aquilo não serve. A pessoa pratica aquilo mesmo, mas ela reconhece que aquilo é uma manifestação luminosa da mente enquanto ambiente, enquanto seres que estão ali, enquanto opções. A pessoa reconhece isto. É a nossa prática. É a melhor prática. Neste sentido, aí tem o relaxamento. A pessoa UAU!!! Aí tem o sorriso. Quando nós estamos no meio de muitas complicações, eu acho interessante a pessoa perceber: isto é o que eu faço com a liberdade ilimitada, com o aspecto secreto. Eu construo esta realidade aqui. Isto é o que eu faço com a minha mente, minha mente que é livre, ampla, ilimitada. Neste momento, o que é que eu faço? Eu construo essa realidade que está aqui, assim. Se isto faz sentido para ela, isto é uma grande prática. Isto é interessante. Teve uma época que eu falava assim (agora não tenho mais falado), que é melhor a pessoa namorar. Se não tem um pouco de confusão, não tem energia da prática. Se a pessoa não encontra energia na prática, namorar pode ser interessante, porque ninguém fica tranquilo namorando. O namoro tem esta atração e tem o sofrimento. Se a pessoa consegue introduzir isto, os sofrimentos ligados, eu sempre sugeria, melhor que o namoro tenha confusão, e que a confusão seja perturbadora, porque a pessoa não consegue deixar de focar isto durante o dia e também durante a noite. A pessoa vai praticar 24 horas por dia. De noite ela dorme um pouco e acorda: e agora? Isto é uma boa prática, se a pessoa consegue sempre reconhecer o aspecto construído, e que a mente constrói aquelas opções, aquelas realidades, aquilo tudo. Aí a pessoa diz: “uau, eu estou construindo isto! Que incrível, tudo isto fica real! Isto é a bolha inteira e eu dentro disto, que incrível! Agora eu vejo o espaço amplo!”. A gente dorme mais meia hora. Daqui a pouco acorda. A bolha contra-ataca! Então a pessoa faz muitas práticas, ela não consegue devolver o objeto de prática. Não consegue devolver a energia perturbada, mas se ela consegue colocar a lucidez naquilo, então ela faz práticas com uma energia vulcânica, literalmente - para não dizer infernal (risos). Um pouco de confusão faz parte. Agora se tiver muita, muita confusão, aí também não tem como. É melhor esta confusão interna. A gente não sabe, “a pessoa me ama ou não me ama? Ela ama a quem? Ela vai para cá ou vai para lá? O que é que vai acontecer?”. Quem namora tem sempre este tipo de problema. “Este namoro é até quando? O que é que vai acontecer?”. Sempre tem este aspecto. Isto é super bom para os praticantes, é perfeito, assim. Os praticantes vêm a bolha e aí não era nada daquilo. Nunca é nada daquilo. Ai o outro sempre vem para dizer: não é nada disto! Não é nada disto! É sempre assim. Eu acho perfeito isto. Mas às vezes dá muita confusão. Estou descrevendo isto porque, quando encontramos os obstáculos, as coisas desagradáveis e sofridas, nós podemos tomar estas coisas desagradáveis e sofridas, estes obstáculos, como prática. E tomar isto como prática é localizar as bolhas, as identidades e os condicionantes. A base condicionada que dá significado para cada parte dentro disto, quando nós olhamos isso, nós já estamos olhando com distanciamento. Então já temos a liberdade. Isto é a lucidez que brota de um ambiente mais amplo, de preferência um ambiente mais amplo possível. Um ambiente primordial, mas se for um pouco mais amplo já ajuda.
Pergunta: Boa noite Lama e Sanga! Na palestra do dia 24 o Lama falou sobre a vida do Buda. Na parte que o Lama relata que o Buda sentou embaixo da árvore Bodhi determinado a confrontar as aparências, enxergando como ultrapassar Mara, há um momento em que surge a aparência de Yashodhara em súplicas para que ele volte ao castelo. O Lama conta que Buda estremece, oscila por um breve instante, mas acaba também por reconhecer aquela manifestação de Yashodhara como mais uma das aparências de Mara. Em seguida o senhor faz o comentário: “não sei como seria se fosse Yashodhara mesmo!” Achei este comentário interessante, mas fiquei com uma dúvida se eu entendi o que o Senhor quis dizer.
Resposta: Vamos dizer assim, passou na mente do Buda, mas ele não viu em corpo físico na frente dele. Ele não precisou resolver isto num nível grosseiro, mas no nível sutil, ele fez isto como eu estou descrevendo: isto tem uma bolha, tem um conjunto de referenciais, a Yashodhara tem a natureza búdica, ela está presa ao papel de Yashodhara, de mãe, naquele ambiente. Ele a liberou, liberou aquela visão. Ele liberou aquele tipo de compreensão. Mais adiante ele vai retornar e a Yashodhara vai se tornar uma monja, também. Ela vai atingir a liberação. Ela e o Rahula, que é o filho. Este é um ponto interessante. Quando ele reconhece o aspecto de filha de Mara, significa que ele vê a construção luminosa, o aspecto que não é o absoluto. Mas quando ele vê o aspecto relativo, ele vê a filha de Mara, ele vê o aspecto absoluto também, ele vê a natureza búdica, por isso ele consegue liberar as filhas de Mara, no caso a Yashodhara.
Pergunta: Faço muitas atividades diferentes que gosto, por isso surge apego. Há como operar em terras puras fazendo as atividades cotidianas? Sou médica e tenho atividades em hospitais e acho mais fácil operar em terras puras, colocar-se no lugar dos outros e poder aliviar o sofrimento; ou quando encaminho positivamente algum caso, sinto alegria sem pensar em recompensa. Como fazer nas outras atividades, para que elas não sejam apenas coisas que gosto de fazer na vida? É possível? Abraços a todos e ao Lama.
Resposta: Eu não vejo nenhum problema em fazer coisas que a gente gosta de fazer. Acho que isto é uma boa coisa. Isto significa que tem méritos, as coisas com que te ocupa na vida são coisas que te produzem uma dimensão positiva e satisfatória. Isto é uma boa coisa. Está certo que, se você ficar presa ao reino dos deuses, isto pode propiciar sofrimentos futuros. Mas você não precisa viver a felicidade presa ao reino dos deuses. Do mesmo modo que nós podemos desenvolver sabedoria com sofrimento, podemos desenvolver sabedoria com felicidade, também.