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Este é um material transcrito a partir de ensinamentos orais de Lama Padma Samten. Ele é usado exclusivamente para apoiar os estudos e práticas dentro da sanga, pedimos não reproduzir em outros sites. O material está em constante revisão e melhoria; quaisquer erros encontrados são devidos às limitações das pessoas envolvidas na transcrição e na edição, e serão corrigidos assim que possível.
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Tabela de conteúdos
- As Oito Consciências as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
- Sessão #1 - Manhã I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
- Sessão #2 - Tarde I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
- Sessão #4 - Manhã I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
- Sessão #5 - Tarde I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
- Sabedoria do Espelho
- Sabedoria da Igualdade
- Sabedoria Discriminativa
- Sabedoria da Causalidade
- Sabedoria de Darmata
- Sessão #6 - Noite I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
As Oito Consciências as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
Sessão #1 - Manhã I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
Lama Padma Samten
CEBB Bacopari, transmissão online 13/11/2021
Transcrição: Isadora Zardin
Revisão 1: Mônica Kaseker; Revisão 2: Carmita; Revisão 3: Bruno e Nelcy
Hoje vamos abordar o tema das oito consciências, que é um tema amplo. O tema das oito consciências é, essencialmente, sobre como a delusão opera dentro de nós. Essencialmente isso.
Por vezes, pensamos: “Bom, oito consciências. Se eu começar pelas primeiras, quando eu chegar na oitava, isso deve ser, mais ou menos, a iluminação”. Mas não é nesse sentido. As oito consciências são oito consciências deludidas. Então, é um estudo de como a delusão opera dentro de nós.
Eu considero que é uma abordagem paralela à dos Doze Elos da Originação Dependente. Nos Doze Elos também: “Começamos no primeiro elo e quando estivermos no décimo segundo elo estamos iluminados”. Mas não é. O décimo segundo elo é a morte. Então esse é o processo. As Oito Consciências são alguma coisa desse tipo. Do mesmo modo que o Buda descreve Os Doze Elos da Originação Dependente e, ao final, ele mesmo se pergunta, logo depois sua iluminação: “Como aconteceu isso? O que deu origem a essa confusão toda?”. E ele entende que isso se dá através dessas doze etapas que ocorrem por um processo sucessivo. E são criadas por Originação Dependente. E chegam, então, até a experiência de Janamarana que é, essencialmente, envelhecimento, decrepitude, doença e morte.
Ainda assim, o Buda descreve isso como estados deludidos, ou seja, ainda que a experiência seja essa, isso não é propriamente uma realidade, isso é uma experiência condicionada. Então, esse é um ponto essencial na visão do Buda. E ele também se pergunta: “Como poderíamos proceder para superar isso? Como eliminar esse tipo de situação?”. E ele mesmo se dá conta – aliás, o único Buda que tinha por ali era ele mesmo, então se ele faz a pergunta quem é que vai responder? - Ele se dá conta, que esse processo se dá pela superação da delusão correspondente a cada um desses estados. Esse é um ponto super importante. Ele se pergunta: “Bom, a morte, a decrepitude etc... elas se originam como?”. Então, entendemos que elas se originam do décimo primeiro elo. E o décimo primeiro elo se origina como? Ele vem do décimo elo. E nós começamos a percorrer, no sentido inverso, até o primeiro dos elos e aí retornamos à Natureza Primordial. Esse é o processo.
Dentro da perspectiva última, a perspectiva da Natureza Última, o décimo segundo elo é uma experiência delusiva. Então, se ao olharmos a experiência delusiva correspondente, reconhecermos a natureza livre da mente que constrói aquela experiência delusiva; por se referenciar ao décimo primeiro elo (ou seja, às circunstâncias da vida), se entendermos isso, então, nós imediatamente passamos a operar fora das circunstâncias dos Doze Elos. Então, nós compreendemos internamente como aquilo está operando, e assim, podemos atingir a liberação imediata, na morte, pelo reconhecimento direto da experiência delusiva e da natureza livre da mente que cria, luminosamente, a experiência delusiva.
Então, cada um dos doze elos pode se tornar um caminho para a liberação. Nós atingimos a liberação pela lucidez diante de cada uma das experiências. Mas podemos dizer: “Essa parte da morte, eu não consigo”. Tudo bem, vamos ver assim: a parte do envelhecimento, decrepitude, da doença e morte é originada pelo décimo primeiro elo. E quando nós olhamos o décimo primeiro elo, nos damos conta que, aqui, as circunstâncias da vida estão baseadas no décimo elo, onde eu surjo e sou alguém. Eu estou me movendo para sustentar aquilo que aspiro como favorável e girar a vida de um modo favorável. Ou seja, perder tempo em vários lugares, como temos perdido. Aí estamos ocupados e nos damos conta que aquilo é um aspecto luminoso e delusivo. São experiências que criamos a partir das identidades. Também percebemos que podemos nos manifestar com um tipo de vida dentro de casa, um tipo de vida no trabalho, um tipo de vida nas relações, etc.
Então, nós podemos criar. Agora, mais recentemente, as pessoas começaram a ter aqueles universos paralelos ou vidas paralelas na Internet. Não sei bem como é o nome que dão para isso. Agora o Facebook está criando uma plataforma mais fácil para isso, para podermos criar mais e mais vidas interessantes, porque a nossa vida já está meio chata. Então, podemos viver outras vidas, inventar outras vidas. Eu tenho a sensação que a nossa identidade no Facebook também não é bem exatamente o que nós somos, ou o que os outros diriam que nós somos. Mas a pessoa vai escolher boas fotos, vai escolher bons momentos e vai postando tudo ali. Então, isso é uma vida paralela, uma condição, como um avatar. Aí a pessoa tem uma outra existência, e dentro de uma existência tangível onde nós nos movimentamos em casa, no trabalho, etc..., podemos ter ganhos e perdas. E como avatar também, no Facebook, eventualmente, fechamos a página porque não está dando certo lá. Fomos atacados por alguma coisa e aquilo não está legal. E podemos gerar um outro nome e surgir em outro lugar [risadas]. Mas aí entendemos, por exemplo, que as circunstâncias das nossas identidades são luminosas. Vamos olhando assim: “Uau! É isso! Isso é tudo luminoso!”. E, quando vamos nos dando conta disso, pode ser que percebamos que aquele que cria as várias condições, as várias identidades luminosas, é livre.
E perguntamos: “Alô!? Você que cria a mim mesmo, que cria as outras identidades, você é o quê?” Aí vem uma voz profunda, lá do fundo - já não sei agora se é uma voz masculina ou feminina; e não me perguntem porque eu me atrapalho. Aí vem uma voz, uma voz de compreensão - teve um tempo que viria uma voz [fazendo uma voz grossa] mas agora já não sei mais. Aí vem uma voz que confiamos e, o que a voz vai dizer? Ela vai dizer: “Eu não tenho nada dentro”. Aí começamos a olhar aqueles ensinamentos budistas dos mestres: olhe dentro da sua mente, veja o que é que tem ali. Ah, é como minha mãe dizia, não tem nada dentro [risadas]. "Você não tem nada na cabeça, meu filho_"._ Ah, que maravilha! Minha mãe viu isso! Então, desde pequenino sempre me diziam isso: "Você não tem nada na cabeça, você só tem vento na cabeça". Então, nós já estamos quase iluminados desde pequeninos.
Então, esse é um ponto interessante para localizarmos aqui. A natureza das coisas criadas é passageira, é fictícia, é luminosa, mas aquilo que cria, isso não, isso está incessantemente presente. Então, a partir desse aspecto do cotidiano, nós podemos tomar isso como caminho e avançar até a clarificação, sem esforço, desse aspecto último. Até repousar nesse aspecto último, onde não é necessário mais esforço, porque isso está incessantemente presente. O esforço é uma característica inerente às identidades construídas.
As identidades construídas são representadas pelo javali. E elas têm, inevitavelmente, que sustentar seu trabalho, caso contrário elas afundam. Por isso estamos sempre promovendo a identidade no Facebook ou no Instagram. Porque se não promovermos, aquilo entra em decrepitude. Esse é um aspecto também chamado de Upadana, dentro dos Doze Elos. Ou seja, estamos sempre colhendo outras coisas e buscando colher outras coisas, com hábitos de colher outras coisas, que reforçam a própria identidade. Agora, quando isso não dá certo, nós temos ainda o recurso, que é o terceiro dos animais, a cobra, que corresponde à raiva. Então, temos essas circunstâncias nas quais nós podemos manifestar a raiva. Assim, geramos os três animais. Os três animais são formas pelas quais, inevitavelmente, as identidades construídas se manifestam, sem solução, sem escapar. Então, olhando isso e reconhecendo a vacuidade disso, isso se torna um caminho, um caminho do cotidiano, lucidez no cotidiano. Mas, a pessoa pode dizer: "Não, eu me considero completamente sério e isso que eu estou vivendo é o que é mesmo". Então, está bem. Vamos ver como isso surge. Isso vem na dependência do décimo elo.
Décimo elo é Bava, é o surgimento. E a pessoa vê que o surgimento vem associado ao nono elo. O nono elo é Upadana. Então a pessoa, como um adolescente, que aprendeu a fazer várias coisas. Na medida em que sente que aquilo que aprendeu a fazer produz satisfação para ele e ele vai funcionando, então, diz: "Bom, eu sei como viver no mundo, não preciso ficar ouvindo agora palpite do meu pai e da minha mãe, eu sei o que eu sou". Então, é quando o adolescente se empodera e diz: "Eu sou alguma coisa". Isso é Bava. Bava é existência, nascimento. Então, há um nascimento. Nos desenhos dos Doze Elos é um bebê nascendo. Então, é alguém que nasce para o mundo. E a etapa seguinte é o décimo primeiro elo, que são as circunstâncias da vida. Ele tendo nascido no décimo elo, vai para o décimo primeiro elo. Mas, e o décimo é o que? Quando nós aprofundamos essa questão da própria identidade, vamos encontrar que a raiz da nossa identidade está em Upadana, ou seja, na multiplicidade de coisas que desenvolvemos como habilidades para nos movimentarmos. E, quando olhamos isso, reconhecemos que do nono elo, U_padana_, para o décimo, tem uma construção luminosa e nós chamamos aquilo de identidade.
É também quando os jovens pensam: "Qual a profissão que eu vou seguir?" Eu até diria que isso não é um atributo apenas dos jovens. Nesse momento tem um número imenso de pessoas, no mundo inteiro, se redefinindo, se recriando. Outro dia, vi que há um movimento nos Estados Unidos - deve acontecer em outros países também - em que as pessoas estão pedindo demissão dos seus empregos. Um número grande de pessoas se demitindo, porque eles querem reconstruir sua vida de outro jeito. Eles estão mudando de cidade, estão fazendo outras coisas. Sentiram que o mundo não está muito legal e que é melhor não imaginar que tem qualquer nível de segurança. É necessário que haja uma redefinição. São números expressivos. Esse é um ponto interessante, ou seja, muitas pessoas estão se valendo do fato de que as suas identidades são luminosas. Elas não são isso ou aquilo, elas se constroem assim ou de outro modo. Elas podem se construir de formas mais favoráveis e começam a olhar essas formas mais favoráveis. Esse aspecto de construção, que é o nascimento, é o décimo elo. Então, nós descobrimos que o décimo elo não trata de uma existência que eu tenha ou que eu seja, mas trata de como essa existência ganha um foro de realidade.
Também podemos perguntar: "Mas se isso não é real, real, como isso existe?" Então, entendemos a luminosidade da mente, entendemos como a luminosidade constrói e sustenta, também, as aparências, como elas estão se dando. Isso é super importante. A nossa identidade, a iluminação da nossa identidade, a clarificação deste tema, se torna um caminho espiritual, também. Então, já percorremos o caminho da morte, o caminho das aparências da vida e das circunstâncias da vida, e agora estamos percorrendo o caminho de iluminar também as identidades aparentes que nós operamos.
Mas a pessoa pode pensar: "Isso para mim não serve. Eu sou tal coisa e pronto". Ela mostra a carteira de identidade, mostra o currículo e todos os títulos e vantagens e desvantagens, e carteira do trabalho, mostra aquilo tudo. E concordamos: "Realmente! Você é alguém. Muito bem, então está bem". Aí a pessoa olha o nono elo, que origina o décimo elo. Então perguntamos para a pessoa: "Tem coisas que você gosta? O que você tem procurado na vida?" E a pessoa: "Ah, sim! Isso sim. Eu isso, eu aquilo". Aí brota a descrição do nono elo, que é Upadana. Então, a pessoa tem muitas coisas que ela aspira, que ela gosta, que ela procura. Esse é um ponto interessante. “O que você obteve de vantagem nessa vida? O que você conseguiu de realizações?” E a pessoa: "Olha, eu estudei inglês. Não que eu saiba muito inglês, eu sei um pouco, não sei muito, mas eu sempre gostei. Eu sei um pouco de espanhol. Não sei muito, também. Aliás, português também eu sei um pouco, mas nunca fui muito bom mesmo. Eu não gostava muito de matemática, mas, enfim, eu aprendi alguma coisa. Namorar, também nunca fui muito bom. Fazer o quê, não é? Aí eu fui indo … então, eu sou mais ou menos. Mas eu gosto um pouco das coisas ... aí eu vou indo". “E música, você sabe tocar? Sabe cantar?”. "Ah, eu não me lembro muito bem das músicas, mas tudo bem, eu gosto de música, sim". “E do Raul Seixas?". "Ah, eu gosto do Raul Seixas!".
Então, a pessoa tem características e terminamos pegando essas características como a base da nossa identidade. Mas quando vamos olhar dentro dessas características, elas não têm, propriamente, solidez. Então, por que nos movemos de um jeito ou de outro? A pessoa muda de cidade, muda de casa, muda de bairro, muda de profissão e aquilo que ela gosta muda também. As circunstâncias mudam e a pessoa já não consegue algumas coisas, mas consegue outras. Então ela vai trocando. Aquilo que parece muito, muito fixo, já fica com maior dificuldade e aquilo desaparece.
Então, nós percebemos que tudo aquilo que aspiramos, todas as coisas fixadas que estamos operando, também são transitórias. Percebemos que quando éramos pequenos gostávamos de um tipo de coisa e quando crescemos um pouco, aquilo mudou. Quando crescemos um pouco mais, aquilo foi mudando, foi mudando e hoje nós temos outras coisas que são bem diferentes das coisas que tínhamos algum tempo antes. Percebemos que construímos isso. Então, tem uma natureza livre e luminosa que é permanente, que vai construindo essas escolhas e esses objetivos. Nos damos conta que os objetivos mesmos são como espumas que vêm e vão, mas tem alguma coisa que produz esse movimento, que produz essas espumas. Então, examinar isso se torna o caminho. Esses objetivos, esses tipos de realização, de busca que nós movimentamos, o exame disso, se torna um caminho em si mesmo, que aponta a natureza livre da mente. A natureza luminosa da mente que constrói e sustenta essas visões. E aí nós vamos indo...
Se a pessoa não compreende isso, ela é convidada a olhar o elo anterior, o elo que gera isso. E, o que o elo anterior diz? O elo anterior fala de desejo e apego. Aí a pessoa pensa: "Bom, essa parte de desejo e apego, eu sinto bem claro no meu peito. Não há nenhuma dúvida: eu me sinto vivo a partir disso". Ah! Está tudo bem! Pelo menos a pessoa não está deprimida. Quem está deprimido, de modo geral, já não tem muitos desejos e apegos, e está numa situação pior. Então, se tenho desejo e apego, aquilo pulsa dentro de mim. Esse desejo e apego termina se manifestando como múltiplos objetivos, que é o nono elo, Upadana.
Essencialmente, tem algumas linhagens que enfatizam uns pontos, outras que enfatizam outros pontos. Algumas linhagens enfatizam justamente Upadana como ponto final do caminho. Isso porque, enquanto não ultrapassarmos Upadana, ou seja, enquanto estivermos olhando as coisas e encontrando nelas objetivos, não atingiremos a liberação. Aliás, nós estando presos, não é? Presos às coisas e às buscas, nós vamos atingir o quê? A liberação? Não tem como, não é?
Assim, nós olhamos e reconhecemos que esse aspecto da prisão vem de desejo e apego. Mas desejo e apego não parece prisão. Desejo e apego parece um bom senso. Então, nós temos coisas que buscamos. E ali está aquilo tudo expresso na forma dos nossos desejos, na forma daquilo que dá um sentido mais profundo na nossa vida. Aquilo parece super poderoso, super bom. Então, quando nós olhamos desse modo, parece que desejo e apego são a própria experiência da vida. Parece alguma coisa super crucial, super importante. Mas aí nós olhamos desejo e apego também como espuma. Por quê? Porque numa hora eu tenho desejo e apego em uma direção, em outra hora posso ter desejo e apego em outras direções. Eu não tenho, propriamente, uma capacidade de fixar isso. Esse é um ponto bem delicado que eu acho que todos nós, nas nossas vidas, vivemos, ou temos vivido ou seguimos vivendo: a flutuação inevitável dos desejos e apegos.
O Buda também trazia esse tipo de exemplo: a pessoa tem desejo por alguma coisa, então ela come aquilo. Por exemplo, ovo frito. Quando a pessoa está no oitavo ovo frito, ela já não está mais querendo, já não tem mais desejo e apego por aquilo, e vai para o hospital direto [risada]. E_ntão, as várias coisas: doce de leite,_ quindim_,_ no décimo a pessoa já está indo para o hospital _[risada]. E_ntão, desejo e apego se esgotam muito rápido, não é um referencial verdadeiro. Além do mais, tem épocas que gostamos de alguma coisa e tem épocas que não gostamos mais daquilo. Tem momentos do dia que aquilo parece bom e outros momentos que aquilo não parece bom. Então, isso é como espuma na nossa frente. Espuma do mar dos condicionamentos mentais. Essa é uma espuma que brota e cessa, brota e cessa. Aí, nos damos conta disso.
Nós vemos que podemos acionar desejo e apego em uma direção, podemos acionar em outra, para cá ou para lá. Então, desejo e apego não é uma segurança, não é uma sabedoria que brota de algum lugar. É alguma coisa luminosa, construída pela nossa mente. Aí passamos a olhar o que seria essa mente, esse aspecto profundo. E quando nós olhamos lá para dentro, lá para dentro, não encontramos nada. Encontramos apenas essa liberdade de manifestar a luminosidade, de construir realidades em direções variadas. E vemos que, ao longo da vida, foi isso também. Então nós, de novo, como nos outros elos, sempre encontramos uma natureza livre que constrói aquelas múltiplas experiências, utilizando referenciais. E no caso de desejo e apego, também. Mas, a pessoa insiste: "Não, desejo e apego não é uma coisa flutuante. Desejo e apego tem um referencial claro. E o referencial claro é assim: qualquer pessoa sabe do que ela gosta ou do que não gosta". Assim, nós já estamos chegando no sétimo elo, que é Vedana.
Todos nós temos uma sensação do que gostamos ou não gostamos. Então, essa sensação de gostar ou não gostar, que é o sétimo elo, eventualmente, para muitas pessoas se torna o cerne de sua vida: encontrar as experiências nas quais elas têm essa conexão de gostar e, aquilo que não gostam, tentam evitar. A pessoa não se dá conta que ela tem, também, a indiferença. Só por vezes que nos damos conta disso. Por exemplo, a pessoa se dá conta que não se lembra do rosto dos colegas que teve ao longo de muito tempo na escola. A pessoa lembra um ou outro, só. Então, a pessoa passou por aquilo, mas não lembra. Também colegas de trabalho, ela lembra de alguns e de outros já não lembra. Isso diz respeito à indiferença.
Quando nós entramos num ônibus ou num avião, não entramos cumprimentando cada um, perguntando o nome e trocando endereço de e-mail ou telefone. Não entramos assim. Entramos com indiferença. Entramos, sentamos em algum lugar dentro do avião e não olhamos muito ao redor. Terminado o voo, nós saímos e pronto. Isso é uma indiferença ativa. Fazemos esforço para não nos conectarmos. Se tiver alguém muito comunicativo, que sentou do seu lado e puxou conversa: "Você está vindo de onde? Vai para onde? Você é o quê?" A pessoa já puxa o boné cobrindo o rosto e dorme para o canto. A pessoa tenta escapar daquilo. Isso é indiferença. Mas a pessoa poderia olhar para o lado com o olho de "gosto ou não gosto". E, às vezes, isso é inevitável. Se uma pessoa de 150 kg senta do seu lado, você não tem muito lugar para sentar... é assim, né? Às vezes acontece isso.
Quando nós percebemos esse elo, o sétimo elo, Vedana, entendemos que estamos sempre avaliando "eu gosto ou não gosto", "eu gosto ou não gosto". E, nesse momento, podemos perceber que esta escolha de gostar, não gostar ou ser indiferente, é uma escolha, é uma construção luminosa. E isso também pode se transformar num caminho. Nós perguntamos qual é a mente que escolhe? O que é essa mente? Onde ela está? Como é que ela faz? O que tem dentro dela? Nós olhamos desse modo e vamos encontrando essas respostas. Não vamos propriamente localizar alguma coisa, não conseguimos localizar alguma coisa que seja essa dimensão. Nesse momento, isso se transforma num caminho. Um caminho de lucidez a partir do qual nós vamos gerando a experiência da natureza livre da mente, que também constrói esse aspecto. Assim, percebemos que a natureza livre sempre constrói. Vamos dizer: a natureza livre constrói o sétimo elo, então ela constrói o oitavo elo, então ela constrói o nono, então ela constrói o décimo, o décimo primeiro e o décimo segundo elo. Tudo aquilo são manifestações luminosas da mesma mente primordial.
Assim nós vamos recuando e encontramos o sexto elo. O sexto elo corresponde ao contato. Eu estou aqui explicando os Doze Elos. Nosso tema não são os Doze Elos e sim As Oito Consciências, mas vai ficar mais fácil. Eu estou entrando por aqui para depois olharmos As Oito Consciências. E vou olhar paralelamente, também. O sexto elo corresponde, justamente, ao contato do órgão sensorial com a realidade. No Surangama Sutra, o Buda olha isso com muito cuidado. Ele olha como se fosse um ponto crucial. As etapas seguintes: Vedana, Trishna, Upadana, Bava, Jeti, Janamarana, o Buda não trata muito no Surangama. Ele centra nos elementos e nos dezoito Dhatos, que são os seis sentidos físicos, as seis consciências associadas aos sentidos e também os seis objetos. Ele dá ênfase aos dezoito Dhatos: olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente, os objetos disso, e as consciências associadas a isso. O Buda toma a clarificação disso como um ponto crucial.
Então nós estamos chegando perto, porque isso corresponde ao sexto elo, que é o contato. O contato se dá a partir do que? O contato se dá a partir de olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente. Assim se dá o contato. Nós precisaríamos olhar com cuidado e perceber como esse contato de fato se dá. Aí nós percebemos que o contato nunca é um contato efetivo dos olhos, ele é o contato da mente. O que vê é a mente. Não é o olho que vê. Então do mesmo modo, a mão quando toca, ainda que ela toque, ela apoia a visão da mente. Por isso, há um argumento que eu só vi no S_urangama Sutra_. É assim: a pessoa, por exemplo, olha e toca. O que ela toca, se fosse visto pela mão, o olho não conectaria, porque a mão vê e guarda para ela, o olho vê e guarda para ele. E o sabor, a língua vê e guarda. Assim, a mente trabalharia dividida. Mas, na verdade, o tato se junta com a visão, se junta com o sabor, etc... e nos damos conta de um único conceito para aquilo, ou seja, isso seria a sexta consciência.
Então, o Surangama trabalha isso. A mente é que vê. Os sentidos físicos são como uma extensão deste processo. E o que a mente vê? A mente vê sempre um aspecto deludido. Ela pode ver de um jeito, pode ver de outro jeito... e assim olhamos o aspecto luminoso que é o que constrói a experiência do que é visto. Tem muitos exemplos, especialmente nesse templo aqui. O Buda também tinha alguns exemplos e deu exemplos de uma delusão mais clara. Os textos usam, repetidas vezes, o exemplo de uma corda e de uma cobra. Olhamos para uma corda e vemos uma cobra ou olhamos para uma cobra e vemos uma corda - o que é mais perigoso. E assim tem muitos exemplos desse tipo que o Buda traz. Ele vai lembrar os cabelos de uma tartaruga - que é uma coisa que não existe. Ele vai lembrar o filho de uma mulher que não está grávida - que não tem filhos. Ele vai dizer: o filho de uma mulher estéril - que não tem como ter filhos. E ele vai falar sobre flores no ar, quando olhamos para o céu e vemos risquinhos - flores no ar. Nós podemos usar como exemplos as imagens que aparecem na tela, já que está todo mundo olhando para uma tela.
Eu deveria usar uma camiseta dizendo: "Cuidado, isso é uma ilusão". Porém, ia ficar estranho porque a pessoa lê "Cuidado, isso é uma ilusão", e pode pensar: “Mas se isso é uma ilusão, o que está escrito também é uma ilusão”. Assim, fica difícil… Então tem que botar uma setinha: “Mas isso, que é uma ilusão, isso é uma verdade”. Mas como a pessoa está vendo na tela, então aquilo é ilusório [risada]. Então, continua sem saber se aquilo é ou não é. É muito interessante isso. Isso trata de como nós vemos e de como atribuímos realidade ao que é visto. Outro exemplo é o fato de assistirmos um filme na TV ou no cinema - na época que as pessoas iam ao cinema, que tinha cinema - e a pessoa ao assistir a um filme, numa tela, tem emoções e chora.
(Marcus, eu acho que tem uns fantasmas atrás de ti aí. Marcus, isso é o que eu chamo de encosto, eu acho. [risos]. Você está rodeado de seres femininos. Aí, quando falar com esses seres, diz que eu mandei um beijo para elas. Faz tempo que eu não as vejo).
Então tem esse aspecto: o sexto elo que corresponde ao contato, parece que tem alguma coisa densa, que vemos e aquilo nos ilude.
Quem gosta desse tipo de coisa pode olhar os trabalhos do Escher. Ele vai fazendo desenhos e é muito incrível. São desenhos intrigantes. Ele bota pessoas caminhando, uma atrás da outra. Elas estão subindo numa construção e quando elas estão no topo da construção, olhamos aquilo e vemos a parte mais baixa da construção! Ele consegue desenhar o absurdo, não é? Vamos olhando pedaço por pedaço e realmente aquilo está subindo, e realmente ele vai chegar em um lugar que ele vai ter que continuar subindo, então ele sobe eternamente. E ele desenha outros descendo, e outros descem eternamente, onde uns sobem outros descem eternamente. Tem linhas também que, ao longo do desenho, estão todas corretas e daqui a pouco elas correspondem a outro desenho, que não tem como compatibilizar com o primeiro. Tem também um desenho dele que é muito interessante e muito bonito. Ele desenha a própria mão desenhando, e do desenho da mão sai a paisagem inteira que se funde com o próprio entorno. Aquilo é muito, muito legal. É o Escher! Ele descobriu a ilusão. Ele viu isso e cada obra dele é uma denúncia desse processo de construção das realidades, de atribuir realidades concretas e verdadeiras, àquilo que aparece aos olhos. Acho super interessante isso que o Escher traz.
Mas não precisamos procurar o Escher. Qualquer aparência já é assim. Precisaríamos olhar. Por exemplo, reconhecemos a nossa própria casa: “Mas teve um momento que eu defini que isso aqui era minha casa, que passei a sentir isso aqui como minha casa. Isso não foi sempre assim. Em diferentes lugares eu já senti isso”. Assim a pessoa vai olhando e vai reconhecendo como os olhos mudam, como os olhos se constroem de um certo modo. Como aquilo vai construindo as realidades.
E nós perguntamos: ainda que as realidades sejam construídas, que elas estejam aqui ao redor, onde está a mente que constrói isso? Então, essa mente que constrói é permanente. Ela constrói e sustenta. Ainda que as múltiplas realidades que olhamos, sejam realidades construídas, elas não perduram, elas são espumas. Mas a mente que constrói isso, ela se mantém. Este é um ponto super importante. De novo, então, transformamos a visão comum, das coisas que surgem ao redor, em caminho. É uma das sugestões dos alunos do Buda, reunidos na Assembleia do Surangama Sutra. Um deles fala sobre as aparências, especificamente. Isso é super interessante.
Mas podemos considerar: "Bom, as aparências são reais e verdadeiras porque elas brotam dos meus sentidos físicos que, aliás, são verdadeiros também". Então, vamos olhar os sentidos físicos. O Buda também examina os sentidos físicos: o que vê dentro do olho? O que sente dentro da mão? E ele não encontra ali, no órgão, as várias funções. Então, aquilo também se transforma em um caminho espiritual. Quando nós olhamos por dentro dos órgãos, terminamos encontrando que é a mente que vê, a mente que sente. Então, procuramos também essa mente. E assim, nós olhamos a parte densa da nossa vida, que começa com os órgãos físicos e vai até a dissolução do corpo.
Aí tem o aspecto não material, propriamente, que são os primeiros quatro elos. Sendo que os órgãos dos sentidos é o quinto dos elos. O quarto dos elos é Nama-rupa_,_ que está associado ao terceiro elo, Vijnana, que por sua vez está associado ao segundo, que é Samskara e que por sua vez está associado ao primeiro elo, Avidya, que tem por base a natureza livre da mente. A natureza livre da mente corresponde justamente a esse aspecto construtor da realidade. Ele se manifesta como Avidya, com o surgimento da dualidade: a aparência e o observador da aparência. O observador da aparência é Rigpa, é a própria mente. Então surge objeto e surge observador e, disso, há a possibilidade de nós tomarmos aquilo que foi construído como objeto e construir adiante. Essa circunstância é que vai nos permitir dizer o que é Alaya Vijnana. Alaya Vijnana surge do Samskara. Alaya Vijnana surge das marcas e das construções baseadas na dualidade que foi estabelecida.
Disso surge Vijnana, ou seja, a consciência que caminha por dentro dessas múltiplas construções. E aí surge Nama-rupa que são roteiros por dentro dessas possibilidades. Por exemplo, nós nos movemos por dentro do mundo dos condicionamentos, que é A_laya Vijnana._ Mas ainda que nos movamos dentro desse mundo dos condicionamentos, é importante entendermos que esses condicionamentos, que estamos olhando, não são necessariamente fixos. Temos uma escolha. Então, escolhemos e começamos a andar por algum conjunto, por um roteiro. Não andamos por todos eles. Andamos por uma parte muito pequena desse conjunto de condicionamentos. Andamos por um roteiro específico e isso é a nossa vida. Nós vamos percorrendo esses roteiros específicos dos significados que, então, começamos a operar. Isso é a operação de _Vijnana. Q_uando essa operação de Vijnana se estabelece desse modo, ela dá origem a Nama-rupa. Então, Nama-rupa, dentro da multiplicidade das opções, é um conjunto de opções. Nama-rupa vai permitir, então, a especialização dos órgãos.
Enquanto estamos percorrendo por dentro do mesmo roteiro, nós estamos sempre vendo as mesmas coisas. Isso permite que, pela originação dependente, pela luminosidade da mente, comecemos a perceber de forma mais aguda os sinais daquilo, e isso vai desenvolvendo progressivamente os órgãos físicos, o que resulta, então, no quinto dos Doze Elos. E depois vai resultar no sexto elo, que é o contato, depois no gostar e não gostar, depois no desejo e apego, Upadana, que é buscar outros e outros e outros órgãos desse tipo, outras e outras experiências desse tipo. E aí tem o surgimento da pessoa.
Nos tempos atuais em que estamos muito ligados à internet, aos meios virtuais, fica mais fácil de ver que com Vijnana nós estamos percorrendo certos roteiros. Sabemos alguns apps e não sabemos outros. Quando estamos buscando coisas, terminamos gerando um app. A mente coletiva gera apps que terminamos usando. Então, o app surge quase como um órgão físico surge. Primeiro aprendemos a fazer aquilo manualmente e depois descobrimos um jeito mais fácil de fazer aquilo. E esse jeito mais fácil está constantemente sendo refinado.
Esse refinamento é o aspecto luminoso da mente criando e melhorando o órgão físico. Aí, em um certo momento, nós temos, não só os nossos órgãos físicos, mas também muitos apps com os quais nós vivemos. Aí dentro do mundo em que já estamos passando muitas horas, agora, já sabemos usar várias coisas. Por um tempo resistimos: "Eu não quero aprender isso, isso me incomoda. Tenho mais coisa para fazer do que olhar isso". Mas daqui a pouco estamos, inevitavelmente, aprendendo aquilo e usando. Eu lembro bem que teve uma época, no final dos anos 80, que eu decidi que não ia trabalhar com computadores. Eu comprei uma máquina elétrica de datilografia melhor. Ela tinha memória e até apagava uma linha para trás. Eu achei aquilo um arraso! Muito melhor. Pois é, mas agora estou aqui cheio de apps para todo lado, sem solução... Aliás pessoal, eu estou esperando o 5G. Aí sim a felicidade vai chegar _[risadas]. N_ão tenham dúvida! Eu quero comandar minha geladeira pelo celular. Aí a minha felicidade vai atingir o máximo. Eu fico rindo de mim, mas daqui a pouco eu vou estar aqui no celular programando a geladeira. Não sei como, mas é mais ou menos isso. Vou fechar minhas persianas pelo celular. Aí sim! A felicidade, “_ho!”. A_ntes de terminar o ensinamento, eu aperto aqui, o forno liga lá e quando eu chegar na cozinha, o almoço está pronto. Vocês entendem? É isso.
Então, esses são os apps. Isso são os órgãos físicos que vão operando. Quando chegamos na realidade já olhamos daquele modo: "Eu não sei como vou viver sem minha máquina de lavar louça. Já não seria mais capaz… Mas, tudo bem! Mas sem o carro eu realmente não tenho como. E sem poder fazer compras no supermercado, aí ... deu!”. Então as coisas vão se construindo de um certo jeito, e nós nos construímos juntos; isso vem junto. Aquilo parece separado, mas aquilo vem totalmente junto. Então, assim surgem os órgãos, o quinto dos doze elos, que se origina de Nama-rupa. Então nós temos roteiros de ações. Dentro desses roteiros surgem habilidades especializadas que facilitam os roteiros. E nós estamos constantemente ampliando isso, pela luminosidade da mente, criando outras opções e outras opções e nós vamos indo.
Esses processos parecem individuais, mas uma vez que eles se estabelecem, eles são naturalmente compartilhados dentro da grande mente que não se divide. Em cada uma dessas etapas dos Doze Elos nós localizamos a mente luminosa que constrói as realidades. E esse é o ponto. Mas, quando nós estamos perdidos dentro do Samsara, estamos só olhando a espuma. Então corro para cá, corro para lá, porque gosto disso, prefiro aquilo, sem nem entender o que é essa mente que impulsiona isso, que fala dentro e que nos impulsiona. Não entendemos isso e simplesmente vamos seguindo. Então, esse processo se dá desse modo.
Então aqui eu expliquei mais ou menos os Doze Elos. Expliquei como vamos do décimo segundo elo em direção ao primeiro. O primeiro elo é a ignorância, a capacidade de construir objeto e observador inseparáveis, que surgem apenas como se fossem construções mentais. Mas não há construção mental se não tiver o observador da construção mental. Então, toda construção mental tem um observador. É sempre um par. A construção mental é uma abstração, é alguma coisa totalmente luminosa, sem base; mas ela é vista. E ela é vista por quê? Por uma mente que se constrói e é capaz de ver aquilo. Então elas são inseparáveis, elas são não-duais, elas se constroem no mesmo instante.
Quando a operação da mente, a partir disso, surge como algo independente dos objetos ou os objetos surgem como independentes da mente que vê, nesse momento surge a ignorância, que é Avidya. Surge o primeiro dos doze elos e tudo que decorre depois disso, se dá por dentro de Avidya. Então, o mundo inteiro, que nós lidamos, se dá por dentro de Avidya. Mas a parte não-dual, naturalmente presente, sem esforço, sem necessidade de criar, sem necessidade de sustentar é o que dá origem ao primeiro dos Doze Elos, que é uma natureza totalmente livre, sem condicionantes porque os condicionantes começam no primeiro elo.
Os condicionantes, as marcas mentais, Vijnana que é capaz de olhar as marcas, os roteiros dentro das marcas mentais, que são Nama-rupa_. A_í, surgem os órgãos especializados para ver as várias coisas, não é? E depois os elos subsequentes: o gostar e não gostar, o buscar outras experiências, a sensação de uma identidade que sente, que pensa, que vai e posteriormente a sensação da decrepitude e da morte dessa identidade.
Eu acho que nesse ambiente da internet, por exemplo, os jovens estão ligados a vários tipos de jogos e precisam refinar suas máquinas para jogar melhor. Então, tem um conjunto e o corpo vai mudando. No caso, a máquina vai mudando e os jogos podem ser acessados. Tem um refinamento incessante que é a manifestação luminosa da realidade. Aí surge um jargão, tem uma linguagem específica, tem uma forma de compreender isso, que as pessoas que não estão dentro disso não compreendem. Começam a surgir as linguagens específicas desses próprios mundos. Como também os cientistas vão gerando linguagens, como os filósofos geram linguagens, os psicólogos, os engenheiros, etc... todo mundo tem sua própria linguagem. Então vão surgindo essas especificidades. E a pessoa se sente uma identidade no meio daquilo, ela se vê completamente real, verdadeira, existindo daquele modo. Mas o ponto mais importante é que nós não somos o modo pelo qual nos apresentamos. Nós somos a natureza livre que gera esse modo pelo qual nos apresentamos.
Isso é super profundo. E é um pouco óbvio, porque vamos mudando a nossa forma de nos apresentar. Então nós não somos a forma atual, somos esse princípio gerador que produz palpavelmente outras e outras formas de manifestação. Quando a nossa forma de manifestação entra em colapso, que é alguma coisa periódica, ou é abandonada, sempre temos a capacidade de nos recriar. Quando nós estamos na crise, é a crise daquela identidade, daquela forma de operar. Então olhamos: "Ah sim, claro! Isso é essa identidade em sofrimento". Aí, eventualmente, a pessoa tem a capacidade de ultrapassar essa identidade, se recriar de outro jeito, para depois sofrer de outro jeito. Claro! [risada]. Mas aí vem a noção de liberação, também, que é a noção da natureza que cria e que não entra em colapso. Ela está sempre disponível, sempre possível de ser acionada sem nenhum tipo de restrição**,** sem nenhum problema.
Então, aqui nós olhamos os Doze Elos. Os Doze Elos têm uma conexão com as Oito Consciências. Originalmente os Doze Elos são atribuídos ao Caminho do Ouvinte. Eu não gosto disso, porque como vão prender as coisas às visões? Eu acho isso muito esquisito. Porque o Samsara inteiro é Dharmata. Se o Samsara inteiro é luminoso e é uma apresentação da Natureza Última, por que os Doze Elos não seriam uma apresentação da Natureza Última? Que exceção é essa? Então, eu prefiro não olhar os ensinamentos de modo classificatório, prefiro não olhar assim. Prefiro olhar todos os ensinamentos como manifestação última, porque se os infernos são a manifestação da natureza búdica, por que os Doze Elos não podem ser manifestação da natureza búdica? É tudo natureza búdica, pessoal! Melhor não perder tempo com isso. Prefiro olhar os Doze Elos desse modo.
Como é que surgem os Doze Elos? O Buda atingiu a iluminação. Estava iluminado! Aí ele se pergunta: “Como se deu essa confusão toda?”. E aí ele entende os Doze Elos. Ele mesmo se pergunta: "Se você é um buda, responda: como fazer para os seres ultrapassarem isso?" E ele responde, pois ele é o buda. Ele vê o aspecto ilusório disso e dissolve um a um os Doze Elos.
Quando As Oito Consciências são apresentadas, tem uma certa tendência de reificação das oito consciências. Assim: "Uau, eu estou em uma consciência grosseira e agora eu vou avançando, avançando, avançando, e agora eu já estou na oitava consciência. E você, está em que consciência?" "Ah não, eu ainda não encontrei a primeira." "Ah sim, sim. Olho para você e vejo que você ainda está longe da primeira consciência, isso não tenha dúvida. Na verdade, na verdade, eu não estou bem na oitava. Assim..., eu estou na sétima para a oitava. Mas dizem que nessa vida eu vou atingir a oitava”. Não é assim pessoal! As oito consciências são, todas elas, confusão. Elas são um tipo de linguagem que nos permite apresentar o próprio caminho como um todo. As Oito Consciências são usadas na linhagem Nyingma de uma forma importante.
É melhor imaginar a oitava consciência como a primeira. Por que? Porque a oitava consciência é Alaya Vijnana, é a mente condicionada, ou seja, é a mente depósito, aquilo que é chamado de mente fundamental. Ela não é a mente primordial pessoal. Aí tem uma diferença crucial. A mente primordial é a mente que não tem conteúdos e que, a partir do primeiro dos Doze Elos, gera os conteúdos que chamamos de marcas mentais, Samskara, que é o segundo dos Doze Elos. Então, a mente primordial se permite construir aspectos duais que podem surgir como Avidya (sânscrito) ou Marigpa (em tibetano). Rigpa é lucidez e Marigpa é a perda da lucidez, é a lucidez condicionada. A mente primordial não tem características, mas a mente fundamental é cheia de características. Ela é o depósito das características já imaginadas, dos referenciais já imaginados pelos seres.
O Sutra do Surangama, especialmente, traz essa noção de uma mente que não se divide. Do mesmo modo que a mente não se divide em olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, as mentes dos seres não se dividem nos múltiplos seres. Então, tem uma mente primordial que não se divide, mas tem uma mente depósito que surge dessa mente primordial e que também não se divide. Essa mente depósito é como se fosse algo que todos os seres podem acessar. Encontramos um exemplo disso quando olhamos o funcionamento das escolas. As escolas fazem esse trabalho. Elas pegam os meninos e meninas e vão apresentando a mente fundamental para eles. Vão apresentando a mente condicionada para eles. E então, a partir desses condicionamentos, a operação mental que a pessoa pode ter, ou seja, os roteiros de Nama-rupa, são de um tipo e não de outro.
Os animais têm os seus Nama-rupas. Diferentes seres têm os seus Nama-rupas, tem seus próprios roteiros de visão que vão gerando seus órgãos físicos e todas as suas experiências. E nós somos escolarizados a olhar de um certo jeito. Aí, dez anos depois, cinco anos depois ou eventualmente no mesmo momento, vemos que aquilo que os professores estão trazendo não é verdadeiro. Eu acho que todo mundo que foi professor um dia, como o Renato, deveria fazer muitas prostrações porque, enfim, enganou muitos seres e construiu muitas ilusões nas mentes dos outros. Então, esse é o ponto. A Carmitinha não escapa disso, porque ela ainda vai fazer provas para ver se eles aprenderam. Situação grave! Esse é um ponto crucial para entendermos que o processo de educação é um processo de introdução a realidades. Por exemplo, agora, as pessoas estão falando menos sobre a descoberta do Brasil, mas no meu tempo era um momento glorioso: o Brasil foi descoberto! E foi uma grande coisa! Hoje, estamos vendo os povos que existiam aqui antes da chegada dos europeus. Não foi a descoberta, foi a chegada dos europeus, um momento grave na história dos povos daqui e do nosso próprio ambiente.
Então, começamos a olhar de outro jeito, ou seja, nós temos agora outros referenciais para olhar. Então, brotam outros conteúdos. Isso tudo é Alaya Vijnana. Mas esses conteúdos que temos hoje, eles não são nossos. Quando morrermos, os conteúdos seguem. E, aí outros podem acessar. Nós também podemos acessar conteúdos antigos, como se pensava antigamente, como é que era. Então, uma vez que esses conteúdos estão ali, eles sempre podem ser acessados. Eles não são propriedade de alguém. É muito interessante: se vocês abrem um livro, o livro tem um monte de risquinhos … não é mais do que isso pessoal! Esses risquinhos são o código secreto que nos permite acessar regiões de Alaya Vijnana. Aquilo é a chave, como se fosse uma chave cheia de ranhuras. Entramos por aquela chave cheia de risquinhos e acessamos coisas, acessamos regiões. Quando queremos fechar uma região queimamos todos os livros. Assim, aquela região fica obscura, as pessoas não conseguem mais penetrar naquela região. É muito interessante isso.
Por vezes pensamos: se a biblioteca de Alexandria não tivesse sido queimada, quantas chaves específicas teríamos para olhar a realidade como os antigos olhavam? Começamos a achar aquilo superinteressante. E também nos alegramos porque os tibetanos conseguiram trazer os textos. Agora temos formas específicas de olhar a mesma realidade, de outro jeito totalmente diferente. Então nós acessamos outras regiões de A_laya Vijnana_ e aí nós podemos ver isso. É muito incrível! Então é isso. O caminho budista é o caminho por _Alaya Vijnana. N_ós estamos dentro da oitava consciência que é a consciência de Alaya Vijnana. E nós temos chaves específicas que convertem isso na saída em direção à Natureza Ilimitada.
É como se todos nós estivéssemos bloqueados, dentro de Alaya Vijnana, do mundo dos significados e não conseguíssemos atravessar e encontrar a saída disso. E não tem mais ninguém que lembre disso. Aí vem a importância do Buda. O Buda, de vez em quando, aparece por aqui para dizer: "Não, é por aqui pessoal!".
O Hermann Hesse usa uma analogia que acho muito interessante. Ele tinha uma namorada que o leva no Teatro do Absurdo. Eles entram por um corredor e tem muitas portas. E quando ele abre uma porta tem uma realidade inteira ali dentro. Eles fecham a porta [ofegante], caminham mais um pouco e tem outra porta [suspiro]. Ele quase pula para dentro daquilo, mas ele [boom] fecha aquela porta. Então, isso é o corredor da lucidez diante de múltiplas realidades. Tu abres a porta, pula para dentro, e quando olha para trás, não tem mais porta. Aí tu pensas: "Uau, como é que sai? Não tem mais porta! E agora?”. Foi o que aconteceu conosco, pessoal. Não quero preocupar ninguém, [risadas] mas pulamos para dentro, e agora como proceder? Não tem mais porta!
A Lenda do Minotauro tem alguma coisa desse tipo também. A pessoa entra num labirinto e quando ela olha para trás, ela já não sabe mais onde é a entrada. E ali dentro tem Maharaja, que no caso é o Minotauro. Tem uma hora que o Minotauro pega a pessoa. Eu sempre ficava pensando: “Eu subo pela parede, aí lá de cima... Eu não vou ficar andando aqui, vou dar um jeito de subir". Se tem mais alguém, dá um pezinho, outro pula, outro puxa um pouco e assim se dá um jeito para subir. É para cima pessoal! Andar aqui não vai resolver, porque o bicho já tá lá [rugindo]. É melhor se mover. Eu também pensava: “O Minotauro ficava andando por dentro do labirinto, portanto ele estava preso no labirinto. Se eu conseguisse sair para cima, ele não me pegaria”. No caminho budista também é assim. Se andarmos pela superficialidade não tem solução. Vamos ter que sair para cima.
Então, a oitava consciência é esse lugar que atribui os múltiplos significados; é Alaya Vijnana, que vem de Samskara. Nós construímos com a dualidade e aí aquilo que é dual, que surge como se fossem marcas mentais, vai se expandindo, se expandindo e surge como o grande terreno onde a consciência, que é Vijnana, o terceiro elo, começa a andar.
Então, nós andamos sempre por dentro daquilo que pode ser pensado. Isso foi o que o Wittgenstein descobriu. Tem uma afirmação super importante do Wittgenstein: "Só pensamos o que pode ser pensado" [risada], mas ele continua: "Se pegarmos tudo que pode ser pensado e colocarmos num gráfico, numa superfície infinita, o que pode ser pensado é uma mancha dentro dessa superfície infinita". Essa mancha está se ampliando constantemente, pois vamos pensando adiante, vamos criando outros significados e vamos ampliando a mancha. E ele acrescenta: "A filosofia é o campo que trabalha dentro do que pode ser pensado, portanto isso não importa. O que importa mesmo é como andar além do que pode ser pensado". Wittgenstein era super esperto. Então, o sentido é: Alaya Vijnana é essa grande mancha que representa o que pode ser pensado, mas a aventura é ultrapassar o que pode ser pensado, ir além do que pode ser pensado. Assim a natureza búdica é o aspecto infinito, além do que pode ser pensado. Esse é o aspecto primordial.
Então a oitava consciência é justamente Alaya Vijnana, a base [contaminada]. Quando descrevemos a oitava consciência nós estamos descrevendo o terceiro elo, ou seja, Vijnana, tem alguém andando numa árvore, colhendo aqui e colhendo ali. Se vocês olharem o desenho correspondente ao terceiro dos doze elos, vocês vão ver um macaco numa árvore. Ele está colhendo frutos, e esses frutos são os diferentes elementos de _Alaya Vijnana. E_le se move por ali. À medida em que ele se move por aquela árvore, isso se torna um roteiro dele. Vejam que todos os seres, na natureza, terminam definindo regiões de influência, territórios deles. Ali, naqueles territórios eles se movem, conhecem as árvores, conhecem os seres. Se movem ali porque ali é o lugar deles.
Então ao surgir isso, isso já é Nama-rupa. Nama-rupa vai especializando o corpo. O corpo vai se especializando naquela região. Então nós vamos encontrando, por exemplo, leões de uma região, leões de outra região. Leões de outras regiões são diferentes. Macacos de uma região, macacos de outra região, etc... Depois os ursos. Os diferentes animais, são diferentes. Eventualmente, os animais mudam de acordo com o clima, com a época do ano. Eles vão se ajustando a outras condições. Eles têm a flexibilidade de se apresentarem com mais penas ou menos penas, mais pelo ou menos pelo, de acordo com as diferentes circunstâncias. Tudo isso são opções dentro de Nama-rupa, que surgem e se consolidam como opções dentro de um banco de opções. Esse banco de opções é o que vamos chamar de Mente Fundamental.
Uma outra analogia encontramos na língua portuguesa. Temos as palavras da língua portuguesa, temos as expressões, nós temos a linguagem toda. Então, tudo que vamos falar, nós nos baseamos num banco de possibilidades. Esse banco de possibilidades termina convergindo para as consoantes e vogais. As vogais e consoantes são a base do Alaya Vijnana correspondente a essa linguagem. São a secção correspondente à linguagem. Seria o nosso repertório. Seria um repertório de ideias. Por exemplo, no budismo tibetano e no budismo indiano, eles ensinam as vogais e consoantes numa recitação. Por quê? Porque a percepção do aspecto luminoso e transcendente das vogais e consoantes, que constroem todos os significados e permitem acessar todos os significados de Alaya Vijnana e incluir nisso as setas que apontam a Natureza Última, é um aspecto crucial. É uma chave para a compreensão do aspecto Fala da realidade.
Eu ainda lembro, mas não sei recitar. Era uma coisa tipo: "a, a, a, a, a, a, pa, pa, pa, pa, pa, pa, ka, ka, ka, ka, ka", algo assim. Essas eram as sílabas e as letras tibetanas. Teve uma época que recitávamos isso. Nunca consegui recitar aquilo de memória, mas quem vai aprender a língua tibetana, começa decorando o alfabeto. Como em português, no passado, as pessoas começavam "a, b, c, d, e, f, g...", elas iam decorando as letras. As letras permitem o surgimento da linguagem. Desse modo podemos entender um pouco como Alaya Vijnana vai se estabelecendo. Não conseguimos falar sem ser pelas vogais, consoantes, expressões e pelo repertório de significados que possamos gerar. Então a linguagem e Alaya Vijnana se fundem. Só que a nossa linguagem, língua portuguesa, é uma. Então, nós temos uma secção dentro de _Alaya Vijnana. V_ocês imaginem a multiplicidade de línguas, e também esses fenômenos extraordinários que diferentes línguas têm expressões, repertórios, palavras e significados que outras línguas não tem.
Do mesmo modo, os pássaros e os outros animais veem coisas que nós não vemos. Mas esse conjunto todo é _Alaya Vijnana. S_e observarmos os animais terminamos vendo coisas neles que não víamos antes. Por exemplo, quem vive mais próximo da natureza, entende os animais, entende os fluxos d’água, entende os vários fenômenos de um modo muito mais profundo do que quem chega no local. Hoje nós estamos treinando a não-visão. Chegamos nos lugares com o celular na mão e praticamente não vemos nada ao redor. Temos dificuldade de penetrar nas diferentes regiões de Alaya Vijnana, diferentes daquelas em que estamos imersos. Então, existe a oitava consciência que é Alaya Vijnana. É super importante nós entendermos isso.
Vamos seguir aprofundando, mas agora, está no nosso horário, então vou interromper. Seguimos com as perguntas à tarde ou à noite.
Vamos fazer a dedicação.
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Sessão #2 - Tarde I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
Lama Padma Samten
CEBB Bacopari, transmissão online 13/11/2021
Transcrição: Martha Roessler
Revisão 1: Martha Roessler; Revisão 2: Carmita/Mônica Kaseker
O nosso tema é As Oito Consciências, mas começamos abordando Os 12 Elos da Originação Dependente. Pode parecer um pouco estranho isso, mas para podermos entender as Oito Consciências precisamos falar da Originação Dependente. Senão pensaríamos: “Bom, as Oito Consciências vêm de onde? Como elas surgem? Como elas se conectam com o aspecto primordial?”. Então, é sempre através da Originação Dependente. A Originação Dependente também é a base da compreensão do Sutra do Surangama, que seguimos estudando. O Sutra do Surangama está sempre mostrando a reconexão com Tathagatagarbha. Todas as coisas brotam como expressões de Tathagatagarbha. E Tathagatagarbha corresponde ao aspecto primordial; não é o aspecto fundamental. Ele está atrás do aspecto fundamental. Então o aspecto fundamental, que é Alaya Vijnana, brota de Tathagatagarbha, brota desse aspecto primordial. Aqui a gente está olhando a base dessa análise toda. Estamos olhando a base pela qual nós geramos uma linguagem para poder tratar desse tipo de coisa. Estamos olhando essa linguagem. Então, de um modo geral, as Oito Consciências começam a ser estudadas: as primeiras cinco, depois a sexta, sétima e oitava. Aqui estamos fazendo o inverso. Mas é a mesma coisa, essencialmente, estou olhando como elas surgem, como elas se encadeiam.
Antes de olharmos com mais detalhe as Oito Consciências, eu queria ainda trazer um tema que vai aparecer dentro desse tema das Oito Consciências. É assim, por exemplo, os vários elos da Originação Dependente são cumulativos, eles não são sequenciais. Não sei se dá para entender o que eu quero dizer com isso. Por exemplo, eu poderia pensar: “Estou no primeiro, quando eu passo para o segundo, abandono o primeiro. Aí passo para o terceiro, abandono o segundo”. Mas não é, é sempre uma elaboração adiante. Se estou no aspecto primordial, quando entro na ignorância, eu não abandono o aspecto primordial, o aspecto primordial segue aderido. Aí eu crio uma operação mental específica. Dessa operação mental específica, que é a ignorância, que tem por base o aspecto primordial, eu crio as marcas mentais, eu crio Samskara. Mas eu não abandono a ignorância, eu tomo por base a ignorância, a ignorância está fundida ali dentro. Isso aparece dentro do Surangama de vários modos. Ele vai dizer que surge o que vai chamar de delusão. Vai trazer aquilo como uma construção delusiva adicional, por vezes, descreve que aquelas coisas se misturam. É assim, nós temos as misturas das construções com a ignorância, então aquilo já não são apenas as construções, é a construção junto com a ignorância. E disso, desta construção junto com ignorância, brota a mente que passeia por dentro disso, olhando as coisas. Então parece que é sequencial, mas não é sequencial, são operações que se somam, se adicionam uma às outras. E assim nós vamos indo... Por exemplo, quando nós chegamos à morte, a liberação na experiência da morte, ela não precisa percorrer o caminho inverso sequencialmente. Por que? Porque a própria experiência da morte é uma construção delusiva. Então, olhando a construção delusiva disso, nós reconhecemos o aspecto primordial.
Quando estudamos, por exemplo, os vários bardos, nós estávamos olhando os seis selos. E a partir dos seis selos, nós estávamos olhando os vários bardos. Então, o bardo da morte, também. Nós liberamos o bardo da morte, no bardo da morte, a gente não converte aquilo numa outra coisa, depois numa outra coisa até liberar. Reconhecemos o aspecto luminoso da experiência específica. Aqui vai acontecer o mesmo. Nós estamos, por exemplo, na consciência primordial. A consciência primordial, através desse mecanismo que é Os Doze Elos da Originação Dependente, no caso aqui os primeiros elos, vai gerar a consciência Alaya Vijnana, que é justamente a oitava consciência. Ela gera essa operação. Quando nós estamos imersos no mundo, nós vamos localizar uma oitava consciência operando, que é justamente Alaya Vijnana. Ela é a base a partir da qual as outras vão se estruturando. Quando nós tomamos, por exemplo, Alaya Vijnana por base, estamos avançando dentro dos Doze Elos, e vamos encontrar Vijnana, Nama-Rupa (que são os circuitos aqueles, as escolhas, os roteiros que nós repetimos, as nossas próprias ações) e disso brota o desenvolvimento da Originação Dependente. E começam a se estruturar os órgãos físicos.
Aqui tem aquela conversa muito interessante do Buda com Ananda. Ananda pensa que o órgão físico opera por si e o Buda vai mostrando as contradições que isso, aparentemente, tem. Ao ponto que o Ananda, então, se convence que não é o órgão físico, no caso a visão, que vê, e nem é o ouvido que ouve, é a mente que vê e que ouve. Ele vai olhando assim. Então, ele ultrapassa a noção do órgão físico, em si mesmo, como sendo o operador da visão. Esse ponto é super importante, porque nós vamos tomar o órgão físico como a base da existência física do nosso corpo. A nossa existência! Mas aí, nós observamos que essa operação se dá na mente. O Buda vai longamente debater com Ananda aonde esta mente está. O Ananda também não consegue localizar isso, porque ele gostaria de localizar a mente dentro do corpo. Aí o Buda mostra as contradições deste pensamento. Não só os órgãos não estão nos órgãos, mas na mente. Mas a mente não está no corpo. Então esse é um ponto interessante.
Então, nós vamos recuando para estes aspectos mais abstratos. Quando nós estamos aqui, olhando isso agora, vamos encontrar a sétima consciência em algum lugar. A sétima consciência vai surgir a partir da operação dos vários circuitos que percorrem roteiros específicos dentro de _Alaya Vijnana. Q_uando nós estamos andando, é como se houvesse uma espécie de uma escolha, que não é uma escolha, porque não parece uma escolha. Ela é, simplesmente, aquilo que a gente coloca atenção. Por exemplo, durante o dia, para nós, a nossa experiência não é uma experiência na qual aparece Alaya Vijnana inteira. E dizemos: “Uau! Que maravilha! Isso é realmente alguma coisa! Vamos escolher alguma coisa para fazer hoje!” Aí nós temos Alaya Vijnana. Não temos essa liberdade, nós temos um roteiro. A gente se levanta e pensa: “Bom, agora eu vou fazer isso, depois eu vou fazer aquilo”. Ou a pessoa simplesmente começa a fazer, simplesmente se coloca em marcha e vai seguindo aquilo que ela vê. E ela não vê, o que que ela não vê. Ela simplesmente se move! Essa é a razão, também, pela qual a pessoa tem surpresas durante o dia. Porque ela está se movendo de um certo jeito e outras coisas acontecem. Por que? Porque Alaya Vijnana está ‘vivinho da silva’.
Alaya Vijnana nos invade de vários lugares. Mesmo as pessoas que se recolhem assim, tipo o Renato, que está lá ‘nos confins da iluminação’, lá no Jetavana. Vocês olhem como faz frio lá, pessoal! Aqui, fico olhando a Carolina - a Carol – assim, no verão. E o Renato no mesmo estado, a 100 km em linha reta, está lá com touca e todo enrolado. Então nós olhamos isso, o que nos faz nos movermos daquele modo como nós estamos nos movendo? A gente nem vê isso, mas este aspecto é um embrião da sétima consciência, que é a identidade. A identidade, nós podemos pensar que é alguma coisa combinada, que a gente fala com um, fala com outro: “Bom, agora sim, agora eu sou tal coisa”. Como num teatro, em que a pessoa assume um papel. Mas a maior parte dos papéis que assumimos não são papéis escolhidos, são escolhas cármicas, que se estabelecem como um movimento natural. Então, a sétima consciência está baseada na ignorância, que é o primeiro dos Doze Elos, que por sua vez surge como uma liberdade luminosa do aspecto primordial. Disso brotam os referenciais que vão surgindo e vão constituir Alaya Vijnana e, desta Alaya Vijnana surgem roteiros que a consciência passa a percorrer. A consciência é Vijnana, que é o terceiro elo.
Estes roteiros são o embrião, são a substância, a consistência de Nama-Rupa, que vai resultar, então, nos instrumentos que usamos para viabilizar esta consciência. Estes instrumentos não são sequenciais, são uma soma das várias camadas de ignorância, que agora vão resultar como os órgãos dos sentidos. Quando surge este roteiro, nós temos uma sensação de identidade. Essa sensação de identidade é anterior ao próprio órgão físico propriamente, porque ela opera com o aspecto de visão, mas a visão não precisa do órgão físico.
Vocês vejam, por exemplo, como que ocorre a ignorância. Quando a mente, quando a dualidade surge, já surge visão, tem algo e tem o objeto. E quando surge Alaya Vijnana ou surge Samskara - as marcas mentais, elas vão surgindo e elas não têm órgão físico ali. Mas tem visão. Visão no sentido de uma consciência que localiza. E o aspecto delusivo segue construindo as artificialidades, quando nós estamos operando com Vijnana, que é o terceiro elo. Neste terceiro elo nós temos o desenho de um macaco, como se fosse uma identidade, escolhendo coisas. Nós temos a sensação de uma liberdade de escolha entre vários elementos. Essa liberdade de escolha termina resultando em um roteiro, que é o roteiro que esta consciência Vijnana passa a percorrer, de um modo mais fácil. Então surge um hábito. É como se fosse uma marca mental adicional. Então eu tenho marcas mentais. Agora eu tenho marcas mentais enquanto roteiros de marcas, e isso é o embrião da identidade.
Quando, por exemplo, sobrevém a morte, nós não temos um corpo, propriamente. Portanto, nós não temos olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas temos mente, temos Vijnana. Este é um ponto interessante! Essa operação de Vijnana, como Buda estava mostrando, é a que vê, ali a mente está vendo. Vijnana não opera dentro do corpo, não opera na dependência do órgão, Vijnana vê. Então ela vê a delusão criada. Este é um ponto super importante, porque a identidade, quando surge, ela surge operando dentro de roteiros. Mas tudo que ela vê e tudo que ela se move buscando, é, essencialmente, o mundo como está sendo visto. O mundo é Alaya Vijnana, é o conjunto das opções. Ela está percorrendo este conjunto de opções, mas já tem um script como se tivesse uma facilidade por andar dentro disso. Mas quando a gente pensa: “Bom, tem script, tem um roteiro, então os elementos do roteiro são reais”. Não, eles não são reais também. Eles são luminosos! Esta é a realidade deles. Isto não quer dizer que não tenha realidade, tem uma realidade, mas é uma realidade luminosa. E o próprio roteiro é uma construção luminosa. Ele fica ali, é assim. Então nós, na ausência de corpo, o que nós somos? Nós somos os mesmos, a mesma coisa, nós somos esta sétima consciência com uma sensação de existência. Então, na medida em que há uma construção que escolhe e que se move dentro de alguma coisa, isso é o embrião da identidade. Aí surge a sétima consciência.
A sétima consciência é aquilo que nós vamos chamar de consciência individual, mas o embrião dela é o terceiro elo. O terceiro e o quarto elos que vão resultar, sempre, através de Originação Dependente, complexidade crescente, no corpo físico, que é o quinto elo. E do quinto elo, esse embrião de identidade, vai fazer contato com o mundo. Então, através dos órgãos físicos, quando olhamos em volta, a gente logo entende: “Sim, o templo”. Mas quando estou olhando o templo, aqui, estou olhando uma visão mental de templo. Se eu não tiver esta visão mental de templo, não vejo o templo aqui. Não são os olhos que veem, é a visão mental que me localiza o templo. Essa visão mental pertence a Alaya Vijnana, ela é uma construção. Então Alaya Vijnana segue se expandindo. Na medida em que nós vamos construindo outras coisas, tudo aquilo vai virando Alaya Vijnana. Assim, vão virando referenciais, que estão estabelecidos em algum lugar, que podem ser usados como um pacote pronto. Nós vamos seguindo assim.
Do contato surge gostar ou não gostar. Desse gostar ou não gostar nós temos, também, uma refinação da noção de identidade. É como se esse gostar ou não gostar, em um certo momento, escapasse da identidade. Temos uma sensação: “Eu existo até os órgãos físicos. Mas o gostar ou não gostar, isso eu posso optar. Estou livre disso”. Mas, tem um momento, em que incorporamos o gostar ou não gostar naquilo que chamamos ‘nós mesmos’. Aí podemos dizer: “Bom, eu gosto ou não gosto disso. Mas eu não tenho desejo e apego, não estou preso”. Mas tem um momento em que a gente se prende com desejo e apego. Então, incluímos tudo isso dentro do pacote da identidade. A gente diz: “Bom, é assim. Tenho um corpo físico, com órgãos físicos. Eu faço contato com o mundo. Como todo mundo, a gente gosta ou não gosta. Pessoal, é isso! É simples, eu sou assim! Aquilo que eu gosto eu quero, o que eu não gosto eu não quero. Aí eu sou isso”. Aí, o pessoal: “Ah, tá! Então tá!”. A gente incorporou isso no processo. Tem outras pessoas que dizem: “Não, eu não sou arrastado pelo que gosto ou não gosto, eu não tenho apegos”. Aí, o pessoal todo, que estava fazendo retiro aqui, não tem apego! É assim! A gente pensa: “Bom, eu sem apego estou iluminado. Ainda tem uns elos para trás para resolver...”. Mas nós vamos incluindo, vamos ligando isso tudo. Então, a gente diz: “Ok. Então estou até desejo e apego”. Mas aí, a mente ligada ao desejo e apego está buscando outros resultados, baseados em desejo e apego.
Enquanto ela busca outros resultados, ela se transforma em Upadana, que é uma mente que está buscando constantemente. “O que é muito fácil de entender, pessoal. Isso é assim! Por que nós vamos criar confusão? Todo mundo faz isso: o que a gente gosta, a gente quer repetir. Se alguém, algum dia, provou um quindim, a pessoa vai atrás, de novo, do quindim. É assim, é muito simples, esse sou eu”. Aí nós incorporamos isso na identidade. Quando a gente incorpora isso na identidade chegou o décimo elo. A gente olha e diz: “Bah! Eu sei fazer isso, sei fazer aquilo, eu gosto disso, não gosto daquilo, eu faço tais coisas, já obtive tais resultados e tais outros resultados”. Aí surge a identidade, assim, num mundo de relações. Ela estabelecida, operando com carteira de identidade e carteira de vacinação, tudo resolvido. Isso é a sétima consciência. Então, nós podemos até regular o que a gente considera a sétima consciência. Ela está operando assim, que é aquilo que diz respeito às identidades, mas o embrião disso está lá no terceiro elo.
Agora, tomando a sétima consciência por base, nós entramos no décimo primeiro elo. Do décimo primeiro elo nós vamos fazer contato com o mundo, direto. Estamos operando dentro do mundo. Quando nós estamos operando dentro do mundo, operamos com a sexta consciência. A sexta consciência vai filtrar esse processo todo. Nós estamos com olhos, ouvidos, nariz, língua e tato operando, a sexta consciência é que vê a operação de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. E ela vê isso à luz da experiência, da base toda construída das operações que são internas à sétima consciência, que é essa noção dos referenciais que a gente foi escolhendo. Estamos escolhendo estes trajetos desde o terceiro elo. Se nós fossemos uma lagartixa, estaríamos olhando outras coisas. Se nós fossemos uma formiga, estaríamos olhando outras coisas. Mas elas vão olhar do mesmo jeito. Essencialmente, elas constroem a realidade deste modo. Aí, quando estão operando no décimo primeiro elo, buscam outras coisas. Então, elas podem estar nos mesmos lugares que nós, mas o que elas veem é diferente, o que elas buscam é diferente. Então este é o décimo primeiro elo, descrito pela operação da sexta consciência.
É aquilo que, de modo geral, nós chamamos de ‘consciência’. É uma voz interna que diz: “Eu vou por aqui, isso vai dar certo. Se eu vou por ali, aquilo dá certo”. Esta voz interna é o que? Ela brota de onde? Essa voz interna é a consciência, avaliando o que nós deveríamos fazer. Como ela avalia? Ela avalia se aquilo é um bom Upadana, se aquilo está indo bem assim, se é o que eu quero, se aquilo é seguro. Aí, de acordo com os conteúdos que a gente for incorporando na nossa própria experiência, tem uma identidade que tem mais referenciais mais para cá, mais para lá. As crianças têm menos complexidade ainda. Na medida que nós vamos andando, vamos descobrindo outras coisas e outras coisas. Esta consciência é a sétima consciência, inseparável da oitava. Então a oitava vai ficando complexa.
Eu acho interessante a gente observar como, por exemplo, as pessoas aprendem diferentes disciplinas. Vamos supor, a pessoa se torna um advogado (eu rezo sempre pelos advogados, porque é um mundo muito contraditório), aí as leis estão mudando e a pessoa tem que ir mudando aquilo tudo, tem que estar sempre refazendo. Ou a pessoa é um engenheiro, ou é um médico. A pessoa é estudante de medicina. Ela começa a estudar, a penetrar num tipo de mundo. Mais adiante, quando estiver trabalhando num hospital, ela se move de modo quase automático ali por dentro. Por que? Porque a identidade se fundiu com o ambiente, e a pessoa se move de modo natural ali dentro. Por exemplo, a pessoa vai trabalhar num banco. Talvez alguém do lado de fora pensa: “Uau! Isso deve ser super difícil. O que a pessoa faz? Como ela aprende? O que ela tem que fazer ali dentro?” Mas, no fim, a pessoa aprende, aquilo fica automatizado. Aí tem a identidade. Vamos supor que alguém teve a boa sorte de ser tesoureiro, por exemplo do CEBB (risos), aí, daqui a pouco a pessoa está fazendo aquilo assim, ‘com as mãos nas costas’. Aquilo fica fácil de fazer, fica tudo muito fácil. Eu acho que precisaria de umas dez vidas de treinamento para chegar a um sidi desses. Ia ser preso várias vezes por faltar notas fiscais, por exemplo (risos). Com certeza, não é Andi? A Andi está fazendo assim (gesto de confirmação com a cabeça). Não, ela não está fazendo (risos). Mas aí, lá pelas tantas, a pessoa domina aquele processo, domina aquele jargão, ela consegue se movimentar. Então, aquilo fica incorporado dentro da identidade, do mundo como a pessoa vê, aquilo se torna uma coisa única.
Nós vamos construindo para trás também, enquanto nós construímos as identidades. Aquilo tudo vai virando também Alaya Vijnana, vai virando opções. Aí surge uma formação para aquilo, e a pessoa é escolarizada para poder operar dentro daquele conjunto de linguagens e de processos. Até que ela automatiza aquilo e vai operando. Então nós estamos construindo Alaya Vijnana o tempo todo, vamos construindo para trás as coisas. Vamos construindo para frente e para trás.
Nossa identidade repousa sobre um conjunto de construções que vão se estabelecendo, como se fossem coisas firmes e verdadeiras. E a sexta consciência opera dentro disso, dessas coisas que parecem firmes e verdadeiras. A consciência que avalia: “Você indo por aqui, você vai progredir. Indo por ali, você vai se dar mal. É melhor tal coisa e não aquilo”. Tem uma voz sempre falando dentro. Então, esta voz vai nos aconselhando. A gente deveria estar desconfiado. “Você é o que? Você é um encosto ou você sou eu?” “Não, não, não sou bem você, você tem uma liberdade, mas estou aqui só lhe aconselhando”. “Você está aconselhando, isso vem de onde, por favor se identifique”. Que voz é esta que fala dentro de nós? E ela fala coisas interessantes, mas ela também fala coisas que não são muito apropriadas. Às vezes, ela dá bons conselhos. Às vezes, ela dá um conselho meio malandro, assim: “Agora você vai por aqui, que enfim tudo vai dar bem, porque enfim…”. Não é uma voz lá muito séria, também. Este é um ponto interessante. Às vezes, a pessoa faz votos e a voz interna diz: “Não sei se você precisaria fazer isto, assim deste modo. Por que você não faz outra coisa? Enfim...”. É só vocês decidirem: “Agora não como tal coisa”. Pronto! Essa voz diz: “Mas quem sabe hoje…”. E, às vezes, não é só uma voz, são várias: “Não isso”. A outra diz: “Não isso, e quem sabe aquilo”. Aí, se vocês ainda experimentam perguntar o que fazer, no youtube, ou no google, pronto! Aí sim, vem muitas vozes. Como é que é isso? O que é isso? São referenciais, são bases de Alaya Vijnana que falam. Estas bases, poderíamos pensar: “Isso sou eu”. Mas não é. Isso são pensamentos que não são nossos. É muito interessante.
Alguns filósofos, pensadores e poetas localizaram isso, entre eles o Fernando Pessoa. O Fernando Pessoa vai falar disso: “Vem a mim estas vozes. Mesmo que eu não queira conectar, isso vem a mim”. É muito interessante este ponto. Isso tudo está dentro da sexta consciência. Quando essas vozes vêm, quando esta sabedoria aparece, que às vezes a gente pensa que é uma sabedoria, às vezes não vê isso como sabedoria. Então quando surgem essas consciências operando, estas reflexões, estes conteúdos, nós podemos nos ligar a estes conteúdos. Combinando diferentes roteiros de Alaya Vijnana, a gente privilegia uns em direção a outros. E não temos muita clareza o que nós somos, quando define isso ou não.
A sétima consciência surge como uma identidade, mas essa identidade não é uma identidade, ela não é um referencial fixo. Ela é algo que vai bruxuleando entre vários significados. E tomando por base Alaya Vijnana, vão surgindo alterações constantes. Estas alterações vão dialogando com outros conteúdos e elas vão refazendo a identidade e expandindo Alaya Vijnana. E elas vão surgindo como as vozes que falam ali dentro. Se vocês, por exemplo, estudarem sobre os problemas associados à farinha branca, talvez depois surja uma voz interna e diz: “Ó, tá aí, ó! Não deve comer isso, não deve comer aquilo”. Eu acho interessante assim, ao longo do tempo a gente encontrar também essas receitas. Agora nós vamos comer isso. Agora vamos fazer chá daquilo. Agora é tal coisa. Agora tal outra coisa. Evitamos isso. Evitamos aquilo. Vão surgindo muitas diferentes visões. Se vocês decidirem correr, sempre vai ter um amigo, em algum lugar, que diz: “Olha, você vai terminar com problemas de joelho, problemas de quadril, vai terminar não sei bem com o que”. Sempre tem alguém para dar um palpite desses. Só que, quando uma pessoa dá um palpite desses, nós entendemos e, eventualmente, nós associamos isso. Então são roteiros completos de Alaya Vijnana que vem e surgem para nós. Dali a um tempo, a pessoa está com alguma coisa e aí brota este pensamento: “Sim, eu deveria ter visto isso e não aquilo”. Aí é uma complexidade sem fim. Mas, enquanto nós estamos operando deste modo, as nossas identidades estão sempre em elaboração. Significa que não há uma consciência individual, não há uma consciência da individualidade que esteja acabada. Então, a sétima consciência diz respeito a uma experiência de individualidade que podemos ter, mas os conteúdos estão mudando constantemente. Mas a gente se identifica com os conteúdos, ou seja, surge uma consciência que se identifica com estes conteúdos e segue estes conteúdos. Acho isso admirável!
Gosto de contemplar também, (aqui eu vou falar só muito resumidamente, entre parênteses), estas consciências surgindo como consciências de grupos de pessoas também, como consciências de grupos de animais, ou grupo de seres. Como surge uma consciência grupal, e essa consciência grupal termina conduzindo cada um dos elementos do grupo. Então, pela Originação Dependente podem surgir outros conteúdos de Alaya Vijnana. Estes conteúdos de Alaya Vijnana podem se tornar como que epidêmicos, então diferentes pessoas têm um mesmo comportamento. Eu acho isso muito comovente porque, por vezes, há grupos humanos que, como que enlouquecem. Se nós formos olhar o que as pessoas fazem no meio de uma guerra, é mais ou menos isso. É um tipo de loucura. Então esta loucura é, essencialmente, uma base de Alaya Vijnana que vai se construindo. E vai se construindo e não tem um momento que aquilo precisa atuar de uma forma agressiva. Depois de morrerem milhares ou milhões de pessoas, aquela maré de referenciais recua, por um tempo. Depois ela começa a se reconstruir e começa novamente esse tipo de envolvimento, esse tipo de exclusão, de sectarismo, de violência. Ele começa assim coletivamente. E aquilo vai indo... Quando vem o tempo de paz as pessoas comemoram muito e pensam: “Bom, agora esta paz vai ser para sempre, a gente aprendeu o suficiente”. Elas estão numa região de Alaya Vijnana coletiva, que entendem assim e aquilo parece verdadeiramente vencedor. Depois, pequenas animosidades vão sendo criadas.
Os tibetanos estudam isso. Como que, um dia, uma pessoa jogou uma pedra num animal que era pertencente a outra pessoa, do outro lado do morro. O bicho veio e a pessoa fez isso. Aí o animal chegou um pouco ferido do outro lado, gerou uma animosidade. E como aquelas animosidades começam a crescer e resultam, no final de algumas gerações, numa grande guerra de quem mora de lado do morro e quem mora do outro lado do morro. É uma coisa assim. Como o carma vai crescendo, crescendo, desse modo. Então, hoje, se olharmos as notícias de Alaya Vijnana, vamos ver isso. Vamos ver as pessoas criando confusões, criando animosidades, aspirando agressões e aquilo tudo vai se estabelecendo desse modo. Mas isso, essa base de Alaya Vijnana, vai permitindo o surgimento de identidades. Então, as identidades assumem essas bases, e surgem vivas: “Sim, eu preciso fazer isso”. Aí, tem uma pessoa lá que vai dirigir um campo de concentração, que vai matar milhões de pessoas. É inacreditável isso! Mas a pessoa não está propriamente enlouquecida, ela está obedecendo um script de Alaya Vijnana. Mas é capaz de fazer aquele script todo e não conseguir sair daquele script. Quando quebra a loucura, a pessoa vê aquilo como um absurdo. Para não precisar pensar nas guerras, volta em meia tem alguém matando a esposa ou ex-esposa e os filhos e se suicidando. Já para não pensar: “Bom, eu vou matar um, matar o outro, para ser feliz". Não! “Eu estou na desgraça e todo mundo vai entrar na desgraça junto”. É uma coisa assim. Então aquilo é Alaya Vijnana inteira, aqueles significados aparecem.
Quando nós estamos presenciando coisas muito aflitivas, em vez de pensarmos que temos que pegar a individualidade da pessoa, prender e botar em algum lugar, a gente precisa entender como que aqueles referenciais se tornam visíveis, se tornam válidos, se tornam reais para aquela pessoa. E como aquilo, surgindo para uma pessoa, de repente, serve para outra pessoa também. Aí nós vamos encontrando epidemias. Aqui nós estamos vendo. Se quisermos, podemos dizer que tem uma epidemia de violência contra a mulher, num certo sentido. Por mais campanha que as pessoas façam, não conseguem, propriamente, interromper isso. Estamos encontrando esse tipo de coisa! Porque não conseguimos resolver isso do ponto de vista de individualidade, precisamos resolver isso numa base de referenciais, onde isso aparece. Quando esses referenciais aparecem, não adianta eu me colocar contra, preciso esvaziar essa base de referenciais. Se eu não conseguir esvaziar, eu não consigo resolver. Se aquilo está presente, as individualidades correspondentes surgem. O mesmo com respeito ao racismo, a vários tipos de sectarismo. Tem campanhas, tem legislações, tem coisas crescentemente duras, mas nós não conseguimos evitar, propriamente, estas coisas, elas continuam acontecendo. Tem bases de Alaya Vijnana que mantém este funcionamento. Quando vamos individualizando, a gente não trabalha no ponto, então isso não resolve totalmente. Por alguma razão, aquilo segue operando. Então, a sétima consciência está baseada na consciência fundamental que é Alaya Vijnana. De lá, as consciências vão funcionando com estas operações. Mas, o que opera com uma sensação de identidade, que nós pensamos, olhamos, julgamos e nos movemos, para cá ou para lá, é a sexta consciência.
Quando nós estamos pensando, não estamos pensando, propriamente, como uma identidade, a gente pensa de modo natural. Então, a identidade e a base fundamental, elas operam ocultas. Nós operamos naturalmente pela sexta consciência. A sexta consciência opera de modo natural, muito simples. É como alguém que, com olhos fechados, se desloca por dentro da sua própria casa. Está tudo mapeado na mente, está tudo presente, e a pessoa se move. A sexta consciência tem esta capacidade, ela utiliza olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, e com isso ela vai aferindo os elementos que estão dentro de Alaya Vijnana e da identidade, e vai se movendo assim. Só que olhos, ouvidos, nariz, língua e tato não são a história toda, a sexta consciência opera de modo mais complexo do que isso. Então, esse sentido todo, dialoga com Prajnaparamita, dialoga com a noção das bolhas, a criação das identidades e das bolhas. Quando nós estamos trabalhando ali, no Prajnaparamita em oito pontos, nós estamos examinando isso. A bolha corresponde a uma secção de Alaya Vijnana onde tem os roteiros, onde nós nos deslocamos. Junto com isso, surge a identidade, a sensação de identidade, e as várias coisas parecem completamente concretas. Então, quando surge isso, a operação da sexta consciência, olhos, ouvidos, nariz, língua e tato e a sexta consciência, elas operam de modo natural. A gente vê as coisas e interpreta, compreende e se move.
Este ponto é importante porque vai nos permitir, agora, que possamos entender o que que a gente faz quando medita, o que a gente faz quando produz diferentes operações. Por exemplo, as oito consciências nos ajudam, são uma chave para entender o que nós estamos fazendo, enquanto estamos operando estas consciências. Quando nós estamos operando com os olhos, aquilo que afere que vê, é a sexta consciência. Aquilo que fala, que é lúcido dentro de nós, é a sexta consciência. Naturalmente, esta sexta consciência não é separável da sétima, nem da oitava e nem da consciência primordial. Ela não é separável, mas o que aparece para ela, é a operação daquilo que a gente chamaria de sexta consciência. Por que há esta operação? Porque nós não estamos avaliando, neste momento, qual é a base de identidade que nós estamos utilizando. E nem abrimos isso como uma possibilidade de mexer. Estamos, simplesmente, olhando o que que a gente quer, a partir de olhos ou a partir de olhos e ouvidos. A partir dos sentidos físicos estamos vendo o que a gente quer ou o que não quer. Não estamos olhando a base que nos permite julgar isso, que seria a sétima consciência, que é o conjunto de referenciais que ficam estruturados como se fossem uma identidade. Eles respondem de modo automático. E nem nós estamos olhando a oitava consciência, ou seja, as bases deludidas aonde nós vamos operar.
É melhor sempre pegar um exemplo. Vamos supor que a pessoa está jogando um jogo de futebol. Ela chegou com os amigos e agora eles criaram dois times. Definiram o campo, as goleiras e agora eles vão jogar. Então, quando eles definem o campo, as goleiras, o jogo, o que vai acontecer, eles estão selecionando, dentro de Alaya Vijnana, roteiros. O jogo é um roteiro dentro de Alaya Vijnana. Deste roteiro, surgem as identidades, as identidades estão elaboradas. Aí tem as identidades de um lado e do outro. Quando começa o jogo, eles estão operando com a sexta consciência que vê se a bola tem que ir para cá ou bola para lá, como é que faz. É isso! É a sexta consciência. Eles não estão trazendo o tema: “Para aí, eu sou de que time? De onde que eu sou?”. Eles também não estão trazendo a questão: “Bom, a gente deve mesmo chutar a bola ou não deve chutar? Será que a goleira é verdadeira ou não é verdadeira? Será que o jogo de futebol tem uma realidade verdadeira, transcendente? Isso é uma coisa real mesmo ou não é?”. Então aquele roteiro, aquilo fica automatizado, totalmente automatizado. Automatizado e operando de modo livre dentro da sexta consciência.
É interessante! Quem vai treinar algum jogo repete muitas vezes a mesma jogada, até que a pessoa não precise pensar sobre aquilo, até que aquilo acontece. E quem vai jogar tênis, por exemplo, treina muitas vezes bater aquilo. Cada vez que ela for bater pensando, ela se atrapalha, a bola não anda direito. Ela tem que bater sem pensar. É assim! É como a gente estar aqui recitando os mantras, ou recitando as preces. Se começarmos a pensar muito nos significados, a gente meio que se atrapalha. Então, aquilo começa a vir automatizado de dentro de nós, aí visualizamos as mandalas. Mas se tivermos que tentar olhar o significado de cada palavra, no momento que olhamos o significado, a mente já anda numa direção e na outra. Aquilo já não fica muito fácil, a gente pode se atrapalhar.
Então, a sexta consciência nos dá a sensação de existência, junto com os sentidos físicos. Como o apagamento dos olhos interrompe a mente associada aos olhos, a consciência associada aos olhos, o apagamento do ouvido interrompe a mente associada, então parece que tem uma mente associada aos olhos dentro dos olhos. Parece que tem uma mente associada aos ouvidos no local físico dos ouvidos. E parece que a nossa identidade é alguma coisa que está relacionada ao conjunto todo, que é o nosso próprio corpo. Então terminamos vendo as identidades dentro do corpo. Se olharmos, por exemplo, desse modo, o que o cérebro faz, operando, ele está unindo estas várias consciências. E a sexta consciência vê esta operação toda. Segundo o Surangama, através dos vários elementos: do elemento ar, elemento terra, elemento água e elemento fogo, ela vê esta operação. Sendo que estes elementos são também deludidos, eles são também construídos. Então, por exemplo, se nós temos um dano cerebral, isso não é um dano na sexta consciência, é um dano nos periféricos. A sexta consciência não vai sofrer pelo fato de que o nosso corpo foi atingido. Por vezes, a gente pensa, onde está o meu avô, que está com Alzheimer? A sexta consciência dele opera, só que os sentidos que estão vindo para a sexta consciência, os conteúdos que ele analisa, são perturbados pelo próprio processo interno. Então aquilo que brota de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato está com dificuldades. Aquelas configurações que a sexta consciência vê, ela não está vendo direito. Se a pessoa está em coma, ela está onde? Ela está na sexta consciência. A pessoa morre, ela está onde? Ela tem a sétima consciência. A sétima consciência segue. Então, esta sétima consciência serve de base para o sonho da morte, que inclui a sexta consciência. Não há órgãos físicos de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas como num sonho, a pessoa sonha. É mais sutil do que isso, porque no sonho, a pessoa tem, ainda, acionamentos que percorrem o cérebro, mas na morte não há estes acionamentos. Mas a sexta consciência, ainda assim, opera como uma natural operação da sétima consciência. Então, nós temos uma sensação de identidade dentro do sonho da morte também, como nós temos dentro do sonho da vida.
E quando somos um praticante, o que que nós somos? Enquanto nós somos praticantes, somos também uma identidade, que vai se construindo como praticante. Por vezes, esse esforço da construção da identidade de praticante é feito com muito cuidado. Por exemplo, a pessoa pode se transformar num monge, fazer todos os votos. Ela adota esta identidade. Esta identidade pode ser uma identidade favorável para o seu caminho. A pessoa pode, também, adotar outras identidades, se a pessoa for fazer práticas extensas. O Budismo Tibetano sempre recomenda fazer práticas extensas de acumulação de mantras. Também, por exemplo, prostrações que a pessoa faça, recitação de preces. Quando a pessoa faz isso, ela está construindo uma identidade. Com essa identidade ela, mais facilmente, vai entender as palavras do Darma. Quando as palavras do Darma vêm, a pessoa entende mais fácil isso. Porque ela está entendendo como uma identidade ilusória, mas que tem uma modalidade, ela tem um modo de operação mais fácil com respeito aos ensinamentos. Então, neste caso, a pessoa, eventualmente, pode progredir mais rápido. Mas, mais adiante, ela vai precisar ultrapassar essas identidades também. Quando vocês vão encontrando, por exemplo, os ensinamentos que dizem respeito aos Mahasiddhas, eles estão questionando os aspectos da identidade, direto. Por exemplo, o diálogo entre Naropa e Tilopa é o diálogo entre alguém que se estruturou numa visão monástica como uma identidade. Aí o Tilopa vai quebrar esta identidade para que ele consiga olhar de um modo mais profundo, mais verdadeiro. Este é o processo.
Aí, nós começamos a olhar as várias consciências deste modo. Estas vozes que falam dentro de nós, que a gente entende que deve fazer para cá, ou deve fazer para lá, etc. Todas elas dizem respeito à sexta consciência, que está baseada em estruturas de identidade, que entram de modo automático. Por vezes, quando nós alteramos este processo das identidades, por exemplo, em sonhos, em um estado semidesperto ou semiadormecido, no início da manhã quando estamos acordando, temos uma liberdade maior de olhar as coisas. Por que? Porque as identidades não estão operando do mesmo jeito que elas operam quando nós estamos acordados. É como se a gente tivesse um pouco mais de liberdade. Ganhamos uma capacidade de examinar coisas com um saber diferente. Mas este saber diferente é totalmente condicionado também, ele depende de outras bases de Alaya Vijnana, da oitava consciência. Nós estamos longe ainda de olhar o que que é aquilo que ultrapassa a ignorância, nós estamos olhando tudo por dentro da ignorância.
Quando nós olhamos deste modo, podemos, também, entender como as bolhas de realidade surgem. Quero analisar isto com mais cuidado com vocês. Mas também como as Terras Puras surgem. Então, por exemplo, começamos a olhar de uma forma mais elevada. Vamos olhando como que as coisas têm vacuidade. Escolhemos um olhar específico para examinar as realidades. Aí nós temos um acesso às deidades, por exemplo, nós temos Prajnaparamita, temos o Buda da Medicina, temos Vajrasatva, que estamos fazendo as práticas. Quando olhamos o Buda da Medicina, se a gente perceber as aparências, com o reconhecimento da natureza Vajra das aparências, que é o que vai surgindo também com Prajnaparamita, vamos vendo a vacuidade das aparências e vamos reconhecendo essa construção luminosa das aparências todas. Olhamos assim e ficamos admirados! É a sexta consciência ainda olhando isso. A sexta consciência, agora, olhando como que a base da identidade surge. Olhando como que, então, os objetos de olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente aparecem para nós. Como eles ganham um sentido de realidade. Como eles se tornam verdadeiros. Como que aquilo parece de modo totalmente automático para nós. Como que aquilo acontece assim. Então isso é a compreensão da vacuidade.
Junto com a compreensão da vacuidade, vem a compreensão da luminosidade. Então, entendemos como que aquilo que estamos vendo, apesar de ser vazio, está presente. Nós adivinhamos o aspecto luminoso da realidade. Este aspecto luminoso da realidade é bom sempre olhar com muitos exemplos. Tomar vários exemplos. Por exemplo, esta xícara aqui. Vamos supor que a pessoa pegou o material e fez a xícara. Quando a xícara está pronta, podemos olhar como ‘uma xícara’. Podemos tornar isso mais complexo. Podemos considerar que isso aqui é a xícara que está na cozinha do CEBB. Podemos tornar mais complexo: “Isso aqui é a xícara do Lama. Que, aliás, está meio lascada” (ela não está lascada, ela está boa!). Vamos olhando assim, vamos dando significados para as coisas. Então, quem é que pode tomar na xícara do Lama? Aí já não sei! Mas isso aqui não era para ser apenas uma xícara, pessoal? Agora, como é que isso aqui começa a ficar assim? Isso é essa confusão. Aí quebrou a xícara do Lama! O que é que a gente faz com o caco da xícara do Lama? Começa a surgir uma confusão. A gente já não sabe o que fazer, pessoal. Por que? Porque isso tudo são as construções luminosas das realidades, vamos criando as coisas.
Essas criações dizem respeito ao nosso corpo também. Olhamos para o nosso corpo e vamos criando essa identificação. Vamos dizendo isso, vamos dizendo aquilo. Aí tu vês um corte no dedo. Mas o corte do dedo não é nada, pessoal! Desde que seja o dedo do outro! Agora, se o corte é no nosso dedo, aí... bom, é outro assunto! Tenho um corte no ‘meeuuu’ dedo. Aí aquilo é muito grave! Se alguém está com dor de cabeça, a dor de cabeça é uma coisa comum. As pessoas têm dor de cabeça, contanto que não seja na nossa, não é? E assim, nós vamos andando. Vamos tendo essas várias aflições, ou seja, vamos construindo estes significados luminosamente. Eu acho isso maravilhoso!
Eu vejo, por exemplo, quando os médicos, inevitavelmente, têm que fazer um diagnóstico. Isso é realmente alguma coisa! Isso é alguma coisa muito sutil! Muito extraordinária! E tem que prescrever uma medicação. Acho isso muito incrível, porque todo aspecto de adoecimento está ligado a aspectos mais sutis, também. Como vamos tratar aqueles aspectos sutis, com alguma coisa grosseira, e aquilo dá certo? Como é isso? Então é muito bonito, muito extraordinário. Também, o olhar que o médico usa. A pessoa manifestou, vamos supor, uma doença muito perigosa, muito grave. Então vamos fazer o que nisso? Se eu for fazer uma cirurgia extensa, a pessoa vai ficar com uma dificuldade permanente, se eu não fizer a cirurgia extensa, a pessoa morre. Ou não morre? Como é que é? Como é isso? Eu acho interessante. Diferentes médicos podem ter diferentes visões. O mesmo médico pode ter, também, diferentes visões internas e ele não sabe bem como vai usar. Essa é a sétima consciência, é a base que a pessoa está utilizando. Aí, a identidade vai jogar pesado nisso. Porque se o médico fizer uma escolha equivocada, eventualmente, ele pode ser até responsabilizado penalmente, legalmente. Então, aí tem uma tendência dos médicos a usarem uma posição conservadora, e eles se protegem. Também, para aquilo não virar uma confusão para eles mesmos. É muito interessante este processo, preservamos a vida da pessoa ao máximo ou preservamos a qualidade de vida da pessoa ao máximo? Eventualmente, se nós queremos preservar a vida da pessoa ao máximo, talvez afete a qualidade de vida dela.
São questões que, dentro da própria mente da pessoa, tomando diferentes referenciais, ela vai olhar assim. E que voz é esta, que fala dentro dela as várias alternativas? “Bom Lama, esta pergunta é óbvia! Sou eu mesmo. Desde que eu sou pequeninho tem uma voz falando dentro”. Ah, tá! E essa voz fala de um jeito, depois de outro jeito, fala de outro jeito, que confiança podemos ter nisso? Pergunta para esta voz, o que que ela é. Pergunta para ela. Vê se ela consegue dizer. “Alô, que que é você? Fale!”. É assim, esta coisa já está virando alguma coisa meia espírita. Vocês estão vendo. Tem vozes! Aí a pessoa, também, pega um lápis, um papel e para assim: “Deixa eu ver que vozes vem”. Aí começa a escrever, escreve tudo em tibetano! Aí sim, é bonito! Se a pessoa escreve tudo em tibetano, tudo que está escrito ali é certo, profundamente correto. É aquilo, não há dúvidas. Ou há? É interessante. Precisamos ver que consciência é essa. Aí a gente pergunta: "Alô, você que é a voz? Você é a sexta, a sétima? Que voz é esta, ou você é a voz primordial?”. Aí vem aquilo: “Eu sou a voz primordial”. Isso é fake, isto é construído! A voz primordial não tem voz, pessoal! A voz primordial é silêncio. “Você, eu já sei, você é fake!”. É assim. Então essa voz diz: “Não, aquilo que você ouviu que a voz primordial é o silêncio, isso era eu mesmo falando outra vez. Agora eu retiro, não é mais assim”. Ahhhh! Como?
Estou fazendo a introdução à loucura, pessoal. Se vocês seguirem um pouco mais, vai enlouquecer todo mundo, esta é a ideia! Só que a gente não enlouquece, por quê? Porque a nossa base da sétima consciência não deixa, nós estamos dentro de um roteiro. E a gente segue ali e não é fácil tirar do trilho, não é fácil. Eu tenho tentado tirar o pessoal do trilho, mas eu não consigo, todo mundo tem uma base firme. Mas aí nós brincamos dentro dessas várias consciências. Vamos entendendo como isso está operando.
Quando nós sentamos para meditar, podemos estar, por exemplo, com a consciência visual. Nós olhamos alguma coisa e nos mantemos ali. Então nós, ancorados na consciência visual, tentamos manter a sexta consciência parada. Achamos isso um máximo! Mas estamos na sexta consciência... Não estamos tocando o aspecto da sétima, ou seja, não estamos tocando a questão da identidade. Não estamos ultrapassando a sensação de que nós somos alguém, sentado ali praticando meditação. Aliás, estamos reforçando a sensação de alguém que está ali sentado praticando meditação, que está se achando o máximo: “Estou conseguindo”. Nós estamos ali construindo uma identidade, num certo sentido. E na sequência, podemos, de repente, localizar isso. Nós estamos ali: “Uau”! Aí pode ser que a pessoa chegue na sétima. Ela diga: “Eu não sou nada disso. Estou construindo aqui dentro, enquanto estou meditando. Que absurdo isso! Me julguei um praticante, me julguei aqui, pensei que era um monge aqui. Realmente: Uau, eu estou longe, muito longe”! Aí, a sexta consciência diz coisas horríveis para nós, aliás para ela mesma: “Bah, e eu me achando!”. Então a pessoa se descobre um construído, portanto, um derrubável.
Aí a pessoa pensa: “Bom, mas para aí. Tem alguma coisa atrás”. A pessoa olha os referenciais que ela está utilizando. Vai à oitava consciência e ela começa a ver a sua sétima consciência, a sua sensação de identidade, relacionada aos referenciais que ela está utilizando. E ela vê os roteiros que ela vai seguindo. Então, ela vê a natureza livre, seguindo roteiros por dentro de coisas já construídas. “Uau! Isso é a mente fundamental!”. Então se diz que a prática de Shamata não passa deste ponto. A prática de Shamata vai até este ponto. Ela tem um nível de Vipassana. Mas isso que nós estamos olhando é Vipassana, essa descrição é Vipassana. Se a pessoa conseguir estabilizar totalmente, a estabilização, inicialmente, é da sexta consciência. Depois ela estabiliza a sétima, como uma base que ela escolheu. Está inconsciente, mas ela estabilizou. Ela não está saltando para outras identidades. Aí ela estabiliza os referenciais, o roteiro e os referenciais que ela usa na oitava consciência. Aquilo para também, ela não troca de referencial, não troca de identidade e a mente não flutua. Se a pessoa ganha essa habilidade e ela usa também Vipassana, ela tem o reconhecimento disso, então ela ganha a capacidade de olhar para dentro e de dirigir a própria mente. Essa capacidade se torna um instrumento para a pessoa ir adiante. Ela ainda está dentro da ignorância, mas agora pode ir adiante. Este ir adiante significa seguir olhando para dentro, até localizar o aspecto primordial.
Dentro dos ensinamentos de Düdjon Rinpoche, da “Iluminação da Sabedoria Primordial”, a primeira etapa, a etapa preparatória é Shamata. Depois tem a segunda etapa, introdução à visão. Se eu não tiver Shamata, como é que eu vou olhar para dentro? Eu tenho que ser capaz de estabilizar a sexta consciência, a sétima consciência. Eu vou interromper as consciências associadas a olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, vou interromper, não vou ficar olhando para um lado e para o outro e assim acionando a sexta consciência. Agora olha isso, agora olha aquilo, agora aquilo, olha o ouvido, olha o cheiro. Eu não estou olhando isso, eu paro. Se não conseguir parar, o que é que estamos fazendo? Nós estamos nas cinco primeiras consciências, olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, operando a sexta consciência a partir de olhos, ouvido, nariz, língua e tato. Isso é, essencialmente, a distração usual do mundo. Se olharmos um pássaro pousado, ele está olhando para cá, para lá, olhando para cá, para lá. Isso é a mente comum do Samsara, que é a sexta consciência, operando a partir das cinco consciências. E impulsionando diferentes identidades, diferentes opções de identidades e roteiros. Mas aí, nós paramos as cinco, estabilizamos a sexta. Aí, progressivamente, nós vemos que as bases internas da sétima podem alterar isso. Por exemplo, nós estamos praticando e, de repente, pensamos: “Bom, agora está na hora de eu sair daqui. Preciso cozinhar”. Aí surgiu uma outra identidade. Mas, agora, nós não estamos seguindo nenhuma outra identidade. Estabilizamos a sétima. Aí pode surgir uma outra base, relacionada à oitava consciência, que altera essa identidade que nós estamos operando. Se a gente flutuar dentro disso, nós flutuamos a nossa prática. Então interrompemos isso também, e aí nós vamos estabilizar Shamata.
Depois disso, com esta mente que é agora confiável, parada, capaz de focar, eu vou começar a olhar o significado dos objetos, que nós olhamos ao nosso redor. Nós olhamos os significados e vemos o surgimento daquilo. Então nós olhamos, depois, para dentro da mente e vemos os significados brotando. Como que aquilo brota. Inicialmente, vemos que não há aqueles significados. É como se fosse um momento, também, para fazermos a prática do _Satipathana: “_Aí o Bhikkhu, inspirando e expirando, olha o corpo. Inspirando e expirando, olha as disposições de corpo”. Quando ele está com este olhar, cada coisa que ele está vendo, na verdade, ele está ganhando liberdade em relação aquilo. Aí ele vê, contempla a mente, que é essencialmente a sexta consciência. Ele vê as disposições que brotam desta sexta consciência, mas ele está livre disto. Ele é o quê? Ele é a estabilidade, ele é a mente estável olhando estas várias coisas.
Enquanto esta mente olha, esta mente estável começa a praticar Vipassana, que é essencialmente Sati, Satipathana - o caminho de Sati, da correta atenção, da clareza, da lucidez sobre as coisas. Então ele vai convertendo todas as experiências externas em experiências internas, que são mesmo. Aí ele olha desse modo. Vai surgir a clareza quanto aquilo que, mais adiante, vamos definir como vacuidade das experiências internas. Quando nós olhamos o Satipathana, vemos uma quantidade grande de diferentes elementos que vamos contemplando. Todos estes diferentes elementos, são vistos com o olho da mente, enquanto nós praticamos. Estamos vasculhando as regiões de Alaya Vijnana, que são as regiões que nos aprisionam. Elas surgem de Alaya Vijnana, surgem como identidades e surgem como operações da sexta consciência. Nós olhamos aquilo com cuidado. Enquanto olhamos aquilo deste modo, ganhamos uma liberdade em relação à operação automática, que vem destes aspectos todos. Então nós, progressivamente, enquanto praticamos o Satipathana, ganhamos a liberdade. Essa é a razão pela qual a prática da meditação é super útil. É como se fosse totalmente indispensável. Não temos como ultrapassar isso, sem olhar para isso. Sem olhar com liberdade, frente a este conjunto todo de significados que o Buda descreve. Nos dá um roteiro de meditação no Satipathana.
Aí, nós estamos entrando na área de Vipassana. Estamos entrando na área da alteração dos significados que as coisas têm para nós. Vamos vendo a vacuidade dos aspectos internos. Nós olhamos os aspectos externos, que são inseparáveis dos aspectos internos, são as aparências mesmo. E então, estamos olhando a vacuidade do observador. Agora olhamos a vacuidade das aparências, que surgem como se fossem separadas do observador. Nós vamos olhando assim. E, na medida em que nós vamos aprofundando isso, terminamos reconhecendo a não dualidade disso. Nós vamos, num certo momento, girar e olhar para a própria base da mente que gera todos os referenciais e opera estes referenciais todos. Nós vamos reconhecer essa base como vazia. Aí que vão surgir aqueles termos tibetanos todos, ou seja, a vacuidade dessa base da mente nós vamos chamar de Khadag. Pensamos: “Mas esta mente, ela surge quando? Onde ela está?”. Descobrimos que ela está incessantemente presente, então vamos usar a palavra Lhundrup. Neste ponto vamos ver: “Mas como que ela atua? Como é a presença dela?”. A presença dela é a luminosidade, que se manifesta tanto na relação com os aspectos internos, como externos, é Tsal. Nós vemos a energia, vemos Lung. Vemos também Rigpa, o aspecto cognoscente, também incessantemente presente, que então é Rigpa, que é Prajna, que é Sherab. Então vamos localizando isso como os aspectos mais profundos, depois que passamos a olhar para dentro. Mas aqui, estamos olhando as oito consciências. Que é uma linguagem que vou utilizar, que vai me permitir entender melhor essa operação toda. Para poder ir liberando as confusões. Essa linguagem dialoga bem com Originação Dependente, com os Doze Elos, com a noção de Tathagatagarbha, também.
Então eu vou parar neste ponto. Se alguém tiver alguma pergunta, temos uns minutos ainda. Eu acho que vocês entenderam tudo isso. Está tudo mais ao menos resolvido já, não é?
A Gabriela parece que aqueceu a testa. Gabriela foi isso? Você tem que sentar no sofazinho, aquele. Ainda quero te ver sentada no sofazinho. Eu acho que nem Ananda está se animando a falar.
Perguntas e respostas
Lela: Oi, querido Lama. É uma benção estar aqui. Gratidão. Muitos ensinamentos e, na verdade, é uma conferência. Quando fazemos a Essência da Abençoada Prajnaparamita, na Sadhana, fala sempre no singular: corpo, mente e objetos da mente. Então, esta mente, qual destas oito consciências é que está mencionada aqui? Só para fazer uma conferência hoje, mergulhada nesses ensinamentos. Gratidão.
Lama: Quando falamos de mente é a sexta, é sempre a sexta consciência. Mas ela não se separa das outras, as outras são a base dela. Às vezes, a palavra mente se refere ao aspecto primordial. Por exemplo, dizemos que existe uma mente una. É como se a gente procurasse escapar, até da palavra mente. Nós vamos falar em alguma coisa não dual. Então, como as palavras vão nos enganando, quando falamos a palavra mente, de um modo repentino, nós surgimos como um observador que está vendo a mente. Então aquela mente, nunca é a mente. Aí, de repente, paramos de usar a palavra mente e começamos a usar natureza primordial. Mas daí, nós somos o observador que está vendo a natureza primordial. Também já dá problema de linguagem. Então, de repente, nós estamos usando a expressão ‘a não dualidade’. A não dualidade já dá um nó, porque a não dualidade parece um adjetivo, parece uma qualidade. Então é essa a operação não dual. Então, essa não dualidade ultrapassa a necessidade ou a possibilidade de nós operarmos com linguagem, porque a linguagem é, inevitavelmente, presa ao aspecto dual.
Martha: Lama, eu queria saber uma coisa. Esta voz interna, quando ela, de repente, dá um susto na gente. E vem assim, de supetão, um pensamento completamente absurdo. Coisas assim que eu abominaria. Mas aquilo vem, assim e invade. Como: “Tomara que morra”. Ou imaginar coisas assim, que eu não pensaria de forma nenhuma, nem no auge da minha raiva.
Lama: Mas eu acho que pensaria sim. Por que, senão, como é que apareceria isso?
Marta: Pois é! Pode ser marca cármica, isso aí? Porque é coisa que eu não aceitaria. Se uma pessoa dissesse hoje algo assim, como vem em minha mente, de vez em quando, eu acho que pularia no pescoço da pessoa. Coisas completamente absurdas....
Lama: Então vamos pensar assim: o Fernando Pessoa também passou por estes problemas. Aí ele dizia: “Isso é como se fosse”. Não me lembro bem a palavra que ele usava, mas, como se fosse o tipo de sonho perturbado que invade a própria mente. Que isso não vem dele, não é dele. Mas isso é de Alaya Vijnana, isso pertence à base da mente. Ela não é a base da tua mente, é a base da mente que povoa as mentes dos seres todos, entende? Então teve uma construção. Esta construção foi feita. Não precisa ser uma construção tua, não precisa ser. Mas a gente acessa. Quando a mente está mais leve, mais livre, ela acessa estas regiões todas. Mais livre e mais leve significa o quê? Menos fixada numa identidade própria, nossa. Então tu, como Martha, não andarias por ali. Mas, na medida, em que tu vais liberando da Martha, aí, de repente, a mente cruza por ali.
Martha: É como se fosse um inconsciente coletivo Lama?
Lama: É um pouco isso.
Eliane: Que bom, que bom estar aqui! Ensinamentos preciosos, como sempre. Esclarecendo muito, esta outra abordagem, muito bacana. Antes da minha pergunta, eu queria aproveitar o gancho da Martha. Porque esta questão, que ela levantou, acho que todo mundo passa por isso. Eu já havia percebido isso e eu me perguntava assim: como é que fica a questão cármica? Porque eu penso assim: que geramos carmas em vários níveis. Então tem este nível mais sutil do pensamento, também. Aí vem este pensamento: “Gente, mas eu não quero pensar este pensamento”. Foi como Fernando Pessoa. Ele vê. “Mas eu não quero pensar. E agora, gerei carma com este pensamento?”. Como é que fica isso, Lama?
Lama: Este é um aspecto interessante. Por exemplo, se sonhares por dentro disso, ou seja, se manifestares um sonho completo por dentro disso, deludido, sem nenhuma proteção, então isso gera carma. Porque gera uma facilidade de andares por dentro disso. Então, mais adiante podes voltar a acessar isso de forma deludida, sem te dares conta e operar este processo, entende? Mas quando terminas uma coisa dessas, tu acendes uma vela na frente do Buda e diz: “Eu não, eu não quero isso”. Sempre ajuda. Ou então reconheces o aspecto luminoso disso e fica admirada de ver isso. Assim, geras uma motivação de que os seres não se vinculem a este tipo de coisa. Reconhece o aspecto de sofrimento que estes roteiros podem propiciar, e não toma isto para ti. Porque o carma se completa quando você toma para si aquilo como se fosse uma coisa preciosa.
Eliane: Entendi. Entendi, ficou muito claro agora. Muito obrigada. E a minha pergunta seria em relação à Consciência Primordial. Quando vamos falando das consciências, temos esta sensação de que, em algum momento, vai ter a Consciência Primordial. Então ela seria uma nona consciência ou ela não entra nisso? Ou não sei?
Lama: Podemos chamar isso de nona consciência. Mas quando chamamos de nona consciência, eu teria a sensação de que, depois, a gente vai ter que dissolver a nona consciência. Porque, se eu nomear esta consciência, como eu nomeio as oito, elas surgem como objetos. Acho que vai ter um problema. Porque a nona consciência, enfim, o aspecto primordial não é um objeto, não é uma consciência como estas outras. É uma base que não pode ser, propriamente, identificada assim, nomeada. Este aspecto de nomear essa consciência dá muita controvérsia. Por exemplo, alguns praticantes experientes, alguns mestres, emanações de Budas, vão preferir não nomear isso. Eles nomeiam as oito, mas não nomeiam mais nada. Eles vão só falar de vacuidade. Dali para frente, vão nomear a vacuidade de todas as oito, mas eles não nomeiam alguma coisa que, então, esteja além das oito. Este é um ponto interessante.
É como se eu estivesse numa tentativa de não contaminar, efetivamente, o aspecto primordial. Já outras abordagens, também Budas completos, grandes mestres, vão dizer que existe esta consciência. Ela é a própria natureza de Buda. Então, a visão de Tathagatagarba é considerada isso, essa visão da terceira volta do Darma. Se diz: enquanto vou negando a existência das oito consciências, vou vendo a vacuidade. Ainda estou na segunda volta do Darma. A terceira volta, é quando eu descubro o aspecto primordial e consigo falar sobre o aspecto primordial. Que, então, gera uma clareza de todas as manifestações, como a manifestação deste aspecto primordial. Mas aí, tem alguns mestres, que vão dizer: “Você agora criou um outro objeto. Do mesmo modo que há pessoas de religiões que criam Deus, você está criando, também, alguma coisa deste tipo”. E está certo, porque para falar no aspecto primordial, a pessoa tem que estar no aspecto primordial. Se ela falar no aspecto primordial dentro da bolha, isso é um elemento dentro da bolha. É como a gente fala ‘Deus’ dentro da bolha. Deus, dentro da bolha, é um componente da bolha, não é Deus. Deus é algo que ultrapassa as bolhas, ultrapassa as construções.
Carol: A minha pergunta, talvez, o Lama já tenha respondido um pouco. Qual é a consciência que discerne Lhundrup, Tsal, Rigpa..., enfim? E também qual é a consciência que discerne as diferentes mandalas das deidades? E como é possível que neste aspecto primordial haja discernimento e haja construções? Tipo, olhamos para o Buda da Medicina e ele tem características, e outras deidades têm outras características?
Lama: Eu acho que esta pergunta é super boa. Ela explode estas questões todas. A única consciência que pode dar conta disso é Rigpa. Ela é auto cognoscente. Tem que brotar fora da bolha. Ela brota do aspecto livre. Mas ela só pode falar sobre aquilo que for construído. Então, ela clarifica as deidades, clarifica as mandalas, clarifica tudo. Mas se, por exemplo, nós estamos construindo as bolhas, construindo as mandalas, as Terras Puras e estamos com a sexta consciência operando ali dentro, isso é a sexta consciência, não é a consciência primordial. Mesmo que a gente use as mesmas palavras. Esse é o ponto. A sexta consciência é a consciência das bolhas, ela está dentro das bolhas ou eventualmente das Terras Puras, também. Ou das mandalas. Mas é uma consciência que depende de uma base construída. Não sei se isso, mais ou menos, faz sentido. Faz, Carol?
Carol: Mais ou menos.
Lama: Vê se consegue deixar mais claro, então.
Carol: Como que tem este processo de discernimento de, por exemplo, deidades e mandalas, desde esta perspectiva primordial. Porque discernimento, para mim, é sempre uma coisa dualista. Por que tem uma coisa, discernindo uma coisa, então como é que acontece este processo de discernimento, desde um aspecto primordial?
Lama: É sempre através de uma característica. Por exemplo, Rigpa significa a mente olhando a mente. Então, se entendermos que a característica do aspecto primordial tem este aspecto auto cognoscente, que é semelhante à luminosidade, então isso já nos ajuda. Vamos ter que partir deste ponto. Então, existe um aspecto auto cognoscente, que está baseado numa ausência de referenciais. E ele opera, então, vendo como que os sentidos ilusórios aparecem a partir de referenciais, reconhecendo tudo como manifestação luminosa. Ele olha os referenciais, não como referenciais que existam, ele olha os referenciais como referenciais que foram construídos. É como a gente começa a descrever o primeiro, o segundo dos Doze Elos. Aí, nós estamos vendo aquilo. É como se estivéssemos vendo desde a consciência primordial. Ela não tem base, mas ela começa a ver as bases surgindo. Como que estas bases surgem?
Este processo começa, não pela descrição, ele começa pela contemplação, totalmente em silêncio. Aí surgem imagens. Quando surgem imagens, surge o observador da imagem junto, e aquilo é inseparável, é não dual. Mas aí eu pego a imagem, estou olhando dentro da meditação, estou contemplando isso! E aquela imagem que apareceu, tomo ela por base, para criar outras imagens. Isso, nesse momento, é visão. Não é, propriamente, uma descrição. Quando nós olhamos para trás, vemos que a capacidade de ver a aparência e ver o observador da aparência, isso é Rigpa. Ele não está baseado em mais nada, a não ser ver a construção artificial da mente, que está acontecendo ali. A mente está olhando como que a mente começa a surgir. A operação de percorrer os conteúdos, é Rigpa percorrendo os próprios conteúdos, é o aspecto cognoscente da base primordial percorrendo conteúdos e construindo luminosamente outros conteúdos. Mas essa é uma experiência de meditação, que depois é descrita em palavras. Quando as palavras vêm, elas não são a experiência de meditação, elas remetem a isso. Precisamos parar, em silêncio, e verificar isso operando. Deste modo, de parar e verificar, a pessoa vai encontrando as mandalas, vai encontrando as Terras Puras e as bolhas, também.
Mas o aspecto básico é o aspecto cognoscente, que é primordial. Então, a gente precisaria olhar e ver se este aspecto cognoscente é primordial ou não é. Então, nós não temos como, por exemplo, falar de luminosidade sem o aspecto cognoscente. Não temos como falar de base vazia, como Khadag, sem o aspecto que reconhece a base vazia. Só que eu não posso falar isso como se fosse uma descrição, isso é uma experiência de meditação. Uma experiência de meditação no sentido que eu abandono as cinco primeiras consciências, a sexta consciência, abandono as identidades, abandono Alaya Vijnana, aí repouso na ausência desses significados todos, observando o que surge dentro da mente. Dentro deste espaço muito amplo começam a aparecer as várias aparências internas. Têm essa consciência que vê isso, que vê internamente. Isso é Rigpa, ela está olhando ali, internamente. Ela não é a sexta consciência que está falando. É através deste processo.
Mas aí, enfim, se está no meio das pessoas, é necessária uma linguagem. Mas esta linguagem não substitui a experiência, a experiência precisaria ser examinada. E quando a experiência é examinada, quem é que examina a experiência? É a própria mente cognoscente que examina e que é capaz de ver a si mesma. Enfim, Prajnaparamita, é a mente auto cognoscente, porque ela não tem referenciais, ela não tem enganos dentro. Se ela tivesse, como está lá no Sutra do Coração, não tem referências então não tem enganos, a gente pode confiar. Porque se ela tivesse referências, a gente diria: “Isso aqui vale segundo esses referenciais. Se eu trocar de referenciais é outra coisa”. Mas ela não tem referenciais. O referencial que ela opera é a própria aparência que foi criada. Então, ela olha dentro da aparência criada, e a aparência, então, se dissolve, se revela enquanto uma criação. Então, a base é Khadag, é a liberdade que brota dessa vacuidade. Ali dentro não tem um conteúdo, mesmo. Enquanto você acha que está bom, eu me despeço. Antes que você descubra que esta resposta é insuficiente. Está bom, Carol? Seguimos conversando à noite.
Shirley: Oi Lama, tudo tão profundo, não é? Eu estou toda remexida aqui, com tudo. Mas eu sei que o senhor já falou bastante sobre as identidades. Venho investigando essas infinitas identidades. Eu até escrevi porque, como eu falo demais, é melhor eu escrever. De um tempo para cá, eu venho tendo dificuldades de falar: “Eu sou”. Tenho plena consciência que: “Eu estou”. Como se estivesse flutuando em cada situação, sabe? A pessoa fala assim: “Qual é a sua profissão?”. Eu falo: “Qual é a minha profissão, e agora?” Eu sou o que? Aí eu falo: “Não, eu estou”. Eu estou, naquele momento, que eu posso auxiliar com as habilidades que eu tenho. Então eu rompi aquilo. Sou contadora, administradora ou qualquer coisa. Estou com esta dificuldade. Aí, eu procuro identificar qual a questão. Falo assim: “Eu posso ou não posso colaborar, ajudar”. Mas eu vejo uma coisa, quando eu estou investigando estas identidades. Quando eu vou olhar para elas, quando a gente precisa olhar, investigar como estão as coisas e estas identidades que a gente vai criando ou, nem sabia que criou e elas existem. Aí eu parei num ponto assim. Como que eu sigo? Eu identifico elas. E eu sei que não. É como se a gente precisasse, um pouco, estar nestas identidades, para poder seguir. Mas qual é a melhor forma para olhar para elas? Eu falo: “Ah, está bom, beleza. Você existe. Tudo bem”. Me pacifico contigo e sigo. Ou tem um caminho que a gente pode ir, também, apurando essas identidades? Elas ficando mais leves?
Lama: Eu acho essas duas coisas. O primeiro ponto seria olhar as identidades. Elas nos permitem atuar dentro do mundo. O Buda estava lá: “Eu sou o iluminado”, ele proclamou. Falou isso. Então ele surge deste modo. É um modo artificial. Tem um momento que ele se despede, vai se dissolver e não retornar mais. Ele vai se dissolver no sentido que ele não vai mais tomar uma base da oitava consciência. E gerar uma sétima consciência e passar a manifestar um corpo com os pensamentos, que vão brotando na sexta consciência, para benefício dos seres. Estes são os Bodisatvas. Eles vão atuando deste modo. Os Bodisatvas vão surgindo nos mais variados lugares do mundo. Mas eles têm esta clareza, não estão presos, mas estão se manifestando. Isso é o Tathagata. Tathagata tem um corpo físico, ele se manifesta deste modo e o Buda, ele se dissolve. Tem um momento que ele vai se dissolver. Simplesmente ele não retorna. Até mesmo porque, nesta condição de Darmamega, como ele criou o caminho todo e revela o aspecto primordial, então, ele segue atuando dentro de cada pessoa. Porque ele é inseparável de cada pessoa, no sentido primordial. O aspecto primordial é a base de cada um, então, ele segue operando deste modo. Ele segue operando, só que não surge mais como alguém, com uma aparência humana, andando entre os seres humanos. Ele não aparece mais deste modo.
Então, a compreensão do nosso corpo, enquanto um corpo ilusório, se manifestando em meio ao mundo ilusório. Um mundo luminoso de significados, é uma percepção importante. A gente não precisa rejeitar isso, mas manter esta clareza. Temos uma liberdade em relação às próprias identidades, que estamos operando. Mas a gente vai operando estas identidades, vai refinando. Vai aprendendo inglês, vai aprendendo espanhol, vai aprendendo contabilidade e vai trabalhando. Vamos avançando e vamos entendo que as leis mudaram... E agora vamos fazer outra coisa. E agora isso e agora aquilo. Mas tem um sorriso, uma liberdade interna. Não precisamos ficar preso a isso. Não precisamos buscar, por exemplo, nenhuma glorificação, assim: “Eu sou eu. Realmente fui reconhecido como, então, tal coisa”. Não precisa isso, porque todos estes aspectos, são aspectos transitórios, luminosos.
Isso pertence à espuma do mar, sendo que o mar é a oitava consciência, é a base de Alaya Vijnana. Disso surgem umas espumas de significados aqui e ali. E estas espumas surgem do mar e retornam para o mar. E aquilo vai indo, assim. Mas a nossa essência é algo que está além deste processo das oito consciências, ainda que nutra, seja a base, realmente, de cada aparência das oito consciências_._ Isso é a inseparatividade de Samsara e Nirvana. Inseparatividade do aspecto último, dos aspectos condicionados, que vão aparecendo. Então, boa sorte Shirley.
Álvaro: Lama, nesta forma em que foram apresentados estes ensinamentos (muito obrigado, antes de mais nada), me surgiu uma questão, sobre o aspecto da iluminação. No seguinte sentido: se a gente pode, de certa forma, acho que isso é um conceito também, mas enfim, dizer que o aspecto da iluminação tem a ver com a fusão entre Rigpa, a consciência primordial e a identidade. Como se tudo isso se fundisse de uma forma inequívoca. De modo que a gente olhe para as coisas, como se tudo isso fosse uma coisa só, de certa forma.
Lama: Eu acho que se pode falar disso, sim. Isso significaria o reconhecimento do aspecto luminoso de cada aparência, de cada consciência, de cada processo. Pode ser visto deste modo, sim. E, mais do que o reconhecimento enquanto uma descrição, isso pertenceria ao caminho do ouvinte. A descrição é a experiência correspondente, a clareza disso. Está bom Álvaro. Tudo de bom.
Carolina: Lama. Vamos lá. A gente falou sobre os Doze Elos da Originação Dependente, falou da sexta e sétima consciências. Eu entendo que nesta perspectiva do reino humano. Agora, como é que isso se dá nos diferentes reinos? Porque os Doze Elos da Originação Dependente acontecem dentro dos seis reinos. Estas sexta e sétima consciências existem dentro destes outros reinos?
Lama: Elas existem nos três mundos. Porque aqui a gente fala nos seis reinos, por pertencer ao reino do desejo, que inclui os deuses, etc. Mas isso funciona também no mundo da forma e no mundo da não forma. Estes aspectos estão intactos, eles estão operando. Eles só estão amortecidos no mundo da não forma. No mundo da forma eles estão mais densos. Então, sempre é este mesmo processo, é sempre assim. Mas, naturalmente, o que vai distinguir os diferentes reinos aqui, dentro do mundo do desejo, por exemplo, que nós estamos operando, são os periféricos, ou seja, olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Aí nós temos diferentes olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas as consciências que efetivamente veem, são diferentes. Quer dizer, estas consciências são as mesmas. Mas as cinco consciências que dizem respeito aos periféricos, podem variar. Tem animais que não tem. Eles estão nas profundezas do oceano, não têm olhos, por exemplo. Tem as bactérias, que estão incluídas aí dentro, mas elas têm outros sensores, elas funcionam de outro modo. Mas isso não é problema.
Carolina: Mas elas também nunca seriam capazes de acessar isso de uma perspectiva de Rigpa, por exemplo, de poder analisar a própria mente? Elas vão agir tipo instintivamente?
Lama: Este é um ponto delicado. Por quê? Por exemplo, nós, enquanto seres humanos, não teríamos também muita capacidade de acessar isso. E nós, para acessar isso, precisamos de uma base que ultrapassa a condição humana. Mas todos os seres, todas as expressões, têm essa base que ultrapassa a natureza específica deles e dos reinos deles. Esse é um ponto. Então, a região, por exemplo, de Alaya Vijnana, já é comum a toda a vida. Podemos entender as bactérias e multiplicar as bactérias em vitro. E poder ir entendendo o mundo delas e manipulando. Podemos chegar no código genético delas e manipular aquilo. Nós vamos entendendo aqueles mundos condicionados por dentro, nós temos esta capacidade. Isso não é propriamente uma capacidade humana, mesmo. Isso é uma capacidade associada à sabedoria do espelho, de entender aqueles mundos dentro deles mesmos.
Se a gente entende isso, tudo bem. Aí outra pessoa pode entender também. E outra pessoa pode entender e outras podem entender isso. Está disponível. Podemos acessar esse conhecimento. E também podemos acessar essa capacidade de estar além do próprio mundo humano, olhando coisas tão sutis, que só aparelhos podem ver. Aí, o aparelho vira um periférico da sexta consciência. Nós temos muitos periféricos: temos telescópios, microscópios... Temos vários processos que são periféricos, mas a visão é sempre pela sexta consciência. Os animais também têm outros periféricos.
Carolina: E uma última pergunta. Considerando os Doze Elos, dentro dos diferentes reinos, como se dá o nascimento? No momento do bardo da morte, numa preparação para um novo nascimento, eu consigo fazer análise, quer dizer, superficialmente, entendendo um pouco dos Doze Elos e pensando num renascimento humano. Mas para mim é muito difícil entender como isso se daria de um humano para reinos diferentes.
Lama: Isso vem um pouco ligado àquilo que a Martha estava falando. A Martha estava preocupada de ter pensamentos ‘meio assim’. Quando esses pensamentos surgem, podem ser roteiros diferentes dos roteiros que os seres humanos percorrem. Então, se a nossa sexta consciência está se associando a outros roteiros, de repente, no momento do pós-morte, quando a gente estiver olhando o renascimento, (no renascimento nós estamos percorrendo roteiros, também, de mente), aí pode ser interessante nós termos um outro tipo de corpo, que não o que a gente tem.
Carolina: Mas isto está ligado ao que a sexta consciência está operando e também às nossas marcas cármicas?
Lama: Exatamente. Quando a gente sai de um trilho para outro, e começa a olhar outras possibilidades, nós temos esta liberdade, porque a sexta consciência é a sétima, a sétima é a oitava e a oitava é a consciência livre, também. Então nós podemos sair de um tipo de roteiro e entrar no outro. Uma forma de ver isso é que a gente assiste um filme e sai do roteiro facilmente. Então, se vocês veem, por exemplo, filmes de desenhos com animais, cuidado, pode renascer como um animal de desenho.
Carolina: Não me fale isto porque estou com oito gatos aqui em casa Lama, eu vivo a vida felina aqui.
Lama: Isso é preocupante. Está bom, em outras vidas eu já fui um gato. Com certeza! Mas agora estou aqui só beneficiando eles. Na medida que tens compaixão por eles, recitas por eles, não renasce neste âmbito. A não ser que queiras.
Carolina: Não, é muita preguiça.
Lama: É muita preguiça. Este tipo de compreensão atrapalha a tua vida, em meio ao mundo?
Carolina: Não acho que atrapalha. Mas é algo que fica como uma lâmpada acesa, aqui, constantemente. Porque acho que é um conceito um pouco básico. O Budismo é muito novo para mim. Eu vim de conhecimentos espíritas. Assim, meio que estou fazendo uma lavagem cerebral aqui. Então ele fica sempre como uma lâmpada aqui, parece que eu preciso entender isso para conseguir avançar um pouco mais. Mas eu não acho que atrapalha.
Lama: Você está dirigindo, no tráfego. De vez em quando você pensa, esta estrada aqui existe mesmo? E o carro da frente? E atrás? Como é que isso vai se dá?
Carolina: Eu penso. Sempre, quando você fala sobre as coisas, a gente vê aquilo, porque é luminosidade da mente. Aí eu falo: “O Lama está louco. Eu estou vendo ele. Quem não enxerga?” Porque tudo parece muito concreto.
Lama: Aí tu não vês a luminosidade?
Carolina: Conceitualmente eu consigo entender. Acho assim: estou no começo da prática de visualizar a realidade disso. O conceito eu consigo entender. Mas aplicar isso na minha realidade... Eu penso assim: a minha vida é igual todos os dias, eu construí isso aqui com a minha mente luminosa. Construí o conceito da minha casa, do meu trabalho, das minhas coisas, e todos os dias é a continuidade disso. Aí eu falo: “Se é a luminosidade da minha mente, como que é tão concreto assim, ao ponto de eu encerrar o meu dia e iniciar o meu dia do mesmo jeito?”.
Lama: Esta é uma boa pergunta. Eu também me pergunto: “Como é que eu sou um Lama, que todo dia fica falando da vacuidade, vacuidade e eu estou aqui”. Eu não estou aguentando mais. Quando descobrir, me fala Carolina.
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Sessão #4 - Manhã I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
Lama Padma Samten
CEBB Bacopari, transmissão online 14/11/2021
Transcrição: Vanessa Berwanger Sandri
Revisão: Martha Roessler 22/02/22 e Mônica
Bom dia! Eu acho que a gente consegue chegar no final da minha programação, mas eu queria falar para vocês o que eu estou imaginando. Olhamos o aspecto das oito consciências, vimos mais ou menos como é essa linguagem. Acho importante que não só a gente veja a descrição, mas que consigamos ultrapassar aquilo que no Surangama o Buda vai chamar de o Caminho do Ouvinte. Que não tomemos isso apenas como uma informação. Que a gente tente ver dentro como isso está operando, tente olhar em nós e ver se aquilo parece que opera mesmo, é ou não é, um pouco assim. Vamos começar olhando as oito consciências no espaço da realidade circundante, como essas experiências podem ocorrer. Essa realidade circundante é essencialmente uma conexão com esses roteiros que surgem por dentro da consciência. Tem Alaya Vijnana, mas não estamos olhando Alaya Vijnana inteira, estamos olhando sempre uma certa região, um certo roteiro ali dentro. São as coisas que a gente faz e daí surgem experiências de mundo. Quando olhamos em volta, a gente vê sempre segundo aquele roteiro, segundo aquela expectativa mais restrita. Isso seriam as oito consciências e a realidade circundante. Depois tem uma outra parte que é a purificação das oito consciências. Esse é um tema também interessante. Se entendermos que as oito consciências são tudo que nós fazemos, a gente não faz mais nada a não ser as oito consciências. Então se eu purificar as oito consciências... O que seria, dentro do mundo, alguma ação que não fosse as oito consciências? As oito consciências são tudo que a gente pode fazer, então se eu purificar essas ações das oito consciências, purifico totalmente a experiência comum. Tem várias formas de purificar isso. Por exemplo, nós temos uma conexão com o Prajnaparamita, então tem a forma do Prajnaparamita de olhar isso. Tem também os seis selos, que a gente viu nos ensinamentos de Guru Rinpoche sobre Darmata. Tem ainda os ensinamentos de Tathagatagarbha, do Surangama, pelo menos, porque Tathagatagarbha é mais extenso, ele abrange muitos outros Sutras.
Mas eu queria trazer também uma parte que a gente não tem trabalhado muito, que é uma parte Vajrayana que é trazida por Thrangu Rinpoche. Ele apresenta isso bem arrumado, vai falar nas cinco sabedorias, nos cinco Diani Budas, nas direções, elementos, cores, etc. Ele vai olhando, é uma linguagem específica que é gerada, que é muito interessante também. Tem esse processo que nós temos olhado, que são os ensinamentos de Garab Dorje na forma como Dudjom Rinpoche tem trazido. É essencialmente a descrição da Iluminação da Sabedoria Primordial que, enfim, vai focar aquilo que é gerador de todas as aparências. Vamos passar por isso também. E se sobrar tempo, vamos olhando a utilização da linguagem das oito consciências em muitos diferentes exemplos que eu, mais ou menos, aqui relacionei. Esse é o nosso roteiro. Dos quatro itens principais a gente viu, mais ou menos, o primeiro. Agora nós vamos seguindo para olhar esse aspecto das oito consciências na realidade circundante.
Vou começar com essa visão: quando nós trabalhamos as oito consciências temos Alaya Vijnana, a oitava, que é essa mente que corresponde à mente universal, é como se fosse o depósito de todas as impressões de todos os seres. Mas sob o ponto de vista de Alaya Vijnana não há todos os seres. Os seres, eles são já a expressão da natureza última operando segundo referenciais específicos. Essa é uma parte interessante porque ela já se direciona à sétima consciência. Estamos olhando a sétima e oitava juntas, porque quando a gente fala de múltiplos seres, têm a individualidade e individualidade é a sétima consciência. Mas quando nós estamos olhando a nossa experiência de individualidade, notamos que ela pode ter componentes de um tipo e de outro tipo. Eventualmente nós ouvimos visões, ouvimos conselhos vindo de diferentes direções e cada direção parece que somos nós mesmos falando. Às vezes a gente diz: “se eu olhar nessa perspectiva, vejo isso; se eu olhar naquela, vejo aquilo”. Então nós não somos nenhuma nem outra, nós somos uma natureza livre. Por vezes a gente tem até essa clareza: “eu estou vendo isso porque estou olhando segundo esse conjunto de referenciais”. O conjunto de referenciais é uma parte de Alaya Vijnana, então quando a gente surge com uma parte de Alaya Vijnana, quando escolhemos uma parte e começamos a olhar daquele modo, entramos naquele mundo correspondente. Ali surge uma forma de responder particular, que a gente termina dizendo: “bom, eu sou isso”. Às vezes fazemos uma formação inteira, a pessoa estuda engenharia e aprende a responder daquele jeito, começa a operar daquela forma. Por vezes aquilo que a gente aprende fica tão internalizado que não se tem mais a capacidade de dizer: “bom, eu pego esse referencial, então…”. A pessoa não tem mais noção que está pegando alguma coisa, aquilo já está atuando de um modo automático.
Essas coisas acontecem assim, por exemplo, a gente não diz: “se eu estiver na perspectiva geocêntrica eu vejo o sol se levantando”. Ninguém diz isso, todo mundo diz: “o sol se levantou”, é automático. E aí o sol se pôs, agora é dia, agora é noite, para nós isso é automático. Mas é uma perspectiva geocêntrica. O sol se pôs!! Se pôs como pessoal? Mas não ficamos pensando: “agora o sol se pôs''; “na perspectiva geocêntrica o sol se pôs”; “na perspectiva geocêntrica hoje está um dia bonito”, ninguém diz isso. Vamos automatizando as coisas e quando se vai automatizando, aquilo surge por dentro de uma identidade, por dentro de alguém. A gente olha e tem clareza das coisas, uma clareza automática de tudo, isso é o surgimento da sétima consciência, da individualidade. Mas ela está ligada a um conjunto de escolhas que foram feitas e essas escolhas começam a atuar de um modo totalmente automático, isso se traduz como as bolhas de realidade. Nós estamos operando sempre na conexão com um conjunto de coisas que já estão automatizadas, que se tornam as bolhas de realidade. E essas bolhas de realidade, quando a gente olha em volta, são o mundo natural. E a nossa identidade também é natural, ela surge desse modo. Então a oitava consciência atua de modo natural. A sexta consciência, que está lá pensando, não está avaliando isso, não está olhando isso, ela simplesmente atua de modo natural como alguém que liga uma chave e a luz acende. Pronto é assim. A gente precisaria olhar e reconhecer isso. A Carolina ontem estava falando da naturalidade, aquilo parecia muito rígido. Essa naturalidade vem assim - a gente liga uma chave e a luz acende. Nós temos esse conjunto de condicionantes que são totalmente automáticos. A gente vê: agora está claro, agora é dia, agora é noite, mas não chegamos a olhar de forma mais profunda, então estamos sempre operando dentro de bolhas e essas bolhas tem esse referencial que produz um significado de um modo imediato.
Começamos a desconfiar disso porque passa um tempo e os nossos referenciais automáticos mudam. É interessante, por exemplo, por uma época a pessoa pode gostar de um tipo de comida, tem outras épocas que a pessoa já não é mais aquilo, é outra coisa. A pessoa começa a gerar um estranhamento, ela comprou um carro, mas lá pelas tantas olha para aquele carro... Eu mesmo tinha um fusca e dizia: “nunca mais vou vender esse fusca, eu gosto dele”. Eu achava aquele fusca um luxo, completo, estava super feliz com ele. Tive vários desses carros e dizia: “de jeito nenhum eu vendo”. Mas teve um momento que eu disse: “uau, é muito barulho, é muita fumaça”. Mas no início eu não achava isso, achava maravilhoso, até gostava do cheiro. Daí eu tive uma Parati 1.8. Viajei o Brasil inteiro com ela. “Esse é um carro maravilhoso”. Lá pelas tantas descobri: “bah, não tem ar condicionado”. Precisava do ar condicionado. É assim, é uma coisa curiosa, aquilo parece ser automático. Lá pelas tantas a gente vai mudando, aí o que é que muda? Muda a bolha, muda o referencial, aquilo dá para ver perfeitamente, o referencial mudando. Então quando o novo referencial se torna automático, nós estamos sempre construindo novos referenciais. Faz parte da aflição, da ignorância, nós estarmos operando desse modo, sempre com um referencial desse tipo, automatizado. Esses referenciais automatizados, a gente nem percebe que está construindo, esse é o sentido do carma. Aquilo vai se estabilizando, vai se construindo de modo automático e daqui a pouco ele está nos levando e nós nos fundimos com aquilo, nós somos aquilo. Então os significados automáticos simplesmente brotam na nossa frente, brotam diretamente como se fosse algo completamente sólido.
Pior ainda é quando a bolha de realidade nos apresenta os infernos, aí a pessoa está em sofrimento. Eventualmente ela ouviu os ensinamentos, ela sabe o que significam os infernos, ela sabe que é uma bolha, mas ainda assim não consegue sair. Isso não é uma coisa fácil. Quando as questões começam a operar de modo automático a gente entende essa estrutura do carma, entende como que a bolha é uma definição do carma, é o mundo como se torna automático, operando de forma automática em nós. Eu acho importante que a gente fale sobre as bolhas porque é um jeito de despessoalizar, de eliminar também um sentido de culpa que se torna problemático. Dentro de uma certa perspectiva a gente diz: “mas por que eu não faço tal coisa se acho que aquilo é melhor, ou é assim?” Mas a pessoa não consegue. Por quê? Porque ela não está livre, está operando segundo as bolhas. Mas a pessoa gera um sentimento de culpa porque ela não consegue tais coisas. Assim eu acho melhor porque podemos dizer: “essa culpa não é minha, essa culpa é da bolha”. Vamos socializar a culpa, a culpa é da bolha. É mais fácil olhar desse modo, porque a gente não se culpa propriamente. A gente vê! Aproveita! É uma chave que começamos a usar para reconhecer como que os significados, os impulsos, as energias e uma série de outros aspectos operam dentro da nossa mente e nos impulsionam sem que efetivamente consigamos escapar daquilo. Por exemplo, a pessoa pode até olhar as coisas e dizer assim: “eu estou vendo essas formas”. Formas associadas a olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, que é nossa experiência ao redor. Olho isso de modo condicionado, impulsionado por raiva, por medo, por orgulho, inveja, desejo e apego, etc. Eu olho aquilo. “Isso é alguma coisa construída”, a pessoa diz. Mas não é o suficiente. Por quê? Porque, ainda que a pessoa diga: “isso é construído”, ela está na condição do praticante do caminho do ouvinte, ou seja, fala sobre isso mas não tem a liberdade correspondente a isso. A pessoa vê isso mas, por exemplo, quando as aparências surgem, elas mobilizam energia junto e a pessoa não consegue ultrapassar essa energia. Um caso simples de ver é quando a pessoa tem, por exemplo, uma restrição alimentar. Aí a pessoa olha aquilo que não deve comer e aquilo continua totalmente livre. Aquilo fica “assim” na frente da pessoa e ela diz: “acho que vou comer senão vou adoecer psicologicamente, vou passar mal, então prefiro ter um pouquinho mais de estabilidade no reboque, no trailer, e não vou aqui machucar os aspectos mais profundos da minha existência.” Isso é uma boa justificativa (risos), a pessoa olha e diz: “isso não é o problema maior, eu vou me machucar por quê?”
Então tem esse aspecto. Vocês imaginem o Buda comendo uma vez por dia. A regra monástica lá é não cozinhar, já imaginou? (Isso eu não devia ter dito, não foi legal. Aí o pessoal resolve não cozinhar mais, vai dar problema e ainda vão dizer: “isso é o Buda que falou”. Risos). Mas aí eles mendigam. (Já estou imaginando vocês todos saindo daqui em direção a Teresinha). Não vai dar certo pessoal, é que não é muito fácil, por isso que os Monges são todos magrinhos, é interessante isso. (Quando eu olho o Monge Renato Falcão acho que ele tá bem bochechudo ainda). Então tem esse aspecto: “eu não vou fazer a refeição da manhã, nem da noite”. Mas não é muito fácil. (A Lu agora cortou uma refeição, é da noite ou da manhã? É semanal). Mas aquilo é mais ou menos, porque quando chega a hora da refeição a pessoa diz: “ops”. Mas a pessoa lembra direitinho. Ela escreveu até: “Atenção! Recado de mim para mim mesmo. Sou eu mesmo falando isso aqui. Não devo comer isso e nem nesse horário”. A pessoa olha aquilo… “Eu já cumpro o jejum no intervalo das refeições. Refeição é um intervalo muito pequeno em 24h, aquilo é pouca coisa, o resto eu faço todo jejum. Estou indo bem, de 24h eu já faço 22 de jejum, não sei porque estou engordando”. Então aquilo não é muito fácil. Essa recomendação é interessante, a gente olha para as coisas e elas continuam iguais, a energia impulsiona. A gente tem olhos, nariz, língua e tato e tem um periférico que “vê” a energia também e esse periférico é super grave, porque ele comanda. De modo geral nós obedecemos a energia, aí tem disposições variadas que estão ligadas às emoções, aí vem emoções variadas.
E tem outras coisas. Nós temos a bolha. Mas dentro da bolha nós temos paisagem. As paisagens são uma coisa mais restrita, do tipo: “tudo bem, eu estou num regime, mas hoje é um dia que está ventando muito, tem esse sol, então eu tenho que…” Aí vêm alguns elementos mais que subvertem a nossa decisão. Tem a paisagem: “Bateu alguém. A pessoa entrou, vou oferecer um café para ela. Eu não tomo café, nem café com açúcar, imagina, mas hoje…” Isso é a paisagem. A pessoa precisa de uma certa flexibilidade senão vai ficar assim horrível. Essas justificativas são justamente a paisagem, então a pessoa se dá conta: “aliás, hoje eu não estou muito bem então um café para me ajudar”. Nós temos periféricos que vão olhando essas coisas todas. Aí tem a causalidade. A gente olha: “as coisas são assim, assim e assim”. Mas elas são causais. A causalidade é um ponto realmente que nos pega. A causalidade é super importante, porque dá um sentido de realidade às coisas. Por exemplo: “não vou mais pensar se o sol levanta ou não levanta, o fato é que, na medida em que o sol se levanta, num dia como hoje, com esse vento, se eu não molhar as plantas, vou ter problemas, é certo”. Então surge a causalidade. Essa causalidade também está ligada a uma porção de referenciais, mas esses referenciais eu não estou reconhecendo como artificiais, estou reconhecendo como automáticos, então a causalidade surge. Aí quando olhamos isso, a gente vê: se eu estivesse jogando um jogo de cartas teria uma causalidade, mas o jogo é totalmente artificial. Na medida em que eu estabeleço referenciais, a causalidade aparece como uma realidade densa. Se eu estou jogando um jogo de tabuleiro, aquilo é tudo artificial, mas estabeleço artificialmente os referenciais. Quando assumo eles de modo automático, o jogo e a causalidade se tornam completamente reais. A causalidade parece totalmente real, mas ela está na dependência dos referenciais que nós estamos utilizando, esse é um ponto bem interessante.
Outro dia eu estava vendo um filme. Tem algumas cidades abandonadas pelo mundo, outras parcialmente abandonadas. Eu estava vendo uma cidade na Rússia que fica no Círculo Polar Ártico, lá no norte da Sibéria. O pessoal que se comportava mal eles mandavam para lá. O Stalin gostava de mandar os amigos para lá, mas, essencialmente, lá tinha minas de carvão. As pessoas iam para lá para trabalhar nas minas de carvão. Não era legal, as temperaturas eram abaixo de 30º, 40º negativos, super frio. Aí eles construíram uma cidade, prédios bonitos, só que o carvão perdeu o atrativo, então a cidade não está totalmente abandonada, mas está 10% do que era. Tem muitos prédios totalmente abandonados, aí eles filmaram por dentro, tem os livros das pessoas, tem os sofás, têm as coisas todas. As pessoas um dia se levantaram e foram saindo, não levaram as coisas. Como tem vapor dos solos, o solo é mais quente e produz vapor que vai condensando, então vão surgindo cavernas de gelo por dentro das casas. Os lustres totalmente congelados, aqueles lustres de cristal bonitos (se eu estivesse lá já pegava aquilo). Todos aqueles livros, todos aqueles objetos tinham uma conexão, uma conexão causal. Aquilo tudo funcionava, mas aí faz assim “click”, a bolha e a paisagem mudam, e quando tu olha para aquilo, aquilo não faz mais sentido, aí tu te levanta e vai embora. Esses aspectos são cruciais, eles efetivamente atuam sobre nós e a causalidade que parece densa também está na dependência das bolhas e das paisagens. Mas a causalidade parece densa. Por exemplo, se estamos vendo um filme, a gente vê a causalidade toda operando. Mas é um filme pessoal! Mas vemos a causalidade. Nós temos uma mente que olha as sequências causais, e quando nós vemos isso, aquilo parece completamente sólido, mas aquilo é uma construção das sequências causais. O Buda diz: “não veja batalhas''. Isso era um dos votos monásticos: “não assista batalhas e não leve recados de lados contendores”, porque isso significaria entrar no fluxo causal das aparências.
Ainda tem outras aparências que surgem, como por exemplo, a intuição. A pessoa está assim... aí ela pensa: “ah, eu acho que o ano que vem vai dar isso e não aquilo. É certo que vai dar isso e não aquilo”. A pessoa tem uma sensação das coisas, essas intuições brotam por dentro das ações das paisagens e das bolhas e de Alaya Vijnana, elas brotam lá de dentro. Mas, por vezes, consideramos que isso é muito sólido, então a gente precisaria ver que essas intuições operam dentro de cenários. Quando a gente localiza o cenário, ou seja, localiza a bolha e a paisagem, vemos que a intuição não é uma intuição livre, é uma intuição dentro de um conjunto de referenciais. Aí tem uma noção de propósito, começamos a olhar as nossas noções: “não, mas aquilo assim é isso, porque afinal eu optei por aquilo, optei por isso”. Surgem propósitos que parecem ser sólidos, mas eles também são uma construção dentro de uma bolha. Do mesmo modo, a visão estratégica: “agora eu faço isso, depois eu faço aquilo, aí numa terceira etapa então tal coisa”. Esta visão estratégica parece sólida também. Por vezes nós somos criticados por uma questão de coerência, aí temos essa demanda da coerência: "estou fazendo isso, depois aquilo, então para eu ser coerente eu devia fazer tal coisa”. Então surge isso também como uma expressão das paisagens e das bolhas, do mesmo modo as urgências e tudo isso termina operando intimamente ligado com as disposições de corpo, com as inteligências e com a própria saúde. Então aqui é uma descrição de como a oitava e a sétima consciência, eventualmente a sexta, estão operando referenciadas a aspectos que não parecem existir que são a bolha e a paisagem, porque nós temos uma sensação de que a nossa mente está operando segundo olhos, ouvidos, nariz, língua e tato e os referenciais de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Eu olho para as coisas e vejo, mas nós estamos referenciados nessa forma ampla. Essa forma ampla surge para nós como uma bolha. A bolha é uma secção transitória de Alaya Vijnana, a bolha vai se deslocando e ao longo de nossa vida nós vamos viajando na bolha, então a bolha vai se deslocando e nossa visão de mundo vai se deslocando junto, e todos os propósitos, urgências e coerências, etc. vão se deslocando junto. Todas as visões de futuro, as intuições, os raciocínios, as causalidades e identidades, tudo aquilo vai se deslocando junto, então a gente se desloca rápido aqui, em olhos, ouvidos, nariz, língua, e tato e mente que é a sexta mente. Mas os referenciais que limitam a ação da sexta mente, que são as bolhas e as paisagens, se deslocam bem mais lento e esses aspectos vão se deslocando de vida para vida, as secções de Alaya Vijnana nas bolhas vão se deslocando de vida pra vida.
A sexta consciência vai ficar muito clara se a gente perceber que essa bolha que corresponde a secção de Alaya Vijnana da oitava consciência, em que nós estamos atuando, ela gera, inseparável dela, a sétima consciência que é a identidade. Essa bolha e a identidade vão convergir para a sexta consciência que é o fluxo mental que ocorre dentro de nós. Nós temos uma fidelidade a esse fluxo mental. Ele começa a ocorrer e nós começamos a movimentar braços e pernas de acordo com o fluxo mental. A gente não pensa: “esse fluxo mental é um fluxo mental, deixa ele passar”, a gente pensa: “não, agora…” Aí começamos a nos movimentar por essa fidelidade. Nós temos uma fidelidade, uma fixação e esse fluxo mental associado aos movimentos de olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e do nosso próprio corpo e as disposições de corpo e de energia, etc., isso dá uma sensação de viver, de estarmos vivos. Estamos vivos junto com esse fluxo mental. Ainda que aquilo que a gente chama de “nós” mude constantemente: o aspecto grosseiro, aspecto sutil, aspecto secreto e as disposições mentais, mudem constantemente, temos uma sensação de existência pelo fluxo mental, porque temos uma conexão com ele. Então isso é a compreensão desse aspecto da bolha.
Nós vamos entendendo essa operação. E aqui nós estamos traçando um paralelo também com as várias consciências, com as oito consciências. Quando nós olhamos isso, implícito nisso está a noção de vacuidade. Mas aqui não estamos falando de vacuidade, nesse momento. Mas naturalmente vem essa parte que, de modo geral, é apresentada dentro dos oito pontos do Prajnaparamita, ou seja, nós trabalhamos o aspecto da vacuidade. Ao olhar tudo isso a gente termina dizendo: “então nada disso é sólido, tudo isso é construído de modo luminoso, portanto não há uma rigidez nisso, não há uma realidade intrínseca nisso”. Isso não quer dizer que não exista! Daí surgem essas expressões assim: todas são manifestações luminosas! Quando vemos a manifestação luminosa precisamos entender - manifestação luminosa não dual, ou seja, quando aquilo surge, o observador daquilo surge junto. E o observador vê aquilo porque ele surge junto com aquilo. O observador se define junto, como o objeto surge. Então dizemos que são manifestações luminosas não duais, elas estão além do extremo da existência e da não existência. Se eu disser que aquilo que surgiu não existe, não é verdade, porque aquilo surge, tem uma causalidade, tem uma operação. Se eu disser que existe, aquilo não é completamente real, porque ele não existe unilateralmente, ele precisa de um observador que surja junto para que aquilo tenha aquela aparência. Além do mais, eu tenho aquela existência. Mas na medida que o observador vai trocando o referencial, aquilo começa a mudar também. Então a gente não consegue olhar aquilo como existente em si mesmo, portanto nós vamos dizer que está além dos extremos tanto da existência quanto da não existência.
Tem uma forma que o Buda usa, especialmente no Sutra da Haste de Arroz, que é a expressão “não-não-existente”. Ele nega a não existência, ele não afirma a existência, mas nega a não existência, isso é um ‘nó em pingo d'agua’. Assim, sobre a bolha como nós olhamos, poderíamos dizer: “a bolha existe”. Mas a bolha também é não-não-existente. Ela está além do extremo da existência e não existência. Ela é um conjunto de referenciais que a gente usa, por isso ela vai mudando também com o tempo, ela não é sólida, não é rígida. Então, quando nós, meditando longamente, estáveis, reconhecemos esse aspecto da bolha e, na sequência de Alaya Vijnana, como operando diretamente nas nossas experiências, isso seria a realização da mente fundamental Alaya Vijnana. Ou seja, nós reconhecemos de modo experimental, dentro da nossa prática, a mente fundamental, não a primordial, a mente fundamental Alaya Vijnana que é o depósito das impressões. Isso seria a realização de Shamata. Shamata vai até esse ponto, ela não passa desse ponto.
Quando nós estamos olhando desse modo, vemos que há cenários complexos, flutuantes.
Esses cenários são as bolhas e as paisagens. As bolhas e paisagens sempre incluem visões de presente, passado e futuro. Quando a gente se dá conta que, em tempos anteriores, nós tínhamos outras visões de presente, passado e futuro, podemos entender o que é a bolha, o que é a paisagem. O futuro muda sem nunca ter ocorrido. Temos experiências anteriores que tinham visões de futuro que não aconteceram, mas passa um tempo e nós temos outras visões de futuro e depois outras visões de futuro. Então dentro desse fluxo que nós operamos, sempre temos um passado e um futuro, sendo que o presente fica imantado pelas visões de futuro e pelas visões de passado que pertencem à bolha também. À medida que a bolha vai mudando, as visões de futuro vão mudando. Curiosamente, à medida em que a bolha muda, a visão do passado muda também, nós olhamos o passado agora com outros olhos. Aí percebemos que estamos sempre operando dentro de cenários, de visões, de bolhas e paisagens que são complexas, são flutuantes.
No meio disso temos as inteligências do corpo, ou seja, nós temos as inteligências dos órgãos, das células, temos as sensações do corpo e elas surgem com impulsos. Esses impulsos, quando surgem, parecem completamente reais, porque eles surgem por dentro do fluxo da sexta consciência. Eles surgem como um sussurro: “faça isso ou anda daqui para lá ou de lá para cá”, aquilo surge claro! Esses cenários flutuantes sempre são impulsionados por inteligências físicas. Aí a pessoa diz: “hoje eu não estou bem disposto” ou “hoje eu estou com uma vontade disso ou de me movimentar para cá ou para lá”. E aquilo parece completamente real, porque aparece na tela da sexta consciência e é real, movimenta a energia, e é real. Por vezes, isso também está ligado não apenas a olhos, ouvidos, nariz, língua e tato, mas está ligado a percepção da realidade ao redor, das paisagens, mas também de outros seres. Quando nós olhamos os outros seres, o que nós vemos neles altera totalmente o nosso funcionamento, então os Samsaras se entrelaçam. Aquilo que a gente poderia dizer que é a bolha de um, termina se transformando em bolhas que são conjuntas.
Agora, quando olhamos essa descrição que estou fazendo, ela está vindo por palavras. Essa mesma descrição disso tudo, das bolhas etc., é uma ação luminosa da mente. Isso brota de onde mesmo? Isso também é ilusório? E quando a gente pensa se isso é ilusório ou não é ilusório, que mente é essa que está perguntando se isso é ilusório ou não é ilusório? Alôo, quem está aí perguntando? Qual a base que ela usa para pensar sobre isso? (Essa era uma pergunta para o Renato, depois tu respondes essa. Renato que gosta de coisa complicada). Mas aí pessoal, tem o quê? Aí tem as Mandalas, tem as Terras Puras. Quando nós estamos olhando através, por exemplo, do Prajnaparamita, estamos olhando as realidades todas e reconhecendo vacuidade e luminosidade. Aí o mundo já não é o mundo comum, ele é o mundo que brota aos olhos da visão de Prajnaparamita. Como tem uma lucidez ali dentro, vamos chamar o mundo de Mandala. Mandala é o mundo que surge aos olhos de uma dimensão de sabedoria. É a Mandala correspondente àquela dimensão de sabedoria. As diferentes deidades têm diferentes Mandalas: tem Mandala de Chenrezig, Mandala do Buda da Medicina, Mandala de Prajnaparamita, Mandala de Arya Tara. Diferentes formas de Arya Tara em diferentes Mandalas. Aí tem as aparências pacíficas, iradas e semi-iradas das deidades. Cada uma delas tem as Mandalas correspondentes, tem as visões de mundo correspondentes que surgem daquilo. Aí surgem as Mandalas. Esse é o ponto!
Quando nós percebemos esses aspectos, todas essas construções, dizemos que não tem aquilo dentro, mas percebemos que tem aquilo dentro, num sentido convencional. E a gente entende, então, a originação dependente. Como é que, a partir de alguma coisa, outra surge. Tem esse aspecto vazio, mas esse é um aspecto vazio e luminoso. Vemos não apenas nós fazendo isso, mas vemos que diferentes seres surgem operando em diferentes realidades. Que eles veem segundo suas próprias bolhas, dão significado ao ambiente do seu próprio jeito, modificam o ambiente de acordo com sua própria forma. E a gente vê que os outros seres, olhando aquelas modificações que foram feitas, olham com seu próprio olho. Aqui no Bacopari a gente tem esse desafio porque as abelhas entram nas casas. As casas de madeira sempre têm algumas frestas e então elas entram. Então olhamos para elas não com olho de abelha olhando abelha, olhamos com olho de gente olhando abelha. A gente acha que elas estão no lugar errado, já as abelhas acham que estão no lugar super certo. E porque aquilo dá certo, elas vão expandindo e super funciona. A gente vê que esses mundos se entrelaçam. Então chamamos alguém, a pessoa tira as telhas e daqui a pouco estamos com uns potes de mel aqui pela cozinha. Tem um entrelaçamento quando falamos de mel, a abelha nunca usaria essa palavra. A gente pensa em uma fatia de pão. Ou aquilo em cima de um mamão com granola e iogurte. Mas as abelhas não pensam desse jeito, mel para ela é uma outra coisa. Se vocês olharem, uma abelha dura em torno de 3 meses, esse é o período de vida delas, e elas produzem mais ou menos um grama de mel durante sua vida. Quando a gente passa uma fatiazona de mel, não sei quantas vidas de abelhas trabalharam ali para aquele pão com mel. Mas é bom pessoal! Mas farinha não faz bem, nem açúcar. Mas a gente esquece! Durante o dia inteiro a gente não come, só come naquela hora ali e pronto. Aí não tem problema! Então a gente começa a entender como é essa interligação dos múltiplos mundos dos seres. Quando começamos a olhar a natureza, ela é uma interligação completa. A gente pensa que vive: “eu aqui com meu corpo”. Pessoal, nós temos que comer o tempo todo! A gente vai passando o ambiente pelo tubo digestivo, que aliás é externo. O tubo digestivo se projeta por dentro do nosso corpo, mas ele não é o nosso corpo, ele é externo, aquilo tudo entra e sai. Nós estamos moendo, aqui na boca, o ambiente. E aquilo vai passando, a gente se refere mais à parte da boca e não tem problema, ninguém tem vergonha. A parte final ninguém mostra, mas é a mesma coisa, o mesmo tubo, é o tubo digestivo. Então nós estamos totalmente interligados. Interligado já nem é direito de falar, nós somos a expressão do ambiente, diretamente. Isso vai nos ajudando a entender o que eles chamam do mundo de bilhões. Em inglês eles chamam de trichiliocosm, nem sei como isso fica em português, porque essa palavra não existe. É um universo múltiplo, infinito, porque dentro desse grande universo existem universos e dentro desses universos existem outros universos e esses universos se relacionam entre eles criando outras opções, então eles são multidimensionais.
Para não complicar a coisa, olhamos nosso próprio corpo. Temos aqui uma existência, mas tem um monte de células, cada uma com ideias próprias, tem a inter-relação dessas células operando como órgãos, esses órgãos vão operando por dentro do corpo. Então nós temos muitos diferentes níveis de realidade que se inter-relacionam e criam resultados e tem as células todas. As células não existem individualmente, elas existem por dentro do corpo, é muito complexo isso. Isso significa que o corpo não é uma organização linear de seres ou de coisas, mas nem mesmo uma organização linear de seres. Esses seres têm suas próprias delusões e essas delusões vão surgindo em formas complexas, então o nosso universo inteiro já é múltiplo.
Quando nós olhamos isso, pode surgir essa terra pura que reconhece a realidade Vajra tal como ela está acontecendo. Reconhece esse ambiente tal como ele está acontecendo. Quando a gente entende esse aspecto dessa realidade Vajra, nós estamos numa terra pura onde os ensinamentos da grande perfeição são apresentados. Isso ainda não é o ensinamento da grande perfeição, isso é apenas o descortinar da terra pura, Akanishta_,_ onde os ensinamentos da terra pura vão ser apresentados. É dentro dessa base, tendo isso por base, que nós podemos depois olhar internamente e reconhecer os aspectos primordiais. Nós estamos aqui descrevendo ainda as mentes condicionadas. Aqui é um diálogo das oito consciências com o aspecto do Prajnaparamita.
Nós temos, por exemplo, ainda, o diálogo das oito consciências com os seis selos e com Darmata. Como a gente vai lembrar isso? Nos ensinamentos de Guru Rinpoche sobre os bardos ele vai descrever os seis selos. Isso está na nossa Sadhana. Não sei bem qual a página da Sadhana, mas isso está lá, em uma das versões está na página dez. Guru Rinpoche diz: “dê as aparências o selo da vacuidade”, ele começa assim. Se nós entendemos o Prajnaparamita, entendemos essa descrição que eu estava fazendo até agora. Entendemos que as aparências são olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e mente, então olhamos desse modo. Eventualmente podemos tomar coisas mais complexas, incluir energia, propósito, visão estratégica. Incluir identidade, incluir outras coisas, tudo isso como aparência. Mas todas elas são vacuidade, a gente entendeu isso. Aí Rinpoche diz: “agora sele a vacuidade com as aparências”, ou seja, quando nós falamos de vacuidade, como que nós falamos de vacuidade se não nos referindo às aparências? A vacuidade é uma palavra que só faz sentido se nós estamos trabalhando com aparências. Nós estamos olhando aparências. A vacuidade não tem um significado em si mesma, a vacuidade está ligada à noção de aparências diretamente. Primeiro eu dou às aparências o selo da vacuidade, agora eu tomo a vacuidade e selo a vacuidade com as aparências. Primeiro eu vou de um lado, depois eu venho de outro lado. Aí eu venho conjunto, ou seja, eu selo ambas, aparência e vacuidade com a noção de não dualidade. A noção de não dualidade é super importante também. Não é que eu tenha aparência que é vacuidade e vacuidade que é aparência. Eu tenho a não separatividade de aparência e vacuidade, eu tenho a não dualidade, elas surgem no mesmo fenômeno. Quando surge observador e aparência, eles surgem juntos. Aqui eu vejo que quando surge aparência, justo porque observador e aparência são inseparáveis, então, ao surgir a aparência, a vacuidade já está se dispersando.
Aí o que que eu vou olhar? Vou olhar essa não dualidade de aparência e vacuidade como a grande bem aventurança. Isso significa que ao olhar aparência e vacuidade como inseparáveis, nós temos a liberação do Samsara, nós temos uma grande bem aventurança, porque caem as aflições correspondentes, a fixação e a rigidez das aparências. Nós vamos chamar isso de grande bem aventurança. Essa grande bem aventurança vai surgir sobre uma condição. Essa condição é a ausência de referenciais duais, como se a gente não pudesse repousar em Alaya Vijnana, nas bolhas, mas repousasse na natureza ampla e livre. Quando nós repousamos na natureza ampla e livre, isso é ausência de pensamentos. Então eu vejo que a grande bem aventurança está associada a ausência desses referenciais fixos e essa ausência desses referenciais fixos é o imutável Darmata. Então sele essa ausência de referenciais fixos, essa abertura da mente, com o imutável Darmata. Aqui, Darmata está surgindo como surge também no Surangama Sutra, Tathagatagarbha. Vamos descrever esse aspecto último como Tathagatagarbha e aqui estamos escrevendo como Darmata, nesse ensinamento. Quando a gente vê esse aspecto de Darmata, aí nós vemos Tathagatagarbha, lembramos os estudos de Surangama que vão trazer justamente isso.
Então a gente vai entender como, por exemplo, cada um dos cinco elementos surge. No Surangama, o Buda vai descrever isso muito detalhadamente. Eu nunca vi isso descrito de outro modo mais profundo do que aqui. Como é que a experiência comum dos cinco elementos surge para a mente ampla. De Tathagatagarbha surge o vento. Se a gente for olhar isso, no caminho do ouvinte, fica um pouco estranho. Mas aí você se coloca nessa condição de Darmata, da ausência de qualquer conteúdo. O que Buda vai dizer é assim: “o primeiro conteúdo é o vento”. Ou seja, surge um vento, é como se houvesse um movimento de energia, esse é o primeiro objeto. Do vento surge a terra. Então, quando surge o vento, nós tomamos o vento como referencial. O surgimento de um referencial já é a terra, porque a essência da terra é uma base referencial. Aí surge a terra. Como a terra não é fixa, surge a água. Como o movimento é aflitivo, surge o fogo. O fogo é uma reação ao próprio movimento. No Surangama ele dá essa sequência do surgimento dos elementos. Aí surgem os vários elementos e disso surge o espaço. Então nós temos os cinco elementos que são uma manifestação direta de Tathagatagarbha. Da Natureza Última vão surgindo, desse modo, essas aparências. Na sequência ele vai descrever como nós, observando os elementos, terminamos desenvolvendo a visão, audição, olfato, tato, etc. Vai surgindo isso da observação dos elementos. É como se surgisse a sexta consciência, consciência mental. Ela surge e termina gerando cada um dos órgãos físicos como expressões, como periféricos dela. Enquanto essa consciência mental observa as aparências dos elementos que são ainda elementos mentais, então os cinco elementos são construções da mente. Eles estão lá, mas na medida que vamos observando isso, vamos contemplando esses elementos, os órgãos físicos surgem e o mundo aparente, grosseiro, surge também. Ele mostra isso. Aí, ele vai descrever como, na sequência, brota cada um dos 18 Dhatos, ou seja, brotam as consciências e surgem os órgãos, e surgem os objetos da consciência. Essa parte eu acho super importante! Eu estou aspirando fazer um retiro especificamente do Surangama. Não sei se eu vou conseguir, mas eu estou destinando o início de fevereiro para isso, para tomar essa parte do Surangama como um roteiro de meditação. Vamos fazer aqui no Bacopari essa prática onde a gente vai atravessar isso tudo. Nós olhamos no estudo, mas seria preciso olhar pela meditação.
Quando nós mergulhamos nesse aspecto de Tathagatagarbha e vamos olhando a vacuidade disso tudo e vamos olhando a luminosidade também, nos habilitamos a olhar os aspectos dos ensinamentos de visão, meditação, ação, fruição, abordagem de Garab Dorje.Quando nós tomamos esses ensinamentos, vamos para o texto de Dudjom Rinpoche da Iluminação da Sabedoria Primordial. Neste texto vamos encontrar essa descrição: "O profundo estágio da perfeição envolve direcionar a lança da sua energia e lucidez combinadas exclusivamente ao Hum vermelho no seu coração". Ou seja, estamos praticando Shamata com esse foco, no Hum vermelho. Se pode praticar Shamata de vários modos, mas estamos praticando com essa sugestão. Aí o que acontece: “Demônios, impedimentos, espíritos despeitados e malévolos”, ou seja, todas as aparências que vão surgir como demônios, impedimentos, espíritos despeitados e malévolos, “todos eles nada mais são do que manifestações mentais”. Nós vemos isso como oitava consciência, sétima consciência, sexta consciência, todas essas aparências são isso. Aí ele diz: "Reconheça a mente livre de características", então essa mente livre de características é Darmata, não tem conteúdo dentro. Isso é Darmata, isso está além das oito consciências, está além da oitava, da sétima, da sexta e das cinco consciências sensoriais. “Reconheça a mente livre de características", é como se a gente se voltasse agora e olhasse para dentro. “Vacuidade e luminosidade são o absoluto Dorje Drolo”, vacuidade e luminosidade são o método pelo qual nós olhamos tudo. São a manifestação do Buda Guru Rinpoche na aparência irada. Vacuidade e luminosidade são a essência de Dorje Drolo, que é Guru Rinpoche eliminando a solidez das aparências. "Não o procure em outro lugar", não procure Dorje Drolo em outro lugar, "além desta sabedoria primordial". Dorje Drolo é isso. Isso é a sabedoria primordial, ela não tem intermediários, não tem uma preparação que preciso fazer. Ela não é uma sequência lógica, é simplesmente olhar e ver vacuidade e luminosidade. Não tem alguma outra coisa para lembrar, se vê diretamente. “Essa sabedoria é sem intermediários, é auto surgida, é o grande Senhor Onipresente, tanto do Samsara quanto do Nirvana”. Porque quando nós olhamos o Samsara aqui, isso aparece, ela vence qualquer aparência sólida que as coisas tenham, internas e externas. Isso se refere não só ao Samsara como ao Nirvana, ou seja, o Nirvana também é vacuidade e luminosidade. Guru Rinpoche vai dizer: "Retorne a esse lugar grandioso e primordial de repouso”. “Uma vez que todos os fenômenos com características forem ultrapassados, o glorioso Heruka será manifestado". Heruka é Dorje Drolo. Quando nós olhamos desse modo vamos convergir, desses ensinamentos, para essa compreensão. O que significa que não há conteúdo? O que há dentro? O que manifesta Dorje Drolo? Vamos encontrar essa dimensão primordial. O primeiro aspecto da dimensão primordial é Khadag, ou seja, a vacuidade, não tem conteúdo dentro. Mas essa ausência de conteúdo permite, como vimos no Surangama, o surgimento do vento. Então esse vento é uma manifestação de Tsal, já é luminosidade. Essa vacuidade traz junto a luminosidade. Essa vacuidade começou em algum momento e ela muda? Ela não muda e não surgiu, portanto ela tem a qualidade que vai se descrever como Lundrup. Lundrup significa não nascido. E quando Tsal se move, uma aparência de Tsal é a própria energia, que é Lung. Essa compreensão vem de modo natural. Ou seja, a visão de Khadag, Lundrup, Tsal, Lung brota naturalmente tão pronto isso é contemplado. Isso é Rigpa, a sabedoria primordial, a auto consciência dessa mente primordial. Quando nós usamos Khadag, Lundrup,Tsal, Lung, Rigpa como a posição para olhar as coisas, isso é chamado de Zanthal. Zanthal é uma abertura, não é um fechamento. É uma abertura que penetra o significado das coisas e vamos encontrar nas coisas uma clareza de Khadag, Lundrup, Tsal, Lung, Rigpa. Aqui a gente percebe que isso corresponde à iluminação das aparências. Começamos a olhar as aparências das mentes flutuantes. As cinco consciências, de um a cinco, olhos, ouvidos, nariz, língua e tato e todos os outros periféricos que não estão listados nessas, mas essencialmente isso, são consciências como se fosse uma espuma. Porque surge e cessa, surge e cessa. É como a gente olhar aqui as plantas, elas estão sacudindo. Mais um pouco não tem folha, mais um pouco umas folhas caem e outras surgem. Nunca, nunca, nunca está igual. Isso é espuma, uma espuma incessante e em movimento, nada está igual. Isso é a parte da espuma. Essas são as mentes associadas às experiências sencientes, sensoriais. Aí nós olhamos também que todas elas são vazias, luminosas, têm energia. E esse vazio que vai dando significados e delimitando as aparências é incessante, é Lundrup. Aí eu estou usando Zanthal para olhar isso. Não estou rejeitando, mas estou contemplando o aspecto luminoso e extraordinário de todas essas aparências e mentes. Assim eu olho da primeira à quinta e olho a sexta, a que está pensando, a que está vendo isso. E vejo ela também como a expressão de Rigpa, operando sobre condições. Aí olhamos a sétima consciência da individualidade, do indivíduo separado, construído também. Aí sorrimos e olhamos a oitava que é um conjunto de referenciais e vemos também como uma expressão de Khadag, Lundrup, Tsal, Lung, Rigpa e_ Zanthal_.
A gente vê que os aspectos condicionados tem um aspecto de espuma, mas tem um aspecto de mar profundo também. São as mentes básicas das aparências: que é a sétima e oitava consciências. Porque a gente tem uma sensação de identidade estável e uma sensação de referenciais estáveis, dentro dessa identidade que parece estável, dos referenciais que parecem estáveis. As plantas oscilam, que são a espuma. Tem o mar e tem as espumas. Mas além disso, como nós entendemos Zanthal, tem o céu primordial não dual, que não é uma outra coisa, mas ele abarca todas as aparências. Esse é o céu primordial. Então a purificação efetiva disso é a união desse mar e sua espuma com o próprio céu. O céu primordial não dual. Aqui nós estamos olhando a purificação das oito consciências, nessa perspectiva. Essa purificação vem desse modo. Agora temos a purificação pelas cinco sabedorias que se originam também dessa mente primordial. Poderíamos dizer que são as cinco sabedorias primordiais. Thrangu Rinpoche vai descrever desse modo, são cinco sabedorias primordiais, não é uma, são cinco.
Essa parte nós vamos olhar no período da tarde.
Vou deixar um espaço para alguma pergunta.
Cláudia: Lama, esses pontos para mim são bem novos. Não por acaso que ontem à noite a gente dormiu assistindo um vídeo seu, onde estava falando Khadag, Lundrup, Tsal. Mas eu não guardei exatamente o nome deles. Esses são as cinco sabedorias ou estou confundindo?
Lama: Não são, as cinco sabedorias são a sabedoria do espelho, sabedoria da igualdade, sabedoria discriminativa, sabedoria da causalidade, sabedoria de Darmata.
Cláudia: Então não tem nada a ver com Lundrup, Tsal?
Lama: Elas estão por ali. É que esse aspecto de Lundrup, Tsal, Lung, etc é Zanthal. É uma forma de olhar. Mas o aspecto primordial gera as cinco sabedorias, ou seja, as cinco sabedorias são uma expressão do Buda primordial que é Kuntunzangpo, Samantabhadra. A gente pode imaginar que existe uma consciência livre de todas as aparências, que por sua vez ela sustenta isso. Essa consciência não é nenhuma das oito, ela está livre, ela potencializa o surgimento das oito. Mas não está limitada às oito e não adquire nenhum conteúdo das oito, ela está livre. Ela é o aspecto de liberdade que as oito consciências manifestam, o aspecto de liberdade que as coisas que parecem rígidas manifestam. Se não fosse essa natureza livre, não haveria impermanência. O mundo não é sério, ele é impermanente. Não dá para confiar no mundo. Mas a natureza primordial não é impermanente. Aí surgem as cinco sabedorias que são cinco formas de olhar as circunstâncias desde uma perspectiva livre da mente.
Cláudia: As cinco sabedorias são um pouco de forma de olhar?
Lama: São, são formas lúcidas de olhar, elas vão gerando mandalas específicas. Não perca hoje à tarde as cinco sabedorias!
Bela: Quando a gente fala da mente olhando a mente seria Rigpa olhando a operação da sexta, sétima e oitava consciência?
Lama: É, olhando todas elas, essencialmente isso. Rigpa pode olhar também a si mesma, autoconsciente. Renato agora a Bela é que está fazendo perguntas complicadas. Ela está perigosa. Quando ela vai perguntar eu já tremo aqui.
Guta: Lama, muito obrigada mais uma vez por tudo. Usando uma outra terminologia, pode-se dizer que a mente fundamental é a mente relativa e a mente primordial é a mente absoluta?
Lama: É isso, mas ela não difere uma da outra, não tem uma e a outra, porque a mente fundamental surge de dentro, ela é inseparável da mente primordial, ela seria uma operação ilusória, criada. Caminho do ouvinte.
Guta: Tentando sair da cognição, mas precisamos da cognição para entender, tem que passar por aí. A mente fundamental é o mar de onde saem as espumas e a mente primordial é o céu, é isso?
Lama: É isso.
Guta: Porque até então eu pensava que mar e céu eram analogias para mente primordial, mas não.
Lama: Aqui sou eu que estou usando assim. Às vezes o mar é usado na perspectiva da mente primordial, mas eu prefiro usar o mar na perspectiva da mente fundamental, na analogia da mente fundamental.
Guta: Também pode se ver, só para eu tentar conciliar meus referenciais. Também pode se ver o céu e as nuvens, mas também as nuvens seriam como as espumas que brotam.
Lama: É isso, essa forma de olhar o céu e o mar. Quando a gente olha o mar, o mar se funde com o céu e a espuma é o próprio mar, mas ela é muito impermanente e a gente tem uma sensação de que o mar é sólido e existe, mas ele é todo condicionado também. Quando eu digo o céu na verdade é o espaço e esse espaço não é o espaço comum, aqui a gente estava usando o céu, é uma analogia.
Lela: Lama querido, estou numa emoção profunda de estar fazendo o retiro. É na mesma linha, no sentido de clarear um pouco. Quando a gente escuta a consciência substrato nos retiros do Alan Wallace, na tradução da Jeanne, me vem essa penumbra ainda de confusão. Tanto quando fala da consciência substrato, quando fala de Alaya Vijnana, no sentido desse depósito universal. Eu levo isso para tentar entender a consciência substrato, aí eu fico embananada, porque a mente fundamental é uma construção que faz parte do princípio ativo já que tem vida, do ser vivo. A mente fundamental é desse mar, como o Lama falou da analogia, para terra, para os elementos, para tudo que está organizado, vai gerar as estruturas internas. Mas a consciência substrato, quando o Lama falou, quando você pergunta é ou não é, quem está perguntando? Da consciência que olha a consciência, quando a gente faz o retiro do Alan Wallace, a consciência que olha a consciência, aí começa vir as falas de consciência substrato e aí eu procuro o chão com as coisas que eu aprendo com o Lama, com os ensinamentos e com as traduções também de Alaya Vijnana como esse substrato, mas como esse depósito universal aí eu fico desentendida.
Lama: A mente fundamental e Alaya Vijnana são a mesma coisa. Elas são construídas, são expressão luminosa crescente. Incessantemente crescente que vai se complexando porque os componentes vão se misturando uns aos outros e vão gerando outros componentes. Eles são a essência do Samsara. Mas essa consciência fundamental tem por base o aspecto luminoso da consciência primordial, é a própria consciência primordial, que é Darmakaya. Não tem nada, em nenhum lugar, que não seja Darmakaya. Isso às vezes fica um pouco confuso porque a gente diz que é Darmakaya e daqui a pouco a gente diz que é a consciência fundamental. Mas é que a consciência fundamental é Darmakaya. As coisas são o que são através da consciência fundamental, mas a consciência fundamental é Darmakaya, portanto... Mas não é assim, se eu usar o nome Darmakaya para consciência fundamental não dá certo, a consciência fundamental é uma expressão de Darmakaya no aspecto luminoso. Mas Darmakaya não tem conteúdo enquanto que a consciência fundamental é cheia de conteúdos. Só que esses conteúdos são vazios, são vazios e luminosos. Então, porque eu compreendo esses conteúdos vazios e luminosos da consciência fundamental de Vijnana, eu compreendo que enfim cada elemento ali é o próprio Darmakaya expresso na forma luminosa.
Lela: A consciência substrato nessas oito consciências, ela corresponderia à sétima e oitava no sentido do sutil e do secreto, no sentido também do que já estabilizou, seja para o bem e para o mal, ou não, como é isso?
Lama: Alaya Vijnana, a consciência fundamental, é a oitava consciência, a sétima é uma construção da oitava, a partir da oitava. Elas são todas inseparáveis, existe uma não dualidade e uma não separatividade, mas quando estamos trabalhando esses conceitos eles têm essa separação.
Lela: E a consciência substrato, pelo menos como é assim falado nos retiros no Alan Wallace?
Lama: É Alaya Vijnana, é a oitava consciência.
Lela: Porque a nossa experiência quando meditamos, como ela é contaminada ainda, é uma experiência ainda com camadas de espaço, também vai até onde o horizonte alcança, de espaço, mas para além de onde o horizonte alcança a gente não está liberado nem iluminado ainda para ter essa experiência, não é?
Lama: A experiência última está sempre junto com qualquer experiência comum, ela é o aspecto vazio e luminoso de cada experiência comum. Essa compreensão do aspecto vazio e luminoso é Dorje Drolo.
Tamara: Oi Lama ou gente, tudo bom? Obrigada pelos ensinamentos. Vou fazer uma pergunta sobre uma dificuldade que eu tenho. Vamos ver se você consegue me ajudar um pouquinho. Eu tenho bastante dificuldade de compreender ou de aceitar a necessidade de a gente ter que superar o desejo e o apego para atingir a iluminação. Porque assim, eu tenho uma visão que eu acho que está errada, mas é a visão que eu tenho. Acho que eles são necessários no caminho porque o desejo gera motivação e o apego gera determinação, que gera continuidade para a gente seguir. Depois que eu fiquei ouvindo ontem, eu acho que isso pode ter a ver com a minha sexta consciência, a mente, que avalia alguns desejos e apegos como favoráveis, e isso tem a ver com as bases da minha memória que deve ser a oitava consciência. Assim, eu acho que isso me prende em uma identidade que eu acho que é a sétima consciência, não sei se eu entendi direito. Eu vejo que não devo me fixar em nada, mas eu preciso dessa motivação e nessa determinação para seguir, porque senão eu me perco nessa liberdade. Aí eu não sei como fazer diferente.
Lama: Você seria Taurina ou Capricorniana talvez? Os aquarianos não têm esse sofrimento. Está certo isto que tu estás falando. O Dorje Drolo não corta, ele ilumina. Então desejo e apego não são problema. Aí tu olhas para o desejo e apego e vais reconhecer vacuidade e luminosidade, isso é iluminar desejo e apego. Esse é o ponto. O que achou disso?
Tamara: Teve uma vez que eu te perguntei, o ano passado, sobre o apego. Aí você falou que se a gente olhasse para o apego como apego, ele diminuía o poder dele. Aí eu fiquei com isso na cabeça e fiquei olhando. Antes eu não percebia que eu era apegada, agora consigo perceber isso, mas continuo sofrendo com o apego. Olho ele e ele continua lá, ele não saiu de lá. Continuo tendo carência, saudade, medo de perder, essas coisas todas. Não resolveu, porque acho que não entendi ele direito.
Lama: Tu e o Samsara inteiro. Eu acho super oportuno tu falares sobre isso, super bom. Mas esse é o ponto. Tu não rejeitas, mas percebes o aspecto luminoso da natureza que constrói desejo e apego, que é a base do funcionamento de desejo e apego. Por exemplo, não sei se já percebeu que, às vezes, o foco do desejo e apego muda. Se tu deres uma solidez a desejo e apego, esse desejo e apego não é suficientemente sério, porque ele muda. Por vezes a intensidade dele muda. Então esse desejo e apego não é muito confiável. Mas aí tu começas a ver que as qualidades do desejo e apego tem a vacuidade e tem luminosidade. Então a forma como surgir desejo e apego para ti, não precisas te fixar naquela forma específica, porque não tem como fixar. Se te fixares, vais ter o sofrimento correspondente, porque aquilo flutua e vais sofrer. Se o teu desejo e apego flutuar e tiveres um voto para mantê-lo, vais sofrer. Se quiseres abandonar desejo e apego e ele estiver operando, vais sofrer também. Mas se compreenderes como ele vem e cada vez que ele aparece tu vês a natureza livre e luminosa dele, então estás utilizando ele para reconhecer a natureza de todas as coisas, não apenas desejo e apego. Aí estás tomando desejo e apego como caminho. Mas caminho é caminho, não é o ponto final. Então se te fixares ao caminho não ultrapassas o caminho. Estás sempre no caminho, nunca chega. O caminho não deve se tornar uma existência em si mesmo, ele é um meio expedito pelo qual avança. Aí tem um momento de abandonar o caminho que é quando a clareza se torna o ponto. A gente poderia dizer: “Bom, nesse caso eu abandono tudo”. Não, não abandona, nesse caso tu tens a capacidade de atravessar as coisas e andar pelo meio das coisas como os budas andaram. Quando a gente diz: “Abandone o desejo e apego”, a pessoa não consegue fazer isso. Se a pessoa fizer, ela criou uma outra coisa, ela criou um outro desejo e apego mais firme que os desejos e apegos anteriores. Ela precisa é liberar, ela precisa é reconhecer, aproveitar todo tipo de aparência como meio. Agora, por outro lado, se nós tomamos desejo e apego e não temos a capacidade de olhar, ele vai nos arrastar para todo lado. Então os ensinamentos do Buda com respeito aos Bhikkhus, aos Monges é não seguir desejo e apego. Mas isso é uma artificialidade. Eles constroem existências artificiais, porque aquilo pode ser interessante. Existem vários caminhos: tem o caminho dos Bhikkhus, dos Monges, tem o caminho dos leigos também. De modo geral os leigos não abandonam desejo e apego. Na verdade, cada pessoa no seu lugar, o seu caminho é tudo aquilo que aparece ilusoriamente na sua frente. São todas as aparências como elas vierem, sejam elas aparentemente sólidas ou não. Aquilo é o caminho da pessoa, ela inevitavelmente vai ter que cruzar por ali. Seja onde for, em Joinville também. Tá bom Tamara. Obrigado por enquanto.
Juceli: Lama, eu tenho três pontos que gostaria de fazer uma relação, quem sabe o senhor pudesse me ajudar. Eu estou tentando me desapegar dos meus desejos e apegos, nas coisas que eu ouvi tanto tempo, que eu li. Tentando, como dizem os surfistas, dropar essa onda de coisas e aparências. Uma é assim: Umberto Eco em uma palestra, e foi um referencial para mim durante bastante tempo, faz análise de textos e das coisas que estão envolvidas e fala da importância do leitor. Que toda leitura vai depender da bagagem e da biblioteca que se traz. Com essa ideia, eu tenho tentado ver o meu desejo e apego às coisas que eu experimentei e eu vivi. Estudei bastante tempo sobre cinestesia. Então quando o Lama fala das aparências, me vem isso, porque além desse repertório da leitura também existe um repertório da forma como a pessoa observa as aparências e que é da sua própria natureza e muitas vezes a cultura, a educação, começa a formatar isso. Um exemplo seria dizer para todas as crianças que árvore tem que ser tronco marrom e a copa verde. Acho que todo mundo passou por aí. No entanto tem crianças que um verde é mais amarelo, outras que é mais azulado. O tronco, às vezes, a árvore descasca. Então como identificar esse movimento, que é até uma coisa luminosa da pessoa, a forma de ver. Da mesma forma que o Lama fez uma referência que a flor faz a primavera, tem muitas pessoas que acham que é alucinação. Por exemplo, tu se dá conta, algumas coisas que eu vi. Tem pessoas que sempre viram, desde sempre, que todas as vogais são coloridas. Por exemplo, veem em cor vermelha. Os números também parecem coloridos e isso é cortado e elas achavam engraçado, pensavam que todos via colorido. Então como é que a gente pode ajustar isso que o Lama está falando com isso que eu tenho de bagagem? Quando ouço os ensinamentos e leio o Surangama, acho que são habilidades isso das pessoas e nem se dão conta, sempre foi considerado errado.
Lama: Acho que isso está dentro da variação que as pessoas podem ter a partir da mente fundamental. Ou seja, elas em diferentes conteúdos de referenciais, que elas também não localizam dentro delas, aquilo brota de modo automático. Aí surgem as aparências diretamente como se fossem vindas de olhos, ouvidos. Elas olham as aparências assim, aquilo surge para elas diretamente. Então as aparências, num certo sentido, todas elas são um tanto psicóticas. Elas são manifestações desse tipo assim, elas podem mudar. Vamos percebendo que mudam referenciais que a gente não sabia que existiam e as aparências mudam. Acho que, no caso das relações, fica muito fácil ver isso, porque às vezes os amores se transformam em ódios, os ódios podem se transformar em amizades e aquilo vai girando. Aparentemente, se a gente olhar em fotos, é a mesma coisa. O aspecto mais incrível é que a foto também muda, quando a gente olha uma pessoa em uma época, a foto é de um jeito e daqui a pouco a foto mudou. É muito incrível! Então a foto é um espelho que reflete esse conjunto de referenciais que a gente tem em algum lugar.
Juceli: Então eu consideraria isso ligado diretamente…
Lama: A sétima e oitava consciência, e a sexta que é a que vê, mas ela toma por base a sétima e a oitava.
Juceli: Então o aspecto da pessoa ter uma habilidade cinestésica, o que falta é consciência disso, que ela entra dentro de um padrão de educação que não poderia fazer assim. Às vezes tem outras habilidades, ver em cor diferente etc. e tal. Poderia considerar isso?
Lama: Com certeza.
Juceli: Outra coisa Lama. De vez em quando me surgem alguns termos para entender algumas coisas, contemplar as coisas. E nesses períodos que nós estamos acompanhando o Surangama, me vem um termo que é até da física, análise transiente. Seria possível se aplicar o que a gente observa no texto do Surangama? Por causa da energia que transita de um lugar para outro.
Lama: Não sei, porque a física de um modo geral vai trabalhar com noções separativas, aí aquilo fica um pouco difícil.
Juceli: O termo que eu havia aplicado, análise transiente, quando eu busquei uma explicação, porque para mim ele parece que passa de um aspecto de energia que se manifesta para outra como aparências. E só achei esse termo dentro de física, se distanciar, fazer uso desse termo para isso…
Lama: Eu teria que olhar, porque transiente é alguma coisa que está passando, seria um exemplo de impermanência, mas a física não trabalha com a noção de impermanência, ela vai considerar que tem coisas fixas e tem coisas transientes. Já no budismo todas as coisas são impermanentes.
Juceli: Quando se está fazendo uma análise poderia considerar isso, que seja uma coisa descartável depois?
Lama: Acho que sim, pode tomar esse termo transiente num sentido mais amplo, explicar ele numa forma mais ampla. Eu acho que é possível sim.
Juceli: No sentido de estar com uma energia mais ligada a algum aspecto e se observa, se dá conta disso e usar isso como uma ferramenta para depois…
Lama: Acho que pode usar sim.
Juceli: Gratidão Lama, muito obrigada.
Lama: Obrigada também.
Dedicação
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Sessão #5 - Tarde I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
Lama Padma Samten
CEBB Bacopari, transmissão online 14/11/2021
Transcrição: Kelly Pazello
Revisão: Mônica Kaseker
Nós estamos olhando a parte da purificação das oito consciências. Hoje eu passeei por várias linguagens. Na verdade, nós estamos passeando por linguagens agora. Enquanto a gente passeia por dentro de linguagens, vai aprofundando os significados das coisas. Mas o meu objetivo não é propriamente esse aspecto, que está mais ligado ao caminho do ouvinte. A gente começa a comparar uma coisa com a outra: "Eu lembro que aqui foi falado disso e agora lá foi falado não sei bem do quê". Isso é essencialmente o caminho do ouvinte. Para nós o ponto central é conseguir escapar do caminho do ouvinte e conseguir meditar, experimentar essas várias coisas. Esse é o ponto!
Aqui nós estamos trabalhando as oito consciências. Quando olhamos as oito consciências, acho que seria bem adequado a gente tentar entender isso funcionando dentro de nós. Esse seria o objetivo. Aí a gente tem aquela linguagem que pode ser útil. Tem várias linguagens paralelas. Elas também dialogam entre si. Esse é um ponto interessante... Eu vim trazendo aqui, um pouco, a partir das oito consciências, como podemos olhar o Prajnaparamita em oito pontos especialmente, que a gente olhou com mais detalhe hoje. Meio rápido, mas com um pouco mais de detalhe. E eu mencionei também a visão do Surangama, onde os elementos convergem para Tathagatagarbha, os cinco órgãos físicos, os objetos, etc. Tudo isso são os dezoito Dhathus. Eles convergem para Tathagatagarbha. E Tathagatagarbha aqui é visto como a origem de tudo. O aspecto primordial não dual, a origem de tudo.
Quando a gente olha, por exemplo, dentro do texto do Prajnaparamita, vai encontrar isso também. Porque está lá o _Prajnaparamita _tratando dos cinco skandas: forma, sensação, percepção, formação mental e consciência. Depois ele vai tratando, também, de todas as aparências, todos os darmas. Ele vai tratando de tudo que diz respeito aos olhos, ouvidos, nariz, língua, tato. Nada disso existe dentro da grande vacuidade. Na vacuidade não há essas várias coisas. Então, a vacuidade vai se fundindo, ela é uma outra linguagem, mas ela se funde com uma noção de Tathagatagarbha também. Ela vai se fundir com a noção de Tatata. Vai se fundir com a noção de Darmadatu, a noção de Darmata e _Darmakaya. _Todas elas têm superposições. Elas vêm de visões um pouco diferentes.
Então nós, refletindo sobre a realidade, vamos encontrando essas várias palavras. Isso termina sendo citado. O Buda falando isso em diferentes momentos. Então essas palavras vão surgindo. E também essas palavras vão surgindo de Guru Rinpoche ou de outros grandes mestres. Eles vão trazendo essas palavras que são formas de explicar. Se vocês olharem, por exemplo, Guru Rinpoche vem no Século IX. Isso é mais ou menos quinze séculos depois do próprio Buda Sakyamuni. É uma coisa muito longe. Então nós estamos mais perto de Guru Rinpoche, do que Guru Rinpoche estava, no tempo, em relação ao Buda Sakyamuni. E são outras regiões, outras culturas. As palavras são sempre utilizadas para ajudar as pessoas, naquele contexto, a entenderem e a praticarem. Então, as palavras vão mudando um pouco. No tempo em que nós estamos vivendo, nós acessamos o Darma com diferentes origens. É natural que a gente vá encontrando diferentes palavras. Por exemplo, Tatata, Tathagatagarbha são palavras que são usadas no Mahayana. Do mesmo modo, vocês vão encontrar Darmadatu, também que vem de dentro do Mahayana. Depois eu vou passar com um pouquinho mais de cuidado essas várias palavras. Mas aqui eu estou trazendo isso apenas para justificar esse aspecto que a gente estava abordando hoje de manhã, que é a purificação das oito consciências, que essencialmente são a mente deludida, através de vários ensinamentos que mergulham naquilo que ultrapassa as oito consciências.
Essencialmente, esses ensinamentos vão sempre convergir, de algum modo, na iluminação das oito consciências. Ou seja, como as oito consciências vão sendo reconhecidas como uma manifestação da natureza primordial. Essencialmente é isso. Nunca é, por exemplo, o abandono do engano ou da mente deludida como se fosse alguma coisa negativa que eu empurro para algum lugar. Isso é uma característica central no Budismo. Não há esse aspecto dual, onde nós vamos empurrar uma aparência como se fosse maligna. A questão toda é sempre iluminar a aparência ou a experiência, do jeito que ela vem. Ela é olhada com muita profundidade, até o ponto que nós descobrimos que ela surge como um processo delusivo. A palavra para isso no Surangama, em chinês, é "miau". A gente viu que é “assombroso”. Então essa é a palavra que vamos usar.
Esse aspecto assombroso é sempre a união de vários referenciais que se fundem numa outra visão, numa visão a partir da luminosidade. Então algo é construído. Quando nós tomamos vários referenciais e construímos uma coisa adiante, isso é sempre essa manifestação luminosa da mente. Isso também pode ser chamado de delusão. A delusão não é necessariamente negativa, mas um processo de construção. Essa construção é uma construção sutil. E nós terminamos vendo tudo que a gente possa apontar, em qualquer direção, como uma construção sutil. E essa construção sutil aparece como se ela fosse grosseira, na nossa frente. E a gente vai estudando as aparências grosseiras que são chamadas de darmas. Vamos estudando as aparências grosseiras e vamos reconhecendo que elas são sutis, surgidas sempre da luminosidade da mente. Ou, eventualmente, nós vamos dizer que é surgida diretamente da vacuidade. Por exemplo: forma é vazio, vazio é forma. No Prajnaparamita, não vamos falar em luminosidade, falamos no vazio. O vazio constrói.
Já na abordagem da Grande Perfeição, nós encontraremos várias expressões para essas funções do próprio vazio. Tudo se reduz, tudo converge para Khadag, isso, em tibetano, é a grande vacuidade. Tudo converge para uma grande vacuidade. Nada escapa dessa compreensão da grande vacuidade. Porém, da grande vacuidade, surge o Samsara inteiro. A compreensão de como, da grande vacuidade, surge o Samsara inteiro, é um ponto crucial. De tal modo que, depois, nós podemos olhar o Samsara inteiro, e sempre reconhecer a grande vacuidade em tudo. A gente vai compreendendo isso. Aí, eventualmente, a gente não fala mais em grande vacuidade, mas fala em Darmadatu, ou fala em Tatata, fala em Tathagatagarbha, fala em Darmata, ou Natureza Primordial. Vamos olhando desse modo.
A purificação das oito consciências vai ser, também, com a purificação seja do que for, a purificação no sentido do reconhecimento das oito consciências, como uma expressão direta da natureza última. Então, aqui, isso é o que podemos expressar com palavras, de fato. Mas, para nós, é crucial esse processo no qual a gente medita sobre isso. Como os ensinamentos de meditação de Dudjom Rinpoche, que estão descritos na "Iluminação da Sabedoria Primordial", que é um eixo compacto. Todo o nosso esforço, por dentro dos vários textos e vários ensinamentos, é sempre converter uma visão, na prática correspondente. À clareza com respeito àquilo.
Também, uma das características inerentes desses ensinamentos é a compreensão de que aquilo que a gente busca entender, ou seja, o aspecto último, já está presente. É uma questão de ver como isso está presente. Mas isso está presente! Em várias imagens que são usadas, por exemplo, uma delas se diz que a manteiga já está dentro do leite. Se diz também que é como uma joia que está na roupa de um mendigo. Então o mendigo tem tudo já, mas ele se vê carente. Mas ele tem essa joia preciosa. Isso é, às vezes, colocado desse modo também. Tem muitas formas de descrever, que os mestres vão usando e trazendo como exemplo.
Eu vou, agora, trazer esse argumento que vem por dentro do Vajrayana, que se relaciona aos cinco Diani Budas e também às cinco sabedorias. Aí tem as quatro dimensões, as quatro direções, tem os vários skandas. Todos eles relacionados aos cinco Diani Budas. De modo geral, eu tento escapar um pouco disso. Mas esses elementos existem nos ensinamentos, então a gente traz. Eu vou inicialmente explicar porque eu tento escapar disso. A primeira razão é assim: por exemplo, quando nós olhamos as cinco sabedorias, é óbvio que as cinco sabedorias são uma manifestação do aspecto primordial. Nós temos um único aspecto primordial. Então ele termina se manifestando de acordo com os seres e com as necessidades, como as múltiplas sabedorias. Então está bem. Mas eu não fico aqui explorando, isso aqui é desta e não daquela. Por quê? Porque é óbvio que a mente lúcida não vai separar isso. Então não tem essa separação de fato. Nos próprios ensinamentos nós vamos encontrar que a sabedoria de Darmata, por exemplo, do Buda Vairocana, ou sabedoria de Darmadatu, ela é a unificação das quatro outras sabedorias. Ela é o conjunto das sabedorias. Então, tudo bem. Primeiro eu divido, depois eu junto. É assim, o próprio ensinamento vai assim. Mas eu acho bom. Tudo bem! Mas aí nós vamos tomar, por exemplo, que cada Diani Buda está associado à purificação de um skanda. Eu acho bom isso também. Mas quando olho os skandas, eu também não divido. Vou dizer: forma, sensação, percepção, formação mental e consciência, não se consegue dividir isso. A forma surge associada à sensação, à percepção, à formação mental e à consciência. Como é que eu vou dividir isso? Então esses vários aspectos também estão unidos. Mas tudo bem. Aí nós separamos, porque quando eu falo de forma é como se eu colocasse uma ênfase em algum aspecto. Mas se nós focamos forma de modo suficientemente profundo, vamos encontrar sensação, percepção, formação mental e consciência. É óbvio! Então eu prefiro tratar isso de modo conjunto. Mas tudo bem, a literatura vai dividindo, depois ela vai unindo de novo. Então está bem.
A multiplicidade das coisas é Darmadatu, é a vacuidade? Então a multiplicidade dos skandas é a vacuidade também. É óbvio! Então quando eu estou tratando com diversidade, estou distinguindo aquilo, é uma distinção que pertence ao mundo ilusório, delusivo. Mas aí tudo bem. Quando nós olhamos as direções, por exemplo, Norte, Sul, Leste, Oeste, acima e abaixo e as intermediárias. Isso é pura delusão, pessoal! Mas aí tudo bem... A gente coloca um Buda para cada direção. Mas não há um sentido maior nisso. Quando nós começamos a dar um sentido para isso, esses sentidos são sempre convencionais. Então agora nós estamos entrando nessa área, onde tem vários sentidos convencionais.
Aí tem as cores correspondentes. Todas as cores são ilusórias, isso não tem a menor dúvida. O Prajnaparamita vai olhar isso, o SurangamaSutra vai olhar isso... Todas as cores são expressões delusivas e luminosas. Mas tudo bem. Aí eu considero que as cores também têm relação com os vários Diani Budas. Os Diani Budas correspondem a visões completamente puras, primordiais. Portanto, eles não têm uma aparência antropomórfica. Mas se eu colocar eles com uma aparência antropomórfica, está bem, também. Eu não vou brigar com isso. Mas vamos pensar: as múltiplas sabedorias liberam os seres de todos os tipos, em todas as direções. Elas não estão nem ligadas especificamente a seres humanos. As sabedorias são totalmente transcendentes. Mas eu posso considerar que, enfim, os Budas, cada um tem uma posição de mão, tem um mudra correspondente, aquilo significa alguma coisa... Então eu estou entrando nesse mundo que é um mundo simbólico. Se eu entrar com a mente do caminho do ouvinte nisso, aí eu vou delirar, porque aí nós vamos olhando: "Agora tem esse, tem aquele, mas isso aqui é um pouco diferente daquilo, um falou dessa cor, aquela é mais vermelha, menos vermelha, mais amarela". Aí aquilo vai ficar assim... Mas esse âmbito existe também no Budismo, esse âmbito simbólico, onde todas as coisas são apresentadas desse modo. Eu prefiro penetrar nisso e olhar as experiências correspondentes que vão sendo distinguidas a partir dos vários símbolos. Isso é mais útil para nós. Então eu vou entrar nessa área comentando desse modo.
Eu vou usar por base um texto de Thrangu Rinpoche, que trata das cinco famílias búdicas e das oito consciências. Então se vocês colocarem em busca no Google vocês vão encontrar isso facilmente. Eu estou usando o texto em inglês: As cinco famílias búdicas e as oito consciências. Eu vou utilizar o capítulo 3 disso. Tem dois livros de Thrangu Rinpoche que tratam disso. Eles são bem semelhantes. Thrangu Rinpoche vai começar explicando que as cinco sabedorias vão purificar totalmente as oito consciências. Esse é o ponto! As cinco sabedorias se relacionam com as oito consciências desse modo. Elas vão purificar totalmente. Assim, as cinco famílias búdicas, os cinco Diani Budas são completamente entendidos só quando as oito consciências se tornam purificadas. Quando nós começamos a desenvolver a compreensão das cinco sabedorias, as oito consciências ficam purificadas, ficam clarificadas no que elas são e como que elas surgem e como que isso acontece. Então esse é o primeiro ponto.
Sabedoria do Espelho
Aí ele começa a descrever as consciências associadas aos Diani Budas e como que aquilo acontece. Então ele vai dizer que a oitava consciência é liberada através da sabedoria do espelho. Esse é um ponto superimportante, isso que ele está dizendo! Aqui é alguma coisa que a gente deveria parar agora e olhar. Como que a sabedoria do espelho ocorre? E o que é a oitava consciência? Quando nós penetramos na sabedoria do espelho, a gente pode começar com um exemplo, também. Então nós temos, vamos supor, uma fotografia. Quando nós olhamos a fotografia, podemos perceber que a fotografia muda ao longo do tempo. Na fotografia eu tenho só toner e papel, mas eu vejo uma imagem e tenho emoções, na relação com essa imagem. Esse é um aspecto que me permite ver que a foto reflete condicionamentos que estão implícitos em mim, que surgem como a imagem que eu simplesmente vejo. Isso é parecido com o exemplo que eu estava trazendo hoje, de nós vermos o sol se levantando. Quando nós vemos o sol se levantando, temos, implicitamente, a noção de que a Terra é estável. Nós não temos a sensação de que nós estamos num planeta redondo e que isso gira. Esse ponto é tão profundo, tão profundo, que agora mais recentemente as pessoas começaram a achar que a terra estava plana e que o sol é que girava (risos). Aí tem algumas discussões importantes. As pessoas estavam um pouco revoltadas que nas escolas estavam ensinando que a Terra é redonda. Isso é considerado um equívoco! Então, de vez em quando, a gente tem esse tipo de situação. Pode acontecer! Mas para nós, a gente olha assim e a gente vê: a Terra parece estável. Aí o sol se levanta. Não é alguma coisa que a gente raciocine: “Deixe eu ver... O que eu estou vendo? O sol está levantando! Eu estou vendo o sol se levantar". Não vemos isso. A gente simplesmente vê o sol se levantar, e pronto! É assim. No S_amsara_ nós simplesmente vemos as coisas, de modo direto. Mas as coisas são um espelho que reflete o conjunto de referenciais que eu estou operando. Isso vai nos permitir, por exemplo, entender que as aparências são espelhos. Eu posso também usar o próprio espelho. Quando nós usamos um espelho e olhamos dentro do espelho, encontramos imagens. Essas imagens parecem que são alguma coisa dentro do espelho. Então essas imagens dentro do espelho surgem também, aqui podemos explicar, como não de algo a que a gente poderia atribuir realidade, mas elas surgem de um conjunto de referenciais internos que eu tenho e que dá sentido à luz que brota, e nós vemos seres aí. É assim! E isso é totalmente automático.
Essa é uma outra forma de falar sobre o espelho enquanto realidade, e nos ajudar a intuir o que seria a sabedoria do espelho. Quando nós aprofundamos a sabedoria do espelho, reconhecemos que os outros seres olham as realidades segundo os conteúdos que eles manifestam internamente, naquele momento. As imagens que surgem para os seres dependem dos referenciais que estão sendo utilizados. Só que esses referenciais não aparecem como referenciais lógicos, discursivos. Eles são referenciais que operam por dentro de olhos, ouvidos, nariz, língua, tato e a sexta consciência, que é a mente. Elas operam de um modo totalmente automático. Assim, quando nós olhamos os seres, a gente entende como que eles estão operando. A sabedoria do espelho me permite acessar a forma como os outros seres estão olhando. Então o Buda vai desenvolver a qualidade de onisciência a partir da sabedoria do espelho. Ele vai entender os seres, vai entender as plantas, vai entender tudo, por todo lado. Naturalmente, isso não é discursivo. Isso é a experiência dele. E se nós vamos meditar na sabedoria do espelho, a gente deveria também acessar isso na experiência em todas as direções. Aí nós perguntamos: Mas de onde vem essa capacidade de ver referenciais de um tipo, de outro tipo, outro tipo, e todos eles manifestando diferentes experiências de realidade? Como que os diferentes conjuntos de referenciais, em diferentes seres produzem diferentes realidades? E como que nós podemos ver aquilo, naquele lugar? Só conseguimos ver o outro, no lugar do outro, se a gente abandonou a fixação aos próprios referenciais, senão não conseguimos ver o outro no lugar do outro.
Então, a operação lúcida da mente, além dos referenciais construídos, que é a oitava consciência, isso é a Natureza Primordial. Isso é a sabedoria primordial. Então a sabedoria primordial do Buda permite o surgimento da sabedoria do espelho, que é uma forma específica de ação em meio às circunstâncias, que reconhece a forma dos seres operarem a mente. Então, a oitava consciência é Alaya, é Alaya Vijnana. Quando nós penetramos e desenvolvemos a sabedoria do espelho, Alaya Vijnana fica completamente claro. A operação da oitava consciência fica completamente clara: ela é a base luminosa a partir da qual as construções das múltiplas aparências são feitas. Então, junto com a sabedoria do espelho, surge a clarificação e a purificação da oitava consciência. A purificação da oitava consciência é o que, então? É o reconhecimento de que o conteúdo da oitava consciência é luminoso. Aí quando nós olhamos dentro, a gente vê que aquilo não é como os cientistas diriam, que existe a tabela periódica dos elementos. Não é isso. A oitava consciência é um conjunto de referenciais em constante expansão, todos eles luminosos, construídos luminosamente. Então a sabedoria primordial me permite ver, olhar dentro desses referenciais que nós estamos utilizando, e ver que eles não têm uma substancialidade, uma separatividade, não têm uma existência em si mesmos. Então, Alaya é visto como a manifestação transitória, luminosa, da natureza da própria vacuidade e luminosidade. Com isso, a oitava consciência, que é Alaya, ou Alaya Vijnana, é purificada. Purificada no sentido de que ela é vista como surgindo da Natureza Primordial. Esse olhar, que tem essa capacidade penetrante, desse modo, é atribuído ao Buda Akshobhya. A cor correspondente é a cor azul, porque esse azul vem do céu. Ele é simbolizado desse modo. Então o azul é o espaço. Porque há essa clareza com respeito ao espaço, o espelho é o próprio espaço. Do mesmo modo que o espelho não fica preso, não adere às imagens que ele oferece, o espaço também não adere às imagens. Então o espelho é um exemplo acabado dessa natureza última, que é o espaço, a partir do qual nós vemos os conteúdos que surgem dentro do espelho como marcas, que servem de apoio e, através da originação dependente, eles produzem outras aparências. Isso é a realização do Buda Akshobhya.
Quando as pessoas morrem...Aí começa assim, a gente começa a olhar: como eu poderia usar a sabedoria do Buda Akshobhya? Quando as pessoas morrem nós podemos fazer uma acumulação das práticas do Buda Akshobhya. Por quê? Porque essas regiões de Alaya Vijnana se preservam depois da morte. A oitava consciência é a base da sétima, que é a individualidade. Nós temos roteiros dentro da oitava consciência que dão origem à sétima consciência. Então os seres, ainda que eles não existam de fato, eles estão em constante mutação. Eles são como espumas. Quando essa espuma se dissolve no aspecto grosseiro, ainda assim tem as marcas mentais, tem os lugares, a sensação de espacialidade. Então é natural que, se a gente viveu uma vida de um certo tipo, vamos supor, as pessoas são monges e tem os templos e tudo. Elas vão sonhar dentro daquilo. Elas vão sonhar nesses espaços. Por vezes, quando isso fica completamente claro, a pessoa vai começar a relembrar as vidas passadas, porque ela não pensa que as imagens que vêm na sua mente são imagens gratuitas. Elas são imagens que denotam conjuntos ou regiões de Alaya Vijnana, que estão claras e a partir daquilo, então aquilo pode aparecer. Então as vidas anteriores começam a ser vistas.
Num certo sentido, quando o Buda olha em todas as direções e vê os seres todos e consegue reconhecer tudo, significa que ele consegue iluminar todas as vidas anteriores. Porque o conjunto de referenciais que nos permite atribuir significado às coisas que nós estamos vivendo, foram gerados e nós temos essa conexão há muito tempo. É espantoso que quando nós nascemos, abrimos os olhos e começamos a dar sentido às coisas. Isso só vem porque nós já temos um conjunto de referenciais que nos permite olhar para a mamãe, olhar para as coisas. Olhar para o papai e chorar. Olhar para a mamãe e sorrir. É uma coisa meio assim (risos). A gente olha para o irmão e já faz uma cara feia: "Você de novo aqui!". Aí essas marcas mentais todas vem vindo. É meio espantoso que a gente vê um filme e atribui significado àquilo tudo. Nós estamos lembrando as marcas mentais. Está tudo funcionando através das marcas mentais. Se a gente pensar: como que isso me aflige? Como que eu gosto disso? Como é que é isso? Aí nós vamos encontrando essas marcas. Essas marcas dizem respeito sempre a vidas anteriores. Aí essas linguagens todas vão se misturando. Então, quando as pessoas morrem, por exemplo, as regiões dos referenciais, as regiões de Alaya Vijnana onde a pessoa andou passeando, elas seguem. Por isso, muito cuidado onde a gente anda passeando, porque aquilo vai aparecer. Aquilo vai nos assombrar! Esse aspecto de assombrar, essa palavra, eu acho uma boa palavra. Porque aquilo a gente poderia dizer que é uma sombra na relação com a nossa luz. Então, assombra porque aquilo vem e aqueles significados nos arrastam. Essa é uma expressão interessante! Então, a sabedoria do espelho clarifica a oitava consciência. Hô! Clarificou a oitava está tudo meio resolvido.
Sabedoria da Igualdade
Aí vem a sabedoria da equanimidade. A sabedoria da equanimidade vai lidar diretamente com a noção de identidade. Se a gente entendeu a oitava consciência, quando nós olhamos os outros seres, vamos dizer: "Bah! É tudo igualzinho a mim. É isso mesmo!". Aí tem essa sílaba budista assim: "bah" (risos). Também vale "uau" ou "vixe". É tudo igual! (risos). Aí a pessoa olha e é o outro igualzinho, ele só está fazendo aquilo um pouco diferente porque ele está pegando outros referenciais. O outro também. Aí vem a sabedoria da igualdade. Nós olhamos os outros seres, não apenas os seres humanos e: "vixe, é tudo igual!". Eles estão fazendo a mesma coisa. Eu aqui vejo um pombinho se encostando no outro, no topo de um poste. É tudo igual. É muito bonitinho isso. Tu jogas milho para os pombos e vem um pombão e vai empurrando os outros, ele quer comer sozinho e vai empurrando os outros. Aí os outros esvoaçam. Depois eles voltam. É assim. Aí começa o bulling. É tudo igual, pessoal! É tudo igual. Eu digo: “aquele pombão eu conheço, uns seres humanos iguaizinhos” (risos). É muito interessante, muito bonito. A gente também não vê uma pombinha empurrando os outros pombões. Não vê. Só os pombões empurrando as pombinhas. É uma vergonha isso. Como? É tudo muito igual. Aí vem outros que vem por fora. Vão lá, ciscam e vão embora, não querem conversa com o grupo. É interessante assim.
Então isso é a sabedoria da igualdade. Nós vamos olhando os seres. Aquilo é muito parecido. Desse modo, quando nós olhamos a nossa própria identidade, que está ligada, portanto, à sétima consciência, vemos ela surgindo. Quando a gente vê a nossa consciência surgindo, entendemos que essa consciência, ligada a uma identidade, termina gerando essa situação, como a dos pombos. Empurrando uns aos outros, porque é como se a pessoa se colocasse num lugar especial. Mas quando a pessoa começa a ver como é que surge esse aspecto especial, como é que surge a preponderância de um eu na relação com os outros: eu tenho mais direitos que os outros, eu me interesso mais por mim do que pelos outros, aquilo que brotar por dentro de mim está valendo. Isso politicamente tem aparências, não sei se vocês já notaram isso. A sétima consciência poderia virar um partido político ou um movimento político da sétima consciência: "Eu primeiro!" "Meu país primeiro!", "Minha região primeiro!" Alguma coisa assim. Aí surge agressão, surge inveja e surge orgulho. Surgem esses obstáculos. Isso conduz naturalmente à agressão e à raiva.
E na medida em que nós vamos encontrando esse tipo de visão, essa fixação num eu - vocês vejam que isso o Buda falou há muito tempo, não pensem que eu estou aqui agora porque as eleições estão se aproximando, que estou falando nesse tipo de coisa. Não! Não é nada disso! Isso aqui é o Buda. Eu fora... É assim. Mas está aí o resultado, pessoal - aí começa a haver agressão, raiva, rancor, ódio, essas coisas todas. Isso dá a maior confusão. Aí nós começamos a olhar que os outros não são tão legais quanto nós, nós somos melhores do que eles. Aí começa a haver essas questões todas ligadas a gênero, raça e nacionalidade. Começa a haver todo o tipo de problema. Tudo isso vem da sétima consciência. Então a gente precisaria que o Buda chegasse urgente aí na sétima consciência e desse uma ajeitada.
Então, a sétima consciência é purificada pela sabedoria da igualdade, que é o Buda Ratnasamhbava. O Buda Ratnasambhava é interessante, porque essa igualdade nos permite um tipo de riqueza. Eu lembro do Chagdud Rinpoche explicando isso. Ele disse, por exemplo, que se nós só nos alegramos com aquilo que brota para nós, a gente não tem muitas razões para se alegrar. Mas se a gente se alegrar com a situação dos outros seres, então isso traz uma riqueza para nós. Então nós nos sentimos enriquecidos pelo fato de que podemos olhar de uma forma ampla todos os seres. Ele trouxe um exemplo também, (eu estou vendo ele aqui, ele está sorrindo para mim) que é muito interessante. É um exemplo daquele tempo lá no Tibete. Ele dizia que sendo um país de nômades, então muitas pessoas, muitas caravanas, pessoas pobres e ricas viajando, literalmente a pé, junto com os animais. Mas algumas caravanas ricas e outras pobres. Eles param nos mesmos lugares. Ou seja, não tem hotel, pessoal. Aí todo mundo para, monta umas barracas, faz um fogo no chão, bota uma panela. No final do dia, nos lugares de parada, sempre tinha uma panela. Aí quem tinha riqueza chegava e colocava as coisas boas para comer, para fazer aquela comida. Cada um que chegava botava alguma coisa. Na hora de comer, todo mundo comia. Então aquilo era a prática da igualdade. Chagdud Rinpoche trazia essa imagem assim, que eles não pensavam: "O que você colocou aí dentro? Então você só pode tirar isso, não pode tirar mais nada". Tem umas histórias árabes também, ligadas a isso. Uma história que eu me lembro era assim: Eles chegaram num lugar. O outro não tinha nada para colocar dentro da panela. Ele só tinha um pão meio mofado e seco. Aí ele não colocou aquilo dentro da panela, mas ele colocou no vapor que saía da panela. Aí o vapor que saía da panela umedeceu aquele pão, melhorou o cheiro do pão, melhorou o sabor do pão e ele comeu aquilo. Aí a pessoa que tinha colocado toda a comida exigiu que ele pagasse. Vocês imaginem que esses problemas aconteciam já naquele tempo. A coisa começou a ficar tensa. Mas sempre tem um homem sábio em algum lugar. Aí o homem sábio perguntou para esse pobre que só tinha um pão: "Você tem moedas dentro do seu bolso?" O homem pobre até ficou assustado. Será que vou ter que dar essas moedas por ter pego a umidade que vinha da panela? Aí o homem sábio disse: "Você tem isso?" “Tenho”. "Então sacuda aí". E o homem pobre sacudiu. E o homem sábio disse para o que estava exigindo o dinheiro: "Você ouviu?" Ele respondeu: "Ouvi". Então o homem sábio disse: "Então está pago". (risos) Essa é boa! Isso não é a sabedoria da igualdade. Não é. (risos). Mas é nesse ambiente. Melhor a sabedoria da igualdade.
Com a sabedoria da igualdade o que acontece? Nós nos alegramos com os outros. Aí todo mundo come, todo mundo se alegra e todo mundo se sente feliz por isso. Esse é um ponto assim! Na medida em que há generosidade, a gente poderia dizer que, assim, tomando a imagem do Surangama Sutra, é como se então o Buda Ratnasambhava passasse a mão na cabeça das pessoas e todas se sentissem felizes, porque aquela visão foi praticada. Então, aquela compaixão foi praticada e essa visão se ampliou, e todos se alegraram com a sabedoria da igualdade. Então é esse o ponto! Nós ultrapassamos essa fixação ao eu. Quando nós vemos os outros iguais a nós, (isso é superimportante pessoal), a gente pode dizer: "Todos os seres têm a natureza búdica, todos os seres têm a natureza de Buda". A gente diz isso, não porque a gente esteja vendo todos os seres iluminados, mas porque estamos vendo todos os seres complicados. Eles se complicam como? Sempre do mesmo jeito, ou seja, uma natureza livre que toma referenciais de um certo tipo e assim eles se atrapalham criando suas próprias realidades. Então os seres que criam suas próprias realidades, sendo as realidades delusivas, estão usando uma natureza livre e luminosa para construir aquelas realidades. Portanto eles têm a natureza búdica. É óbvio! É direto! Então a sabedoria da igualdade nos permite ver que todos os seres têm a natureza búdica. Isso é extraordinário! Se a gente pegar só isso e fizer a prática só disso, vocês vão encontrar relatos nas histórias do Darma, de pessoas que atingiram a iluminação só fazendo essa prática. Só reconhecendo que todos os seres tem a natureza búdica. Um a um, assim, não perdendo a oportunidade de reconhecer aquele ser desse modo. Tem uma outra forma também de enriquecer a partir disso, de sentir a riqueza disso, que é reconhecer que aqueles seres têm a natureza búdica e estão vendo de um certo jeito. Então eles são o nosso laboratório. Se eu estivesse naquele lugar, como o outro está, operando com aqueles referenciais, naquelas condições, eu estaria vendo como ele. Então, se eu quiser entender mais amplamente as coisas, eu agora olho o que ele está vendo, porque ele sou eu ali. Entende? Então nós temos um enriquecimento. Aí nós começamos olhar, como por exemplo, as tradições xamânicas. Eles olham o que os diferentes animais estão vendo, o que os diferentes seres estão vendo. Como que as plantas estão reagindo, como o vento age sobre as plantas, sobre os animais e como que aquilo tudo está operando. Enquanto eles olham os vários seres, eles entendem de forma muito mais ampla do que se eles mesmos estivessem apenas observando. Então, isso significa uma proximidade muito grande das múltiplas mentes. Elas começam a atuar, se desenvolvemos o olho da igualdade, desenvolvemos o olho que vê através dos múltiplos seres. Isso nos ajuda a funcionar, por exemplo, quando estamos dentro das nossas atividades no mundo. Isso nos ajuda a desenvolver essa expressão que temos usado, que é a sabedoria da mandala, utiliza o método das mandalas para olhar. Então as diferentes pessoas trazem informações superimportantes. Todas elas, mesmo que tenha alguém que se levanta e nos agride, aquilo é uma coisa superimportante, que deveríamos olhar com muito cuidado, porque de algum modo, aquilo faz sentido. Então, de que lugar aquilo está fazendo sentido? É importante a gente entender isso. Todos os seres são a natureza búdica operando de diferentes modos. E nós podemos penetrar isso através da sabedoria do espelho, que então, mais ou menos, se funde com a própria sabedoria da igualdade. A base da sabedoria do espelho é essencial para que a gente compreenda a sabedoria da igualdade. E isso, se nós amadurecemos, nos leva além da agressão e da raiva. Ela nos leva além da fixação a um eu. A fixação ao eu se torna uma coisa pueril. A gente vê isso como uma coisa muito grosseira, muito limitada. Então isso leva à sabedoria da igualdade. Por vezes, ela é também chamada de sabedoria da equanimidade. A equanimidade está mais ligada a não alteração do ânimo. Eu prefiro a expressão sabedoria da igualdade. Mas dá para entender elas com essa expressão também. Então aqui é o Buda Ratnasambhava. A cor é a cor amarela. Por que a cor amarela? Se a cor azul era o espaço, a cor amarela é a riqueza. Ela vem de ouro, vem do aspecto dourado. Aí nós já resolvemos duas das oito consciências. A oitava com a sabedoria do espelho, a sétima com a sabedoria da igualdade.
Sabedoria Discriminativa
Aí vem a sexta consciência, que é a sabedoria discriminativa, a sabedoria que discerne. É o Buda Amithaba. De modo geral é onde nós mais dedicamos esforços. Na sabedoria discriminativa, a gente tenta entender as coisas. É isso o que a gente faz. Nós estamos tentando sempre entender, explicar, clarificar, observar. Isso é a sabedoria discriminativa, do Buda Amithaba. Quando nós penetramos nisso, o que vai acontecer? Nós começamos a olhar para dentro. Então vai se manifestar a sabedoria da lucidez com respeito às coisas, que é essencialmente Rigpa. Começamos a olhar, ver o que está acontecendo dentro, enquanto nós estamos operando. Então, a ignorância vai ser removida. A ignorância é essencialmente - eu acho importante entender as palavras, porque às vezes elas nos ajudam de fato - a ignorância em tibetano é Marigpa e Rigpa é lucidez; Marigpa é a ignorância. Mas operativamente, a ignorância é nós usarmos Rigpa a partir da originação dependente, que constrói realidades desde referenciais já construídos anteriormente. Então Marigpa é o que nós usamos o tempo todo. Ou seja, de um modo geral o nosso pensamento, o ato de pensar, se refere a Marigpa, sempre. A gente está aqui construindo assim. Pensamos: "Eu quero construir o templo lá" (aliás, este ano, devemos construir, para em 2023 inaugurar aqui. Já com cem pessoas fazendo retiro. Uma coisa assim: retiro presencial pessoal!). Então pensamos: "Para isso nós precisamos...daí nós começamos contar quantas pedras, quanto de aterro, quanto de telhas e vamos olhando isso tudo. Então tudo isso é Marigpa. Uma Marigpa bem intencionada, mas é Marigpa. Ou seja, eu estou usando uma mente que se baseia em algo. A gente pensa: são tantos metros, então cabem tantas pessoas. Começamos a raciocinar... Como é que eu vou pensar quantas pessoas cabem? Eu uso um referencial. A pessoa vai precisar, pelo menos, dois metros quadrados se ela quiser deitar ali dentro. Daí eu preciso espaço dos lados, então eu vou precisar, no mínimo, três metros quadrados por pessoa. Se eu tenho trezentos metros e eu pretendo que as pessoas deitem ali dentro, eu vou ter, no máximo, cem pessoas ali dentro. Aí, ainda considerando que tem os escorpiões, as cobras, os outros bichos, aí a gente precisa ter um pouco mais de espaço. Começamos a pensar: e o vento, como é que faz? Como que a janela tem que ser para não ficar entrando o vento? Como é que faz isso para não ter muito calor? Como é que faz para aquilo ser uma construção que não vai balançar quando o pessoal sair de dentro (risos). Nós estamos brincando, porque tem um pessoal aqui com um trailer e tem muito vento, então o trailer oscila um pouco. Mas eles estavam dizendo que é quando o dono do trailer sai, porque o dono do trailer é reforçado, assim. Quando ele está dentro, o trailer já nem treme. Esse é o Ciro, da sanga de Campinas. Imagina, eles vieram de lá, de trailer. É gente “ó”. Vão atingir a iluminação nessa vida, é certo.
Vocês olhem esse aspecto da sabedoria discriminativa: ela vê, olha para dentro e vê como é que está tudo operando. É assim. É a sabedoria discriminativa que permite distinguir R_igpa_ de Marigpa. Quando nós estamos olhando, por exemplo, os doze elos da originação dependente, dizendo: aí surge o primeiro elo da ignorância, depois Samskara, depois Vijnana, depois Nama-rupa, etc, tudo isso é sabedoria discriminativa. Ela está olhando como é que a operação da mente se dá. Se nós, por exemplo, penetramos as múltiplas operações a partir da sabedoria discriminativa, a ignorância cessa. Então Marigpa cessa, ela é revelada. Marigpa é iluminada. Ela é vista como uma manifestação luminosa, por originação dependente ela surge e a realidade inteira, em todas as direções, é iluminada. Ela é wondrous, espantosa, maravilhosa. Então, a sabedoria discriminativa nos permite ver isso. Quando nós olhamos com esse olhar, isso é sabedoria discriminativa. Mas essa sabedoria discriminativa se torna um caminho. Esse caminho é assim: no início a gente não vê bem, depois a gente vai indo, vai ampliando. Sempre tem alguma coisa que a gente não vê bem. Mas vamos indo, sentimos que vamos ultrapassando. Os obstáculos do ano passado não são os deste. A gente também pode desanimar. No ano passado não tinham esses obstáculos, agora parece que os obstáculos aumentaram. Mas na verdade é a gente que não está conseguindo, que vai se defrontando, são camadas de realidade. Então vamos reconhecendo isso. E com o tempo isso se torna mais rápido, mais fácil, mais direto. Então isso é a sabedoria discriminativa.
O ponto central da sabedoria discriminativa, como os outros também, é o lugar a partir de onde ela é praticada. Então a sabedoria discriminativa não é algo que a gente pratica de dentro da bolha. É justo, porque somos capazes de sentar fora da bolha, fora das oito consciências. Brota, então, a sabedoria discriminativa que nos permite ver a sexta consciência, que é então a consciência que vai nos permitindo esse reconhecimento da operação, também da visão. Quando o Buda, no Surangama, pergunta: "Ananda, como é que você vê?" O Ananda pensa que a pergunta é muito fácil. Ou seja, daí ele faz até uma teoriazinha: “como todos os seres que têm olhos na face, eu vejo a partir dos meus olhos”. Aí começa o sofrimento do Ananda. Ele vai precisar entender que ele vê através da sexta consciência. Não é por olhos, ouvidos, nariz, língua e tato que ele vê. Ele vê pela sexta consciência. Então aqui, o Buda começa, no Surangama, a trabalhar esse elemento da sexta consciência, como é que isso ocorre. E com o tempo ele vai indo para Alaya e de Alaya ele vai indo para Tathagatagarbha, que é a base de Alaya, que por sua vez é a base das identidades, que é a base da sexta consciência. Uma servindo de base para a outra. E todas elas se misturando. Então esse é o ponto.
Qual é o mudra do Buda Amithaba? É o mudra da meditação, das mãos da meditação. Eu acho isso muito comovente, porque a aparência física do Buda sempre é o ensinamento silencioso. Quando a gente olha a aparência do Buda, ali está a sabedoria, a indicação, como se fosse a transmissão ou a iniciação correspondente à sabedoria. E quando o Buda está sentadinho, com as pernas em lótus, com as mãos no mudra da meditação, ele está dizendo: "Se você ficar totalmente parado e lúcido, consciente. A sabedoria discriminativa aparece”. Porque ela precisa dessa capacidade de abandonar os conteúdos e de se manter totalmente equilibrado. Aí a realidade aparece. Então esse é o ensinamento do Buda. Tem uma linha direta, assim: Buda Primordial, Buda Vairocana (que é a cor branca), Buda Amithaba. O Buda Amithaba é inseparável do Buda Primordial. Ele faz o que o Buda Primordial faz, que é como o espaço. Ele está parado e presente. Isso é a essência do Buda Sakyamuni.
Sabedoria da Causalidade
Então, das oito consciências, nós vimos três. Agora tem as cinco seguintes. Quais são as cinco? Consciência de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. As consciências ligadas aos órgãos dos sentidos. Essas consciências regem as nossas ações, diretamente. Quando nós entendemos a sabedoria do espelho, sabedoria da igualdade, sabedoria discriminativa, nós estamos bem no momento de entender como que os vários sentidos físicos estão operando e como que eles espelham essas consciências anteriores. Isso diz respeito à sabedoria da causalidade. Ou seja, como que as ações de um certo tipo são feitas e como que elas resultam. Como aparece a causalidade. Como que isso surge como uma ação resultante. Ela se chama sabedoria totalmente realizadora. Aqui nós olhamos como que as aparências podem operar diretamente. Podem operar e surgir de modo sequencial, causal, e ainda assim serem expressões luminosas da realidade. Então isso permite aos Budas trafegarem em meio das múltiplas aparências sem perder a lucidez. Por um lado, isso vai nos permitir usar as ações de poder, ou seja, não sermos arrastados pelas aparências: a ação pacificadora, a ação incrementadora e a ação irada. A ação pacificadora das múltiplas circunstâncias. A ação incrementadora de promover o caminho, a lucidez e a clareza da mente dos seres. E a sabedoria da ação irada que é interromper, diretamente, as sequências aflitivas que estão trazendo sofrimento aos seres. Então, o Buda quando se move desse modo, ele se move sem esforço, ele se move naturalmente. Aqui nós temos a cor verde, correspondente ao Buda Amoghasiddhi.
Sabedoria de Darmata
Então nós descrevemos a sabedoria do espelho, do Buda Akshobhya, cor azul, como o espaço. Descrevemos o Buda Ratnasambhava, sabedoria da igualdade, o amarelo correspondente à riqueza. Descrevemos o Buda Amithaba, sabedoria discriminativa, cor vermelha. E descrevemos o Buda Amoghasiddhi, sabedoria da causalidade, cor verde. Então, o Buda Amoghasiddhi, clarifica totalmente as ações de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Ele permite entender essas múltiplas ações como ações da sexta consciência. Então as cinco primeiras consciências estão inseparáveis da sexta consciência, que por sua vez é inseparável da sétima e da oitava. Todas elas expressões luminosas. Aí nós entendemos essas quatro sabedorias.
Eu sempre gosto de olhar isso na forma da mandala. O centro da mandala é a sabedoria de Darmata que eu vou mencionar agora. Então, essas quatro sabedorias são lados de um quadrado. Para o lado oeste é a sabedoria do Buda Amithaba. Vocês podem sempre lembrar porque o céu, no entardecer, é avermelhado, é o lado Oeste. Quando vocês olham a Oeste vocês lembram: Buda Amithaba. A Leste vocês têm a sabedoria do espelho, o Buda Akshobhya. Ao Sul vocês tem o Buda Amoghasiddhi. E ao Norte vocês tem o Buda Ratnasambhava. Eu acho que a melhor forma de entender isso, é assim: nós temos os olhos do Buda Amithaba olhando para Oeste. Então, quando vocês olharem para Oeste, procurem praticar os olhos do Buda Amithaba. Quando olharem para o Sul, tentem olhar com os olhos do Buda Amoghasiddhi. Quando olharem para o Norte, olhem com o olhar de Ratnasambhava. Quando olharem para Leste, olhem com o olhar do Buda Akshobhya, cor azul. Isso é interessante.
Tem essa imagem dos quatro Diani budas que abençoam as diferentes regiões. Não é que eles dependam das regiões. Eles abençoam as diferentes regiões. Eu prefiro imaginar que os budas estão abençoando todas as regiões, por todas as direções. Mas tudo bem assim. Parece que eles dividiram um pouco a tarefa! Mas eu aspiraria assim, que o Buda Amithaba olhasse um pouco pelas outras direções, também. Mas tudo bem. Lá no templo do Caminho do Meio, a gente fez aquelas janelas em cima. Eu ainda não consegui colocar os olhos do Buda nas várias direções, mas me aguardem! Nós vamos fazer. A gente não conseguiu uma solução técnica, ainda, para colocar um olho direito que não vá, de repente, entrar em colapso. Mas essa é a ideia. Tem as quatro direções. Quem olha por dentro, já tem as cores. Aí por fora, na janela, a gente precisaria colocar os olhos do Buda.
Aí vem a sabedoria de Darmata. Mas já não estão todas as consciências purificadas? Darmata está aqui, é inútil. Aí nós vamos dizer: Darmata é a sabedoria que purifica em conjunto as oito consciências. Darmata corresponde ao aspecto primordial. Quando nós entendemos Darmata, Darmata purifica a oitava consciência. Mas tem essa compreensão de que, quando Darmata vai purificar a oitava consciência, a oitava consciência já não está separada da sétima, e não está separada da sexta e não está separada das cinco primeiras. Porque as cinco primeiras consciências se misturam com a sexta, que é uma operação mental que se mistura com a sétima, que surge como se fosse uma identidade. A sétima consciência surge como se fosse uma identidade. E a sétima surge como se fosse uma base referencial de sabedorias que é Alaya Vijnana, que é a oitava consciência. Quando essas oito consciências estão operando, uma nutrindo a outra e se misturando com a outra, nós dizemos que isso é purificado pela sabedoria de Darmata. Então a sabedoria de Darmata seria a sabedoria de Tathagatagarbha. Darmata e Tathagatagarbha, aqui nós podemos usar a mesma expressão. Ou seja, é a sabedoria do aspecto primordial que se manifesta como aparências variadas, em todos os lados. Isso é a cor branca. Essa noção também: se nós misturarmos as várias cores e girarmos, temos a cor branca. A cor branca é o centro, é a união dessas múltiplas cores. Quando isso se torna claro, aí não reagimos de uma forma a partir da ignorância, nesse aspecto. Então isso é um ensinamento curto sobre as cinco sabedorias e sua relação com as oito consciências, como que isso é purificado.
Eu queria ainda trazer alguns elementos adicionais. Quando a gente começa a falar dessas palavras, tem algumas que, às vezes, são intercambiáveis. Por exemplo, Darmadatu. Darmadatu significa "realidade dos fenômenos". Então esse é um ponto. A gente poderia dizer "realidade dos fenômenos", o que é? É vacuidade. Darmadatu é o âmbito dos fenômenos, é onde os fenômenos surgem, é a mente onde os fenômenos surgem. Mas ao mesmo tempo é o âmbito onde a verdade surge. Então esse é um ponto interessante! Aí essa palavra que está ligada ao Budismo Mahayana, dialoga com a palavra Tatata. Tatata é a realidade tal como ela é. Seria assim: aparência e luminosidade, vacuidade, elas não se separam. Isso é o sentido de Tatata. Darmadatu, por vezes, é visto como uma expressão que é idêntica a Tatata. Ela é essencialmente a natureza de Buda, porque isso também é descrito como natureza de Buda. Por vezes, Darmadatu é também referida como Darmakaya, que também é natureza de Buda. É como se fosse a grande vacuidade. É o corpo de verdade, que é inseparável da grande vacuidade. Da grande vacuidade brota a sabedoria da lucidez última. Então ela está associada ao Buda Vairocana, que é a cor branca. Agora, também se diz que a expressão Tathagatagarbha é o último aspecto, é a verdade última. Então é uma palavra que tem dois pedaços: tem Tathagata, que representa o Buda e Garba, que é o âmbito, o lugar. É como se fosse o espaço onde o Buda se move. Então Tathagatagarbha é o âmbito que o Buda se move. Então quando ele olha, ele está sempre em Tathagatagarbha. Por vezes, também é chamado de Darmadatu e Darmakaya. Então aqui eu estou trazendo as várias citações que trazem esse tipo de coisa... Eu queria fazer esse breve comentário porque essas palavras, de tanto em tanto, nos assombram. Elas aparecem e a gente diz: mas eu estava falando em Darmakaya e agora é Darmadatu, mas isso é Tatata, o que que é isso? Então é importante a gente ver esse aspecto intercambiável dessas várias expressões.
Eu tinha uma listinha de experiências que seria interessante a gente ver como que as oito consciências podem clarificar. Eu acho que, essencialmente, isso já foi olhado. Mas por exemplo, quando a gente olha as quatro nobres verdades. As quatro nobres verdades estão dialogando com o quê? Elas estão dialogando com a sexta consciência. Existe o sofrimento. E o sofrimento tem causas. Essas causas são artificiais e o sofrimento pode cessar. Então, está falando para a sexta consciência. Na medida em que nós vamos seguindo o caminho, que é a quarta nobre verdade, aí nós vamos acessando as outras consciências e vamos liberando, também.
Quando nós estamos, por exemplo, presos com o materialismo espiritual, o que está acontecendo? A gente tomou as explicações que foram oferecidas à sexta consciência e construímos uma identidade específica, que é a sétima consciência. Nós povoamos essa sétima consciência a partir dos ensinamentos que a gente recebeu. E começamos a achar que nós somos alguma coisa a partir desses ensinamentos. Isso é o materialismo espiritual. Naturalmente, quando nós vamos usando as várias sabedorias, vamos purificando isso também. Aí quando a gente está ouvindo notícias, por exemplo, ou lendo jornais, olhando alguma coisa assim, o que nós estamos fazendo? Nós estamos em meio à sexta consciência. Aí as coisas brotam de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato e ganham um sentido. Na maior parte das vezes, a nossa mente está ocupada a partir das consciências associadas às cinco formas: olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Nós estamos ocupados o tempo todo desse modo. Mesmo quando nós estamos meditando, é muito comum a gente estar simplesmente nas cinco primeiras consciências, sem nenhuma lucidez a respeito da sexta, nem da sétima, nem da oitava, menos ainda da sabedoria de Darmata ou Tathagatagarbha ou Darmadatu. Nenhuma das cinco sabedorias. Nem a sabedoria do espelho, nem a sabedoria da igualdade, nem a sabedoria discriminativa, nem a sabedoria da causalidade, nem a sabedoria de Darmata. Nada. Nós estamos apenas reagindo ou amortecendo as experiências que brotam de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Isso nos permite ver como que está a nossa prática, quando vemos esses ensinamentos.
Também quando nós estamos ouvindo sons internos. Esses sons internos estão vindo de onde? Frequentemente, eles estão operando entre a sexta e a sétima consciência. Nós ajustando a nossa identidade às várias experiências e ligando isso com as experiências de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato. Enquanto nós olhamos as múltiplas experiências de olhos, ouvidos, nariz, língua e tato com a sexta consciência, eventualmente a gente vê que se a gente muda alguma coisa no aspecto interno, as aparências todas mudam. Então pode ser que a gente esteja simplesmente operando entre as sete primeiras consciências, sem perceber ou sem ser capaz de se deslocar dentro da oitava. Mas isso também já nos ajuda. Então, esses sons internos, é importante a gente ver a origem deles. Eles estão vindo de onde? A gente vê isso a partir da contemplação da base que nós estamos utilizando para a operação da mente. Naturalmente, para isso, precisamos ter algum nível de estabilidade da mente, senão a gente simplesmente começa a saltitar. Não conseguimos seguir uma linha de observação. Então, é importante, desenvolver Shamata para ganhar essa habilidade e poder manter um foco por mais tempo.
Eu acho que esse tema das oito consciências é um tema interessante. É uma linguagem interessante que podemos utilizar. Super útil. Dialoga bem com as várias coisas que a gente já olhou e nos ajuda, também, na compreensão que a gente está desenvolvendo através do estudo do Surangama Sutra. É uma abordagem que é utilizada na linhagem Nyingma. Na linhagem Kagyu. É usada dentro do Vajrayana. Eu acho superinteressante. Aqui no CEBB tem o quadro de 200 e 240 itens. Ele já tem uma conexão com isso. Essa conexão é como se fosse uma leitura Mahayana das cinco sabedorias. É uma leitura também que conecta com os ensinamentos ligados à moralidade, que o Buda ofereceu nesse âmbito. Então o Buda vai olhando quais são os nossos problemas. Os nossos problemas são quando as cinco emoções perturbadoras se estruturam. E aí ele dá um ensinamento que é o ensinamento aos Kalamas, onde ele explica porque aquilo não é interessante. Ele começa dizendo: "Se vocês matarem, roubarem, tiverem conduta sexual imprópria, mentirem, etc, isso é um jeito de melhorar a vida?" Naquele tempo as pessoas diziam: "Não, isso não é uma boa ação. Isso vai dar problema". Hoje eu já não sei bem o que eles diriam. Mas naquele tempo o pessoal era mais sério. "Não, não, isso vai dar problema". Eles tinham uma compreensão da questão cármica. Eles viam que aquilo ia dar problema, mesmo. E o Buda dizia: "Mas vocês, dominados por orgulho, vocês têm impulso de matar, roubar, etc.?" E as pessoas: "Sim". E o Buda: "Então o orgulho é um veneno. E vocês, baseados em inveja, matariam, roubariam?" E as pessoas: "Sim, sim". E o Buda: "Então isso também é um veneno". Aí ele vai classificando: o orgulho, a inveja, desejo e apego, a ignorância e a raiva. Ele vai olhar isso. Então ele vai dizer que isso tudo é veneno. Esses venenos impulsionam as dez ações não virtuosas. Mas eles impulsionam em corpo, em energia, em mente e em visão de mundo.
Então, se vocês fizerem uma tabela de tanto por tanto e multiplicarem por aqui e por ali, isso vai dar 240. Porque são seis emoções perturbadoras (são seis reinos, essencialmente). Aí aqueles seis (emoções perturbadoras) vezes as dez ações, já dá sessenta. Não é verdade? Cada uma delas impulsiona as dez ações não virtuosas. E aquilo tem quatro níveis, ou seja, corpo, energia, mente e paisagem, aquilo dá 240.
Aí a gente olha o nosso funcionamento no mundo, por exemplo, os bodisatvas. Os bodisatvas deveriam praticar as cinco sabedorias, pessoal. É simples! Até não é muito complicado. A gente consegue entender as cinco sabedorias, pelo menos discursivamente. Se a gente pensa, sabedoria do espelho, eu posso entender? Aí tem alguém que está incomodando ou alguém que está alguma coisa, a gente olha com a sabedoria do espelho e “uau”, realmente! A gente olha filho, esposa, marido, irmão, colega de trabalho, chefe e a gente vê, “bah”, eles estão numa situação difícil. Eles estão olhando a realidade de um certo jeito. A gente olha para o cachorro, para o gato, para a cobra, olha escorpião, vai olhando, assim. Aí a gente termina entendendo eles, no mundo deles. É possível. Aí, quando isso está acontecendo, a gente está vendo que isso é sabedoria do espelho. Isso pode funcionar em qualquer lugar. E assim, para cada uma das sabedorias, a gente vê. E se dá conta que o lugar onde a gente estiver, se praticarmos as cinco sabedorias, a nossa vida melhora, direto. E as cinco sabedorias nos ajudam a não praticar as dez ações não virtuosas e a praticar as quatro qualidades incomensuráveis e as seis perfeições. Então das cinco sabedorias brota compaixão, amor, alegria, equanimidade; brota generosidade, moralidade, paz, energia constante, concentração e sabedoria. É o caminho dos bodisatvas. Aí brotam as dez ações. Então, de cada uma das sabedorias brota isso, porque a gente operando daquele modo fica claro e aí brotam esses impulsos. Então, nós temos as cinco sabedorias, vezes dez, já dá cinquenta. Mas nós praticamos isso com o corpo, com a mente, com a energia e com a visão de mundo. Então nós temos 50 vezes 4 dá 200. Então nós temos 200 boas ações para fazer, pessoal. É só largar! A gente vai andando assim e a vida fica mais fácil. Aí quando vocês veem que as coisas estão meio complicadas, deem uma olhadinha lá nos 240 itens para ver se vocês não estão firmes nos 240. Aí olhem Tathagatagarbha, olhem Darmata, olhem a natureza luminosa. A gente está construindo aquelas realidades e aquelas fixações. E aí, mudem para as cinco sabedorias. Aí vocês têm uns inimigos horríveis, então olhem com a sabedoria do espelho. E a gente diz: “bah”, aquele ser fez isso e fez aquilo e continuou fazendo isso e continuou fazendo aquilo. Mas aquele ser somos nós, naquele conjunto de referenciais. Não é outro, somos nós mesmos. Sabedoria da igualdade. A gente vê direitinho ele fazendo aquilo. Se eu estivesse ali eu ia fazer igualzinho, provavelmente. A gente entende que aquilo não é interessante para ele. Aquilo não é bom. Então nós vamos usando as cinco sabedorias. Nós substituímos as emoções perturbadoras pelas sabedorias. É assim. Porque eu tenho essa capacidade, ou usar a mente de um jeito ou usar de outro, entende? Por exemplo, daqui a pouco eu vou sair daqui e vou para lá, vou molhar as plantas, vou fazer outra coisa. A minha mente não está fixada. Ninguém tem a mente fixada. Então nós podemos deixar de fazer uma coisa e fazer outra. Então, é muito simples! A gente interrompe aquele tipo de ação baseada nas emoções perturbadoras como referencial. Nem evitamos aquilo, simplesmente puxamos a mente para a sabedoria do espelho e olhamos com a sabedoria do espelho. Aí, quando a gente olha com a sabedoria do espelho, as emoções perturbadoras já não estão ali. Então essa é uma prática superimportante. Aí nós usamos cada uma das cinco sabedorias e elas se tornam a base do nosso funcionamento. Se a gente vai aprofundando isso, vamos até a mente do Buda, porque se diz que a mente do próprio Buda Sakyamuni é as cinco sabedorias. Além do mais, nós vamos até a mente de Guru Rinpoche, porque Guru Rinpoche é as cinco sabedorias. Vocês olhem como que é o mantra dele: Om Ah Hum (corpo, fala e mente) Vajra Guru Padma Sidi Hum (as cinco sabedorias correspondem a cada uma dessas cinco sílabas).
Então isso é a forma da gente operar de modo muito palpável em meio às condições do mundo. Super útil.
Vamos fazer a dedicação e de noite a gente vê as perguntas. Tudo bem?
Sessão #6 - Noite I Retiro I As Oito Consciências, as Cinco Sabedorias e o Sofrimento
Lama Padma Samten
CEBB Bacopari, transmissão online 14/11/2021
Transcrição:
Revisão: Nelcy Mendonça
Lama: Então, assim a gente concluiu a prática, não é? Agora seria a dedicação, mas eu vou fazer a dedicação depois das perguntas também. Eles ouvem?
Antonia de BH:
Gratidão, Lama! Será que você poderia comparar, sucintamente, as diferenças que vê entre a transformação e adaptação dos seres, com base em Alaya Vijnana, e a evolução dos seres conforme a visão de Darwin e seus seguidores? E em que aspectos principais podemos observar as limitações de Darwin?
Lama: Acho que eu teria que pesquisar um pouco, assim, sabe? Porque tenho uma visão de Darwin, que acho que não é bem correta, porque eu nunca estudei isso direito. Então, eu não saberia dizer. Mas, tem uma proximidade, no sentido de entender que há uma sucessão. Ou seja, a humanidade vai avançando. Agora, que eu saiba, o Darwin não viu uma consciência propelindo isso. Ele também olhou como se fosse uma seleção. Tem um processo aleatório, e tem uma seleção dentro desse processo aleatório. Mas eu não sei se é justo dizer isso dele. Eu suspeito que ele tenha tido uma compreensão de uma dimensão assim, que poderíamos associar à consciência. E a consciência vai propelindo o desenvolvimento. Então, no budismo, a consciência, naturalmente, que é a sexta consciência, vai propelindo isso. E a partir de Alaya Vijnana, a partir da mente fundamental, usando a liberdade natural da mente primordial e o aspecto luminoso da mente primordial. Então surgem roteiros de escolhas, de processos, e esses roteiros surgem primeiro na consciência. Mais adiante, eles vão estimular o surgimento do aspecto do quinto elo, que é Shadayatana, ou seja, que são os corpos físicos com os órgãos. Então, na visão budista, a consciência é que promove esse processo. Então, eu acho que isso não está presente. Agora, por outro lado, se nós olharmos, por exemplo, o Sheldrick, ele vai olhar esses processos todos intermediados pela consciência. Então, é muito interessante o processo pelo qual o Sheldrick vai olhando. A visão do Sheldrick é muito mais próxima da visão budista do que uma visão Darwiniana, propriamente. Tem vários biólogos estudando isso, com muito cuidado, porque mesmo as células seriam um pouco inexplicáveis, não fosse a consciência. São áreas muito interessantes. Obrigado, Antonia.
Maluara de Goiás:
Qual a relação da intuição com as oito consciências? Ela opera em todas ou faz parte de alguma, em específico, por exemplo, a sétima ou a sexta?
Lama: A intuição opera de um modo, é um nível de construção luminosa. Esse nível de construção luminosa pode estar dentro da sexta consciência, mas, naturalmente, a sexta consciência é inseparável dos outros aspectos. Mas as intuições, de um modo geral, criam novas estruturas em Alaya Vijnana. Elas não tem para (**inaudível**) de um aspecto luminoso, (**inaudível**) não criam um tabuleiro estabelecido, de uma regra de jogo estabelecida. E dentro disso elas veem adiante, elas veem outros cenários. Elas olham de modo não causal, propriamente. Então, a intuição tem um nível de luminosidade de mente que ultrapassa, um pouco, as possibilidades causais comuns. É um exercício da liberdade da mente, além do script usual. Aí vem o aspecto intuitivo. Mas vocês podem testar, assim. Estamos vendo um filme e temos uma intuição: “Acho que sei quem é o bandido, sei quem é que vai morrer, sei quem vai sobreviver”. Então, tem uma mente nossa, que opera por trás. Ela fica dando esse tipo de ‘pitaco’. De onde é que ela brota? Eu estou vendo uma situação totalmente fictícia, como é que vem uma intuição, dentro de uma situação fictícia? Então, é uma operação não visível, mas é uma operação que junta outros pedaços e constrói os elementos. Eu acho que umas das coisas mais decepcionantes da intuição é justamente o fato de que ela obedece a estruturas já condicionadas. Porque gostaríamos que aquilo fosse livre. Mas essa palavra ‘intuição’, por vezes, é usada também associada a Rigpa. Como se Rigpa fosse uma intuição, fosse uma visão última. Mas é isso. De um modo geral, quando a gente olha, a intuição opera por dentro da bolha. Mais ou menos isso.
Maria Luiza de São Paulo:
Como esvaziar as bolhas de Alaya Vijnana já que, individualmente, não vamos conseguir eliminar assassinos, feminicídios, guerras, corrupção?
Lama: Se nós nos colocarmos numa condição além das identidades, nós ultrapassamos os Doze Elos. Então, a morte, todo tipo de sofrimento, todo tipo de abuso, tem um aspecto que não alcança a nossa dimensão, nossa dimensão sutil. Ela alcança um tipo de visão, mas ela não passa de um ponto. Ela não atinge, por exemplo, a natureza búdica. E a natureza búdica não é nem masculina nem feminina. Ela não é nem humana. Então, esse é um ponto. Mas, por outro lado, nós temos as nossas fragilidades. Elas passam de vida pra vida, porque quando nós morremos, a bolha não morre, a bolha segue. Então, nós temos a tendência a renascer numa outra condição, mas dentro de um conjunto de referenciais muito semelhantes. E isso perpetua, num certo sentido, a estrutura cármica. Se a gente se sente abusado, se sente abusador, vamos ter uma tendência a renascer numa bolha correspondente e tomar as experiências anteriores por base, para poder gerar novas experiências. Então, é muito provável que a gente vá seguir nesse nível. Mas, sempre tem essas coisas, por exemplo, eu acho que vocês viram aquele filme “O Pequeno Buda”. Tem uma parte muito engraçada ali que é quando o sacerdote vai matar o carneiro e o carneiro começa a rir. Aquela parte é muito gozada porque o outro diz: “Eu vou matar você, como é que você tá rindo?”. Ele diz: “500 vidas atrás eu era um sacerdote matando um carneiro, essa aqui é minha última vida. Agora isso foi o que aconteceu comigo, eu fiquei 500 vidas vivendo como um carneiro. Agora isso é com você!". Aí o sacerdote, não sei o que ele fez, mas essa é uma parte interessante. Então, pode acontecer de a gente trocar de lado. Porque é mais ou menos assim: a pessoa renasce como gremista, os colorados nascem como gremistas, etc. e nisso nós ficamos colorados, que é um tipo de tragédia, não é? Aí a alegria porque o Grêmio vai pra série B, depois ela, carmicamente, pode dar um outro problema, no mínimo gera uma sensibilidade. A pessoa: “Eu não posso, o Grêmio vai para a série B, mas o Inter não pode entrar para a série B de jeito nenhum!”. Então tem um tipo de sofrimento que surge desse modo. O abusador também, ele se sente frágil para, eventualmente, ser abusado. Então, é uma situação fácil de trocar de lado, o carma propicia isso. É assim, mas isso, ainda que haja uma realidade tangível e a gente sofra no meio disso, se retomarmos o aspecto sutil e o aspecto secreto, estamos além desses aspectos. Porque todos eles brotam dentro de scripts específicos. É a única forma de ultrapassarmos o nosso carma, seja ele carma de agressor ou de agredido. A única forma é essa, a única forma de perdoarmos os seres, também é isso. Então, a gente não está aqui esperando que os seres vão sofrer e passar pelos sofrimentos até purificar, não é isso. Eles vão compreender o aspecto transcendente, o aspecto mais amplo e assim o sofrimento cessa.
Roberto de Lisboa:
A sétima consciência continua além da morte física e coloca referenciais em uma parte de Alaya Vijnana. A oitava consciência, com marcas mentais (**inaudível**) isso não indicaria uma probabilidade maior de um renascimento humano, em comparação com outros reinos?
Lama: Ah, com certeza! Temos uma tendência a renascer no Reino humano, sim. Mas temos umas aspiraçõezinhas para o Reino dos deuses. Eu não sei vocês, se é uma situação pessoal, ou algum de vocês tem essa tendência. Reino de felicidade, tudo fluindo assim superbem, muito poder, voar pra cá, voar pra lá. Aquilo, assim, é maravilhoso, não é? Eu acho assim: entre a iluminação e o Reino dos deuses... O pessoal, não sei, assim ... Reino dos deuses é interessante. Pelo menos é um bom lugar para seguir até atingir a iluminação. Então, como eu não tenho (**inaudível**) nenhuma de atingir a iluminação, vou ficando aqui no Reino dos deuses e vou indo assim, devagar. Pode surgir esse tipo de visão, não é? Pode surgir esse aspecto. Então, os seres aspiram. Está cheio de perspectivas celestiais na compreensão humana. São os deuses do desejo. Depois tem uns deuses “mais ou menos”. Deus da forma não é a mesma coisa, melhor são os deuses do desejo. Deuses da não forma é um tipo de loucura, vai ficar parado lá, sem nada. Mas tem uns que tem esse tipo de coisa, imagina. Mas é isso, eles vão refinando a condição de felicidade e surgem no Reino da forma. Eles vão refinando isso e surgem no Reino da não-forma, por exemplo. No Reino dos desejos, se as coisas não andarem de um certo jeito, não temos a felicidade, ficamos na dependência das coisas. No Reino da forma e da não forma nós estamos mais livres das condições. É assim. Então, nós temos essas aspirações. Os seres vão rotacionando. Mas, como eles estão numa situação muito favorável, no Reino dos deuses, repentinamente, eles podem migrar para o Reino dos infernos, também. Porque eles têm expectativas muito elevadas, mas tem um desgaste progressivo dos méritos que conduzem a isso. Como eles não tem lucidez, carmicamente, podem achar que o Reino dos infernos é um bom lugar, no sentido de que, nos infernos, acertam certas contas que lá, no Reino dos deuses, não estão conseguindo. No Reino dos deuses eles ficam mais bondosos. No Reino dos infernos acertamos umas contas que foram surgindo. Quando a sensação de acertar as contas é maior do que a sensação de buscar felicidade, eles descem, naturalmente. Então, vocês não fiquem pensando em acertar conta nenhuma! Quando vocês olharem para o Grêmio, vocês pensam: “Não, que escape da série B!”. É uma coisa assim. Senão, esse carma vai girando, assim. Vocês deem uma forcinha pelo Grêmio, aí.
Maria Luiza de SP:
Sobre anestesia geral. Onde está a consciência, repousando na consciência (**inaudível**) Alaya Vijnana?
Lama: É isso mesmo. Então, o que está acontecendo, é uma espécie de desmaio. Porque, quando a sexta consciência fica sem informação, quando a gente vai cortar os estímulos sensoriais, a sexta consciência fica sem informação, ela fica lá: “Alô?”. Mais ou menos como quando cai o wifi. A gente fica com uma cara meio estranha. É um pouco assim, não sabemos onde é que a gente está, não sabemos qual é o nosso nome. A gente fica ‘meio assim’, perdeu o celular, perdeu o wifi. Nós estamos meio mal, então, ali, é aquilo que estimula e movimenta a sexta consciência. Mas tem um certo momento que a gente acorda no meio disso. Então, quando a gente acorda no meio disso, pode surgir um sonho, que é como o sonho à noite, também. Eventualmente, nós podemos lembrar ou podemos não lembrar. Tem algumas pessoas que tem como que uma viagem, elas se veem. Tem relatos muito interessantes que as pessoas se veem assim, veem médicos, todos vestidos de branco, e veem luzes e veem coisas assim. Depois eles dizem: “Agora você volte!”. A pessoa: “Não. Não. Estou gostando daqui!”. “Não! volte agora!”. E a pessoa volta.
Lama: É isso?
Lama: Então é a Kelly? Pode falar, Kelly.
Kelly: Boa noite, Lama! Gratidão pelos ensinamentos! Então, na verdade eu tenho duas coisas que eu tenho pensado. Duas perguntas: a primeira delas é em relação, por exemplo, aos obstáculos secretos. Naquela prece de “dissipando os obstáculos no caminho”, tem lá para remover os obstáculos internos, externos e secretos. Aí, eu fiquei pensando, se os secretos estão relacionados com a mente primordial. É isso, né Lama?
Lama: É. Uhum.
Kelly: Então, e se eles estão relacionados com a mente primordial, para ele poder se manifestar como um conteúdo de obstáculo, teria que se manifestar, pelo menos, num nível sutil. E aí, eu fiquei imaginando, como é que poderia ser esse obstáculo secreto?
Lama: Esse é o obstáculo. É o reconhecimento do aspecto secreto.
Kelly: Ah! É reconhecer o aspecto.
Lama: Porque, num nível secreto, não tem obstáculo.
Kelly: Sim, é isso que eu pensei.
Lama: É isso que tu estavas vendo, eu entendi aqui. Está dizendo isso mesmo. Obstáculo, nesse sentido, é não reconhecer, não é?
Kelly: É. E eu vi e li alguma coisa que ele comenta de obstáculos secretos e secretíssimos, existe isso?
Lama: Esse é tão secreto que eu não cheguei a… esse eu já não sei.
Kelly: Agora não lembro, se eu li secretíssimo.
Lama: Mas é assim, não tem nada além da natureza última. Então, mais secreto que a natureza última, não é.
Kelly: E outra coisa, eu posso falar mais um (**inaudível**)
Lama: Podes considerar que natureza última é não dualidade, que é o aspecto mais secreto da natureza última, a não dualidade.
Kelly: Uhum! E assim, Lama, nessas práticas que estamos fazendo: Prajnaparamita, Vajrasattva, o Buda da Medicina, na verdade, também, é uma forma de estar modificando as oito consciências, não é?
Lama: Certeza. Com certeza.
Kelly: Porque daí, em um caminho bem diferente também, não é? Mas assim, você pode chegar na natureza primordial, através dessas práticas?
Lama: Com certeza. Certeza. São vários tipos de descrições. São descrições paralelas. Por exemplo, no caminho Mahayana, vamos seguir os bhumis dos bodisatvas. Vamos usar uma outra régua, um outro referencial. Então são diferentes lugares e diferentes referenciais. No caminho Theravada, o Buda vai descrever os jhanas. Vão surgir os Deuses todos, vão surgir aqueles múltiplos reinos. Aí ele vai mostrando como cada um daqueles estados são condicionados. Ele vai indo, ele tem a cessação. E, depois, ele vai além da cessação, vai descrevendo de um outro jeito.
Kelly: Sim, e aí esses jeitos dependem também das afinidades da pessoa. Talvez, da pessoa se identificar mais com algum tipo, não é? Porque assim, eu sempre tive muita conexão com as preces e com mantras. Isso desde criança, mesmo em outra tradição religiosa, sempre tive essa conexão. E daí, no Prajnaparamita, se fala na confiança no Prajnaparamita. Poderíamos entender no sentido genérico como fé, não no sentido pejorativo de fé. Uma confiança, não é? Então, seguindo por esse caminho também avança.
Lama: Funciona, não é? Maravilhoso, Kelly. Muito bom.
Kelly: É. Porque assim, sinto que consigo chegar num estado meditativo através das preces. Como se desse uma ‘puladinha’. Ao invés de fazer a meditação, que eu faço também, sinto que talvez chegue mais rápido com as preces e com os mantras.
Lama: Também podes pegar o estado que surge nas preces e no mantra e utilizar ele quando for fazer a prática silenciosa. Aí podes ampliar ele.
Kelly: Eu acabei fazendo isso intuitivamente, sabe? Meio que faço. Aí fico com medo de estar fazendo coisa errada. Mas não consigo seguir tanto aquele roteiro. Os roteiros todos que são possíveis. Começo, e de repente, surge um mantra e surge a prece.
Lama: Ah, mas está bem, está bem. Aí vais refinando. Porque os estados particulares, por exemplo, das preces e dos mantras, são estados particulares de mente. Então vais precisar, depois, de um processo de refinamento deles. Caso contrário, vais estacionar na experiência correspondente, sem saber muito bem a profundidade daquilo.
Kelly: E para aprofundar?
Lama: É. Se olhares as oito consciências, é um bom método de examinar. Podes olhar as seis perfeições também, que é o retiro agora de 1 a 8, não é? Vou falar sobre as seis perfeições. Aí vão surgir, também, os dez bhumis, que é o caminho do Bodisatva. Ele dialoga bem com o nobre caminho óctuplo, que o Buda descreve. Acho interessante termos um processo que critique a nossa prática, caso contrário podemos, eventualmente, ficar estacionados. Porque parece que aquilo resolve, não é? Mas Maharaja não deixa a gente ficar parado. O que vai acontecendo é que, se a nossa prática não está completa, as coisas nos pegam. Ou seja, quem tem irmão, pai, mãe, marido, esposa, pode ficar tranquilo que não vai ficar estacionado. Porque já temos ‘cutucadores’ o suficiente, que não nos deixam ficar parados. Isso é maravilhoso. Mas, às vezes, a gente se refugia na prática. Ela vira um lugar dourado onde a gente se joga dentro e confere que o resto é a vida. Mas aí, criticamos um pouco a vida, não é? Queremos que a vida seja dourada, como a nossa prática. Mas a nossa prática é. Então, nesse caso, ela fica como construção, porque, na prática, ela tem que penetrar o cotidiano. Aí vais desafiando sua prática com as cinco sabedorias. Porque se os vários mantras e as várias (**inaudível**) têm poder, elas vão terminar se identificando com as cinco sabedorias. Primeiro o Buda Primordial, depois Vairochana, aí tem os quatro Budas, os Diani Budas adicionais, completando os cinco. Esses cinco são a matriz que gera todas as outras deidades. Todas as deidades brotam disso. Elas são manifestações lúdicas diante de circunstâncias e aparências específicas. Mas a lucidez é sempre as cinco sabedorias. As cinco sabedorias dialogam perfeitamente com as seis perfeições também, no caminho Mahayana. Então é isso.
Kelly: Obrigada! Gratidão, Lama.
Lama: Eu fico admirado. Sempre te vejo na prática, Kelly. E fico pensando: “Ou ela está indo bem ou ela está indo mal, uma das coisas”. Agora, falando contigo, eu vejo que você está indo bem.
Kelly: Não. Mas Maharaja sempre ataca, também.
Lama: Ele sempre aparece, não é? É isso. É uma coisa boa. A gente tem que agradecer Maharaja, o incansável! Obrigado.
Kelly: Eu que agradeço!
Lama: Agora é a Isabel.
Isabel: Lama, foi muito importante esse retiro. Esclareceu muita coisa pra mim. Das oito consciências. O Lama falou, num certo momento, da importância de fazermos a prática do Buda Akshobia para os que morrem. Estou sempre envolvida nos estudos de morte. Qual seria essa prática?
Lama: Eu, na verdade, não tenho essa Sadhana. Não saberia, assim. Não tem.
Isabel: É uma Sadhana?
Lama: Mas eu posso procurar isso. Posso procurar e te trazer isso.
Isabel: Tá bom, obrigada por tudo.
Lama: Nada. Só um minutinho mais. O Luiz, agora.
Luiz: Alô, Lama, boa noite!
Lama: Boa noite, Luiz.
Luiz: Tudo bem? Eu queria até levantar uma coisa. Já que falou, agora, da questão da não dualidade. E das sabedorias. Considerando essa questão e a sabedoria, principalmente. Da questão da equanimidade e da igualdade, sabedoria do espelho. Nesses tempos que nós vivemos hoje, que as pessoas estão tão polarizadas e brigando por questões que, muitas vezes, a gente não deveria brigar. Muito pelo contrário, deveríamos nos apoiar, na tentativa de encontrar soluções para A, B e C que, na verdade, são as mesmas soluções que todos buscam. E, ao olhar para um e olhar para outro, muitas vezes, as pessoas, mesmo praticantes, eu mesmo, muitas vezes, me pego com isso, com raiva. Sendo que, se for pensar do ponto de vista da prática, aquilo é parte de mim. Qual seria um bom conselho para que, sobretudo neste tempo vindouro, agora de campanha e eleições, etc., para que as pessoas se afetem menos com isso? Que prática o senhor recomendaria?
Lama: É uma boa pergunta. Tu aí, com a camisa do Inter, me perguntando isso.
Luiz: Mas eu não quero ver o Grêmio cair pra segunda divisão. Não acho legal.
Lama: Vai direto para terceira, seria isso?
Luiz: Não! Não. Não acho legal, mesmo. Não torço contra, só torço pelo meu. Não torço contra o outro, só quando estão jogando um contra o outro.
Lama: Ah, tudo bem! Mas na hora que o Inter levou o segundo gol lá e perdeu achaste bom até, lá pro Juventude.
Luiz: Não! Não. Já queria, também, ser classificado pela libertadores.
Lama: Ah! Então também! Mas eu estou ficando com raiva aqui, agora. Mas é assim, tem que olhar mais amplo. Eu acho interessante a gente entender que não tem vitórias, sabe? O vitorioso, ele troca de lugar, mas não é uma vitória mesmo… vou tomar um chá aqui.
Luiz: Eu sou um deles. Aí deu ruim, hein?
Lama: Pensei no Inter, me engasguei. Não teve jogo.
Luiz: Tudo bem, mas é isso.
Lama: Ou seja, aquele que está vitorioso, logo em seguida está passando por problemas.
Luiz: Com certeza.
Lama: Não tem fim. O Samsara não tem solução. Vitória é ultrapassar o Samsara.
Luiz: Bem, obrigado!
Lama: Viu o que que o Inter fez?
(**inaudível**)
Lama: Essa pergunta, a mente primordial, é assim: ela não vem de lugar nenhum. Esse é um ponto. Como ela não tem conteúdo, se ela tivesse a gente poderia perguntar: “Mas isso vem de onde?”. Mas a mente primordial é vacuidade, é a grande vacuidade não dual, então não tem alguma coisa que origine ela. Ela não vem por um processo causal. Essa é uma questão parecida com a questão de Deus, não é? Então, Deus cria tudo, mas ele mesmo, de onde que ele vem? Como é que é isso, ele é autossurgido? Se ele é autossurgido, então havia um tempo que não havia ele. Então quem é que fez ele? Será que ele mesmo se fez num tempo? Mas aí é assim, vamos chegar à conclusão que Deus também é luminosidade, é Lhundrup, é a grande vacuidade, porque não tinha nada. Então ele constrói, mas ele não tem alguma coisa. Então ele dá surgimento e toda a sabedoria brota depois que as coisas são construídas. Então, é como se fosse, por exemplo, a sabedoria discriminativa, baseada nas aparências, que é o que nós utilizamos. Estamos acostumados a ver uma causalidade, e por isso que perguntamos: “Mas isso aí vem de onde?”. É assim, esse é o ponto. Mas aí, vamos negar a pergunta. Não respondemos, mas dizemos: “A sua pergunta, eu rejeito”. É assim. No budismo, a gente fala de Khadag que é ausência, é espaço. Então, o espaço surge de onde? A gente pode pensar: “O universo vem do big bang”. Ah, mas espera aí. Quando o big bang explode, ali surge o espaço, ou ali surgem as coisas dentro do espaço? Então o aspecto primordial é comparado com o espaço. Só que o espaço material, tridimensional, não é o espaço. É um espaço cognitivo, porque não tem nenhuma coisa que surja. Se não tem um observador vendo aquele surgimento, não podemos dizer que aquilo surge. Então, quando aquilo surge, aquilo surge sempre para uma mente. É quando então, a unidade se quebra e surge uma aparência e um observador. Então, nesse ponto, quando surge esse aspecto, vamos entender que o próprio espaço, quando surge, é não dual com a mente que viu o próprio espaço. Estou tentando te complicar assim, para você desistir da pergunta. Essa seria a ideia. Está funcionando. Então, esse é o ponto. É o espaço, mas tem um espaço anterior ao próprio espaço surgido, espaço dual, que é o que permite a dualidade aparecer. E isso está num nível sutil, num nível secreto. Esse nível secreto, nós vamos dizer que ele tem a característica da vacuidade e é incessantemente presente, que é Lhundrup, não é afetado pelas coisas. As coisas surgem, mas não afetam mais. Está completamente não afetado pelo surgimento das coisas. Então, as coisas surgem e cessam. Mas essa dimensão não surge nem cessa, nem flutua. Então a gente vai olhando isso, assim. Obrigado.
(**inaudível**)
Lama: É. É isso. Está ali, viu?
(**inaudível**)
Lama: Lhundrup, é presença incessante, também é chamado assim. Presença incessante é alguma coisa que está além das condições. Não está no nível de Alaya vijnana, mas é um ponto incessante. Porque a gente fala da impermanência, impermanência, impermanência e aí? E essa dimensão, essa dimensão não, ela não é. Tudo que é construído é impermanente, mas aquilo que não é construído tem algo incessantemente presente.
(**inaudível**)
Lama: Ah, a sétima consciência é iluminada, mas ela é um roteiro. Nós podemos não operar com a sétima consciência. Não precisamos, por exemplo, quando estamos usando Rigpa, contemplando as aparências, contemplando os seres, não tem alguém contemplando. Tem uma lucidez vendo aquilo. Então, isso não precisa de uma sétima consciência, e também não precisa de uma oitava.
(**inaudível**)
Lama: Ah sim, a sétima. Na medida que não haja iluminação, a pessoa está operando aqui. Então, quando as cinco consciências, olhos, ouvidos, nariz, língua e tato param, a sétima não para. Por exemplo, quando dormimos a noite, as cinco consciências amortecem. Mas a sétima consciência não. Acordamos dentro do sonho e estamos no meio do sonho, e tem um eu ali, no meio do sonho. Isso é a sétima consciência. Está operando ali dentro.
(**inaudível**)
Lama: Ela segue no ciclo. Mas se tem o renascimento e eu venho com outra forma, de um animal, então fica Alaya Vijnana que seria a própria consciência. E vou acessar as marcas dessa oitava consciência, desse próprio animal.
(**inaudível**)
Lama: Exatamente.
(**inaudível**) Mas, como fica a sétima consciência nisso?
Lama: A sétima vai surgir naturalmente, da oitava, daquilo que escolheste. Daquilo que foi de algum modo mais visível. Aquilo vai caracterizar a sétima. Aquele conjunto de características se aglutinam e começam a operar como um circuito nela. Vão se manifestar como a sétima consciência. A sétima consciência não é uma consciência, é uma operação.